All posts by Geraldo Mori

Mediações

Sumário

1 Religiões

2 Símbolo e linguagem

3 Escrituras

4 Igrejas

5 Magistério

6 Referências bibliográficas

É inconcebível ao pensamento racional humano decifrar de vez a relação entre Deus e mundo. Como suportar um suposto contato direto com Deus? O que captar? Daí ser inevitável intuir intermediários e/ou caminhos (methodos) que viabilizem a ponte entre, de um lado, o Todo, o Absoluto, o Ein-Sof, Brahman, o Supremo, o Tetragrama, e, de outro lado, tudo o que, analogicamente, pode ser chamado de “outro lado”. Outra maneira de conceber a ousadia desta reflexão é supor que seja o Mundo a ponte que medeia a desejada comunicação entre Eu e Deus.

Todas as religiões sempre souberam que tinham de dar conta dessa ponte inter-realidades. As hierarquias celestiais previstas pela angelologia são disso um exemplo conhecido pelas teologias monoteístas. O cristianismo moderno lida mal com esses temas, embora sejam clássicos na história das religiões e na teologia cristã.

Mas se não há conexão imediata nem, muito menos, identificação plena entre o Todo e tudo, entre o Criador e “toda carne” (Is 40ss), a categoria “mediação” talvez seja o principal vetor ou mesmo a “condição de possibilidade” para que haja teologia sobre qualquer tema. Então, se penso a relação entre eu e o Outro, no meio estão os outros. Segundo a tradição bíblica, no trajeto do ser humano para Deus a ponte/o atalho é acolher o pobre. O pobre faz a conexão entre o que ainda não é amor e o Amor. Em igual medida, a mente faz a ligação entre o meu corpo e Deus, ou seja entre a consciência e o que ainda não é consciente. A Palavra está no meio, entre o som e o que ainda se guarda em silêncio. A imagem, quando maturada, se faz Arte, e liga as coisas visíveis às invisíveis. A lei (torah) define o estabelecido, as regras do jogo, e assim possibilita que a criatividade invente/improvise dentro dos limites dados. O dogma outra coisa não é senão a “pontuação” (SEGUNDO, 2000) que demarca o que já sabemos e aponta a direção para mais saber. Por detrás dele, a construí-lo e protegê-lo, está a comunidade, o âmbito da comunhão que acontece no meio do caminho. E que nada alcança sem a mediação de amigos espirituais, o maior de todos sendo aquele que os cristãos chamam de Jesus, vendo nele o ponto de conexão entre o Deus intangível e a Criação em evolução.

A noção de revelação ratificada no Concílio Vaticano II (Dei Verbum) assume um pressuposto caro a teólogos católicos como Karl Rahner e outros: a revelação como autocomunicação divina, ou seja, uma comunicação interpessoal e não uma coletânea ou lista de afirmações doutrinais. Não como mero depósito de informações corretas, e sim como caminho (pedagogia divina: DV 15) em direção à verdade  final.

Entendida como educação, a concepção cristã de revelação parece soprar que, mais importante do que o conteúdo ou o resultado final da ação, interessam os caminhos que efetivamente cada ser humano trilha em sua busca de sentido para a existência. Veremos a seguir algumas categorias daí decorrentes e implicadas na convicção cristã de que o Deus mistério trino revelou-se aos que criou por amor.

1 Religiões

O conceito usual de religião traz sua dose de polêmica (PASSOS; USARSKI, 2013). Alguns, na esteira de M. Eliade, querem ver no fenômeno religioso algo sui generis, definido de uma vez por todas, bastando apenas ao estudioso seguir checando na realidade social quando e sob quais condições e circunstâncias (variáveis), o fenômeno é reencontrável. De outra parte estão os que, como Russel McCutcheon, defendem a definição do que venha a (e possa) ser religião somente após o necessário mergulho na realidade sociocultural pesquisada. Há ainda quem prefira uma terceira posição, e entenda ser religião aquilo que determinada autoridade institucional estabeleça, em dada configuração social, o que ali será o religioso – é a dimensão política do conceito.

Mesmo sem precisar tomar partido por nenhuma das três posições, é útil constatar – para nosso escopo nesta reflexão – que todas as três reconhecem ser a religião uma companhia rotineira de nossas invenções sociais. Toda religião move-se na argamassa de uma construção social (comunitária e/ou coletiva) que vai sendo modelada ao longo de vastos espaços de tempo. Como fato social, a religião subsiste porque consegue se manter presente graças a seus ritos, mitos, doutrinas e comportamentos adquiridos por seus membros.

Mais: como tomada de consciência da presença do mundo espiritual no mundo visível, o conjunto de experiências que resultam no que se costuma chamar de religião é sempre algo sentido como receptor do que nos transcende e que, bem por isso, nos explicaria quem somos e de onde viemos. Quem entra em contato com essas supostas respostas não consegue guardá-las para si e sente uma necessidade intrínseca de protegê-las e divulgá-las aos demais, gerando grupos comunitários em torno deste novo achado significativo. Esse é o berço comum das religiões.

Nenhum ser humano vem ao mundo partindo de um ponto zero cultural. Ele nasce já inserido em um contexto, em uma história e durante muitos anos não fará muito mais do que absorver qual esponja a linguagem, as estruturas de pensamento, os valores, os condicionamentos, a sensibilidade, enfim, a tradição cultural-religiosa em que foi socialmente inserido. Daí brotarão, ainda que parcialmente, suas premissas epistemológicas e ontológicas (BATESON, 1997), ou seja, os mecanismos pelos quais conseguirá compreender, julgar e interferir na realidade. Em suma: sem mediação não há autocompreensão.

Não temos aqui perfeita sinonímia com a noção de “revelação”, conceito, por sua vez, vital em tradições como o cristianismo, qualquer que seja o viés e a ênfase que ela venha a receber ao longo dos séculos e das sucessivas teologias. Mas qualquer religião pressupõe, de algum modo, o que chamamos de revelação, na medida em que considera a si mesma como obra divina e não mera criação humana (TORRES QUEIRUGA, 2010). Se toda religião vem a ser a tomada de consciência da presença do divino no mundo – ou, pelo menos, o desejo infinito de que haja tal presença –, essa experiência (religiosa) será sempre sentida como receptora do Transcendente, ou seja, a descoberta do divino que se manifesta na vida humana pela mediação da história.

Conceito correlato está no termo “tradição”, que traduz tudo o que foi sendo religiosamente vivido e guardado ao longo de milênios por determinados grupos sociais no que diz respeito à maneira como se entendia sua relação com as divindades e com o mundo espiritual em geral.

Referindo-se especialmente aos antecedentes da religião cristã, J. L. Segundo afirmava que “as mais profundas tradições espirituais da humanidade são justamente esta série de tentativas que, pouco a pouco, oferecem à existência um sentido que não possa ser desmentido pela realidade total”, a saber, são dados transcendentes que consistem “nessas novas redes jogadas sobre os acontecimentos para torná-los compatíveis com a vitória final de certos valores” (SEGUNDO, 1984, p.290-1). Semelhante compreensão das religiões implica, para a teologia cristã, numa revisão da noção tradicional de revelação, em benefício de outra que contemple a autocomunicação divina aos humanos como processo histórico, com a consequente atenção ao nascimento e definição de outra mediação decisiva: o cânon bíblico, peça-chave na configuração das chamadas religiões do Livro.

Como religião revelada que se autocompreende como histórica, o cristianismo reenvia seus fiéis a eventos que se pressupõem acontecidos no passado e, especificamente, ao ensinamento, às ações, à vida, à morte e ressurreição de Jesus. Esses dados só podem ser recebidos por fiéis de todas as épocas e lugares porque foram transmitidos por testemunhas autorizadas, ou seja, cridas como suficientemente qualificadas para servir de referência às gerações posteriores. No caso cristão, mediação decisiva teve a comunidade dos primeiros apóstolos.

2 Símbolo e linguagem

Não é estranha a noção de mediação simbólica quando o assunto é religião e/ou revelação. No entanto, a capacidade humana de simbolizar é muito mais vasta e transborda os limites do estritamente religioso. O símbolo se confunde com a invenção da linguagem e com nossa atávica necessidade de sobrevivência. Tinha razão P. Valéry ao sugerir que nada somos sem o auxílio daquilo que inexiste. Nenhuma vida social se sustenta no longo prazo se as pessoas não pressupuserem que há luz no fim do túnel e ordem detrás do caos. Qualquer instituição social básica depende desse postulado, “a despeito da renovada intrusão na experiência individual e coletiva dos fenômenos anômicos (ou, se se prefere, denomizante) do sofrimento, do mal e, sobretudo, da morte” (BERGER, 1985, p.65). Porém, mais que superadas, tais “anomalias” precisam ser explicadas de forma a serem acomodadas na ordem presumida. Qualquer esforço nessa direção pode chamar-se teodiceia (Ibidem). Uma religião que se queira realmente convincente deverá chegar às pessoas em um conduíte flexível e eficiente o bastante para cativar, motivar e direcionar. E esse é a linguagem simbólica ou icônica (BATESON, 1976).

A linguagem simbólica não substitui a observação científica nem a especulação filosófica, mas, de certa maneira, as inclui e ultrapassa, na medida em que nomeia seus postulados indemonstráveis. Daí vem sua força como ducto de teodiceias, pois se há uma área de nossas preocupações em que a explicação do problema conta mais que sua eventual resolução ou eliminação, é exatamente esta. E já que não chegamos à realidade existencial e histórica com a simples especulação, precisamos ter contato com a experiência mesma, que se expressa nos símbolos e nos mitos (e nos ritos e nos credos…). A reflexão precisa beber dessas palavras primordiais se quiser encontrar a experiência e poder pensá-la filosoficamente.

Afirmar a relevância do simbólico perante o científico pressupõe checar o primeiro com critérios de verificabilidade distintos do segundo. G. Bateson esclarece os três tipos ou níveis de verificabilidade da linguagem conotativa ao explicar que esta é primariamente composta de conotações afetivas. É este valor, e não outro, que provoca em mim sinalizações positivas (alegria, segurança, esperança…). Assim, posso ser tocado por um conto, uma música, um recanto ou uma pessoa recém-conhecida. Algo nessa pessoa ou nesses objetos/lugares me afeta. Em seguida, essa primeira experiência me levará a discernir e a comprometer-me para que tais sinalizações se repitam. Essa segunda consequência, ético-existencial, deságua numa terceira: a repetição comunitária; isto é, eu pretendo que também os demais se apercebam da razoabilidade de minha escolha. A dificuldade, nesse nível, é que não se trata de um fenômeno físico cuja hipótese, cedo ou tarde, será cientificamente confirmada ou não. Nesta sede não há uma teoria submetida à realidade; antes, é a premissa que vigora soberana, exigindo minha . Esse terceiro grau de verificabilidade apela, de um ou de outro modo, a uma experiência escatológica. E pede, da parte de meu interlocutor, o exercício muito humano da fé. Ele precisa apostar que, no futuro, ficará evidente, que eu tinha razão.

A explicação de Bateson esclarece, em primeiro lugar, que a linguagem simbólica entra em relação com a problemática existencial do ser humano. Ela alude inequivocamente, na mesma expressão da resposta, àquilo que incomoda o leitor/ouvinte/espectador e autoriza/recupera a emoção que gerou tais questionamentos. Em segundo lugar, a narração (e a arte em geral) torna críveis os postulados que dão sentido à comunidade religiosa envolvida nesses enredos e faz com que se veja a racionalidade subjacente a esta ou aquela realidade. Essa comunhão de sentimentos em torno dos valores que nos afetaram nos relatos gera, em última instância, a cultura – e haverá tantas culturas quantas forem as variações nessas criações simbólicas.

3 Escrituras

A teologia fundamental sabe que a afirmação dogmática da fé cristã é pouco incidente se não leva em conta os caminhos realmente humanos da acolhida da mensagem cristã. E uma pergunta que cedo ou tarde terá de ser respondida é aquela deparada por Kierkegaard (2007): existem, na comunidade cristã, discípulos de segunda classe? Em outros termos, não haveria um privilégio invencível dos discípulos que conheceram Jesus pessoalmente, em prejuízo daqueles que tiveram e têm de se contentar com material de segunda – ou seja, os textos escritos e os antigos costumes que são oferecidos como autêntica continuação da presença do Mestre através dos séculos?

Essa é uma das maneiras de se colocar o que há de inevitável e simultaneamente o que há de controvertido no apelo a Escrituras oficiais – isto é, reconhecidas como autênticas pelo magistério eclesial – como “prova” e caminho de acesso à experiência fundante da chamada igreja das origens. Desafio semelhante se encontra nas comunidades do Antigo Israel, onde parece haver clareza, na maior parte do tempo, da necessidade de se combinarem textos escritos com a construção de uma tradição complementar de rituais e comentários escriturísticos. A composição lenta da Torá (Pentateuco) nunca exclui sua releitura em diferentes circunstâncias, ensejando a coleção de livros atribuída a videntes deambulantes conhecidos como nebiim (profetas) e, mais tarde, em novos contextos e problemáticas, enriquecendo a coleção com obras sapienciais inovadoras para o pensamento hebraico antigo (ketuvim). Dessa forma, o judeu bíblico pode continuar sentindo-se pertencente à tradição do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, embora já não viva nem repita ao pé da letra o estilo de vida de seus ilustres antepassados.

Ainda é comum entre os cristãos atribuir a noção de “revelação” ao conjunto do material consignado nas Escrituras. Mas se nos imaginamos vivendo aqueles tempos com nossos antepassados semitas, o que as pessoas de então experimentavam era a consciência de que todos os instantes de sua vida eram tocados ou atravessados pelo mundo espiritual. Ética, culto e religiosidade eram um bloco só, embora se admitissem momentos e/ou circunstâncias em que o portal com o mundo invisível se mostrasse menos opaco. Essa consciência é tão certa e tão evidente que a Bíblia nem mesmo se preocupa em estabelecer uma palavra paradigmática para designar nosso conceito moderno de revelação. O fato/acontecimento fala por si mesmo, seja ele um episódio recontado, no qual se viu a mão do divino, seja ele técnicas mágicas, tais como sonhos, adivinhações, necromancias, oráculos, saídas do corpo (comuns entre os nebiim/profetas antigos), e assim por diante.

Há, evidentemente, nuances importantes entre os vários livros bíblicos, escritos em distintas épocas, a partir de renovadas compreensões sobre a realidade e sobre a divindade que dá sustentação a essa realidade (LATOURELLE, 1990, p.1015-21). É diferente conceber um ser divino que se manifesta visitando-o em sua tenda e comendo de sua comida (Abraão) e outro que, do alto de uma montanha, sequer se deixa ver e prescreve, no meio de raios e furacões, leis a serem obedecidas sem discussão. Não é o mesmo imaginar a divindade entrando em contato com o profeta via oráculos (ou seja, puxando o espírito do sujeito para fora do corpo e, nesse plano de realidade, comunicando-lhe ensinamentos) e, séculos depois, acolher o livro da Sabedoria ou o Eclesiástico (claramente sapienciais, produzidos pela meditação atenta, e quase filosóficos em sentido helênico) como Palavra de Deus.

O mais marcante, porém, nos exemplos bíblicos, é a experiência central da divindade do Êxodo, que permeia, qual conduíte, todas as narrativas, apontando para a relação pessoal e sua consequência ética (WIEDENHOFER, 1993, p.795-6). Vários autores notaram a progressiva passagem de uma percepção imanente das forças e mensageiros divinos para uma espécie de transcendentalização do encontro divino-humano, ainda nos textos veterotestamentários. Com isso, tais encontros vão se tornando mais raros. Esse processo tem sido chamado de “verbalização da revelação” (TORRES QUEIRUGA, 2010). Nós o vemos, por exemplo, na passagem de concepções claramente antropomórficas (o anjo de Iahweh, os rostos de Iahweh, o nome de Iahweh) para formas mais refinadas (o Espírito de Deus, a Sabedoria de Deus, a Palavra de Deus). Outra característica dessa mudança é que cada vez menos se estimula a experiência direta (as profecias ou as viagens celestiais, por exemplo), – claramente entendidas como ambíguas e perigosas – privilegiando-se, em seu lugar (principalmente após a experiência do chamado exílio babilônico), a leitura (sinagogal) dos recados que Deus já enviara no passado.

Se fôssemos usar o termo “revelação” nesses casos, diríamos que a revelação foi deixando de ser algo que costumava acontecer e passou a ser algo que, um dia, tinha acontecido. Em suma, chegou-se a uma espécie de redução da compreensão do diálogo entre Deus e a humanidade a uma ponte fixa, a saber, o texto escrito das Sagradas Escrituras. O mesmo fenômeno teria acontecido no cristianismo com o passar dos séculos. No entanto, outros especialistas nos alertam para os inúmeros episódios que evidenciam uma maneira muito realista e prudente de retocar pontualmente a mediação escriturística quando surgiam problemas ainda sem solução estabelecida. Sempre que uma situação muito real e crítica não encontrava as respostas adequadas nos seus escritos ou em suas narrativas orais paradigmáticas, os sábios israelitas não hesitavam em relê-los acrescentando, confrontando, omitindo ou interpolando.

C. Mesters insiste na necessidade de recuperar a relevância do texto bíblico “não como um texto caído do céu, mas antes como algo nascido de dentro da fé do Povo de Deus, enquanto este tomava posição em meio aos conflitos do caminho”. Portanto, “este processo de leitura e releitura está na origem da Bíblia” e continua ao longo da história da Igreja (MESTERS, 1989, p.461). Sendo assim, para a noção cristã de revelação, a mediação da Bíblia é evidentemente fundamental. Ao longo da história esse papel foi muitas vezes exagerado – como na perspectiva protestante (Lutero) sola Scriptura – ou mesmo subestimado – como na técnica escolástica pré-moderna do argumentum Scripturae (que reduzia a consulta bíblica a um mero levantamento de citações ilustrativas das teses/cânones doutrinais/dogmáticos pré-concebidos/pré-definidos). No entanto, essa experiência central de toda religião está plenamente presente na Bíblia, com pontos em comum e também diferenças significativas em relação à literatura oriental antiga na qual se banha.

4 Igrejas

 Não há texto a ser lido se não houver quem o escreva. E não adianta escrevê-lo se não houver quem, tendo-o lido, recomende sua leitura, o proteja e o divulgue. Estamos falando do papel insubstituível da comunidade de fé – ou comunidade reunida em torno dos mesmos símbolos e textos fundamentais. Na tradição cristã nos habituamos a denominá-la(s) de Igreja(s).

No panorama católico mais recente, a principal reformulação da noção cristã de Igreja ocorreu no Concílio Ecumênico Vaticano II. Os 45 parágrafos iniciais da Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS) sintetizam o que os padres conciliares entenderam ser a necessária função mediadora da Igreja. Tal função é condicionada pela seguinte exigência: “que no plano de salvação da humanidade, aqueles que conhecem o mistério do amor estejam no meio dos homens, e junto de todos, dialogando com quem, neste caminhar rumo ao Evangelho, tropeça com as exigentes interrogações do amor” (SEGUNDO, 1978, p.78). J. L. Segundo oferece um sucinto roteiro da GS que iremos comentando na medida em que o transcrevemos (SEGUNDO, 1984, p.33, n.15):

“a) O que vale para os cristãos, em ordem à salvação, vale igualmente para todos os homens e mulheres de boa vontade (GS n.22e). Ou seja, todos os homens e mulheres estão sujeitos aos mesmos critérios de julgamento em vista de sua plenitude espiritual e humana, não importando se são ou não cristãos.

b) A única diferença está em conhecer pela fé o destino global que Deus confere ao ser humano (GS22f). Então, cristão é quem ‘sabe’ que, no fundo, todos se salvam (se o querem).

c) Esta fé destina-se a ajudar a humanidade a encontrar soluções mais humanas a seus problemas históricos (GS11). Se assim é, que diferença faz ser ou não ser cristão? A fé é dada para que este se coloque a serviço do bem estar geral. Não é um privilégio nem lhe dá algum tipo de garantia salvífica acima e/ou além dos demais.

d) Têm razão as pessoas que, de boa fé, aceitam ou não a Deus e a seu evangelho, na medida em que os vejam traduzidos em soluções humanizadoras. Portanto, a Igreja compromete-se a averiguar com seriedade até onde as realizações devidas a cristãos possam levar a uma negação da fé (GS19c, 21b.f). Portanto, o caminho da revelação cristã não é imediatamente compreensível nem aceitável, mas passa pela mediação do testemunho dos já iniciados. Daí que ‘os homens devam comunicar reciprocamente, de modo amplo, lento e profundo, os seus respectivos mundos de valores e iniciar um discurso sobre a partilha ou não de uma mesma fé religiosa’ (SEGUNDO,1984, p.16).

e) O cristão deve, portanto, se unir aos demais homens e mulheres na busca da verdade, já que a verdade revelada só pode ser cumprida ao se tornar verdade humanizadora (GS16). O cristão não detém nenhum tipo de verdade estática, definitiva, que o dispense de construir, juntamente com os demais semelhantes, uma verdade de fato humanizadora. A verdade da revelação cristã é histórica e só pode ser compreensível na medida em que for continuamente reinserida na (ambivalência da) história.

Esse exemplo ajuda a compreender como o pensamento católico entende a função da comunidade eclesial, condicionada pela seguinte exigência: ‘que no plano de salvação da humanidade, aqueles que conhecem o mistério do amor estejam no meio dos homens, e junto de todos, dialogando com quem, neste caminhar rumo ao Evangelho, tropeça com as exigentes interrogações do amor’ (SEGUNDO, 1978, p.78).

f) Os leigos protagonizam esta função eclesial sem buscar soluções prontas nas autoridades da Igreja, nem mesmo em assuntos graves, uma vez que esta não é a missão delas (GS43b). Ao laicato cabe o protagonismo de mediar a presença da mensagem cristã na sociedade. As autoridades eclesiásticas não têm nenhuma prerrogativa especial que as torne infalíveis quando se trata de encontrar soluções para problemas históricos.

g) A Igreja, nesta função de oferecer elementos humanizadores procedentes de sua fé, reconhece a dívida que tem para com o desenvolvimento da humanidade e ainda para com seus históricos oponentes e perseguidores (GS 44a.c)”. O surpreendente aqui é que uma das pontes entre o Evangelho cristão e a sociedade são justamente os históricos oponentes e perseguidores da Igreja visível. Uma evidente mudança de atitude que não deixou de surtir efeito nos anos que se seguiram ao Vaticano II.

5 Magistério

Qualquer grupo religioso organizado dependerá, cedo ou tarde, de um sistema de preservação e transmissão de sua mensagem e dos desdobramentos rotineiros dela decorrentes. Exemplo disso na tradição judaica antiga é detectado de forma bem didática por J. L. Segundo (2000) ao explicar que a comunidade sinagogal que lê os textos sagrados é tão inspirada quanto seus autores humanos. Não é diferente quando se considera a função mediadora da comunidade eclesial, pois ela tem indiscutivelmente a missão de ensinar, com seu testemunho ortopráxico e doutrina ortodoxa, o caminho autenticamente evangélico a ser percorrido pelos cristãos.

O Concílio Vaticano II trouxe nesse campo contribuições importantes para a discussão do tema no catolicismo atual – de modo particular na Constituição dogmática Dei Verbum. Ao falar da origem divina, da “Sagrada Tradição e Sagrada Escritura”, a DV n.9 diz que elas “estão estreitamente unidas e comunicantes (compenetradas) entre si”. Mas acrescenta, no final do n.10, a tríade que nomeia, aparentemente em pé de igualdade, o magistério eclesiástico, a “Sagrada Tradição” e a “Sagrada Escritura”. No entanto, o contexto maior da DV não nos permite equiparar essas três dimensões. Nenhum Concílio ousaria dar o mesmo status ao magistério eclesiástico e à Bíblia. O novo, em vez, é a insistência em dizer que elas “se entrelaçam e se associam entre si de tal forma que uma não subsiste sem as outras”, pois dissolve qualquer pretensão da Tradição de se sustentar como material de fé independente da Escritura. Não sendo independente, não se vê como podem ser dogmas aqueles dados não contidos na Escritura.

A menção ao Magistério nesse trecho decisivo da Dei Verbum parece sugerir que os padres conciliares deram muita atenção à ordem histórica em que surgem e funcionam essas três dimensões. Com efeito, a escrituração do Novo Testamento foi feita a partir da coleta e seleção da mensagem transmitida pelos apóstolos, e precisou depois ser submetida à apreciação do corpo presbiteral para que pudesse seguir sendo lida/celebrada na liturgia e, com o tempo, admitida no cânon. É essa tradição apostólica que oferece os óculos com os quais será possível ver, admirar e optar pela mensagem e valores de Jesus nos séculos seguintes. Certamente outros desdobramentos suscitarão revisões na teologia da revelação e na eclesiologia cristãs. Um dos principais talvez seja a inclusão positiva no serviço magisterial da experiência oriunda do sensus fidei fidelium. Para avaliar seus frutos teremos, porém, de aguardar algumas décadas.

Afonso Maria Ligorio Soares. PUC São Paulo, Brasil

 6 Referências bibliográficas

Bateson, G. Pasos hacia una ecología de la mente: una aproximación revolucionaria a la autocomprensión del hombre. B. Aires-Mexico: Carlos Lohlé, 1976.

Berger, P. L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985.

KIERKEGAARD, Søren. Migajas filosóficas o un poco de filosofia. 5.ed. Madri: Trotta, 2007.

LATOURELLE, R. Rivelazione. In: ______; FISICHELLA, R. Dizionario di Teologia Fondamentale. Assisi: Cittadella, 1990. p.1013-66.

MESTERS, C. O Projeto Palavra-Vida: a leitura fiel da Bíblia de acordo com a Tradição e o Magistério da Igreja. Convergência, n.226, p. 451-67. 1989.

PASSOS, J. D.; USARSKI, F. Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulinas, 2013.

SEGUNDO, J. L. Teologia aberta para o leigo adulto. São Paulo: Loyola, 1978. v.1. Essa comunidade chamada Igreja.

______. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré. São Paulo: Paulinas, 1985. v.1. Fé e Ideologia.

______. O dogma que liberta: fé, revelação e magistério dogmático. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2000.

TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a revelação: a revelação divina na realização humana. São Paulo: Paulinas, 2010.

WIEDENHOFER, S. Revelação. In: EICHER, P. Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia. São Paulo: Paulus, 1993. p.792-800.

Para saber mais

CROATTO, J. S. As Linguagens da Experiência Religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2001.

DENZINGER, H; HÜNERMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja católica. São Paulo: Paulinas-Loyola, 2007.

ESPÍN, O. A fé do povo: reflexões teológicas sobre o catolicismo popular. São Paulo: Paulinas, 2000.

ESTRADA, J. A. Imagens de Deus. A filosofia ante a linguagem religiosa. São Paulo: Paulinas, 2007.

LAFONT, G. História teológica da Igreja católica: itinerário e formas da teologia. São Paulo: Paulinas, 2000.

LURKER, M. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993.

SEGUNDO, J. L. Diálogo e teologia fundamental. Concilium, n.6, p.91-101. 1969.

SOARES, A. M. L. Interfaces da revelação: pressupostos para uma teologia do sincretismo religioso no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2003.

______. No espírito do Abbá: fé, revelação e vivências plurais. São Paulo: Paulinas, 2008.

______. Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso no Vaticano II: sugestão hermenêutica para a releitura dos documentos conciliares. In: BORGES, R.; MIOTELLO, V. (org.). O Concílio Vaticano II como evento dialógico. São Carlos: Pedro & João Ed., 2013. p.25-37.

Leituras e hermenêutica

Sumário

1 Uma Bíblia, muitas leituras 

2 Sentido literal, alegórico, espiritual, moral, pleno

3 Exegese e hermenêutica

4 Leitura, abordagem, método: o problema da nomenclatura

5 Exegese e texto original

6 Leituras sincrônicas

6.1 Análise da estrutura literária

6.2 Análise da narrativa

6.3 Análise retórica

6.4 Análises linguísticas

7 Leituras diacrônicas

7.1 Literarkritik

7.2 Análise dos gêneros literários

7.3 Análise da tradição

7.4 Análise da redação

8 Leitura fundamentalista

9 Novas abordagens

9.1 Leitura socioantropológica e política

9.2 Leitura feminista

10 À guisa de conclusão

11 Referênciasbibliográficas

 1 Uma Bíblia, muitas leituras

 O livro que chamamos de Bíblia ou Sagrada Escritura está aberto a muitas interpretações, não só àquelas espirituais, religiosas e teológicas, mas também a outras, mais leigas e “profanas”. Uma vez saído da mão do autor, o texto adquire vida própria e significados que não dependem mais de quem o escreveu. Com a Bíblia não é diferente: há muitos modos de ler a Escritura, muitos sentidos para o mesmo texto, muitas interpretações para o mesmo versículo.

O que faz a riqueza e a pobreza de uma leitura da Bíblia não é o texto em si mesmo, mas a capacidade (ou falta dela) de encontrar as muitas possibilidades de interpretá-lo, desde os significados mais aparentes e imediatos, até os significados mais profundos e subentendidos.

Um largo leque de interpretações – às vezes em conflito, mas nem sempre – abre-se para o leitor que não se contenta com apenas uma leitura, mas que aceita a máxima rabínica: “a Escritura tem setenta faces”, isto é, há muitos modos diferentes de ler a Palavra de Deus e, portanto, não há o significado do texto, e sim os significados do texto.

Essa multiforme interpretação da Bíblia deriva de vários fatores: do próprio texto (a língua e o estilo do autor), do leitor (seus interesses pessoais, seus conhecimentos do universo bíblico), das etapas da história da teologia (dogmas, controvérsias, concílios) e do desenvolvimento das ciências em geral (arqueologia, história, sociologia).

É possível ler a Bíblia não só de modo espiritual e pastoral, mas também de modo científico. Por modo científico de ler a Bíblia, compreende-se não a aplicação dos postulados e dos instrumentos das várias ciências modernas (psicanálise, medicina, sociologia) ao texto bíblico, e sim um conjunto de metodologias, pressupostos e critérios para se fazer exegese, isto é, “extrair, levar para fora” o significado mais profundo. Dito de outro modo, fazer exegese é romper a superficialidade da explicação imediata e aparente e buscar outros significados, outros sentidos e outras relações, por meio de passos metodológicos consistentes e criteriosos.

 2 Sentido literal, alegórico, espiritual, moral, pleno

 Ao longo da teologia cristã, o problema hermenêutico conheceu diversas respostas, que dependeram não só do desenvolvimento da própria teologia, bem como do desenvolvimento do conhecimento científico em geral. Não obstante, é possível observar uma constante: gradativamente vai-se delineando a necessidade de distinguir entre o sentido literal e o sentido espiritual do texto.

Na Idade Média, solidificou-se a subdivisão do sentido espiritual em três – o alegórico, o espiritual e o moral –, que com o sentido literal formam os assim chamados “quatro sentidos medievais da Escritura”. A articulação destes quatro sentidos foi assim sintetizada:

“A letra ensina os fatos; a alegoria, aquilo em que deves crer.

O moral, aquilo que deves fazer; a anagogia, aquilo a que deves tender”

O sentido literal (ou histórico) exprime os fatos e os acontecimentos.

O sentido alegórico esclarece as verdades da fé (teológicas, cristológicas, mariológicas) transmitidas pelo sentido literal.

O sentido moral (ou tropológico) guia quem crê à ação, como deve agir em sua vida de fé.

O sentido anagógico orienta este mesmo fiel para os fins últimos, numa espécie de contemplação da vida eterna.

Esses quatro sentidos possuem uma hierarquia que é facilmente percebida quando se lê o Antigo Testamento. A tradição medieval segue os passos da tradição patrística e considera o sentido literal o menos importante e, inversamente, supervaloriza o alegórico, uma vez que toda a Sagrada Escritura (notadamente o Antigo Testamento) é interpretada em chave cristã, isto é, toda a Bíblia fala de Cristo, da Igreja e dos seus dogmas.

Como afirmado no início desta sessão, o desenvolvimento da teologia e do conhecimento científico ao longo dos séculos postulou questionamentos à leitura da Bíblia e obrigou a repensar não somente as definições de “sentido literal” e “sentido espiritual”, mas os sentidos em si mesmos, uma vez que a distinção entre um sentido literal e outro espiritual abria a possibilidade de afirmar que somente após Jesus as Escrituras hebraicas ganharam um significado espiritual, o que, entre outros problemas, colide com os conceitos de revelação e de inspiração.

Somente na primeira parte do século XX surgiu a expressão “sentido pleno” (em latim, sensus plenior), cunhada por A. Fernández, em 1925, para designar um sentido mais profundo do que o literal, desejado por Deus, mas que não estava suficientemente claro para o autor humano. Para se chegar a esse “sentido pleno” de um texto bíblico, é necessário estudá-lo à luz da revelação ulterior, isto é, com a ajuda de textos bíblicos escritos posteriormente e que citam e interpretam o texto estudado.

3 Exegese e hermenêutica

Exegese e hermenêutica não se confundem, embora estejam intimamente ligadas. Grosso modo, normalmente fala-se que hermenêutica é a ciência dos princípios de interpretação de um texto, enquanto exegese é a aplicação desses princípios para explicar o texto. Esta distinção, no entanto, não é suficiente.

No uso atual, o termo hermenêutica designa muito amplamente as metodologias de leitura da Bíblia que têm como objetivo encontrar os significados do texto bíblico e aplicá-los à realidade do leitor. Por isso, fala-se de “hermenêutica rabínica”, de “hermenêutica medieval” etc.

Por sua vez, o termo exegese é aplicado a um conjunto de procedimentos e abordagens críticas que têm como objetivo interpretar o texto em si mesmo: seu significado original, sua organização linguística e literária, seus conceitos teológicos, seus motivos literários, a história de sua formação.

A exegese é praticada em duas direções complementares: a sincronia e a diacronia (cf. veremos logo a seguir).

Também há de se distinguir entre exegese e teologia bíblica. Trata-se de duas ciências muito ligadas e complementares. Não se pode separá-las, porque os problemas de uma tornam-se também problemas para a outra. Mas, enquanto a teologia bíblica faz um esforço de síntese da mensagem bíblica, a exegese realiza um trabalho analítico. Em palavras pobres, a teologia bíblica busca o que os textos têm de semelhante, a exegese busca o que os textos têm de diferente.

4 Leitura, abordagem, método: o problema da nomenclatura

Os manuais e os artigos sobre exegese utilizam variada nomenclatura para definir os vários passos e aspectos da interpretação do texto bíblico: método, leitura, abordagem, análise. Por exemplo, o que um estudioso qualifica como “métodos diacrônicos” outro denomina “leituras diacrônicas”, enquanto um terceiro fala de “abordagens diacrônicas”!

O uso deste ou daquele termo parece ter como razão mais a preferência pessoal de quem escreve do que um fundamento objetivo. Por conseguinte, até o momento não se chegou a um consenso sobre o que distingue uma análise de uma leitura e, numa tentativa de hierarquia e agrupamento, se a análise é um tipo de leitura ou se a leitura é um tipo de análise.

Não obstante, alguns sintagmas acabaram se impondo, muito mais pelo uso do que por rigor terminológico. Tal é o caso de “método histórico-crítico”, “análise da estrutura literária”, “leitura sócio-antropológica”, “crítica textual”. Em outros casos, porém, há uma completa falta de consenso, a ponto de fazer supor que os termos sejam intercambiáveis: fala-se tanto de análise como de crítica dos gêneros literários; tanto de análise como de abordagem retórica; tanto de leitura como de análise sincrônica.

O termo método normalmente é usado para designar um conjunto articulado de análises, abordagens, leituras e críticas. Nas modernas ciências bíblicas, consagrou-se o método histórico-crítico, mas já bem antes dele, o método rabínico (targúmico/deráshico) e o método alegórico atingiram um alto grau de complexidade e articulação de critérios.

Aparentemente, o termo análise indica o estudo sistemático de um aspecto do texto, seguindo uma série de critérios: análise estilística, análise semântica, análise da estrutura/organização do texto. Devido à complexidade e à avaliação criteriosa dos dados que avaliam, algumas análises acabaram assumindo o nome de crítica: crítica textual, crítica literária, crítica dos gêneros literários, crítica da redação.

Leitura, por sua vez, é muitas vezes usado para designar modos de interpretação dificilmente classificáveis como método ou análise ou crítica. São três as possibilidades. Em primeiro lugar, quando a leitura não segue rígidos critérios e categorias de interpretação, mas valoriza o diálogo com o texto e, por conseguinte, pode ser praticada mais de modo empírico do que propriamente sistemático. Tal é o caso da “leitura popular”, da “leitura orante” e da “leitura pastoral”. Segundo, quando a leitura aplica ao texto bíblico critérios e procedimentos de outras ciências. Assim a “leitura sócio-antropológica” e a “leitura psicanalítica”. Por fim, o terceiro, quando a leitura assume um horizonte hermenêutico ou um aspecto dele. Tal é o caso da “leitura feminista” e da “leitura libertadora”.

No entanto, a falta de consenso quanto à nomenclatura não implica afirmar que todos esses modos de interpretar a Bíblia tenham a mesma validade científica (embora deva-se dizer que alguns são mais científicos que outros), nem que devam ser deslegitimados e descartados os modos “menos científicos” de ler e interpretar a Sagrada Escritura.

É necessário, antes, adaptar o modo de ler ao objetivo da leitura e, portanto, mais do que “interpretação correta”, é necessário falar de “interpretação adequada”: há o modo adequado para ler a Bíblia na oração, que não é o modo adequado para ler a Bíblia quando se quer fazer teologia e exegese, que, por sua vez, pode não ser o modo mais adequado para fazer uma boa catequese baseada nos textos bíblicos.

5 Exegese e texto original

O termo exegese vem do verbo grego ex-ágo, que significa: “levar para fora, tirar, extrair, fazer sair”. Em palavras simples, exegese é a ciência da interpretação que “extrai” o significado que está oculto no texto. Ela pertence às chamadas “ciências bíblicas”, isto é, um conjunto de abordagens críticas altamente elaboradas, corrigidas e completadas ao longo de séculos.

Não se pode fazer verdadeira exegese se não sobre o texto original. Por conseguinte, não se pode fazer exegese sem conhecer as línguas bíblicas (hebraico, aramaico e grego). Do contrário, qualquer afirmação acerca do significado de um texto ficará refém da natural impossibilidade de se traduzir com total exatidão na língua de chegada o que palavras e frases significam na língua de partida.

Quando se fala de texto original, o adjetivo “original” vai destacado, porque o que temos são cópias de cópias de cópias que, até o advento da imprensa, foram reproduzidas à mão. A exegese desenvolveu toda uma ciência chamada crítica textual, para confrontar e avaliar os vários manuscritos e, baseada nos resultados desta análise, reconstruir aquela que, muito provavelmente, foi a redação do texto.

Uma vez estabelecido o texto original, é chegado o momento de analisá-lo metodicamente. A exegese toma duas direções: a sincronia e a diacronia. Em exegese, estes termos tem um significado um pouco diferente daquele dado por Saussure no seu tratado fundante de semiologia. Em exegese, a sincronia (do grego syn+chronos) refere-se à leitura do texto como ele é, na sua redação final, que é a que conhecemos. Diferentemente, a diacronia (do grego dia+chronos) preocupa-se com a evolução do texto até ele chegar a ser o que é hoje, ou seja, quais etapas e quais elementos concorreram para a redação final. Na história da exegese, o conjunto das análises diacrônicas recebeu o nome de “método histórico-crítico”.

Sincronia e diacronia são complementares, o que significa que a boa exegese não pode se reduzir a uma ou outra. Todavia, é preferível fazer primeiro a leitura sincrônica, pois é mais prudente começar compreendendo o texto como ele está hoje, e só depois questionar como ele chegou a ser o que é.

6 Leituras sincrônicas

As principais leituras sincrônicas são:

6.1 Análise da estrutura literária

Por definição, um texto não é somente um acumulado de palavras e frases desconexas, nem tampouco um amontoado de fatos lineares ou de ideias encadeadas aleatoriamente. Ao contrário, para ser verdadeiramente um texto, deve estar articulado por um fio condutor, que faz com que o escrito tenha começo, meio e fim.

A análise da estrutura literária estuda como o texto se organiza, como palavras, frases e parágrafos se articulam para transmitir o conteúdo e o significado do texto. Para isso, subdivide o texto em blocos menores, de uma frase a vários versículos, conforme as funções e as relações de cada uma dessas pequenas partes no conjunto.

A seguir, coloca em evidência e analisa essas funções e relações, de modo a determinar a fluência dos momentos narrados e a concatenação dos ensinamentos transmitidos.

6.2 Análise da narrativa

Como o nome já diz, trata-se de uma leitura adequada para narrações ou relatos. Estuda as relações entre os personagens, as ações, os acontecimentos, o enredo, as forças que agem no desenrolar da história. Sem dúvida, os relatos bíblicos são muito diferentes dos modernos romances de ficção; todavia, pelo simples fato de fazerem parte do gênero narrativo, os relatos bíblicos possuem as mesmas características de todo e qualquer escrito no qual são descritas as ações de personagens em situações (fictícias ou não) por meio de um enredo bem elaborado com começo, meio e fim.

Deste modo, aos relatos bíblicos são feitas as mesmas perguntas de toda e qualquer trama narrativa: os personagens e seus papéis, os “motores” da ação, o tempo da história e o tempo do discurso, as subdivisões da trama, o narrador, o leitor, o ponto de vista.

 6.3 Análise retórica

Uma vez que o próprio termo retórica adquiriu diversas acepções, também no universo das ciências bíblicas a análise retórica tomou mais de uma direção, desde a aplicação dos elementos da retórica grega aos textos neotestamentários (principalmente os escritos epistolares), até a busca de uma retórica semita nos textos veterotestamentários (principalmente os escritos proféticos e sapienciais).

A análise retórica estuda os vários tipos de discurso (judiciário, deliberativo, demonstrativo), a fim de identificar quais efeitos quer produzir e qual a linguagem usada para este fim. Por isso, aproxima-se do juízo estético, mas não se reduz a ele, uma vez que seu objetivo não é a beleza do texto em si mesma, mas como este aspecto estético atinge o racional e o afetivo do leitor, a fim de persuadi-lo e convencê-lo.

6.4 Análises linguísticas

Estudam o vocabulário, a sintaxe e também as figuras de linguagem.

A análise do vocabulário (ou lexicográfica) preocupa-se com o uso e a significação das palavras utilizadas no texto, de modo a definir os valores e as nuanças, tanto para teologia como para a exegese. Isso significa que a análise lexicográfica preocupa-se não somente como os vocábulos que se tornaram densos de significado pelo largo uso na teologia, mas também pelos vocábulos raros e os usados uma única vez (hapaxlegómena) em um livro ou, em casos mais extremos, em toda a Bíblia.

A análise da sintaxe tem como finalidade identificar o modo e os níveis em que o vocabulário é usado e articulado. O valor de preposições, as regências e os tempos dos verbos, as alternâncias dos sujeitos etc. Tudo isso tem vital importância para a interpretação do texto.

O estudo das figuras de linguagem corresponde à análise estilística: de que modo o autor dá maior expressividade, colorido e vivacidade ao texto, ou, ao contrário, propositadamente o deixa mais ambíguo, sombrio e lento. As figuras de linguagem são divididas em três grupos: as figuras de pensamento ou de retórica (ligadas ao modo de organizar as ideias); as figuras de construção ou de sintaxe (ligadas ao modo de formular as frases); as figuras de palavras ou de estilo (ligadas ao uso dos vocábulos e dos conceitos).

7 Leituras diacrônicas

As principais leituras diacrônicas são:

7.1 Literarkritik

Este termo alemão provocou muito desacordo acerca de como traduzi-lo para as línguas latinas, uma vez que “crítica literária” não traduz com eficiência o que Literarkritik significa em alemão. Por isso, alguns preferiram utilizar “crítica das fontes”. Seja qual for a tradução do termo preferida pelo exegeta, este passo metodológico pergunta se o texto atual não é o resultado da reelaboração de um ou mais textos prévios. Questionando se o texto estudado é unitário ou compósito, a Literarkritik tenta identificar estratos redacionais, fontes, acréscimos e outros elementos utilizados pelo autor[1] na composição do texto que temos hoje.

7.2 Análise dos gêneros literários

Há certo dissenso entre os exegetas: enquanto alguns falam de “gêneros literários”, outros optam por “formas literárias”, e outros ainda, em determinados casos, preferem falar de “cenas típicas”. Esta discussão tem a ver com opções metodológicas assumidas pelos que criaram e desenvolveram este tipo de análise.

Independente da nomenclatura adotada, este passo metodológico se aproveita dos resultados da análise da estrutura literária e compara textos formalmente semelhantes (isto é, com os mesmos elementos estruturais), em busca de um esquema minimamente comum, bem como das diferenças devidas ao autor.

Para que se possa falar de “gênero literário”, é necessário que haja ao menos dois textos formalmente semelhantes e, de preferência, em corpos literários distintos.

7.3 Análise da tradição

Não necessariamente os autores bíblicos compuseram textos a partir do zero. Em muitos casos, eles utilizaram material preexistente, tanto escrito como oral. E não só relatos e formulações, mas também conceitos, motivos, imagens, convenções, esquemas de pensamento.

Este material tradicional herdado já havia atingido certo grau de fixação e, em muitos casos, era de algum modo já conhecido pelos leitores para quem os autores bíblicos escreviam. Por isso, tratava-se de um excelente conjunto de códigos à disposição para ser apropriado, usado e modificado na fase de redação, a fim de transmitir novos ensinamentos, lançar luz sobre novos aspectos de algo já conhecido ou aplicar a uma realidade nova antigos preceitos.

7.4 Análise da redação

Embora possam ter utilizado textos e tradições orais herdados de outras pessoas, os autores bíblicos não foram meros compiladores, mas, ao contrário, atuaram de modo criativo, por vezes modificando material preexistente, por vezes compondo um texto totalmente novo. Seja no caso de um texto específico, seja no caso de todo um livro, a análise da redação investiga quais critérios os autores bíblicos utilizaram para selecionar, organizar e, eventualmente, completar o material que tinham à sua disposição.

O expediente redacional dos autores bíblicos nos legou correções estilísticas, acréscimos etiológicos, contextualizações culturais, molduras literárias, reutilização de textos e ditos tradicionais, conexões hermenêuticas de textos independentes, leitmotive e vários outros elementos textuais, no qual se fazem nítidos o plano geral da obra e o escopo literário-teológico pretendidos pelos hagiógrafos.

8 Leitura fundamentalista

O fundamentalismo é tema bastante complexo e muito estudado por sociólogos, antropólogos, psicanalistas, historiadores e estudiosos da religião, entre outros, e não se limita à leitura da Bíblia e muito menos ao campo religioso. Pode-se, por exemplo, falar de fundamentalismo político.

A leitura fundamentalista da Bíblia, portanto, é reflexo e expressão da atitude fundamentalista, que leva alguém a buscar valores e/ou ideias básicas, simples, claras e universalmente válidas.

Quem lê o texto bíblico de modo fundamentalista tem dificuldade para lidar com a complexidade do texto bíblico – tanto no que se refere à composição do texto bíblico (contextos históricos, diversidade de formas literárias etc) como no que se refere à sua teologia (pluralismo de concepções teológicas, divergências em relação ao mesmo tema etc) – e, por isso, prefere acreditar que não é necessário interpretar o escrito, que não se deve questionar o texto acerca dos possíveis significados de suas palavras e frases, pois tudo está expresso de modo claro e perfeitamente compreensível.

A atitude fundamentalista em relação à Bíblia adota as seguintes posturas:

a) a Bíblia está livre dos erros, das imperfeições e dos condicionamentos da palavra humana, graças à ação divina na revelação e na inspiração. Por isso,

b) o sentido do texto bíblico é claro e expresso em palavras perfeitamente adequadas. Assim, não é necessário interpretar o texto, pois o significado é evidente por si mesmo. Deste modo,

c) a Bíblia é a única autoridade para a doutrina e para a moral. É o princípio de que “só a Escritura” tem relevância para a fé e a moral cristãs. Mais ainda,

d) os textos bíblicos têm uma aplicação moral, resistente ao tempo, à história e às diferenças culturais. A Bíblia não necessita de atualização: ela é perene e a-histórica. Por isso,

e) o texto bíblico é um tesouro de argumentos que confirmam o credo e a doutrina de um grupo. Ele é usado para provar que determinada doutrina ou postura moral é universalmente válida. E ainda,

f) do início ao fim, toda a Bíblia pode ser interpretada do mesmo modo. Por isso, deve-se renunciar ao senso crítico e à própria capacidade de buscar sentidos novos para o texto bíblico.

9 Novas abordagens

9.1 Leitura socioantropológica e política

Este tipo de leitura examina não somente a sociedade que aparece no texto, mas também a sociedade que está por trás do texto, isto é, as instituições sociais, os costumes, as realidades econômicas, históricas e políticas que o texto supõe e que influenciaram na produção da literatura bíblica. Para isso, é necessário situar o autor, os personagens, os fatos e as circunstâncias no seu adequado contexto histórico, ideológico e simbólico. Deste modo, não só os acontecimentos narrados, mas também os conceitos teológicos subjacentes ao texto adquirem novos contornos, dimensões e significações.

A leitura socioantropológica e política está muito ligada aos métodos histórico-críticos, uma vez que é também uma abordagem histórica na qual a própria formação do texto é vista não como algo espiritual e supranatural, mas situado e condicionado pela cultura, pela economia, pela política, pela ideologia.

9.2 Leitura feminista

A leitura feminista da Bíblia surgiu no final do século XIX, no contexto da luta pela igualdade de direitos, e liga-se à teologia feminista. O ponto de partida é saber se é possível ler a Bíblia e, mais amplamente, fazer teologia “como mulher”. Não somente se é realizável, mas também e principalmente se é academicamente válido e importante.

O primeiro e principal critério da leitura feminista é a “questão de gênero” como ferramenta de interpretação e análise dos textos bíblicos. Na prática isso significa assumir alguns pressupostos: que a sociedade na qual a Bíblia nasceu e foi escrita era patriarcal e androcêntrica; que também as traduções e as interpretações de textos bíblicos são marcadas pelo patriarcalismo e androcentrismo; que o próprio texto bíblico tem, quase na sua totalidade, uma visão masculina, mesmo quando fala de mulheres.

Adotando e adaptando aos seus próprios pressupostos os métodos da exegese, bem como de outras ciências (sociologia, antropologia, história etc), a leitura feminista visa evidenciar o androcentrismo bíblico e reverter a interpretação dos textos. Neste projeto, a leitura feminista assumiu várias linhas, tais como: analisar criticamente o patriarcado e os conceitos dele dependentes e ligados à sociedade e à religião; expor a política sexual dos textos bíblicos; reclamar o universo feminino (linguagem, corporeidade, status público etc) subjacente aos textos; reavaliar e resgatar o modo feminino de viver e de praticar a religião.

10 À guisa de conclusão

Todos os métodos de leitura e todas as hermenêuticas possuem pontos fortes e pontos fracos. Por isso, nenhum modo de interpretar a Bíblia é tão completo a ponto de substituir e descartar todos os demais. Ao contrário, a Bíblia está sempre aberta a novas abordagens e novas interpretações.

É importante notar que os três documentos pós-conciliares[2] da Igreja Católica referentes à interpretação da Bíblia – A interpretação da Bíblia na Igreja, de 1993; Verbum Domini, de 2010; Inspiração e verdade da Sagrada Escritura, de 2014 – afirmam enfaticamente que todos os métodos de leitura são válidos e úteis para buscar os significados do texto bíblico. A única leitura rejeitada é a leitura fundamentalista!

 Cássio Murilo Dias da Silva. PUC Rio Grande do Sul.

 11 Referências bibliográficas

 Básicas:

FITZMYER, Joseph A. A Bíblia na Igreja. São Paulo: Loyola, 1997.

PONTIFÍCIA  Comissão Bíblica. Interpretação da Bíblia na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1994.

SILVA, Cássio Murilo Dias da. A Bíblia não serve só para rezar. São Paulo: Loyola, 2011.

 Para saber mais:

ALETTI, Jean-Noël e outros. Vocabulário ponderado da exegese bíblica. São Paulo: Loyola, 2011.

FIGUEIREDO, Telmo (coord). Bíblia: teoria e prática. Leituras de Rute. Revista Estudos Bíblicos, n.98, 2008.

FITZMYER, Joseph A. A interpretação da Escritura. São Paulo: Loyola, 2011.

GILBERT, Pierre. Pequena história da exegese bíblica. Petrópolis: Vozes, 1992.

PARMENTIER, E. A Escritura viva. São Paulo: Loyola, 2009.

SCHNELLE, Udo. Introdução à Exegese do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 2004.

SIMIAN-YOFRE, Horacio (coord). Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000.

SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 1999.

 [1] Embora se possa fazer a distinção entre autor e redator, para simplificar a exposição usarei sempre o termo “autor”, a menos que a distinção seja absolutamente necessária.

[2] Isto é, após o Concílio Vaticano II (1962-1965).

A eclesialidade dos sacramentos

Sumário

1 A Igreja faz os sacramentos

2 Os sacramentos fazem a Igreja

3 Os sacramentos irrepetíveis como constituintes da Igreja

4 Referências bibliográficas

O que caracteriza a autocomunicação de Deus através dos sacramentos é sua dimensão eclesial. Deus é soberanamente livre para se autocomunicar por vias só por ele conhecidas, pois “o Espírito sopra onde quer” (Jo 3,8). Mas, na dinâmica encarnatória própria à revelação, Deus se comunica em sinais sensíveis. Primeiramente através do Verbo feito carne e, em continuidade com ele, através da Igreja, corpo de Cristo, e dos gestos e ritos em que ela se realiza como veículo da graça.

A relação entre Igreja e sacramentos é mútua: a Igreja faz os sacramentos e, por sua vez, esses a criam e constituem como corpo de Cristo com a diferença de funções entre seus membros.

1 A Igreja faz os sacramentos (TABORDA, 1998, 145-50)

Toda celebração supõe uma comunidade que se reúne para celebrar, porque compreende o sentido da celebração e comunga com seu conteúdo. No caso dos sacramentos, em cujo núcleo está a atualização do mistério de Cristo, a celebração supõe a comunidade de fé, que é a Igreja. Somente nela, na comunhão com os que nos precederam na fé (dimensão diacrônica) e com os que conosco aceitam a fé (dimensão sincrônica), é possível fazer “memória da paixão e da ressurreição do Senhor”, porque a Igreja não é uma realidade extrínseca ao Mistério Pascal de Cristo que se lhe acrescente posteriormente, quase como por acidente. Não. A comunidade dos que creem no Ressuscitado é uma dimensão intrínseca à ressurreição de Jesus. Sem Igreja, não tem sentido a ressurreição, como vice-versa: sem a ressurreição de Jesus não há Igreja. Ressuscitando Jesus, o Pai dá origem à Igreja como Corpo do Ressuscitado, comunidade suscitada e reunida pelo Espírito Santo.

A ressurreição veio confirmar, da parte de Deus, que a vida e morte de Jesus revelam quem é Deus. A ressurreição, portanto, não importa só a Jesus, que assim supera a morte. Importa igualmente a toda a humanidade, a que Deus, desta forma, manifesta quem Ele é: o Deus dos pobres e não o Deus do poder (religioso e político) que condenou Jesus, considerando-o indigno de viver. Ora, se ressurreição é a autorrevelação de Deus à humanidade, se por ela Deus mostra quem Ele é, de nada adiantaria Jesus ter ressurgido, se nenhum ser humano tomasse conhecimento desse fato.

Suponhamos, por absurdo, que Jesus tivesse ressuscitado, mas ninguém o tivesse encontrado nem crido nele. Nesse caso, Deus não se teria manifestado em Jesus, mas no Sinédrio e em Pilatos. Pois o Sinédrio que condenou Jesus à morte e o entregou aos romanos dizia agir em nome de Deus. Conseguindo acabar com Jesus, que se pretendia Filho de Deus, estava em questão de que lado Deus estava: com o Sinédrio vitorioso ou com Jesus vencido, abandonado por Deus. Como ambos os lados se invocavam de Deus, a vitória de um deles mostraria com quem Deus estava. Se ninguém ficasse sabendo da ressurreição, Jesus teria ressuscitado em vão, pois a conc1usão lógica da história de Jesus teria sido: é mais um fanático idealista que morre a morte que merece. Ninguém hoje saberia nada de Jesus, a não ser talvez algum pesquisador ultraespecializado em Oriente Próximo antigo.

À ressurreição de Jesus pertence, portanto, a existência de testemunhas e de quem aceite seu testemunho e transmita esse testemunho às gerações futuras (RAHNER; THÜSING, 1975, p.43-4). Se a constituição da Igreja é momento intrínseco à ressurreição de Jesus, então só na comunhão da Igreja é possível fazer memória de Jesus como o Cristo, o Filho do Deus vivo. Só a comunidade de fé, a Igreja, é capaz de celebrar os sacramentos que são sempre memorial do Senhor.

A Igreja é, portanto, o sujeito atuante dos sacramentos. Mas não como mero aglomerado de pessoas. Por ela e nela atua o próprio Senhor Ressuscitado, do qual a Igreja é o Corpo. Esse o sentido mais profundo da afirmação da presença dinâmica de Cristo nos sacramentos (cf. SC 7). Qualquer que seja a comunidade eclesial celebrante, qualquer que seja o ministro que a preside, é Cristo mesmo quem neles atua pelo Espírito Santo. Por isso o ministro pode ser indigno, não viver o que os sacramentos contêm e anunciam e, no entanto, sob sua presidência se comunica a nós participação no mistério pascal de Cristo. Pois o ministro não os preside como indivíduo, dotado de méritos pessoais, mas como alguém com a função específica de presidir a comunidade de fé. Não atua por sua virtude, como tampouco a Igreja atua por própria força, mas pela presença perene de Cristo, que pelo Espírito Santo a cria e recria constantemente e assim a institui e com ela dá origem aos sacramentos (Sacramentos: 1 Instituição dos sacramentos por Cristo).

A presença de Cristo na Igreja é obra do Espírito Santo. O Cristo ressuscitado é o Cristo vivificado pelo Espírito (cf. 2Cor 3,17), que transmite o Espírito a seus discípulos. O dom do Espírito pertence como momento interno ao mistério pascal de Cristo (TABORDA, 2012, p.100-4). O Espírito suscita testemunhas, abre os olhos aos discípulos. Se há uma comunidade de fé, resulta da ação do Espírito Santo que desperta a fé. Nesse sentido, a Igreja, Corpo do Ressuscitado, é vivificada e animada pelo Espírito. Mais: é sacramento do Espírito Santo, visibilização do mesmo. Nela se manifesta o próprio da missão do Espírito: unir a pluralidade.

O sujeito dos sacramentos, aquele que os realiza é, pois, a Igreja, a comunidade toda em sua unidade e pluralidade, onde cada um atua conforme a função que o Espírito Santo lhe deu (cf. SC 28). Mas, na Igreja e através da Igreja, é Cristo mesmo por seu Espírito que nos aproxima do Pai.

A Igreja, comunidade dos que aderiram visivelmente a Cristo e vivem assim sua fé, faz os sacramentos. Exc1uem-se deles, portanto, os não queiram assumir o seguimento de Jesus. Mas a exc1usão dos sacramentos não significa a exc1usão da salvação. Deus pode salvar e salva também os que não pertencem visivelmente à Igreja. Daí pode nascer a dúvida sobre a necessidade dos sacramentos. Para que sacramentos, se a graça de Deus é mais ampla que sua visibilização eclesial? Essa questão permite perceber a indispensável dimensão eclesial como característica essencial dos sacramentos.

Para dar conta da re1ação entre a salvação dos que não conhecem a Cristo e a dos que a ele aderiram na Igreja, é preciso distinguir entre o processo da salvação e a mediação da salvação (RAHNER, 1966, p.55-61). O processo da salvação é a história da salvação universal. Onde quer que alguém realize o bem, a justiça, o amor, a fraternidade, enfim, os bens do Reino, está Deus atuando sobre ele com seu Espírito. Toda pessoa que aceita a salvação que Deus assim lhe oferece, através de sua consciência, de seus semelhantes, de sua cultura, de sua religião, está dentro do processo da salvação, acolheu a salvação oferecida por Deus, quer essa pessoa conheça a Cristo, quer não tenha jamais ouvido falar dele. Assim, todo o bem que qualquer pessoa pratica, creia ou não em Deus e em Cristo, é fruto da graça, presença da salvação. É salvação como processo e em processo.

Nem por isso a Igreja ou os sacramentos se tornam supérfluos. Esses são necessários, tão necessários como aquela. Para quem considera a Igreja com olhos de fé, não como mera organização religiosa de iniciativa humana, mas como Corpo do Ressuscitado, dimensão intrínseca da própria ressurreição de Jesus, negar a necessidade da Igreja para a salvação é negar a necessidade de Cristo e da revelação de Deus. Pois só pela comunidade dos que creem no Ressuscitado, a vida e morte de Cristo revelam o Deus verdadeiro. A necessidade da Igreja, no entanto, não se situa no âmbito do processo da salvação, mas no âmbito da mediação da salvação. A mediação da salvação designa a presença da salvação na dimensão histórica e palpável da Igreja, no conhecimento e reconhecimento explícito de Cristo como revelação do Pai. A mediação da salvação é, pois, mais restrita que o processo salvífico. O processo salvífico é, sim, mediado por Cristo, mas nem sempre as pessoas que nele estão envolvidas tomam conhecimento dessa mediação ou a reconhecem. E, no entanto, explicitar essa mediação é o termo a que tende a salvação como processo, pois o que se vive exige ser explicitado, para que se viva mais intensa e conscientemente.

Os sacramentos são necessários como celebração da Igreja, que, por sua vez, é necessária, como Cristo é necessário à salvação. A necessidade salvífica dos sacramentos não significa que sem eles Deus não se autocomunique ao ser humano em graça, mas sim que os sacramentos são necessários como celebração explícita da gratuidade do dom de Deus em Cristo que o Espírito faz presente em todo bem que qualquer pessoa faz.

A Igreja é assim sacramento-raiz ou sacramento fundamental, porque toda graça sacramental é mediada pela Igreja. Nela se enraízam os sacramentos, como manifestações da graça de Deus atuando por Cristo no Espírito Santo na vida das pessoas. Enquanto sacramento-raiz, a Igreja constitui e faz os sacramentos. Dela brotam os sacramentos, como os ramos de um arbusto são sustentados por sua raiz. Mas vale também o inverso: a Igreja é feita pelos sacramentos, como a raiz necessita dos ramos para ter sentido e ser fonte de vida.

2 Os sacramentos fazem a Igreja (TABORDA, 1998, p.150-6)

A expressão “sacramento-raiz” referida à Igreja quer também designar este segundo aspecto da relação Igreja-sacramento. A raiz deixada na terra, sem tronco e sem ramos, perde seu sentido e acaba apodrecendo. Se os ramos vivem da raiz, também é verdade que a raiz vive dos ramos. Sacramento-raiz, a Igreja precisa dos sacramentos que a tornam partícipes do Mistério Pascal de Cristo.

Os sacramentos, portanto, fazem a Igreja. O batismo e a confirmação agregam à Igreja. A penitência reconcilia o cristão pecador com a Igreja. A unção dos enfermos une o cristão enfermo à Igreja através da intercessão da comunidade. O matrimônio constitui homem e mulher em “eclesíola” doméstica, cria uma família no seio da comunidade. A ordem designa uma pessoa para o serviço da unidade da comunidade eclesial. A eucaristia torna visível o que é ser Igreja: comunhão fraterna em torno ao Cristo presente e a partir dele. Pelos sacramentos a Igreja é constantemente edificada por Cristo, que atua nos sacramentos na força do Espírito Santo. Os sacramentos constroem a Igreja exatamente por serem ações de Cristo, ações cuja meta é sempre o relacionamento com o Pai no Espírito Santo por meio de Cristo. A relação com a Igreja é de mediação; o ato terminal é a relação com Cristo e, por isso, os sacramentos fazem a Igreja, não são só feitos por ela.

Assim, os sacramentos criam e recriam a comunidade eclesial. Neles, em especial na eucaristia, o sacramento central, a Igreja encontra sua identidade: comunidade criada pela presença do Senhor Ressuscitado que, na diferenciação de suas funções e carismas, oferece ao Pai, unida a Cristo no Espírito Santo, o memorial do único sacrifício de Cristo e une a ele sua vida no seguimento de Jesus, que é o culto “em espírito e verdade” (Jo 4,24; cf. TABORDA, 2012, p.242-5). Mas também em cada um dos outros sacramentos aparece a identidade da Igreja: ela vive e cresce pela conversão (batismo-crisma); santa e pecadora, sempre de novo precisa aceitar a reconciliação oferecida pelo Pai (penitência); a exemplo de Jesus, volta-se aos enfermos e fracos levando-lhes solidariedade e consolo (unção dos enfermos); manifesta o amor de Deus aos humanos no amor conjugal (matrimônio); constitui-se na diferença de funções dadas por Deus como graça (ordem).

Santa e pecadora, a Igreja nos sacramentos é confrontada com a sua origem e o seu sentido, fazendo memória do Senhor Ressuscitado. Nessa confrontação, seu agir é questionado pelo Cristo presente e atuante que exige que ela corresponda, na vida, ao que celebra nos gestos. Aí ela encontra legitimação para sua existência: o exemplo e a força de Cristo atuante no sacramento renovam o ânimo para o seguimento histórico de Jesus e justificam a ousadia de pretender um relacionamento fraterno num mundo de ódio e de construir o Reino no aqui e agora do mundo pecador.

Enfim, os sacramentos organizam a Igreja tanto no plano espiritual como no plano da organicidade: a humilde atitude de constante conversão unida à imensa dignidade de membros do Corpo de Cristo (batismo-crisma); o reconhecimento do pecado e a aceitação do perdão de Deus e dos irmãos e irmãs (reconciliação ou penitência); a acolhida e o amor preferencial ao irmão enfermo, bem como a visibilização do vínculo entre o enfermo e a comunidade eclesial (unção dos enfermos); o reconhecimento de que no amor mais profundamente humano, o amor conjugal, está presente o sentido de todo amor: presença do amor de Deus à humanidade (matrimônio); a visão do ministério eclesial como serviço aos demais em favor da unidade da Igreja (ordem); e principalmente o reconhecimento de que é na partilha, no dar a vida pelo outro, que se fundamenta toda organização e toda autoridade (eucaristia). Tudo isso reestrutura a Igreja no Espírito de Jesus.

Dentre os sacramentos há três que marcam a organicidade da comunhão eclesial e a constituem como Corpo de Cristo uno e diferenciado.

3 Os sacramentos irrepetíveis como constituintes da Igreja (TABORDA, 1998, p.156-61; TABORDA, 2012, p.228-30; 241-7)

Os três sacramentos que estruturam a comunidade eclesial são, por sua constituição, irrepetíveis. Costumam ser chamados de sacramentos caracterizantes, por imprimirem caráter. A doutrina do caráter é um teologúmenon para explicar por que não se repetem esses três sacramentos.

A origem da doutrina do caráter está em Agostinho, em sua luta contra o rebatismo dos que, batizados numa seita herética, vinham para o seio da Igreja católica. Na discussão de Agostinho com os rebatistas, ambos partiam de um pressuposto comum: ninguém dá o que não tem. Os hereges não podem dar o Espírito Santo, porque não o têm. Surge então a questão: se o batismo dos hereges não dá a vida do Espírito, por que a tradição da Igreja não permite rebatizar? Para explicá-lo, Agostinho recorre à metáfora do caráter, tatuagem ou marca a ferro e fogo recebida pelos soldados do exército romano. O caráter (marca) era uma exigência permanente a que o desertor voltasse ao exército. Assim também o batismo nos marca com a exigência permanente de seguir Cristo e pertencer à sua Igreja. Mesmo que o batismo dos hereges não dê o Espírito Santo, ele dá o caráter, a exigência de pertença a Cristo na Igreja. O sentido de falar em caráter era explicar por que determinados sacramentos nunca se repetiam.

A Escolástica assumiu a doutrina agostiniana e trabalhou-a no contexto de sua sistematização. Os sacramentos irrepetíveis, dentro da explicação agostiniana, por um lado produzem certo efeito (o caráter), mas não seu efeito pleno. O caráter, por sua vez, pela própria metáfora que o sustém, possui a propriedade de ser um sinal. Ora, a metáfora, dentro do pensamento coisista da Escolástica, só pode ser entendida no sentido de que tais sacramentos imprimem um sinal na alma. A propriedade dessa construção não é questionada. Não ocorre perguntar, por exemplo, como algo espiritual pode ser ainda chamado de sinal. Enfim, a mesma mentalidade coisista faz inverter o sentido da metáfora do caráter: de explicação da irrepetibilidade dos três sacramentos, passa a fundamentar por que alguns sacramentos não podem ser repetidos. A relação gnosiológica entre irrepetibilidade e caráter é perdida de vista e fica a relação onto1ógica que, com base no caráter, afirma a irrepetibilidade.

Ao definir a questão contra os Reformadores, o Concílio de Trento descreve o caráter como “sinal espiritual e indelével” (DH 1609). Afirmar o caráter como um “sinal espiritual” parece contradição: se é sinal deve ser visível e não pode ser espiritual, ainda mais “impresso na alma” que tampouco se vê. Se se compreende o caráter de maneira ontológico-substancialista, não há, no entanto, como entender diferentemente. É possível, entretanto, interpretar a expressão numa perspectiva histórico-relacional.

Há acontecimentos que marcam o sujeito, sem que com isso se afirme uma marca visível, mas, no fundo, um “sinal espiritual”. Na vida de cada um há acontecimentos decisivos, fatos marcantes. Fatos que conformam indelevelmente a personalidade de quem o viveu. O sujeito o carrega por toda a vida, determinando suas atitudes e decisões. Fatos que o deixam marcado perante a sociedade. Podem inclusive originar um apelido ou apodo que o acompanha pela vida afora.

Tais fatos constituem o novo termo de comparação para compreender a irrepetibilidade de certos sacramentos e o caráter sacramental. Há sacramentos irrepetíveis, porque dão ao sujeito uma função, uma posição determinada na constituição da Igreja. Marcam o sujeito para sua função na comunidade. A marca é invisível, porque se dá no âmbito existencial e intersubjetivo. No âmbito existencial, porque o sujeito aceitou assumir a condição de membro[1] ou a função de ministro da comunidade eclesial. No âmbito intersubjetivo ou relacional, porque o fez diante de Deus e da comunidade, da Igreja presente na assembleia celebrante. Uma realidade existencial e relacional não é irreal ou menos real, como poderia parecer à mentalidade objetivista ou coisista. É tão real como a ação de Deus, a memória do sujeito e a memória histórica da comunidade. É tão real como o próprio sujeito que num dado momento foi determinantemente constituído por esse fato. A pessoa que recebeu os sacramentos irrepetíveis está numa relação, com os outros membros da Igreja, que é específica do sacramento recebido. Essa relação marca a pessoa, e marca-a no sentido de que a comunidade eclesial exige e espera dela uma determinada ação e atitude. É um “sinal espiritual”.

O fato histórico, visível, social de receber os sacramentos caracterizantes é, enquanto fato histórico, irreversível. O sujeito pode arrepender-se de tê-los recebido, pode voltar atrás em suas atitudes, apostatar, mas ele será sempre alguém que recebeu o sacramento em questão e, como tal, aquele fato o marcou indelevelmente, de maneira indestrutível (“sinal espiritual e indelével”).

Mas isso acontece com qualquer fato histórico. Nós carregamos sempre conosco tudo o que nos aconteceu, ainda que seja nas profundezas do subconsciente e do inconsciente. A diferença está em que o fato histórico de receber um sacramento irrepetível é um compromisso assumido. Todo compromisso tem dimensão social, é relacionado a outros, depende também dos outros. Mesmo que alguém se desdiga do compromisso assumido com Deus e com a Igreja num sacramento caracterizante, esse compromisso continua a significar relação com Deus e com a Igreja e essa, em seu caráter de realidade escatológica, continuará, em nome de Deus, a exigir o exercício daquela função. Os sacramentos caracterizantes são constitutivos da Igreja como comunidade (batismo e confirmação) e como comunidade diferenciada internamente por funções (ordem). Ora, como comunidade escatológica, corpo do Ressuscitado, ela permanecerá para sempre até o fim dos tempos. Por isso mesmo não pode abrir mão do compromisso daqueles que receberam um sacramento que lhe é constitutivo.

O caráter sacramental é, pois, um relacionamento visível e permanente com a Igreja. Ora, essa é, no mais íntimo de seu ser, sacramento da graça. Por isso o caráter não exige só uma função exterior, mas a assimilação pessoal diante de Deus dessa função. De fato, uma Igreja cujos membros não vivessem no seguimento de Cristo acabaria esboroando-se. Por isso, à promessa divina de indefectibilidade pertence a garantia de que sempre haverá batizados e crismados que vivam efetivamente no seguimento de Cristo. Isto significa que a exigência própria ao caráter sacramental não é só externa, mas atinge a pessoa internamente.

Algo análogo deve ser dito do sacramento (respectivamente, do caráter) da ordem: uma hierarquia que, em bloco, não vivesse a fé, não seguisse Cristo na vida, acabaria por destruir a Igreja, pois terminaria por não ver mais sentido em presidir uma comunidade reunida por uma Palavra em que não crê e visibilizada em sacramentos que considera vazios de sentido. Em consequência, deixaria de fazê-lo. Ora, a Igreja é constituída pela Palavra e pelos sacramentos em vista do seguimento de Cristo. Assim também o caráter sacramental é essencialmente salvífico, diz respeito à salvação ou perdição da pessoa na comunidade e através da comunidade. O Espírito Santo, que pelo sacramento constitui o sujeito como membro ou ministro da Igreja, é o Espírito santificador, o fogo devorador que não quer apenas tostar aquele a quem atinge, mas inflamá-lo totalmente. O caráter sacramental exige que se viva o acontecimento que nos marcou.

Entretanto, mesmo que alguém receba um sacramento caracterizante em contradição com sua vida, é membro/ministro da Igreja e assim, pela força do sacramento, é provocado a que faça sua vida corresponder à sua função. Essa função ele possui, mesmo que a vida não corresponda a ela: o membro pecador da Igreja não precisa, ao reconciliar-se, ser batizado ou crismado novamente; o ministro pecador não precisa, ao arrepender-se, ser reordenado. Mas o pecado no membro ou no ministro da Igreja está em contradição com o caráter que recebeu e que leva pela vida afora. O caráter tem tendência inerente a que se realize salvificamente, para a salvação de quem recebeu o respectivo sacramento. Com o teologúmenon caráter expressa-se a existência de um pacto irrevogável que se fundamenta na fidelidade do Deus vivo, na ação de Deus pelo sacramento, mas que supõe e exige a resposta do ser humano. Não por coação e sim por vocação e provocação esta pessoa é convidada a engajar-se na própria obra de Cristo presente pelo Espírito Santo na Igreja.

Francisco Taborda SJ, FAJE, Brasil. Texto original português.

 4 Referências bibliográficas

RAHNER, K. Heilsvermittlung und Heilsprozess. In: ARNOLD, F. X. et al. (ed.). Handbuch der Pastoraltheologie. v.II/1. Freiburg/Br: Herder, 1966. p.55-61.

RAHNER, K.; THÜSING, W. Cristología: estudio sistemático y exegético. Madrid: Cristiandad, 1975. Biblioteca Teológica Cristiandad, 3.

TABORDA, F. Sacramentos, práxis e festa: para uma teologia latino-americana dos sacramentos. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

TABORDA, F. Nas fontes da vida cristã: Uma teologia do batismo-crisma. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2012. Theologica.

[1] Pessoalmente ou através dos pais e padrinhos, no caso do batismo de crianças.

História do cristianismo

Sumário

1 Temas, processos e períodos

2 Um sadio relativismo

3 Referências bibliográficas

A história do cristianismo é diferente da eclesiologia, que é a reflexão teológica sobre a Igreja. Curiosamente, esta história é um campo do saber comum a crentes e não crentes. Os crentes podem produzir historiografia do cristianismo, desde que tenham rigor no método e não se deixem levar por impulsos apologéticos acríticos. Os não crentes também a podem produzir, desde tenham cultura religiosa necessária para entender esta crença, afinidade com seus temas e o mesmo rigor metodológico. Os crentes podem ficar perplexos diante de certas realidades do passado, quando são conhecidas com mais profundidade. Mas se eles acolherem a própria perplexidade, podem superar ingenuidades e alcançar uma fé mais amadurecida. Os não crentes, por sua vez, podem ir além de um agnosticismo do senso comum, que não raramente se baseia em simplificações do passado. Ambos podem ampliar horizontes, crescendo no conhecimento e na sabedoria.

É no desenrolar da história que pessoas e coletividades, incluindo os cristãos e suas instituições, tornaram-se o que são atualmente. Por isso, muito se pode aprender com ela. Porém, hoje não se considera rigorosamente a história como mestra, pois ela não tem um sentido unívoco como uma professora ensinando lições em sala de aula. Há muitas perspectivas possíveis, que podem ser igualmente válidas. Toda história sempre nasce das perguntas formuladas no presente a respeito do passado. Sem interrogações não há história. Os seus diversos campos estão intimamente conectados. Por isso, a história do cristianismo está ligada à história social, cultural e das mentalidades.

1 Temas, processos e períodos

Ao longo do século XX, a escrita da história viveu mudanças em seus temas e interesses. Ela já se voltou para grandes eventos, biografias de personalidades ilustres e crônica política, com o foco em sujeitos e acontecimentos que atraíam muito a atenção. Depois, ela se voltou para as estruturas da vida cotidiana, como sociedades, pessoas comuns, economias, vida material e mentalidades. Temas como alimentação, vestuário, moradia, transporte, vida privada, mulheres, infância, medo, segurança e esperança passaram a ser de interesse da história. Esta mudança de foco também afeta a história do cristianismo. Ela já se voltou muito para a instituição eclesiástica, concílios ecumênicos, documentos papais, criação de bispados e hagiografias (vidas de santos). Contribuiu para isso a autocompreensão da Igreja como sociedade perfeita, uma sociedade em que não falta qualquer elemento para ser completa. O componente institucional prevaleceu. Mas com o Concílio Vaticano II (1962-1965), que definiu a Igreja como povo de Deus, passaram a ter mais ênfase o laicato e o cristianismo vivido. Temas como religiosidade popular, associações leigas e recepção dos concílios nas igrejas locais ganharam importância.

Os processos de permanências e mudanças em sociedades e civilizações, amplamente pesquisados pelo historiador Fernand Braudel, também se aplicam ao cristianismo. Ele desenvolveu o conceito de “longa duração”. No centro da realidade social, há uma oposição viva, íntima, repetida incessantemente entre o que muda e o que insiste em permanecer, uma dialética da duração (BRAUDEL, 1992a, p.41-78). Nos movimentos que afetam a massa da história atual há uma fantástica herança do passado. O passado lambuza o tempo presente. Toda sociedade é atingida pelas águas do passado. Este movimento não é uma força consciente, é, de certa forma inumana, o inconsciente da história. O passado, sobretudo o passado antigo, invade o presente e de certo modo toma nossa vida. O presente é, em grande parte, a presa de um passado que teima em sobreviver; e o passado, por suas regras, diferenças e semelhanças, é a chave indispensável para qualquer compreensão séria do tempo presente. Em geral, não há mudanças sociais rápidas. As próprias revoluções não são rupturas totais.

Uma revolução tão profunda quanto a Francesa está longe de ter mudado tudo de um dia para o outro. A mudança sempre compõe com a não mudança. Assim como as águas de um rio condenado a correr entre duas margens, passando por ilhas, bancos de areia e obstáculos; a mudança é surpreendida numa cilada. Se ela consegue suprimir uma parte considerável do passado, é necessário que essa parte não tenha uma resistência forte demais, e que já esteja desgastada por si mesma. A mudança adere à não mudança, segue suas fragilidades e utiliza suas linhas de menor resistência. Ao lado de querelas e conflitos, há compromissos, coexistências e ajustes. Em frequentes divisões entre o a favor e o contra, há, de um lado, o que se move; do outro, o que teima em ficar no mesmo lugar (BRAUDEL, 1992b, p.356-7). No cristianismo, as permanências e mudanças estão sempre presentes e interagindo mutuamente, ora se opondo, ora se articulando.

Na periodização da história do cristianismo, pode-se adotar a divisão em quatro unidades de Hubert Jedin sobre a história da Igreja:

1 – o cristianismo na esfera cultural helenístico-romana (século I a VII);

2 – o cristianismo como fundamento dos povos cristãos ocidentais (cerca de 700 a 1300);

3 – a dissolução do mundo cristão ocidental e a passagem para a missão do mundo (1300 a 1750);

4 – o cristianismo na era industrial (séculos 19 e 20).

Outra periodização semelhante é a de Marcel Chappin:

1 – até 400: um cristianismo distante do mundo;

2 – Entre 400 e 1800: cristianismo quase plenamente identificado com o mundo; onde se pode subdividir:

a) 400-1000: imperadores e reis dominam;

b) 1000-1500: o clero domina;

c) 1500-1800: o Estado absoluto domina;

3 – 1800-1960: certo isolamento diante do mundo que hostiliza a Igreja, com o sonho de retorno à situação anterior;

4 – Do Vaticano II em diante: inserção no mundo como instância crítica (CHAPPIN, 1990, p.127-8).

2 Um sadio relativismo

O olhar retrospectivo da história mostra as diferentes compreensões de um mesmo conceito ao longo do tempo. A santidade, por exemplo, que é a fidelidade a Deus no cumprimento da Sua Palavra, foi entendida no antigo Israel como a estrita observância da Lei de Moisés, incluindo a abstenção de carne de animais, répteis e aves considerados impuros (Lev 20,25-26). Já no Novo Testamento, a santidade é a vida em Cristo, acessível aos pagãos convertidos, prescindindo daquela Lei. Na Idade Média, São Luís, rei da França, lançou-se nas cruzadas contra os mouros, onde veio a falecer. Santo Inácio de Loyola, no século 16, foi um feroz opositor da Reforma Protestante, urgindo os governantes a aplicarem todas as leis existentes contra as heresias, incluindo a pena de morte lá onde houvesse (LOYOLA, 1963, p. 877-84). O papa João XXIII, recentemente canonizado, afirmou a “altíssima relevância” da Declaração Universal dos Direitos Humanos, feita pelas Nações Unidas em 1948, contendo a liberdade de consciência e a liberdade religiosa, (JOÃO XXIII, 1963, n.141-144). Este papa contrariou o ensinamento de muitos de seus predecessores. Em tudo isto, fica claro que o genuíno espírito do Evangelho é compreendido diferentemente em cada época.

A ciência histórica permite superar o senso comum a respeito das cruzadas, da colonização, da inquisição e das guerras religiosas. O devido enquadramento das leis, das sociedades e das mentalidades em suas respectivas épocas evita o anacronismo perverso, o patrulhamento ideológico do passado e o linchamento moral dos indivíduos. Para a teologia, a história é um “lugar teológico”, uma fonte de conhecimento neste campo do saber. Segundo Yves Congar, a história abre o caminho para um “sadio relativismo”. Esse é algo bem diferente do ceticismo; é a devida percepção da relatividade do que é efetivamente relativo, de modo a qualificar como absoluto somente aquilo que verdadeiramente o é. Graças à história, pode-se compreender a exata proporção das coisas, evitando-se considerar como a Tradição o que data de anteontem, e que mudou mais de uma vez no decorrer dos tempos. Pode-se enfrentar o drama de muitas inquietações trazidas pelo surgimento de ideias e formas novas. Com a história, é possível situar-se melhor no presente, com uma consciência mais lúcida do que se desenrola realmente, e do significado das tensões que se vive (CONGAR, 1970, p.886-94).

A revelação bíblica do nome de Deus, Javé (Ex 3,14), significa “eu estarei aí convosco”. Deus é o Deus vivo, que se manifesta em suas obras, na história que só se encerrará no fim. Cristo não é somente o Alfa, é também o Ômega (Ap 1,8). A sua verdade ainda está por se realizar. Há algo não expresso, não dito, de sua Palavra que para ser dito requer a variedade da história e dos povos, variedade esta ainda não adquirida. A Palavra divina, em gestos ou expressa, comporta um aprofundamento ilimitado. Ela é proposta aos seres humanos na diversidade dos tempos e lugares, das experiências, dos problemas e das culturas. A história humana, com sua novidade e seu inédito permanente, de um lado, reclama sempre uma resposta a questões ainda desconhecidas e, de outro lado, contribui com meios de expressão que ainda não existiam (CONGAR, ibidem dec 8, 2014). A plenitude de Cristo se manifesta no desenrolar da história e exige a história para se manifestar. Daí a importância de se reconhecer os “sinais dos tempos”, como ensina o Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes, 1965, n.44).

A experiência de séculos passados, os progressos científicos, as riquezas culturais de diversos povos, que manifestam a condição humana e abrem novos caminhos para a verdade, também beneficiam a Igreja. Desde o início de sua história, a Igreja formula a mensagem de Cristo por meio dos conceitos e das línguas dos povos, recorrendo inclusive ao saber filosófico, com a finalidade de adaptar o Evangelho à capacidade de compreensão das gentes e às exigências dos sábios. Tal maneira adaptada de propagar a mensagem cristã, afirma o Concílio, deve ser a lei de toda a evangelização. Deste modo, em cada nação surge a possibilidade de exprimir esta mensagem em sua maneira própria, fomentando-se um intercâmbio intenso entre a Igreja e as diversas culturas dos povos. Para este intercâmbio, que se faz ao longo da história, a Igreja necessita de pessoas inseridas no mundo que conheçam bem o espírito e o conteúdo das várias instituições e saberes, sejam elas crentes ou não (GS n.44).

O povo cristão, especialmente os seus pastores e teólogos, é exortado a ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens e expressões dos tempos atuais, e a julgá-las à luz da palavra de Deus, com a ajuda do Espírito Santo, a fim de que a Revelação divina possa ser cada vez mais intimamente percebida, melhor compreendida e apresentada de um modo conveniente. Como a Igreja tem uma estrutura social visível, também pode ser enriquecida com a evolução da vida social na história. Todos os que promovem o bem da comunidade humana em diversos âmbitos também ajudam a comunidade eclesial, na medida em que esta depende das realidades exteriores. Em tudo isto, reconhece o Concílio, há uma ajuda que a Igreja recebe do mundo. Além disso, ela muito se beneficiou, e pode se beneficiar, com a oposição de seus adversários e perseguidores (GS n.44). Esta rica interação entre a Igreja e o mundo, no decorrer do tempo, é um vasto campo de pesquisa e estudo para o historiador.

O sadio relativismo de Congar também diz respeito à mutabilidade das formulações doutrinárias. Para ele, a única maneira de dizer a mesma coisa em um contexto que mudou é dizê-la de modo diferente (CONGAR, 1984, p.6). Esta mesma ideia é expressa pelo papa João XXIII, que abriu o Concílio propondo que o ensinamento da Igreja fosse aprofundado e exposto de forma a responder às exigências dos tempos atuais. Uma coisa são as verdades contidas na doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes o mesmo sentido e alcance. Dever-se-ia atribuir muita importância a esta forma e insistir com paciência na sua elaboração (JOÃO XXIII, 1962). O dogma e a história sempre estão intimamente ligados. A formulação do dogma, a preservação e o aprofundamento do seu sentido e as novas formas de sua enunciação dependem da história e seus contextos.

Quanto às pessoas envolvidas nos dramas e conflitos históricos, convém a reflexão do cardeal Carlo M. Martini a respeito do juízo divino. Ele afirma que há um “relativismo cristão”, que é entender todas as coisas em relação ao momento em que a história será abertamente julgada. Então as obras dos homens aparecerão com seu verdadeiro valor. O Senhor será o juiz dos corações, e cada um receberá dele o seu devido louvor. Não se estará mais sob aplausos e vaias, aprovação ou desaprovação de outros. Será o Senhor a dar o critério último e definitivo da realidade deste mundo. Cumprir-se-á o julgamento da história e se verá quem tinha razão. Muitas coisas se esclarecerão, iluminarão e se pacificarão, também para aqueles que ainda sofrem neste mundo, envolvidos na obscuridade, ainda sem compreender o sentido do que lhes acontece. É a partir do momento culminante em que a história será julgada por Deus, que o ser humano é convidado a interpretar a sua pequena história de cada dia. A história não é um processo infinito envolto em si mesmo, sem sentido e desembocando no nada. É algo que Deus mesmo reunirá, julgará e pesará com a balança do seu amor e da sua misericórdia, mas também de sua justiça (MARTINI, 2005).

Estas considerações de Martini encontram apoio na exortação do apóstolo Paulo: não julgar antes do tempo, mas esperar que venha o Senhor, pois ele vai pôr às claras tudo o que se esconde nas trevas e vai manifestar as intenções dos corações. Então, cada um há de receber de Deus o louvor que lhe corresponde (1 Cor 4,5). Com este relativismo cristão, pode-se olhar com mais serenidade para os complexos acontecimentos do passado e suas imbricações, sem o afã de apontar quem tinha razão e quem não tinha.

Deste modo, Martini enuncia com outro nome o sadio relativismo, enfatizando a plena manifestação do absoluto no fim da história. A devida percepção do que não é absoluto ou intocável, é uma tarefa necessária aos que desejam mostrar a permanente atualidade do mistério cristão, e torná-lo crível na sociedade secularizada atual. O sadio relativismo é inevitável ao se admitir que a Igreja muito se beneficiou, e pode se beneficiar,  com a oposição de seus adversários.

Luís Corrêa Lima, SJ, PUC-Rio, Brasil. Texto original português.

 3 Referências bibliográficas

BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1992.

____. Reflexões sobre a história. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

CHAPPIN, Marcel. Introdução à história da Igreja. São Paulo: Loyola, 1990.

CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo actual. Roma, 1965. Disponível em: <www.vatican.va>.

CONGAR, Yves-Marie. A história da Igreja, “lugar teológico”. Concilium: revista internacional de teologia, 1970, n.7, p. 886-94.

____. La tradition et la vie de l’Église. Paris: Cerf, 1984.

FRANZEN, August. Breve história da Igreja. Lisboa: Presença, 1996.

JOÃO XXIII. Discurso de sua santidade papa João XXIII na abertura solene do SS. Concílio. Roma, 1962. Disponível em: <www.vatican.va>.

____. Carta encíclica Pacem in terris. Roma, 1963, n.141-144. Disponível em: <www.vatican.va>.

LIMA, Luís Corrêa. The historian between faith and relativism. In: Ignacio Silva. (Org.). Latin american perspectives on science and religion. Londres: Pickering & Chatto, 2014. p.43-55.

LOYOLA, San Ignacio de. Al P. Pedro Canisio (Roma, 13 ago. 1554). In: Obras completas de San Ignacio de Loyola. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 1963. p.877-84.

ROGIER, L. J.; AUBERT, R.; KNOWLES, M. D. (org.). Nova história da Igreja. v.1 e 2. Petrópolis: Vozes, 1973-1976.

BELLITTO, Christopher M. História dos 21 Concílios da Igreja: de Niceia ao Vaticano II. São Paulo: Loyola, 2010.

FRÖHLICH, Roland. Curso básico de história da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1987.

LINDBERG, Carter. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Loyola, 2008.

MARTINI, Carlo Maria. Omelia del cardinale Carlo Maria Martini per il XXV anniversario di episcopato. Milão, 8 maio 2005. Disponível em: <www.chiesadimilano.it>.

REMOND, René (org.). As grandes descobertas do cristianismo. São Paulo: Loyola, 2005.

Para saber mais:

COMBY, J. Para ler a história da Igreja. v.I e II. São Paulo: Loyola, 1996.

LENZENWEGER, J.; STOCKMEIER, P.; AMON, K.; ZINNHOBLER, R. História da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2006.

POTESTÀ, G. L.; VIAN, G. História do cristianismo. São Paulo: Loyola, 2013.

Ética e Teologia no Novo Testamento

Sumário

1 Jesus e a ética cristã

1.1 As raízes veterotestamentárias

1.2 O Mestre exemplar

1.3 O mandamento novo

2 A ética do Reino no Sermão da Montanha

2.1 A superação do legalismo

2.2 Uma nova forma de piedade

2.3 Um caminho de comunhão

3 A ética da comunidade cristã

3.1 “Um só coração e uma só alma”

3.2 Solidariedade com os empobrecidos e marginalizados

3.3 A exigência do perdão e da reconciliação

4 A ética do amor misericordioso

4.1 “Quem permanece no amor, permanece em Deus”

4.2 “A maior é a caridade!”

4.3 “Faze isto e viverás!”

5 Desafio atual

6 Referências bibliográficas

A Ética e a Teologia no Antigo Testamento foram abordadas em outro verbete, em que se mostrou como a fé se encarnou na vida de um povo, como modo de proceder peculiar, de alta qualidade humana. Trata-se de mostrar, agora, como o caminho aberto por Jesus leva adiante e radicaliza a tradição ética de Israel, num projeto de vida proposto às comunidades cristãs, as do Novo Testamento e as de todos os tempos.

As palavras e os gestos de Jesus configuraram um ethos particular no âmbito da religiosidade de Israel. Três palavras sintetizam sua ação: continuidade, ruptura e superação. Tudo quanto fez e ensinou situava-se no âmbito da ética israelita, forjada ao longo dos séculos. Nela se enraizava, dando-lhe continuidade. Entretanto, colocou-se na contramão de certas tendências da época, focadas na submissão aos ditames da Lei, sem comungar-lhe com o espírito. Quiçá os textos evangélicos induzam ao equívoco de se tomar o vocábulo farisaísmo como sinônimo de hipocrisia e falsidade. O Mestre Jesus é apresentado em contínuo conflito com a ala legalista do movimento farisaico, sem se dar conta de haver, também, uma vertente distinta, feita de piedade verdadeira. Pode-se afirmar que nem todo fariseu o é da maneira como se fala dos fariseus nos Evangelhos. Jesus, porém, quis ir além e apresentar um modo de proceder inteiramente centrado no querer do Pai, para além da letra da Lei. A síntese desse intento encontra-se em Mt 5,20: “Eu vos digo: se vossa justiça não for maior que a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus”. Assim, Jesus pretendeu forjar uma ética superior àquela praticada por certos grupos, apontando para o querer do Pai como absoluto na vida do discípulo do Reino.

1 Jesus e a ética cristã

A tradição cristã abriu novas perspectivas para a ética de Israel. Diferentemente dos rabinos e suas escolas para o ensino da interpretação da Lei Mosaica, Jesus transmitiu aos discípulos uma sabedoria de vida – uma ética – centrada no Reino de Deus e sua justiça, a serem buscados em primeiros lugar (cf. Mt 6,33). Escolheu um método existencial – “Aprendei de mim” (Mt 11,29) – para transmitir um modo de ser e de agir com o testemunho de vida, palavras e atos. A linguagem parabólica foi a maneira de pregar o evangelho do Reino. “Nada lhes falava a não ser em parábolas” (Mc 4,34). A vida e o mundo foram as escolas onde os discípulos de Jesus se confrontavam com uma “justiça superior à dos escribas e à dos fariseus” (Mt 5,20).

1.1 As raízes veterotestamentárias

Jesus não inventou uma nova ética. Antes, foi capaz de mergulhar nas raízes da fé de Israel e, deste tesouro, “tirar coisas novas e velhas” (Mt 13,52). Seu contexto ético-religioso exigia uma guinada. A prevalência da mentalidade de certas correntes do movimento dos escribas e fariseus deu origem a uma religião legalista, donde resultava uma ética feita de submissão aos 613 mandamentos e proibições, nos quais a Torá fora codificada. A religião e, com ela, a ética, tornaram-se um fardo pesado, um jugo esmagador, sem espaço para a liberdade. Jesus denunciava os opositores por causa da conduta imprópria. “Amarram fardos pesados e os põem sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos nem com um dedo se dispõem a movê-los” (Mt 23,4). Criavam normas para os outros, sem assumi-las para si.

Entretanto, o novo ethos introduzido por Jesus exigia dos discípulos profunda renovação interior. A continuidade com a tradição de Israel comportava, também, descontinuidade. Jesus usou duas parábolas para falar da disposição para acolher a novidade de sua proposta. “Ninguém põe remendo de pano novo em roupa velha, porque o remendo repuxa a roupa e o rasgão torna-se maior. Nem se põe vinho novo em odres velhos; caso contrário, estouram os odres, o vinho se entorna e os odres ficam inutilizados. Portanto, o vinho novo se põe em odres novos; assim ambos se conservam” (Mt 9,16-17). Sua proposta ética não podia ser confundida com o legalismo farisaico. O Reino de Deus requeria grande abertura de coração para ser acolhido sem reservas. Só assim se poderia captar a novidade ética do Mestre de Nazaré.

1.2 O Mestre exemplar

“Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais!” (Jo 13,15). Os discípulos eram desafiados a contemplar o agir do Mestre e nele se inspirar. Muito diferente dos fariseus hipócritas, contra os quais foram alertados. “Fazei e observai tudo quanto vos disserem. Mas não imiteis suas ações, pois dizem, mas não fazem” (Mt 23,3-4). Um aprendizado feito como antítese das lições dos mestres.

Jesus apresentava seu testemunho de vida como modelo. “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). Sua vida de bem-aventurado (cf. Mt 5,4) manifestava-se no trato com os pequeninos e marginalizados, com os quais convivia, a ponto de irritar os inimigos. “Os fariseus e os escribas murmuravam: ‘Esse homem recebe os pecadores e come com eles’” (Lc 15,2). E não lhe poupavam apodos ofensivos: “comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores” (Mt 11,19). Porém, nada o impedia de seguir o caminho cujo ápice seria a cruz (cf. Lc 4,30).

De forma alguma, sujeitou-se aos caprichos da liderança religiosa. Sua atitude foi de total liberdade diante das tradições, com suas exigências obsoletas. As exterioridades estão fora de seu interesse. Preocupa-lhe, antes, o que sai de dentro do ser humano, pois “isso é que o torna impuro” (Mc 7,20). Aí têm origem os mais horrendos desvios éticos: “prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, malícia, inveja, difamação, arrogância, insensatez. Todas essas coisas más saem de dentro do homem e o tornam impuro” (Mc 7,21-23). Sem um severo trabalho de educação do coração, qualquer conduta ética, decorrente do compromisso cristão, fica inviabilizada.

1.3 O mandamento novo

O Antigo Testamento conhecia duas versões do Decálogo (cf. Ex 20,2-17; Dt 5,6-21). Pode ser considerado a síntese da ética veterotestamentária. São balizas para a conduta humana, iluminada pela fé, caminho para se fazer, na história, a vontade de Deus. Todavia, o legalismo de sua época exigiu de Jesus reinterpretar, com total liberdade, o Decálogo, inclusive com o direito de eliminar o que lhe parecia ultrapassado (cf. Mt 5,21-47). Diante de si estava o Pai, cujo modo de agir os discípulos foram motivados a almejar. “Deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).

A pergunta de um fariseu permitiu a Jesus reduzir o Decálogo apenas a dois mandamentos. “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22,37-40). Assim era possível se posicionar diante da pluralidade de exigências da religião, onde coisas essenciais eram equiparadas a coisas de menor importância.

Entretanto, já no final de seu ministério, Jesus resume as exigências para os discípulos no “mandamento novo” correspondente ao amor mútuo. “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisso reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,34-35; cf. 1Jo 2,7-8). Ou, então, “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). O sinal distintivo da ética cristã é a capacidade de estabelecer um vínculo de caridade nas relações interpessoais. Detalhe: o exemplo inspirador é a oblação de Jesus na cruz, como prova insuperável de amor. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13).

2 A ética do Reino no Sermão da Montanha

O Sermão da Montanha sintetiza a ética do discípulo, na perspectiva do Reino. Mt 5-7 reúne ensinamentos de Jesus, com paralelos em Marcos e Lucas, em contextos diferentes. Esse catecismo do discipulado esboça, em grandes linhas, o agir de quem optou por centrar a vida no querer do Pai, nos passos de Jesus. Pode ser chamado de Torá (instrução, ensino) cristã, pois não pretende ser uma lei, no sentido jurídico do termo, e, sim, uma orientação, um projeto de vida.

2.1 A superação do legalismo

O Mestre Jesus ensina os discípulos a se colocarem diante da Lei com liberdade de coração, interpretando-lhe as exigências sob o prisma da vontade original do Pai. As releituras de alguns mandamentos do Decálogo servem de exemplo para o trato com os demais e toda e qualquer lei. O discípulo aprende a superar a materialidade da letra para atingir o espírito do mandamento. Não matar vai além da eliminação física do outro. A língua pode se tornar uma arma mortífera, capaz de ferir mortalmente o semelhante (cf. Mt 5,21-26). O divórcio, permitido pela religião da época, deve ser rejeitado por se configurar como desrespeito às mulheres (cf. Mt 5,31-33; 19,1-19). O adultério se comete no coração com um olhar libidinoso (cf. Mt 5,27-30). O juramento falso deve ser abolido de vez da vida do discípulo (cf. Mt 5,33-37). A chamada lei de talião – olho por olho e dente por dente – será substituída pela lei do perdão e da solidariedade (cf. Mt 5,38-42). Uma última ilustração: o amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo será substituído pelo amor e pela oração em favor dos inimigos e perseguidores (cf. Mt 5,43-47; 5,11-12). O discípulo recusa-se a interpretar a Lei ao pé da letra, para não cair no legalismo contrário ao querer do Pai.

O referencial do agir do discípulo é o Pai. “Deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48) é a orientação do Mestre Jesus. Tendo o agir do Pai como referência, o discípulo estará no bom caminho. O Pai não faz distinção de pessoas. Por isso “faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,46). Quem se deixa guiar pelo Pai, agirá inspirado nele. Essa é a forma de alcançar um modo de vida – justiça – superior à dos escribas e fariseus (cf. Mt 5,20).

2.2 Uma nova forma de piedade

Outra vertente da ética do discípulo é a dimensão religiosa. Certa corrente do farisaísmo praticava os atos de piedade sem qualquer profundidade, por se preocupar com o reconhecimento alheio. A religiosidade exterior escondia o interior cheio de malícia. Jesus denunciou com vigor profética tal esquizofrenia religiosa. “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Sois semelhantes a sepulcros caiados, que por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda podridão. Assim também vós: por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade” (Mt 23,27).

O discípulo do Reino é orientado a dar esmola da maneira mais discreta possível (cf. Mt 6,1-4). Nada de trombetear e chamar a atenção para si, com o desejo secreto de ser louvado. A regra do agir é: “Não saiba tua mão esquerda o que faz tua direita” (v.3). É a ética da discrição! A prática da oração segue a mesma linha (cf. Mt 6,5-6). Será feita no segredo do quarto, com as portas fechadas, para evitar que alguém veja o discípulo no diálogo com o Pai. Por fim, ao fazer jejum, evitará qualquer sinal exterior de autopunição física, que desfigura o rosto (cf. Mt 6,16-18). Antes, a cabeça ungida e o rosto lavado despistarão qualquer indício de jejum. Só o Pai conhecerá a disposição interior do discípulo.

2.3 Um caminho de comunhão

Bem situado na tradição religiosa de Israel, Jesus coloca-se ao serviço da reconstrução do projeto do Pai para a humanidade. Por isso, apontará aos discípulos um caminho de comunhão e de fraternidade, motivando-os a eliminar os focos de divisão e de inimizade.

O Mestre exorta-os a rejeitarem o materialismo que gera nos corações a sede de possuir e acumular, sem qualquer preocupação de compartilhar (cf. Mt 6,19-21). Esse tesouro enganoso pode ser perdido num piscar de olhos. Só os pobres em espírito são capazes de trilhar o caminho apontado pelo Mestre (cf. Mt 5,3) e estarem sempre prontos a servir a Deus e jamais ao dinheiro (cf. Mt 6,24). O discípulo é também exortado a ter cuidado com o olhar, porta por onde podem entrar em seu coração tantos sentimentos desumanizadores (cf. Mt 6,22-23). Cabe-lhe ser “puro de coração” (cf. Mt 5,8). A ética do Reino exige do discípulo cultivar a virtude da autocrítica para estar à altura de criticar o irmão ou a irmã de comunidade. A hipocrisia de ver o cisco no olho do próximo, sem se dar conta da trave que está no próprio olho, é incompatível com o desejo de viver centrado no Pai. Daí a ordem de não julgar para não ser julgado (cf. Mt 7,1-5).

Duas orientações de vida são fundamentais para o discípulo do Reino. A primeira é: “Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6,33). O foco da ética é o Pai e seu Reino. Todas as ações decorrerão desse filão teológico. A segunda é: “Tudo aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12). O olhar fixado em Deus está igualmente fixado no próximo. Porém, numa perspectiva peculiar: o discípulo deseja para si o mesmo que deseja para o semelhante. O olhar dirigido ao outro determinará o que é bom para si. Nada pode desejar para si, sem antes se perguntar se corresponde ao que deseja para o outro. Nada pode desejar para si, sem o desejar também para o outro. Nada pode desejar para o outro, sem que também seja desejável para si.

3 A ética da comunidade cristã

A ética cristã, no bojo da tradição de Israel, é comunitária por natureza. Os indivíduos são pensados nas relações interpessoais, jamais solitários. Desse modo, ao longo do seu ministério, Jesus lançou a semente do que haveriam de ser as comunidades cristãs. Seu projeto ético supunha os discípulos do Reino reunidos em comunidade.

3.1 “Um só coração e uma só alma”

As primeiras comunidades dos discípulos e discípulas de Jesus chamavam a atenção pela prática da solidariedade (cf. At 2,44-47). A adesão à fé levava-os a colocar tudo em comum, a ponto de se desfazerem de suas propriedades, pensando “nas necessidades de cada um” (v.45). O crescimento da comunidade se dava por seu modo de viver. A fraternidade solidária tornava-se um projeto de vida atraente para quem buscava um modo de vida alternativo ao que se conhecia no ambiente judaico e no ambiente romano.

Uma metáfora sugestiva descreve a vida dos primeiros cristãos. “A multidão dos que haviam crido era um só coração e uma só alma” (At 4,32a). Sem romantismo, tiravam as consequências práticas desse estilo de vida. Sempre na linha da solidariedade! “Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum” (At 4,32b). A comunidade se organizava em função das necessidades de seus membros, para que não houvesse necessitados. “De fato, os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas, e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um segundo sua necessidade” (At 4,34-35). A fé se desdobrava na ética da caridade!

3.2 Solidariedade com os empobrecidos e marginalizados

A carta de Tiago é uma súmula importante da ética cristã. Um tópico importante de sua catequese diz respeito à atenção devida aos empobrecidos e marginalizados. Não se admite que um pobre seja discriminado na assembleia da comunidade (cf. Tg 2,1-9). Engana-se quem oferece ao rico um lugar confortável e manda o pobre sentar-se abaixo, aos pés dos ricos (v.3). Este modo de agir desagrada a Deus, que “escolheu os pobres em bens deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que o amam” (v.5). Tiago denuncia a ingenuidade de quem bajula os ricos opressores e blasfemadores, que “os arrastam aos tribunais” (v.6). O desrespeito aos pobres atrai a ira de Deus, pois, ao se fazer acepção de pessoas, se comete pecado e se incorre na condenação da Lei, por transgressão (v.9).

Tiago estabelece a estreita relação entre fé e obras (cf. Tg 2,14-26). A fé torna-se imprestável, se não se explicitar em ações em favor dos empobrecidos. Não terá valor salvífico! De nada adianta ir ao encontro de um irmão ou irmã carente de vestuário e alimentação com augúrios dispensáveis – “Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos!” (v.16a) – sem “lhes dar o necessário para a sua manutenção” (v.16b). A solidariedade cristã tem valor salvífico quando supera a piedade vazia e parte para a ação, movida pela fé. É a ética verdadeira que, pela mediação do próximo necessitado, gera comunhão com o Pai do céu (cf. Mt 25,31-36).

3.3 A exigência do perdão e da reconciliação

O binômio perdão e reconciliação é indispensável na ética comunitária cristã. Por mais que os discípulos do Reino se esforcem, jamais está descartada a possibilidade de se romperem as relações. Isso pode ser inevitável. Entretanto, não se podem tolerar a inimizade e a acomodação em face aos vínculos rompidos. A comunhão fraterna é exigência inescusável!

O Pai não pode suportar o culto de quem está de relações cortadas com algum irmão. “Vai primeiro reconciliar-te com teu irmão” (Mt 5,24) é exigência para o culto agradável a Deus. Sem essa providência preliminar, o culto perderá a razão de ser.

Quem “não perdoar, de coração, ao seu irmão” (Mt 18,35) será réu de castigo divino. Afinal, cada vez que se perdoa apenas se compartilha com o próximo o perdão recebido do Pai do céu. A parábola do devedor que se mostra implacável ilustra este elemento da ética cristã (cf. Mt 18,23-35). O perdão do discípulo do Reino corresponde à partilha do perdão incalculável recebido do Pai, ilustrado na parábola com o cancelamento de uma dívida de dez mil talentos, sem qualquer exigência de ressarcimento. O perdão concedido ao irmão será irrisório, comparado ao perdão recebido de Deus. “Cem denários” é nada diante de “dez mil talentos”.

O perdão reconciliador, na ética cristã, não tem limites. O discípulo do Reino é desafiado a perdoar sempre. O diálogo entre Pedro e Jesus esclarece este viés do modo de proceder de quem adere ao Reino. “Senhor, quantas vezes devo perdoar ao irmão que pecar contra mim? Até sete vezes!” foi a questão levantada por Pedro (Mt 18,21). O discípulo propõe como parâmetro o máximo de vingança aludido no Antigo Testamento (cf. Gn 4,24). O Mestre abre-lhe a perspectiva do perdão ilimitado. “Não te digo até sete, mas até setenta vezes sete vezes” (Mt 18,22). O Mestre quis dizer: “Sempre!” Essa é a forma mais conveniente de “ser misericordioso como o Pai é misericordioso” (Lc 6,36).

4 A ética do amor misericordioso

O amor-ágape é a pedra basilar da ética cristã. Tudo parte dele e se direciona para ele. Quiçá seja esta a originalidade do ensinamento ético de Jesus, ao apontar um eixo vertebral da ação dos discípulos e discípulas do Reino, de modo a dar unidade a tudo quanto fazem. Uma frase de Santo Agostinho resume bem este vetor do agir cristão: “Ama e faze o que queiras!” No pressuposto de existir o amor, qualquer ação em favor do próximo será bem-vinda, por visar sempre o bem. Sem o “ama”, o outro pode se tornar objeto nas mãos de indivíduos sem escrúpulos. O amor faz tudo ser diferente!

4.1 “Quem permanece no amor, permanece em Deus”

Os escritos joaninos insistem no primado do amor na vida do cristão, pois “Deus é amor”. Por conseguinte, “aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele!” (1Jo 4,16). Teologia e ética fundem-se numa unidade existencial, expressa em cada gesto ou palavra do discípulo do Reino. Por conseguinte, o ato de fé se torna verdadeiro no ato de amor-ágape. Na direção contrária, o ato de amor-ágape é a expressão autêntica da fé, sem possibilidade de equívocos. A prática da caridade revela a comunhão do discípulo com Deus, pois Deus se faz presente e torna possível o ato de amor. Sem a presença divina, a caridade fica impossibilitada, já que o indivíduo está largado a si mesmo, sendo incapaz de superar os limites do egoísmo, raiz da maldade e da injustiça cometidas contra o semelhante, sendo os fracos e indefesos as primeiras vítimas.

O verbo grego ménō, traduzido por permanecer, significa habitar, morar. Isto permite descobrir uma rica semântica na afirmação joanina. O amor-ágape possibilita ao discípulo “morar em Deus” e “Deus morar nele”. Se o discípulo mora em Deus e Deus nele, só poderá agir movido pelo amor. O egoísmo jamais terá lugar em seu coração! Isso só será possível no dia em que mudar de morada. Em outras palavras, se abraçar uma ética contrária ao projeto do Reino, anunciado por Jesus.

4.2 “A maior é a caridade!”

Paulo, escrevendo à comunidade de Corinto, indica-lhe “um caminho que ultrapassa a todos” (1Cor 12,31): o caminho da amor-ágape! Servindo-se de linguajar poético, apresenta um projeto de vida ética de elevado teor, onde todas as ações humanas se alicerçam no amor que, no final das contas, será a única coisa que permanecerá na relação do ser humano com Deus. O “hino à caridade” é uma pérola dos escritos neotestamentários (cf. 1Cor 13,1-13).

Dois tópicos chamam a atenção. Paulo refere-se à possibilidade de se ter “toda a fé, a ponto de transportar montanhas”; sem a caridade, porém, “nada seria” (v.2). Não é fácil pensar “toda a fé” desprovida de caridade. Que fé seria? Ainda mais espantosa é a eventualidade de alguém distribuir todos os seus bens aos famintos e entregar seu corpo às chamas, sem ser movido pela caridade (v.3). Não seriam atos heroicos de oblatividade? Como pensá-los à margem da caridade? O apóstolo parece servir-se de uma linguagem paradoxal para chamar a atenção para o valor supremo da caridade.

O amor-ágape tem muitíssimos rostos: paciência, serviçalismo, gentileza, esperança, suportabilidade. Por outro lado, não cultiva a inveja, a ostentação, o orgulho, a irritabilidade nem o rancor. Não é inconveniente; deixa de lado o interesse pessoal; se entristece com a injustiça, mas se alegra com a verdade (v.4-7). A vida virtuosa é fruto do amor-ágape! Deixar-se guiar por ele corresponde à atitude mais sensata do cristão.

No ocaso da vida, o amor-ágape despontará como a virtude mais preciosa do cristão. Embora permanecendo a fé e a esperança, maior que ambas é a caridade (v.13).

4.3 “Faze isto e viverás!”

A parábola do bom samaritano comporta um ensinamento essencial para a ética cristã: a misericórdia deve ser radical (cf. Lc 10,25-37). A questão de fundo é a pergunta do doutor da Lei Mosaica, dirigida a Jesus: “Que farei para herdar a vida eterna?” (v.25).

A história contada para explicar “quem é meu próximo?” comporta dois personagens que, ligados a Deus por suas funções, praticam uma religião sem entranhas de misericórdia. O sacerdote e o levita passam insensíveis ao largo, ao se depararem com o homem caído na beira da estrada (v.31-32). A necessidade do próximo não lhes toca o coração. Deus lhes basta! Será?

No extremo oposto da relação com Deus na visão dos judeus, um samaritano é introduzido na história. Era bem conhecida a hostilidade dos judeus em relação aos samaritanos (cf. Jo 4, 9). Exatamente um samaritano se depara com o homem desnudado, espancado e deixado semimorto (v.30). A grande probabilidade de ser um judeu já seria motivo para passar adiante, sem se importar com sua sorte. Entretanto, deixando de lado os preconceitos, sua vida muda de direção. A carência do ser humano que tem diante de si lhe ocupa toda a atenção. Uma cascata de expressões de misericórdia acontece!

“Chegou junto dele, viu-o e moveu-se de compaixão” (v.33). É o começo de tudo! O samaritano deixou-se afetar pelo homem caído. A afecção tocou-lhe as entranhas, a ponto de não deixá-lo impassível. Antes, moveu-o a agir, sem interpor dificuldades. “Aproximou-se, cuidou de suas chagas, derramando óleo e vinho, depois o colocou em seu próprio animal, conduziu-o à hospedaria e dispensou-lhe cuidados. No dia seguinte, tirou dois denários e deu-o ao hospedeiro dizendo: ‘Cuida dele, e o que gastares a mais, em meu regresso te pagarei’” (v.34-35). O samaritano esgotou todas as possibilidades de se mostrar solidário com o homem aviltado em sua dignidade. Foi misericordioso até o extremo!

A palavra de Jesus ao mestre da Lei aplica-se a todos quantos se fazem discípulos do Reino, no seguimento do Mestre de Nazaré: “Vai, e também tu faze o mesmo” (v.37). A vivência radical da misericórdia, que se faz solidária com as carências do irmão sofredor, é a quintessência da ética cristã, caminho de comunhão com o Pai, revelado por Jesus.

5 Desafio atual

Os cristãos e cristãs da América Latina deparam-se com o desafio de viver a fé, com densidade ética, num Continente marcado pela injustiça, com seus muitos rostos de empobrecimento, miséria, desigualdade, violência, morte e corrupção. Dizer-se adorador ou adoradora do Deus de Jesus Cristo, esquivando-se do confronto com o irmão e a irmã cujos direitos lhes são negados, corresponde a rejeitar com a vida (ética) o que se professa com a fé (teologia). As palavras do Mestre de Nazaré continuam a soar, como aguilhão a despertar-lhes a consciência: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21). Qual é a vontade do Pai celeste senão que vivamos a caridade, “plenitude da Lei” (Rm 13,10)?

Jaldemir Vitório SJ, FAJE, Brasil. Texto original português.

6 Referências bibliográficas

ADRIANO, J. A caridade e a ética da vida. Revista de Cultura Teológica,  n.9, p.37-59. 2001.

BARROS, M. Ética e solidariedade na Bíblia. Magis Cadernos de Fé e Cultura, n.2, p.109-32. 1994.

HARRINGTON, D. Jesus e a ética da virtude: construindo pontes entre os estudos do Novo Testamento e a teologia da moral. São Paulo: Loyola, 2006.

MATERA, F. J. Ética do Novo Testamento: os legados de Jesus e de Paulo. São Paulo: Paulus, 1999.

PONTIFÍCIA Comissão Bíblica. Bíblia e Moral: raízes bíblicas do agir cristão. São Paulo: Paulinas, 2009.

Experiência religiosa: abordagem das ciências da religião

Sumário

1 O olhar sociológico

2 O olhar fenomenológico

3 O olhar psicológico

4 O olhar teológico

5 Um campo semântico em discussão

6 A busca pela experiência espiritual

Abordar a questão da experiência religiosa é adentrar-se por caminhos extremamente complexos e cada vez mais problematizados nesse tempo de crise das instituições tradicionais de sentido. A própria categoria “religião” ganha uma pletora de significados, assim como o “campo religioso” abrange hoje outros aspectos que não se enquadram precisamente no âmbito das religiões. Como assinalaram Carlos Steil e Rodrigo Toniol, o conceito mesmo de religião torna-se hoje inadequado para “designar um habitus que se expressa por meio de espiritualidades, filosofias de vida e experiências do sagrado que compõem determinado regime de crer” (STEIL, TONIOL, 2012).

A noção de experiência veio definida com o rigor necessário pelo filósofo Henrique Cláudio de Lima Vaz, em clássico artigo do início da década de 1970. Justificava, na ocasião, a pertinência de uma não oposição entre experiência e pensamento. Em sua argumentação, a experiência vem definida como “a face do pensamento que se volta para a presença do objeto” (LIMA VAZ, 1974, p.76). A experiência envolve assim um campo de relação ativa entre a consciência e o fenômeno, suscitando sua tradução em linguagem, apesar de toda dificuldade que acompanha esta operação, sobretudo em razão da inefabilidade da presença. A linguagem busca, porém, traduzir a presença, mesmo com o limite de sua formalidade: “A presença sem a linguagem é opaca, a linguagem sem a presença é vazia” (LIMA VAZ, 1974, p.79).

A experiência religiosa diz respeito ao envolvimento com o sagrado, evocando na consciência questões que tocam o âmbito essencial do sentido. Na busca de situar a peculiaridade desta experiência religiosa vinculando-a à estrutura da experiência, pode-se dizer que

na experiência do sagrado o polo da presença define-se pela particularidade de um fenômeno cujas características provocam, no polo da consciência, essas formas de sentimento e emoção que formam como que um halo em torno do núcleo cognoscitivo da experiência e que análises clássicas como as de Rudof Otto procuram descrever (LIMA VAZ, 1974, p.82).

A experiência religiosa pode ser captada por oculares diversificadas, envolvendo campos distintos de saber, que se inter-relacionam e dialogam, favorecendo perspectivas dinâmicas para a sua compreensão. Ao lado de um olhar sociológico, outras contribuições se somam, como as advindas da perspectiva fenomenológica, psicológica e teológica, de forma a abrir o campo da discussão em terreno tão complexo e removido como este da experiência religiosa.

 1 O olhar sociológico

A peculiaridade do olhar sociológico sobre o fenômeno religioso consiste em trazer a questão para suas formas concretas de inserção no tempo. O fenômeno está aí, acontecendo em expressões efetivas. São representações e crenças, são ritos específicos que traduzem, como indica Emile Durkheim, um sistema de forças bem vivo. Esse sentimento não pode ser ilusório, pois esteve sempre acompanhando a dinâmica da humanidade: tem correspondência com algo no real. Trata-se de um sentimento demasiado geral e que traduz a presença no humano de uma força dinamogênica inusitada, que o ajuda a suportar as dificuldades da existência e também superá-las. Como pontua Durkheim, a religião tem como função ajudar a viver, suscitar um agir, tudo isso animado por um sentimento peculiar de poder que eleva o ser humano acima de suas potencialidades, auxiliando-o a fazer frente às provas do dia a dia. Ela é mais um sistema de forças que de ideias.

O que irmana as diversas crenças religiosas, indica Durkheim, é a percepção de classificação das coisas como sagradas ou profanas. As coisas sagradas envolveriam um círculo de objetos de extensão infinitamente variável, tendo como peculiaridade uma percepção de dignidade singular – e superioridade – com respeito às coisas profanas.  O caráter sagrado, por sua vez, não é algo intrínseco a uma coisa reconhecida como sagrada, mas é um dado acrescentado. Quando se fala em força religiosa o que está em jogo é um sentimento inspirado pela coletividade em seus membros e que vem projetado e objetivado.

No mesmo movimento que estreita o laço do fiel com seu Deus, firmam-se também os laços que unem o indivíduo à sociedade de que é membro. Isso acontece de forma precisa nas práticas do culto. Ali ocorre não apenas um sistema de signos que traduzem a expressão da fé, mas uma “coleção de meios pelos quais ela se cria e se recria periodicamente” (DURKHEIM, 1989, p.494). A religião vem definida como um sistema solidário de crenças e práticas relacionadas às coisas sagradas, que congregam seus aderentes numa mesma comunidade moral (DURKHEIM, 1989, p.79).

O traço dinamogênico da religião veio também sublinhado por Peter Berger em sua reflexão sociológica. A religião vem concebida como empreendimento fundamental na manutenção da plausibilidade do sentido, com derivação ainda mais substantiva por relacionar-se a uma fonte poderosa. Trata-se de uma “cosmificação” pontuada pela qualidade desse poder misterioso e envolvente que é o sagrado. Na medida em que transcende e envolve o ser humano nessa dinâmica de ordenação da realidade, o cosmos sagrado “fornece o supremo escudo do homem contra o terror da anomia. Achar-se numa relação ‘correta’ com o cosmos sagrado é ser protegido contra o pesadelo da ameaça do caos” (BERGER, 1985, p.40).

Dizia com razão Durkheim que as crenças “só são ativas quando compartilhadas”. É também o que reitera a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger ao destacar uma importância singular ao exercício da crença numa tradição ou linha de continuidade do dispositivo devocional. A tradição ganha em sua reflexão um lugar singular, enquanto lugar de conservação e atuação da crença. Ela é “geradora de continuidade”.  Sua definição de religião é bem precisa: “Uma ‘religião’ é um dispositivo ideológico, prático e simbólico mediante o qual se forma, se mantém, se desenvolve e se controla a consciência (individual e coletiva) da pertença a uma descendência crente específica” (HERVIER-LÉGER, 1996, p.129).

Com o advento da modernidade e das sociedades pós-tradicionais, ocorre uma crise de credibilidade dos sistemas religiosos e a emergência crescente de novas formas de crença. O que caracteriza o tempo atual não é a mera indiferença com respeito à crença, mas a perda de sua regulamentação por parte das instituições tradicionais produtoras de sentido. O que ocorre é uma “bricolagem de crenças”, uma individualização e liberdade na dinâmica de construção dos sistemas de fé. Como sublinha Hervier-Léger,

o principal problema, para uma sociologia da modernidade religiosa é, portanto, tentar compreender conjuntamente o movimento pelo qual a Modernidade continua a minar a credibilidade de todos os sistemas religiosos e o movimento pelo qual, ao mesmo tempo, ela faz surgirem novas formas de crença (HERVIER-LÉGER, 2008, p.41)

Torna-se impróprio falar simplesmente de um retorno ou revanche do religioso no tempo atual. O processo é mais complexo. Há de um lado a desqualificação das “grandes explicações religiosas do mundo” que forneciam o sentido e plausibilidade para as pessoas e grupos religiosos. Mas, por outro, essa mesma modernidade secularizada não consegue responder às demandas de nomização, acumulando não só utopia mas também opacidade, e com isso gerando simultaneamente “as condições mais favoráveis à expansão da crença” (HERVIER-LÉGER, 2008, p.41).

 2 O olhar fenomenológico

A experiência religiosa foi objeto de muita reflexão também na fenomenologia da religião e na teologia, buscando resgatar o desejo de transcendência presente na dinâmica humana. Clássica é a posição do pensador romeno Mircea Eliade, na busca de uma essência do fenômeno religioso, visando encontrar na experiência do sagrado o traço fundamental da experiência religiosa. Para Eliade, o sagrado não pode ser entendido como uma fase na história da consciência, mas um “elemento na estrutura da consciência” (ELIADE, 1978, p.13). Nesse sentido, o dado religioso seria constitutivo do ser humano como tal. Segundo essa visão mais essencialista, o sagrado seria “o real por excelência”, fonte de vitalidade e fecundidade. Estar em relação com o sagrado, ou viver marcado por essa presença, é propiciar uma inserção na realidade objetiva (ELIADE. s/d, p.42). Nesse quadro interpretativo, é o sagrado que possibilita a orientação e a construção de mundo, firmando propriamente a ordem cósmica. Não se poderia conceber a existência humana fora dessa comunicação com o numinoso, pois ele é por excelência o dossel protetor contra a ameaça de carência de sentido ou do caos.

No olhar fenomenológico, o âmbito do sagrado circunscreve o “mundo do definitivo” e do necessário. Diante dele todas as realidades da vida ordinária e todas as criaturas passam a ser percebidas como penúltimas, envolvidas por um sentimento vivo de dependência. O sagrado traduz uma realidade que denota majestade, superioridade e transcendência. Diante dele não há sentimento possível senão o de criatura. É algo simultaneamente fascinante e tremendo, como mostrou com acuidade Rudof Otto. Por um lado, arrebata, desconcerta e comove, por sua qualidade de tremendum e de “totalmente outro”. Isto pelo fato de estar fora da alçada do domínio das coisas familiares e habituais, típicas do mundo profano. Por outro, provoca fascínio, encanto e atração. Como sublinha Otto, “provoca na alma um interesse que não se pode dominar” (OTTO, 1992, p.41). É esse sentimento do numinoso, do totalmente outro, que está na base do sentimento religioso e da experiência religiosa, como indicam os autores da fenomenologia da religião.

Essa abordagem fenomenológica vem sendo objeto de crítica de autores das ciências da religião, sobretudo em razão de sua perspectiva essencialista e sua tendência à generalização (GASBARR0, 2013, p.93 e 95). Como assinala Frank Usarski, um dos mais fortes críticos a tal perspectiva no Brasil,

o maior desafio que o mundo complexo das religiões representa para um fenomenólogo “clássico” é o da abstração da complexidade dos fatos reais para chegar ao “conhecimento” do sagrado o mais imediatamente possível, ou seja, da suposta essência de qualquer “verdadeira” religião que repercute no interior de um ser humano sensível para tal “última realidade” […]. Enquanto os fenomenólogos pretendiam ir além dos aspectos particulares que constituem uma religião no contínuo tempo-espaço, para chegar à essência da religião em si, as gerações posteriores dos cientistas da religião defendem o caráter multidisciplinar dos seus estudos e a necessidade de uma colaboração entre especialistas formados em diferentes subdisciplinas e interessados em todas as dimensões que compõem qualquer religião concreta (USARSKI, 2006, p.41-43).

Mas não se pode desconhecer a importância do aporte da fenomenologia da religião para acessar a experiência religiosa, sobretudo o destaque dado à importância do “tato religioso” para o pesquisador que se disponha a adentrar-se no domínio complexo desse fenômeno. Em casos particulares, a perspectiva contrária, animada pelo “ateísmo metodológico”, não consegue aproximar-se com profundidade do mundo do outro, ou o que é mais grave, acaba por favorecer uma cognição problemática, quando não miserável sobre a experiência da alteridade (PONDÉ, 2001, p.54-9).

 3 O olhar psicológico

Não há como captar a experiência religiosa desconhecendo a extraordinária polimorfia que a caracteriza. Trata-se de uma realidade que vem carregada por múltiplos e complexos significados. A abordagem psicológica da religião busca uma aproximação do fenômeno tendo em conta suas tensões e polarizações constitutivas. O objetivo proposto é o de observar a conduta dos sujeitos e das instituições, com particular atenção aos aspectos subjetivos. Como indicou com acerto Edênio Valle, ainda que reconhecendo os inúmeros desacordos que dividem os praticantes dessa disciplina, a aproximação psicológica ao fenômeno religioso guarda alguns traços importantes:

As definições deixam claro que as religiões reais – com seu peso institucional e sócio-histórico – e a religiosidade, sua face subjetiva, acontecem no jogo das múltiplas relações que se estabelecem entre o sujeito religioso, o grupo religioso ao qual se afilia e o universo das crenças e valores vigentes naquela dada sociedade, grupo ou época, considerados, inclusive, seus respectivos modelos civilizatórios e respectivos estágios de desenvolvimento tecnológico-científico e político-organizativo. Neste contexto de extraordinária complexidade, o psicólogo tenta chegar à opção vivencial e à realidade psicológica e humana dos indivíduos, assim como essa aparece em seu comportamento religioso (VALLE, 1998, p.260).

O olhar psicológico, aninhado num ramo específico das ciências da religião, busca examinar os fenômenos e manifestações religiosas tendo em vista a polifonia de suas dimensões comportamentais. É, porém, um olhar que se encontra ainda em estágio de construção, mesmo com uma história que já soma quase cento e cinquenta anos. Esse caminho veio recentemente traçado por Jacob Belzen, da Universidade de Amsterdã, que sintetiza de forma muito feliz os passos até agora percorridos pela Psicologia da Religião. A forma como se concebeu ou se exerceu esse campo temático foi muito diversificada: ora se firmou a serviço do religioso, ou então a serviço da crítica à religião ou do conhecimento científico. Perspectivas que se vinculam a um dos três caminhos são recorrentes. Mas uma outra perspectiva, sublinhada por Belzen, vem também se firmando, e é bem sugestiva. Trata-se do caminho nomeado como “Parecerista” (do alemão Rezensentin). Para usar uma metáfora do mundo da música, esta perspectiva tem como foco principal a atenção desperta para os que praticam a música, no caso, os executantes da religião. E o autor justifica esta posição: “Os psicólogos da religião que exercem sua profissão como Pareceristas sobre uma religião ou comportamento religioso não se sentem chamados a escrever sobre religião em geral, mas sim sobre um comportamento religioso concreto” (BELZEN, 2013, p.326-7). Esse modo de procedimento é distinto de certa concepção exteriorista ou neutra, bem vigente neste campo, que destaca o pesquisador do objeto de seu estudo em vista de uma maior cientificidade. Ao contrário, os que seguem a nova orientação estão bem cientes da importância de uma maior aproximação da religiosidade particular para uma interpretação correta das manifestações subjetivas do exercício da religiosidade. Esta nova ocular vem assim recuperar a dimensão hermenêutica da Psicologia da Religião, instrumentando-a com novos atributos para conhecer o sujeito religioso tanto a partir de fora como de dentro de sua prática religiosa.

 4 O olhar teológico

O desejo de transcendência, já presente na ocular fenomenológica, vem também trabalhado em âmbito teológico, sendo destacado com ênfase por autores como Karl Rahner. Esse grande arquiteto da teologia católica dedicou-se a compreender os traços dessa “experiência transcendental” que, a seu ver, opera em todos os seres humanos. Para ele, não há como desvencilhar-se desse dinamismo que atua na consciência subjetiva, como traço necessário e insuprimível, mesmo que ocorra de forma anônima ou atemática. Cada consciência subjetiva estaria assim animada por esse “caráter ilimitado de abertura”. Enquanto ser de transcendência, o ser humano está sempre, e antes de qualquer ato de liberdade, situado e orientado na atmosfera de um “mistério santo e absolutamente real”. É esse mistério, simultaneamente transcendente e familiar, o que existe “de mais evidente”, colocado sempre à disposição do humano.

Segundo Rahner, esta experiência transcendental do sujeito vem marcada por universalidade, podendo ocorrer de forma atemática e mesmo “arreligiosa”, independente de uma experiência religiosa explícita. É uma experiência original, ontologicamente fundada.  Ela acontece de fato onde quer que o sujeito atue de forma livre e profunda a sua existência. É algo que se disponibiliza para todos, e que pode ocorrer “até mesmo em formas e conceituação que aparentemente nada têm de religioso” (RAHNER, 1989, p.164). Ocorre quando o sujeito se vê defrontado, no âmbito de suas atividade cotidianas, com o “abismo de sua existência”, com a profundidade que escapa ao burburinho tranquilo das coisas familiares.

 5 Um campo semântico em discussão

Torna-se cada vez mais complicado querer hoje caracterizar a religião como uma atividade específica do ser humano, como definido em alguns campos da fenomenologia da religião. É verdade que alguns autores como Keiji Nishitani e Paul Tillich buscaram ampliar esse campo semântico, visando identificar um sentido mais lato de religião. Nesse caso, a expressão envolveria uma dimensão mais ampla, associada à metáfora da profundidade. Religião seria assim a “dimensão da realidade suprema nos diferentes campos do encontro do homem com a realidade” (TILLICH, 1968, p.96). Igualmente Nishitani, da Escola de Kyoto, apresenta um conceito de religião mais amplo, que a associa à “real consciência da realidade”. Para ele, a exigência religiosa envolveria a “busca humana da verdadeira realidade de um modo real”, para além de uma expressão exclusivamente teorética (NISHITANI, 2004, p.35-6).

Com base nas experiências do sagrado ou espirituais que não se encaixam exclusivamente no conceito tradicional de religião, há que problematizar certa ideia rotineira de religião que a enquadra como um traço do humano. Estudiosos da história das religiões e das mitologias, como Jean-Pierre Vernant lançam suspeitas sobre os procedimentos analíticos habituais com respeito à cobertura da noção de religião. Há povos ou tradições que não trabalham com a distinção sagrado/profano, nem com noções como a de um Deus único, ou mesmo de Deus. Outras tradições que não trazem em seu repertório dogmas ou credos, um clero regular ou promessas de imortalidade. Critica-se a ideia mesma de religião como sendo “estreitamente etnocêntrica e ocidental” (GEFFRÉ, 2012, p.15-6).

Como mostrou Pierre Gisel, o dado religioso não pode ser concebido como algo apriorístico, ou dimensão específica do humano, mas é algo que só se dá em formas determinadas de crenças ou religiões específicas. Trata-se, antes, de uma “construção cultural”. As religiões são historicamente firmadas e construídas. O termo religioso, distintamente da forma como veio concebido numa perspectiva mais substantiva ou essencialista, é um constructo:

o que ele circunscreve não se encontra em todas as culturas ou em todas as civilizações, e quando ele designa um campo próprio – como na história ocidental permeada de cristianismo –, este campo é, de fato, um “cenário”, no qual realidades antropológicas e sociais mais amplas vêm se apresentar (GISEL, 2011, p.169).

Mudanças essenciais vêm ocorrendo no âmbito da modernidade pós-tradicional, com implicações bem precisas na dinâmica religiosa. Junto com a desinstitucionalização crescente, expressão da crise das instâncias sólidas que fundavam, enquadravam e regulavam o campo das experiências religiosas, instala-se a quebra de transmissão da memória religiosa. As filiações tradicionais sofrem impacto decisivo e novas crenças se firmam fora do circuito tradicional das religiões tradicionais. Como pontua Pierre Sanchis, “um dos problemas mais críticos que as instituições religiosas terão de enfrentar nos próximos tempos será de se haver com um significado menos totalizante para a relação identitária que seus fiéis manterão com elas” (SANCHIS, 2013, p.13-4).

Com todas as mudanças provocadas pela modernidade pós-tradicional, um dado permanece vigente: a incapacidade de lidar com as incertezas antropológicas que permanecem acesas no tempo. Ainda que superando certos fatalismos típicos das sociedades tradicionais, a modernidade não conseguiu responder à sede de sentido de seus indivíduos. É uma demanda que permanece viva e aguda (HERVIEU-LÉGER, 1996, p.151). Isto talvez ajude a explicar a grande sede espiritual que move um importante segmento de pessoas no momento atual, suscitando novas questões e indagações e ampliando o campo da discussão em torno da experiência do sentido.

 6 A busca pela experiência espiritual

Ainda que a experiência religiosa vigore como um dado presente e singular, talvez seja mais pertinente falar em experiência espiritual, caso se queira buscar um campo de maior universalidade. Há que distinguir entre religião e espiritualidade, como tão bem mostrou Dalai Lama. A espiritualidade está relacionada com “qualidades do espírito humano” tais como o amor, a compaixão, a paciência, a hospitalidade, a atenção, delicadeza e doação. São qualidades que independem de uma vinculação religiosa, e qualquer indivíduo é capaz de desenvolvê-las, mesmo em alto grau, mesmo não pertencendo a um sistema religioso determinado. Pode-se até dispensar a religião, mas não essas “qualidades espirituais básicas” (DALAI LAMA, 2000, p.32-3).

Uma série de autores não religiosos têm hoje sublinhado a importância da vida espiritual como traço elevado do ser humano, e capaz de ser experimentado mesmo fora de uma inserção religiosa. É o caso de André Comte-Sponville em seu trabalho sobre O espírito do ateísmo. Para ele, a espiritualidade tem a ver com a abertura do espírito e o defrontar-se com a vida em profundidade. Essa abertura ao infinito, à eternidade, ao singular que existe no próprio sujeito, despertando dimensões inusitadas, é de fato exercício de vida espiritual. Se é verdade que “toda religião pertence, ao menos em parte, à espiritualidade”, há também que afirmar que “nem toda espiritualidade é necessariamente religiosa” (COMTE-SPONVILLE, 2007, p.129).

A espiritualidade, sublinha Comte-Sponville, é algo que se dá, de forma simples e até mesmo banal, no domínio da experiência cotidiana, diante da força da “imanensidade”. Trata-se do sentimento essencial de estar diante do Todo, que se apresenta no tempo e que transborda o sujeito por todos os lados. Criando-se as condições para uma tal experiência, algo que requer atenção e disponibilização interior, a estupefação diante do Mistério revela-se imediata: “O mundo é nosso lugar; o céu, nosso horizonte; a eternidade, nosso cotidiano” (COMTE-SPONVILLE, 2007, p.137).

Em linha de sintonia com esta perspectiva, pode-se também assinalar a reflexão de Pierre Hadot, que fala em “exercício espiritual”, entendido como uma prática voluntária e pessoal de desapego e transformação de si mesmo, de descentramento do ego em favor de uma aliança superior do sujeito com a totalidade das coisas (HADOT, 2008, p.119-20; MANCUSO, 2012, p.143-4; ). Trata-se de uma experiência que não está destacada da vida cotidiana, mas que encontra aí o cenário vivo de sua realização. Citando uma passagem de Wittgenstein a propósito da mística, Hadot destaca essa singularidade da “maravilha pela existência do mundo”, de ser capaz de ver o mundo como um milagre. Não há como acessar a riqueza de uma tal experiência espiritual fora do cotidiano. É ali que os aspectos mais simples, ricos e essenciais das coisas encontram sua guarida (HADOT, 2007, p.16-7 e 77; PENA-RUIZ, 1998, p.22).

Faustino Teixeira  – PPCIR – UFJF, Brasil. Texto original português.

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Teologia moral

Sumário

1 Lições da História

2 Ética humana ou moral religiosa?

3 Uma dupla abordagem na moral atual

4 A urgência de uma abordagem científica

5 A busca pelo bem maior

6 Consciência  como tema central

7 Pecado e culpa

8 O pecado coletivo

9 Referências bibliográficas

1 Lições da história

Não há dúvida que a teologia moral sofreu uma forte desvalorização em nosso mundo contemporâneo. Muitas pessoas, educadas em ambiente cristão, deixaram de acreditar nos ensinamentos éticos recebidos. Durante muito tempo, no entanto, tais ensinamentos éticos tiveram forte influência entre os crentes e orientavam a vida concreta. O poder da Igreja para interpretar e aplicar estes ensinamentos éticos à diferentes situações era considerado uma expressão explícita da vontade de Deus. A promessa do Espírito dava-lhe uma garantia firme para não cometer um erro em seus ensinamentos. Os fiéis não tiveram alternativas senão a obediência e a submissão.

Ainda  que se tenha promovido o  estudo da teologia moral em boas universidades, sob o ensinamento de grandes teólogos, também é verdade que tal disciplina nunca perdeu, ao longo da história, seu interesse principal em ajudar os confessores para o ministério da reconciliação, que era seu centro. O sacerdote expressava o perdão e a misericórdia de Deus,  contudo, também como um juiz, era necessário que tivesse o conhecimento exato da seriedade e importância do ato cometido. A maioria dos textos de moral, até recentemente, tinha-se tornado verdadeiro “pecatômetros”, medindo, com precisão e imaginação, todas as possibilidades (casuística).

Esta orientação prioritária não impediu, no entanto, as muitas discussões que ocorreram ao longo da história sobre temas que se referem a certas questões éticas. Basta lembrar, por exemplo, as diferentes formas de harmonizar as exigências da lei com as decisões de consciência. Os chamados sistemas morais não se referem, como pode parecer, aos grandes fundamentos da moralidade, mas à proporção diferente defendida entre a obrigação legal e a liberdade de cada pessoa para determinar sua escolha em diferentes circunstâncias. Embora as alegações do passado pareçam superadas hoje em dia, sem dúvidas ainda são suficientemente influentes para evitar ou induzir a uma visão mais ou menos rigorista (rigorismo).

O mesmo aconteceu com o núcleo básico da moralidade. Ou seja, em relação àqueles limites fundamentais que nunca poderiam ser ultrapassados (lei natural). Sua existência tem sido evocada em muitas ocasiões para impor determinados comportamentos. Aquilo que pertence a esse âmbito possui maior consistência, contudo, o risco da ampliação de suas fronteiras tem sido, não obstante, uma realidade histórica. A questão de saber até onde vão suas exigências permanece ainda como um ponto pouco evidente. Especialmente quando se percebe que entre os autores clássicos não existe consenso ou hegemonia quanto à explicação.

Para evitar um pluralismo que poderia ser perigoso para a comunidade eclesial, a Igreja encontrou em seu magistério um apoio muito importante. A diferença clássica entre ética e moral encontrou aqui seu ponto de partida. A moral tinha sua origem na palavra de Deus que a Igreja, com a ajuda especial do Espírito, tem de interpretar e impor com sua autoridade, de acordo com as diversas situações históricas e pessoais. Por sua vez, a ética se baseava nas exigências da razão, que não oferecia maior segurança, estando sujeita a erros humanos. Indicava-se, inclusive, que até mesmo suas próprias conclusões deveriam estar subordinadas ao conteúdo da moralidade. A filosofia foi relegada, por um longo tempo, a ser não mais do que uma simples ajuda para a fé. Não em vão, passou a ser considerada como  escrava da teologia. Não havia outra opção que não fosse a obediência e submissão, pois o remorso e a ameaça de uma condenação constituíam uma fonte de extraordinária eficácia.

Surge, portanto, inevitavelmente, a abordagem de um novo problema. Como seres racionais, devemos agir com uma convicção interior que justifique o comportamento que adotamos. Um esforço de explicação racional para que nosso comportamento resultante seja sensato e compreensível. Mas, como crentes, não podemos eliminar a nossa dimensão transcendente, que nos faz encontrar em Deus a explicação fundamental de nossa vida. A escuta e a docilidade à sua palavra também faz parte do nosso horizonte ético.

2 Ética humana ou moral religiosa?

O problema metodológico que emerge é saber qual deve ser nosso ponto de partida. Se partimos da razão para construir uma ética humana, razoável, válida e universal para todos, ou se é a revelação que nos deve garantir, como crentes, a firmeza e a segurança plena de nossa conduta. Devemos evitar as opiniões extremistas, tanto daqueles que, por um lado, negam a baliza da fé em defesa da plena autonomia humana, quanto, por outro lado, a visão daqueles que desejam recorrer apenas à palavra literal das Escrituras. A ética secular seria um bom representante da primeira opção. Proclama e defende a consistência humana das regras e obrigações, sem fazer uso de justificativas externas. Na divindade se encontrava a resposta à ignorância que impedia de descobrir um fundamento racional. A hipótese de um Deus que se revela ou de uma igreja que ensina com autoridade passou para o museu da história. O progresso científico certificou sua morte definitiva.

A resposta protestante, ao contrário, defende um radicalismo antagônico. Para o cristão não existe outra opção que a de uma ética puramente religiosa. Somente se pode agir honestamente quando se faz ouvinte da palavra e se deixa dirigir pela mensagem da revelação. Qualquer outra tentativa de guiar a vida através de valores humanos conduz a um completo fracasso, já que não há capacidade no ser humano para descobrir o bem a partir de si mesmo. Nenhum moralista pode usurpar o trono de Deus para determinar o que é bom e o que é inaceitável, como se possuísse a competência que só a Deus pertence. Surge, então, uma manifesta contradição entre os imperativos éticos e as exigências religiosas. No horizonte religioso, a única categoria ética existente é a do absurdo, como a intrigante postura de Abraão que, a fim de obedecer a Deus, se vê disposto a sacrificar seu próprio filho.

Não tenho a pretensão de explicar agora as nuances existentes em ambas posturas. Quero ressaltar somente que, dentro do catolicismo, sempre se defendeu uma posição intermediária. As dimensões humanas e religiosas não são duas realidades mutuamente excludentes ou contraditórias. Entre fé e razão existe uma harmonia complementar, sem que nenhuma perca seu valor e utilidade. Busca-se pensar uma ética que seja profundamente religiosa, sobrenatural e transcendente, mas que não deixe de ser, ao mesmo tempo, verdadeiramente humana, racional e compreensível.

3 Uma dupla abordagem na moral atual

Entre os autores católicos, a similitude de pensamento sobre este pressuposto básico alcança sua unanimidade. Contudo, a insistência e a ênfase colocadas sobre cada um deles levam a uma dupla abordagem que levanta polêmicas dentro da comunidade eclesial. Trata-se da inclinação ou para uma ética autônoma, na qual se enfatiza mais a racionalidade dos conteúdos éticos, ou para uma moral da fé, que coloca mais acento nos dados da revelação. O problema não é apenas uma questão especulativa, mas deve nos preocupar por causa de suas implicações pastorais.

Em suma, poderíamos dizer que a ética autônoma possui maior confiança na capacidade da razão humana, apesar de seus limites e restrições. Busca tornar os valores éticos compreensíveis num mundo secular e adulto, que exige explicação racional para a sua própria convicção. O homem de fé sabe que esta capacidade lhe foi dada como um dom de Deus (autonomia theonomous), contudo sem  destruir sua justificação ou autonomia humana. A moral da fé manifesta certas reservas sobre essa abordagem, acreditando que é bastante ingênua e otimista, pois sem a ajuda da revelação cairíamos em muitos erros. É preciso dizer que João Paulo II foi um defensor entusiasta da primazia e da necessidade da fé sobre qualquer tentativa de fundamentação meramente racional da moral.

A questão essencial consiste em saber se é possível uma moralidade sem o auxílio da fé,  se acaso esta não nos proporciona conteúdos éticos impossíveis de serem descobertos sem a ajuda da revelação. Dito de outra forma, consiste em saber se os valores que nos humanizam podem ou não serem descobertos sem a ajuda do sobrenatural. Da decisão tomada ante esta alternativa, pode-se prever o desabrochar de uma moral especificamente cristã, cujo conteúdos não poderão ser conhecidos a partir de outra perspectiva. Ou, de outra forma, se reconhece que,  mesmo sem levar em conta a dimensão sobrenatural do crente,  podemos encontrar uma plataforma comum, patrimônio de todos os seres humanos.

As divergências inevitáveis não estão ​​baseadas apenas nestes diferentes pontos de vista. Todo o valor ético é um apelo que sentimos para nos realizarmos como pessoas. Nascemos inacabados, e não é possível atingir esse objetivo (o da humanização[1]) deixando-nos levar pelos impulsos primários que experimentamos. O ser humano, por meio das renúncias e compensações que experimenta em sua educação, tem a tarefa de descobrir qual a configuração que deseja dar a todos os elementos encontrados em sua natureza. Ética nada mais é que o estilo de vida que cada pessoa decide dar à sua existência.

É interessante notar que Santo Tomás, quando  explica em que consiste a ofensa a Deus, o faz a partir de uma perspectiva profundamente humanista: “Deus não é ofendido por nós, a não ser na medida em que agimos contra  nosso próprio bem” (Summa Contra Gentios, III, 122).

4 A urgência de uma abordagem científica

Quero dizer que tudo que é moralmente considerado inaceitável ou, do ponto de vista religioso, é classificado como um pecado, tampouco é, do ponto de vista humano, a melhor maneira de se realizar como pessoa.

Tudo isso significa que não é possível uma moral autêntica sem que se apoie em bases científicas, pois, de outro modo, suporíamos a defesa de uma  moral sem fundamentação. A dificuldade está no fato de que a ciência nem sempre possui conclusões unânimes que permitem a avaliação do comportamento. O campo da bioética é um exemplo claro dessa dificuldade. Também é digno de nota que, com o progresso e as novas descobertas da ciência, as soluções que têm sido tomadas antecipadamente devem ser repensadas ou reinterpretadas de forma diferente para que possam integrar as novas possibilidades.

Neste contexto, existe o perigo de que a moral se torne um obstáculo ao progresso, ao condenar imediatamente qualquer nova possibilidade que não se ajuste completamente às normas e ensino anterior. O conflito surge, então, entre a fidelidade a um valor, tal como apresentado na tradição, e a fidelidade a uma nova verdade que pode enriquecer a perspectiva precedente. A própria cultura, que se desenvolve ao longo do tempo, oferece perspectivas diferentes que permitem valorizar qualquer realidade. Inclusive dentro do mesmo âmbito cultural, como é o caso da Igreja, tem ocorrido mudanças significativas que afetam a formulação da ética concreta. Durante séculos, aceitou-se com naturalidade o fenômeno da escravidão; e quase ninguém ficou escandalizado com o fato de que os hereges fossem queimados na fogueira.

Finalmente, existe hoje uma dupla forma de aplicar à realidade alguns valores éticos.  Nem tudo que na teoria é apresentado como princípio válido e aceitável pode ser aplicado em situações concretas. Valores evidentes e aceitáveis como não mentir, respeitar a vida, pagar a cada um conforme seu merecimento etc., devem ser analisados verificando se vale a pena cumpri-los na eventual possibilidade de que sua execução provoque uma mal maior. A mesma moral tradicional afirma que quando uma ação implica consequências boas e negativas, no caso de perplexidade, todos devem escolher o mal que parece menor. O chamado princípio do duplo efeito, a lei da gradualidade, a distinção entre a cooperação formal e material e a virtude da epiqueia indicam que não se pode julgar uma ação enquanto não se considere especificamente como ela se realiza concretamente.

5 A busca por um bem maior

Devemos descobrir, portanto, qual é o valor mais elevado que precisamos buscar e situar acima de tudo. Ou se, a fim de evitar consequências negativas piores, devemos optar pela eliminação de algum bem. Essa moralidade concreta busca-se hoje a partir de um duplo caminho, através de uma argumentação deontológica, ou através de um raciocínio teleológico. A diferença entre as duas posições pode ser sintetizada como se segue. Uma teoria normativa será deontológica quando a moralidade de um determinado comportamento for deduzida através da análise de sua natureza, sem dar qualquer importância às consequências ou efeitos negativos que podem resultar de tal comportamento (deontologia). Já uma teoria normativa na dimensão teleológica, pelo contrário, mesmo que  também considere a natureza da ação,  não se atreve a valorizá-la sem antes considerar as consequências que possa produzir (teleologia).

Não me parece que esta última perspectiva, à qual a maioria dos atuais moralistas se inclina, seja contra os ensinamentos fundamentais da Igreja, embora a doutrina oficial faça críticas a muitas de suas formulações. Tampouco penso que com essa abordagem estejamos entrando em uma moral de pura eficácia ou de benefícios imediatos. Também não se nega a existência das chamadas ações intrinsecamente pecaminosas, quando não existe nenhuma razão ou motivo que pudesse justificar a sua não observância. Contudo, é verdade que nem sempre coincidem na mesma valoração.

6 Consciência como tema central

A partir da sua compreensão como o nucleus secretissimus atque sacrarium hominis, in quo solus est cum Deo (Santo Agostinho), o Concílio Vaticano II define a doutrina da consciência: “No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo” (Gaudium et spes n.16).

Chamado à comunhão com Deus, o ser humano está em escuta contínua de sua Palavra e a conserva no coração (Jr 17,1; 31,31-34; Ez 14,1-5; 36,26), cujo único habitante é Deus (Jr 11,20). O Evangelho de Jesus, manso e humilde de coração (Mt 11,28-30), germina no mais íntimo da pessoa (Mt 13,19). Deste núcleo brotam as palavras, atitudes e comportamentos humanos (Mc 7,18-23). O apóstolo Paulo interpreta a tradição semítica do coração e a traduz na noção grega de consciência (syneidesis) como expressão íntima da nova criatura e de seu existir em Cristo (Hb 9,12).

A chave de compreensão da moral cristã é o discernimento (dokimázein): capacidade de tomar, em determinada situação, a decisão moral conforme o Evangelho e com conhecimento das implicações da história da salvação. O discernimento aponta para o caráter pneumatológico da consciência. O conteúdo primário do discernimento cristão é a vontade de Deus em Jesus Cristo (Rm 12,2; Ef 5,17). O discernimento é o próprio exercício da consciência, é a consciência moral adulta em ação (Hb 5,14). A Igreja se apresenta como uma comunidade de discernimento: “que possais discernir o que é melhor ou o que é bom, o que é mais importante ou o que mais convém e agrada a Deus” ( Rm 2,18; 12,2; Fl 1,10; Ef 5,10). Essa perspectiva é o fundamento do sensus fidelium. “Os fiéis leigos devem ter consciência não só de pertencer à Igreja, mas de ser Igreja” (Catecismo da Igreja Católica n.899). Todo batizado tem o direito, em razão de seu próprio conhecimento, competência e reconhecimento, de manifestar à comunidade eclesial sua opinião sobre aquilo que pertence ao bem da Igreja.

A liberdade de consciência tem a última palavra a respeito das prescrições morais concretas da Igreja. Cada fiel, deixando interpelar-se pela sua consciência, pela Palavra de Deus e pela Tradição está chamado a assumir-se fazendo a escolha ética de forma responsável. Ninguém pode ser forçado a agir contra a própria consciência nem sequer em assuntos de religião (Código de Direito Canônico, 748, 2): “A consciência é o primeiro de todos os vigários de Cristo” (Catecismo da Igreja Católica, 1778 – citação do Cardeal Neumann). A decisão pessoal adquire, portanto, um relevo extraordinário (decisão moral). Somente a própria (consciência) possui a última e definitiva palavra para a moralidade de nossas ações, mas sem esquecer a validade e obrigatoriedade das normas éticas(norma moral).

Pode-se dizer que, para o legalista, a regra conserva sempre sua validez, como o caminho mais seguro para evitar erros. O antinomista, pelo contrário, anula sua validez a fim de seguir os ditames de sua decisão pessoal (ética situacional). Já a pessoa madura aceita, por um lado, a obrigatoriedade das exigências éticas, mas sabe também relativizá-las quando se encontra diante de outros valores importantes, desde que tais ações não sejam consideradas intrinsecamente pecaminosa, como já dissemos.

Esta visão personalista da consciência integra harmoniosamente a dialética entre a dupla dimensão objetiva e subjetiva da moral, sem cair nos extremos de uma moral legalista ou  de uma ética subjetivista. Uma pedagogia da moral deveria consistir em despertar consciências livres e responsáveis​​,  que se deixem conduzir sempre pelo  chamado ou apelo a um bem maior.

7 Pecado e culpa

Como também aconteceu com outras questões, a imagem do pecado sofreu uma profunda mudança em nossa sociedade. A própria Igreja, em alguns de seus documentos, expressou sua preocupação. Também aqui são muitos os fatores que causaram esta situação, como nos aponta, na Exortação Apostólica sobre a Reconciliação e Penitência, o Papa João Paulo II. Cito, brevemente, três aspectos que considero importantes.

O primeiro, sem dúvidas, é a perda da visão sobrenatural. O terrível de um acidente não reside no fato de que o carro tenha ficado destruído, mas a vida que se perdeu entre seus destroços. Pecar não é simplesmente quebrar uma lei ou não cumprir uma obrigação, mas implica a ruptura de uma amizade com o Deus que nos salva. Quando esta dimensão transcendente se esvai, como acontece em nossas sociedades secularizadas, a imagem  do pecado também desaparece.

São muitos os que não querem reconhecer a sua própria sua culpa, como se fosse uma decisão que brota dela própria. O erro e o equívoco fazem parte do nosso patrimônio, como uma consequência inevitável de nossa finitude. A falta, no entanto, não se deve à liberdade de quem assim atua, mas constitui um fracasso pelo qual ninguém pode sentir-se responsável. É um evento que nos deixa chateado e magoado, que nos comove, pois afeta as fibras mais íntimas da personalidade, mas sobre o ser humano, mesmo que ele cometa o mal, não se pode lançar qualquer condenação acusatória. Ninguém escolhe algo contra si e, por isso, quando rejeita Deus ou recusa um valor ético, é porque encontrou outra atração pela qual se sente inevitavelmente seduzido sem outra possibilidade de eleição.

Ainda que pareça estranho, não é fácil uma prova evidente de nossa liberdade. Aquele que insiste em negá-la verá, por detrás de cada escolha, um mundo de certas experiências, pressões, lembranças, interesses, expectativas etc., que inclinam a balança para um lado de uma forma inevitável. A hipótese de sua existência, no entanto, não é um dado anticientífico. Os múltiplos mecanismos que a ameaçam não tem porque destruir a capacidade básica da  autodeterminação. Contudo, não devemos defendê-la com uma ingenuidade excessiva. São muitos fatores que a condicionem, embora não a eliminem. É possível que, às vezes, queiramos e não possamos, contudo, mais frequente é a situação na qual podemos e não queremos. A liberdade é também uma conquista que cada pessoa deve realizar com o seu esforço.

É lógico que a pessoa que não quis responder ao chamado de um valor que o desumaniza, ou como crente encontra-se fechado para a amizade com Deus, experimente internamente algum desconforto. O fracasso de um projeto humano ou religioso, embora não absoluto e definitivo, deve produzir determinadas reações internas que não nos deixem tranquilos e imutáveis, como se nada tivesse acontecido. A culpa, como a dor ou  a febre nos mecanismos biológicos,  faz sentir o mau funcionamento da pessoa e o desejo de uma cura eficaz.

Este sentimento de culpa poderia ser causado por diferentes fatores. Uma sensação de angústia por medo de uma perda, ou por medo de uma punição. O que dói não é o mal praticado, mas as más consequências dele decorrentes. Em outras ocasiões, é a ferida que causa o próprio narcisismo. É um fato que destrói o Eu ideal, que humilha e corrói, com um remorso que se faz companheiro constante de caminhada. Quando, em sua natureza mais profunda, radica na vergonha de haver atentado contra o meu próprio bem, causado danos aos outros e, sobretudo, ter quebrado a minha amizade com Deus.

8 O pecado coletivo

Sempre se analisou o conceito de pecado a partir de uma visão demasiado individualista. O importante era não sentir-se culpado com o desempenho individual. Se  apesar da própria honestidade ainda continua existindo o pecado, semelhante situação será, então, produto de outras pessoas que colaboram com o mal existente. Uma abordagem como essa se faz completamente incompreensível em nossa cultura atual, na qual a dimensão política possui  uma extraordinária relevância.

Já o Concílio Vaticano II,  na Constituição sobre a Igreja no mundo moderno, havia desmascarado claramente essa abordagem: “A profunda e rápida transformação da vida exige com suma urgência que não haja ninguém que, por despreocupação frente à realidade ou por pura inércia, conforme-se com uma ética meramente individualista” (n1 30). O pecado coletivo é uma realidade evidente, como apontaram os  bispos latino-americanos, nas assembleias de Medellín e Puebla.

A reflexão fundamental poder-se-ia concentrar em torno dessa questão básica: qual deve ser a atitude ética e cristã da pessoa consciente de seu compromisso, frente às injustiças e pecados sociais que não dependem dela nem que ela poderá eliminar?

Eduardo Lopez Azpitarte, SJ – Facultad Teologica de Granada, España. Texto original en espanhol. Tradução: José Sebastião Gonçalves

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[1] Elucidação do tradutor.

Sacramentos

Sumário

1 Instituição dos sacramentos por Cristo

2 A hierarquia dos sacramentos

3 O número dos sacramentos

4 A eficácia dos sacramentos

5 Referências bibliográficas

Durante séculos a Igreja celebrou e refletiu sobre o que hoje chamamos de “sete sacramentos”, sem reuni-los numa lista à parte e pensá-los sistematicamente. A partir do séc. XII, aproximadamente, a teologia listou-os e procurou estabelecer certos traços comuns aos sete. Desde então determinados conceitos se tornaram temas obrigatórios na abordagem genérica dos sacramentos, tais como a afirmação de que os sete sacramentos foram instituídos por Cristo e de que sua eficácia se exerce ex opere operato, que alguns imprimem caráter e que não todos tem a mesma importância. Há, entre eles, uma hierarquia em que sobressaem, como “sacramentos maiores”, a eucaristia e o batismo.

Essas questões, devidamente sistematizadas, passaram ao patrimônio da fé na Igreja latina e foram assim apresentadas já no Concílio de Florença (1439), em vista da união com as Igrejas Orientais. Será, porém, no Concílio de Trento, contra as negações dos Reformadores, que os princípios da teologia dos sacramentos em geral tomarão forma, com concisão e exatidão escolástica, tornando-se, na teologia posterior a esse Concílio, como que a espinha dorsal do tratado De Sacramentis in genere.

Dentre os temas desse tratado, escolhemos quatro que parecem centrais e merecem que se procure seu sentido perene. (Veja-se, sobre o caráter, o verbete “A eclesialidade dos sacramentos. 3 Os sacramentos irrepetíveis como constituintes da Igreja”).

1 Instituição dos sacramentos por Cristo (TABORDA, 1998, p.115-24)

O Concílio de Trento afirmou como característica fundamental dos sete sacramentos sua instituição por Cristo (cf. DH 1601). O ponto central dessa afirmação dogmática consiste em professar a origem dos sacramentos na iniciativa divina e não na invenção humana. Cristo é a origem dos sacramentos, que estão todos nele fundamentados e enraizados.

A exegese moderna não permite que se entenda por “instituição” um suposto ato jurídico de Jesus, determinando que haja tal sacramento e seja administrado de tal ou tal forma. Nesse sentido, será vão procurar no Novo Testamento textos que demonstrem a instituição de cada um dos sacramentos. Mesmo para os sacramentos claramente atestados pela Escritura subsiste o problema. O “fazei isto em memória de mim” talvez não se possa considerar ipsissima verba Jesu. O mandato do batismo é feito pelo Senhor Ressuscitado e não pelo Jesus terrestre e está numa perícope que é composição de Mateus.

Já muito antes de a exegese moderna ter surgido e adquirido foro de cidadania na Igreja católica, era conhecido o problema, pelo menos com relação a alguns sacramentos. Tendo-o em vista, discutia-se se a instituição fora mediata (por meio de outros) ou imediata (diretamente por Cristo). Mas disputava-se também se ela fora específica (indicando em linhas gerais matéria e forma de cada sacramento – cf. hilemorfismo sacramental) ou genérica (determinando a graça de cada um, mas não os elementos físicos/visíveis que o constituiriam), direta (ordenando que se fizesse assim) ou indireta (deixando entender determinada prática sacramental). O Concílio de Trento tinha consciência dessa discussão, mas não quis dirimir a questão, seguindo o princípio que se impusera de não intervir nas disputas entre as escolas teológicas católicas. Apenas afirma, contra os Reformadores, a instituição por Cristo.

A própria evolução histórica dos gestos sacramentais – em parte conhecida pelos Padres de Trento – não permitia reconduzir a uma determinação de Jesus cada um dos sacramentos em sua feição histórica concreta. Bastava percorrer as modificações havidas nos ritos essenciais de cada sacramento para se perceber o problema.

Levando em consideração essa evolução indiscutível, é preciso pôr o problema da instituição dos sacramentos num contexto mais amplo. As formas de expressão do sacramento são secundárias (não no sentido de serem menos importantes, mas no sentido de serem decorrentes da graça significada pelos gestos). Assumem-se, pois, gestos que no contexto cultural em que se formou o cristianismo são significativos do aspecto do mistério de Cristo que deve ser significado e celebrado por eles. O sacramento enquanto forma de expressão (isto é, enquanto gesto; o sacramentum tantum da Escolástica) pode já existir antes. Logicamente anterior ao sacramento como expressão e mais básico do que ele, é o acontecimento que ele expressa e realiza: a participação no mistério de Cristo. Em outras palavras: Deus, enquanto por Cristo no Espírito Santo reúne a Igreja e a convoca e provoca pelo memorial do mistério de Cristo, é o autor dos sacramentos.

O problema da instituição dos sacramentos só pode ser resolvido satisfatoriamente, se se considera que Cristo instituiu primeiramente um caminho de vida e consequentemente seu seguimento. No contexto desse caminho, pela necessidade antropológica de expressar através de ritos o fundamento da vida cristã, adquirem sentido os sacramentos. Instituindo um caminho de vida, convidando ao seguimento, Cristo institui os sacramentos. Assim Deus, Cristo, o Espírito Santo, a Igreja – cada qual a seu modo, na medida e forma de sua participação no plano salvífico – são autores dos sacramentos: Deus como fonte última da salvação, Jesus como o mediador único, o Espírito Santo como quem presentifica Cristo através dos séculos, a Igreja como corpo do Senhor Ressuscitado (cf. verbete “A eclesialidade dos sacramentos: 1 A Igreja faz os sacramentos”).

Essa explicação não contraria o Concílio de Trento (cf. DH 1601), porque não se deve nem se pode reduzir a instituição a um ato jurídico-formal realizado no passado e tampouco o texto conciliar o exige. Pelo contrário, a interpretação mística dos Padres da Igreja, segundo os quais os sacramentos têm sua origem no acontecimento da cruz, o que é expresso pelo sangue e pela água jorrados do costado de Cristo, é bem mais fundamental que a discussão em moldes jurídicos dos teólogos medievais.

A instituição dos sacramentos, como a da Igreja, é algo constante, permanente, expressão do “estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). De fato, em geral a palavra “instituição” sugere um ato realizado num determinado momento do passado. Mas então a Igreja – e com ela os sacramentos – estaria sujeita a desaparecer com o passar das gerações, pela vontade dos humanos, da mesma forma como deixa de existir com o tempo uma sociedade criada por seres humanos para cultuar a memória de algum personagem eminente. Passado o impacto da presença histórica daquela pessoa, a sociedade acaba por desfazer-se e morrer. Mas a Igreja não cai nessa categoria de associações, porque é sempre de novo constituída por Cristo Ressuscitado, presente a ela por seu Espírito. A Igreja não é mero acaso nem invenção humana: ela pertence ao próprio mistério da ressurreição de Cristo. Sem Igreja, isto é, sem a comunidade dos que creem no Ressuscitado, a ressurreição de Jesus não teria sido a manifestação definitiva e escatológica do Deus revelado (RAHNER; THÜSING, 1975, p.43-4). Por isso, a Igreja é o Corpo do Ressuscitado, vive da vida do Ressuscitado. Vale dizer: é criada constantemente pela presença e atuação de Cristo no Espírito Santo. Nesse sentido Cristo funda e institui a Igreja sempre de novo. Ela está enraizada em Cristo e, como para a árvore, não basta que um dia tenha tido raízes para poder ainda hoje viger, crescer e produzir frutos, assim também a Igreja. A raiz precisa estar presente e atuante para que a árvore viva. Semelhantemente também Cristo, porque permanece na Igreja, a institui – como raiz – sempre de novo e, com isso, institui constantemente os sacramentos pela ação do Espírito Santo.

À luz dessa instituição permanente dos sacramentos, entende-se melhor o axioma agostiniano: “Quer batize Pedro, quer batize Judas, é Cristo quem batiza” (AGOSTINHO, In Joannis Evangelium 6, 7: PL 35, 1428). Assim se compreende que o sacramento independe da dignidade e santidade do ministro (cf. DH 1612 e 1611), porque é o próprio Cristo que atua nele. Essa presença dinâmica de Cristo nos sacramentos se enquadra no contexto geral da presença do Senhor Ressuscitado em sua Igreja (cf. SC 7; PAULO VI, 1965). Porque os sacramentos estão enraizados em Cristo, Deus não deixa de atuar neles e se autocomunicar indefectivelmente pelo fato de a celebração ser presidida por um homem indigno, que vive longe do caminho de Jesus. É Cristo quem age, porque ele constantemente fundamenta os sacramentos.

Nessa perspectiva, a preocupação de buscar no Novo Testamento uma instituição dos sacramentos pelo Jesus pré-pascal deixa de ter interesse. Ela seria, aliás, insuficiente, pois os sacramentos só podem ter sentido depois da Páscoa. Tomás de Aquino estabelece um princípio muito válido nesse contexto – embora ele próprio o aplique insuficientemente. Escreve: “É por sua instituição que os sacramentos conferem a graça. Conclui-se, pois, que um sacramento é instituído no momento em que recebe a força de produzir seu efeito” (STh III, q.66, a.2). Ora, a força dos sacramentos provém do mistério pascal de Cristo e dos mistérios da vida de Cristo, enquanto preparam e levam à morte e ressurreição e são confirmados e transfigurados por esta. Segue-se, pois, que só após a Páscoa cabe falar da instituição dos sacramentos, no sentido pleno da palavra. Por isso a Tradição patrística ensinava que os sacramentos jorraram do costado aberto do Senhor.

Se os sacramentos radicam em Cristo, a Igreja não é senhora, mas servidora dos sacramentos. Essa verdade é expressa pelo Concílio de Trento ao declarar que a Igreja não pode mudar a “substância dos sacramentos” (DH 1728). A “substância dos sacramentos” não é o gesto simbólico ou o rito, mas sua significação, seu sentido que é o sentido mesmo de tudo o que Jesus fez e ensinou. Significa que é a impossível a Igreja se estruturar ou modificar por si mesma, pelas veleidades dos seres humanos que a constituem. Ela tem que ser fiel ao caminho instituído por Cristo, do qual ela é o sacramento e os sete sacramentos suas expressões rituais.

2 A hierarquia dos sacramentos (TABORDA, 1998, p.124-7; CONGAR, 1968)

Apesar de serem listados num rol de sete, como se fossem iguais, os sacramentos diferem entre si. A afirmação do Concílio de Trento de que há sacramentos “mais dignos” que outros (cf. DH 1603), supõe uma diferença radical entre eles, desde o ponto de vista teológico.

Os sacramentos celebram nossa participação no mistério de Cristo. Ora, tanto a vida cristã como o mistério de Cristo têm momentos de diferente densidade. A vida humana não é uma monótona planície, onde um fato se desenvolve depois do outro, com a mesma importância. Também a vida de Jesus apresenta momentos diferenciados por sua intensidade. O mistério pascal de Cristo é um momento de muito maior peso que qualquer outro momento da vida de Jesus, até por ser o resultado de todos os outros momentos menores e iluminar todos eles. Como os sacramentos celebram nossa participação no mistério de Cristo, também eles têm diferente peso para a vida cristã. Há entre eles uma hierarquia, onde se destacam sacramentos maiores ou principais. Quanto mais um acontecimento da vida do cristão significa participação no centro do mistério de Cristo, sua Páscoa, tanto mais importância tem o sacramento que sinaliza essa comunhão com o cerne do mistério de Cristo.

É verdade que todo sacramento relaciona a vida do cristão e da comunidade com o mistério pascal, mas há sacramentos em que a participação no mistério pascal está em primeiro plano, inclusive do ponto de vista do gesto simbólico. Tal é o caso do batismo e da eucaristia. A passagem pela água é um símbolo que evoca a passagem da morte à vida que é a conversão dos ídolos ao Deus verdadeiro. Como outrora o povo escolhido passou da escravidão à liberdade pela travessia do Mar Vermelho, pelo batismo o neófito passa da vida velha do pecado à nova vida à imagem de Cristo. Como Cristo atravessou o mar da morte, passando da morte à vida em seu mistério pascal, também o cristão pelo batismo se renova e se reveste do “homem novo” em Cristo (TABORDA, 2012, p.155-81). Na eucaristia, a ação de graças sobre o pão e o vinho faz memória do corpo entregue por nós na morte de Jesus, desse corpo que é fonte de vida, que se entrega em favor da vida dos demais. Do ponto de vista do gesto simbólico, o partir do pão e o distribuir do cálice evoca a doação de vida pelo outro que Jesus realizou na cruz e ressurreição (TABORDA, 2009, p. 56-82). Mostra-se assim o lugar central do batismo e da eucaristia, entre todos os sacramentos.

A centralidade dos dois sacramentos maiores é ainda corroborada por serem ambos constitutivos do ser cristão e edificadores da Igreja enquanto tal. Fazem da multidão o Povo de Deus. O batismo, porque incorpora à Igreja quem o recebe. A eucaristia, porque faz da multidão dos redimidos o Corpo de Cristo, cria e exprime a unidade e a comunhão dos muitos em Cristo. Em outras palavras: batismo e eucaristia constituem a pessoa como cristão. Os demais sacramentos atingem-na em situações particulares da vida cristã: o pecado, a doença, a vocação ministerial, o amor conjugal. Estão, por isso mesmo, em outro nível de importância.

A afirmação do batismo e da eucaristia como sacramentos principais é o conteúdo essencial de uma hierarquia dos sacramentos. A hierarquização que se possa estabelecer entre os demais sacramentos é secundária e dependerá dos critérios que se adote para estabelecê-la, variando segundo o ponto de vista assumido. A perspectiva, no entanto, pela qual se estabeleceu aqui a principalidade de batismo e eucaristia é a perspectiva básica por fundar-se no significado mesmo do sacramento.

Recuperar na teologia sacramental esse dado da Tradição, reafirmado no Concílio de Trento (cf. DH 1603), é de grande interesse ecumênico, tendo em vista a posição das Igrejas históricas provenientes da Reforma que aceitam só dois sacramentos: batismo e eucaristia. Tem também sua importância pastoral em vista da seleção espontânea praticada por nosso povo que procura, por exemplo, o batismo para as crianças e a missa em determinadas ocasiões (no sétimo dia do falecimento de um fiel, em datas especiais como as bodas de prata ou de ouro…). O “instinto da fé” os orienta nessa direção.

3 O número dos sacramentos (TABORDA, 1998, 138-43)

O número “sete” dos sacramentos não é primeiramente aritmético-numérico-quantitativo, mas simbólico. Tanto é assim que a afirmação de Trento, de que os sacramentos são sete, nem mais nem menos (cf. DH 1601), pode ser mantida, ainda que se admita que episcopado, presbiterado e diaconado são sacramentos (o que poderia elevar a nove a numeração aritmética dos sacramentos); ou se mantenha com o Concílio de Trento que a extrema-unção é “o acabamento” da penitência (cf. DH 1694), o que a constituiria como uma quase-unidade e perigaria diminuir para seis o valor aritmético da lista sacramental; ou ainda se aceite a íntima unidade entre batismo e confirmação que poderiam ser considerados sacramentos complementares e com isso somar como um no rol dos sacramentos.

Para entender o que significa afirmar que o número “sete” dos sacramentos é uma grandeza antes simbólica que aritmética, antes qualitativa que quantitativa, será preciso considerar alguns elementos históricos.

O número “sete” não foi simplesmente consequência lógica de uma definição exata de sacramento. Os teólogos não definiram primeiro o que é sacramento e depois saíram à busca de ritos que preenchessem os requisitos da definição, encontrando casualmente sete, nem mais nem menos. O fato histórico é que na evolução da teologia sacramental o número “sete” aparece simultaneamente com um conceito ainda amplo de sacramento, o que sugere que número e definição são questões independentes. Aliás, em toda a história da teologia dos sacramentos, nunca se chegou a um conceito que de fato abrangesse todos os sete e só os sete (CHAUVET, 1976).

Desta consideração histórica, decorre como conclusão provável que não foi a definição de sacramento que serviu de critério para escolher os sete. Mas tampouco foi a prática litúrgica e eclesial que levou a privilegiar esses sete e não outros. Nessa prática, só batismo e eucaristia sempre tiveram o primado incontestável; os demais “sinais sagrados” mereceram diversos acentos.

A razão é que o número sete não tem significado quantitativo-numérico, mas qualitativo. Claro que o conceito qualitativo só existe se podem ser enumerados sete quantitativamente, mas o número sete não é autônomo.

O conceito qualitativo de número situa-se no contexto de mística dos números da Idade Média. Essa é muitas vezes fundamentada em Sb 11,20: “Tudo dispuseste com medida, número e peso”. Pensava-se, a partir daí, que o número expressasse ao mesmo tempo o pensamento divino e a estrutura fundamental da realidade. A mística dos números remonta, através de Isidoro de Sevilha (†636), a Agostinho (†430) e, por meio deste, a Platão (†347 aC) e daí a Pitágoras (†495 aC). Seu pressuposto é que, compreendendo-se as relações numéricas, não se fala sobre a realidade, mas a própria realidade nelas se manifesta. A mística dos números era enormemente estendida na Idade Média, como o prova sua existência também entre os judeus (cabala). Pelo simbolismo dos números, a cabala queria fundir os princípios matemáticos e científicos para poder, por assim dizer, espiar para dentro do mistério das coisas. O simbolismo dos números transcende o pensamento e permite penetrar mais a realidade. A mística dos números, nessa perspectiva, não é uma meta de conhecimento, mas uma instância mediadora de maior conhecimento.

Nessa perspectiva do simbolismo numérico para expressar a natureza das coisas, sobressai o número sete por seu significado. O número sete é símbolo qualitativo da perfeição: o número um significa origem, aludindo ao uno antes de seu desdobramento em múltiplos; o número dois representa o outro, fundamento da multiplicidade; o número três tem sua importância como síntese da unidade (número 1) com a multiplicidade (número 2), além de ser o número da mais simples figura geométrica, o triângulo. Por essa razão, três é o número da perfeição divina[1], designa a totalidade, símbolo da unidade do uno (número 1) e do múltiplo (número 2). O número quatro é o número da perfeição material, cósmica, o número da proporção perfeita (2:2) e, portanto, da ordem do cosmos. Quatro são os elementos, os ventos, os rios do paraíso, os impérios segundo as visões de Daniel etc. Como soma de três e quatro, o sete é a perfeição por excelência, pois une numa totalidade a tríade divina e o quaternário cósmico. É, pois, o número da harmonia. Daí ser ele frequente: sete são não só os sacramentos, mas também as virtudes, os dons do Espírito Santo, os pecados capitais, os planetas, os períodos celestes, os tons da escala musical, sem falar nas diversas ocorrências do septenário no livro do Apocalipse de São João.

Nesse horizonte é que se devem localizar os sete sacramentos. O número sete já é uma definição de sacramento: Deus (tríade divina) que se comunica aos humanos na realidade cósmica dos gestos simbólicos (o quaternário cósmico). Mesmo em Trento, apesar do acento quantitativo, permanece o sentir qualitativo. O acento aritmético responde à negação protestante que também é aritmética. A Reforma protestante se agarra à letra da Escritura e não apreende o alcance qualitativo do número sete. Posicionando-se sempre face às afirmações ou negações dos Reformadores, Trento entra no terreno do valor aritmético de sete nem mais nem menos. Entretanto, a Reforma nega não só o número dos sacramentos, mas o próprio princípio da sacramentalidade. Trento, defendendo o número sete e pondo-se em pé de igualdade (aritmeticamente) com a Reforma, na realidade defende a própria sacramentalidade da salvação, expressa simbolicamente no número sete.

O parentesco qualitativo-aritmético com a posição protestante teve, no entanto, consequências: a quantificação dos sacramentos com a correspondente tendência a medir a intensidade da vida cristã pela frequência aos sacramentos. Não é preciso ser contra a quantificação matemática dos sete, mas contra a perda de seu valor qualitativo e o consequente “consumo” dos sacramentos.

Mesmo reconhecendo o valor simbólico do número sete, no entanto, não se pode abstrair do fato de que ele é mediado pelo valor aritmético sete. Isto é: sete ações simbólicas da Igreja – e não outras – foram reconhecidas aptas para expressar simbolicamente, no simbolismo dos números, o princípio da sacramentalidade, a saber: que Deus se comunica ao ser humano no histórico-sensível.

Em primeiro lugar é preciso dizer que não se pode estabelecer a priori que sejam esses e por que esses e não outros os sete sacramentos. Mas, a posteriori é possível encontrar uma lógica na escolha dessas ações simbólicas e não de outras. É que essas ações simbólicas marcam momentos decisivos na vida do cristão e consequentemente na própria vida da comunidade eclesial. Historicamente, não é de desprezar o confronto do problema concreto “quais sete?” com os dados da Escritura, que a seleção desses gestos simbólicos implica. De todos eles o teólogo medieval encontrava resquícios no Novo Testamento. Além do batismo e da eucaristia, que obviamente são dados bíblicos, via-se a confirmação na imposição das mãos pelos apóstolos em At 8,17; a penitência, em Jo 20,23 e Mt 18,18; a unção dos enfermos, em Tg 5,14; a ordem, em At 6; o matrimônio, em Ef 5,32, onde a tradução latina fazia ler magnum sacramentum, expressão forte, tão incisiva que foi capaz de vencer os preconceitos vigentes contra o sexo e o matrimônio.

Na fixação dos sete sacramentos, há um paralelismo com a formação do cânon neotestamentário: só depois de uma evolução, de um lapso relativamente longo de tempo, a Igreja chegou a fixar o cânon. Poderá, à primeira vista, ter sido levada pela autoria apostólica dos escritos, que hoje, para muitos livros, é negada ou pelo menos posta em questão. Nem por isso os livros selecionados na formação do cânon deixam de ser inspirados e canônicos. A própria história da Igreja, sua identidade, que se construiu sobre esses livros e somente esses, não permite voltar atrás. E, para quem crê que a Igreja é conduzida pelo Espírito Santo, é uma garantia da propriedade da escolha.

Semelhantemente se poderia dizer dos sete sacramentos: a Igreja não apenas celebrou durante séculos esses sacramentos, talvez sem privilegiá-los, mas, uma vez reconhecidos, eles marcaram de tal forma a comunidade cristã, sua vida e sua prática, que já não pode viver sem celebrá-los. Conduzida pelo Espírito Santo, a Igreja só poderia ter aceitado evolução tão prenhe de consequências sob a ação do mesmo Espírito.

Além disso, discutir se se pode hoje voltar atrás de Trento e acrescentar “novos” sacramentos ou reduzir o septenário, é perder de vista que a Igreja não se reduz à celebração dos sacramentos, mas esses se põem no contexto mais amplo do testemunho de fé no mistério pascal de Cristo, decisivo para que os sacramentos deem frutos de vida cristã.

4 A eficácia dos sacramentos (TABORDA, 1998, p.170-2)

O Concílio de Trento ensina que “os sacramentos da Nova Lei (…) conferem a graça pela própria realização do ato <sacramental>” (ex opere operato) (DH 1608). O significado profundo dessa expressão, muitas vezes mal entendida num sentido mágico ou quase mágico, é que é Deus e somente Deus quem atua nos sacramentos. A análise da expressão tradicional ajudará a compreender melhor essa prioridade de Deus nos sacramentos.

A expressão opus operatum significa a “ação como tal”, “a própria realização do ato”. Contrapõe-se a opus operantis, que poderia ser traduzido literalmente como a “ação de quem atua”. Na primeira expressão se atende objetivamente à ação; na segunda, a um sujeito que realiza a ação. As expressões se elucidam, se se recorda o problema que historicamente está em sua origem. Elas surgiram na teologia (e mais exatamente na soteriologia) na segunda metade do século XII. Ao tratar da obra redentora de Cristo, distinguia-se o opus operatum, sua obra redentora ao morrer na cruz, sua ação de morrer, e o opus operantis, a ação dos que levaram Jesus à morte (Judas, por sua traição; Anás e Caifás, os membros do Sinédrio, e Pilatos, como mandantes do crime; os verdugos, como executores…). O efeito redentor da morte de Cristo se dá ex opere operato e não ex opere operantis; provém da ação de Cristo ao morrer e não da ação dos homens que o mataram.

No século XIII a expressão foi transposta para a teologia dos sacramentos: a graça sacramental não depende do ministro nem de quem recebe o sacramento (opus operantis), mas da ação sacramental, exterior, perceptível, visível (opus operatum). É importante considerar a preposição ex que ocorre na expressão. Ela significa “por causa de”, “a partir de”. O sacramento não é eficaz ex opere operantis, não significa que o opus operantis não seja importante, mas sim que a força do sacramento, a graça sacramental, não provém do ministro ou da fé de quem recebe o sacramento. Entretanto, para que o sacramento seja eficaz ex opere operato, é preciso sempre algum opus operantis, seja do ministro (“a intenção de (…) fazer o que a Igreja faz”, DH 1611), seja de quem o recebe (não pôr obstáculo à graça, cf. DH 1606). E, mais que a intenção, exige-se fé por parte de quem recebe o sacramento, uma entrega a Deus correspondente à graça concedida, uma vida de acordo com o sacramento ou, pelo menos, a disposição interna de começar um caminho de conversão. A eficácia ex opere operato não substitui o opus operantis; entretanto, a graça não vem do opus operantis. A fonte da graça é a ação sacramental, mas não no sentido mágico, pois o opus operatum não está na materialidade da ação sacramental, mas em ser ela ação de Cristo pelo Espírito Santo. Os sacramentos agirem ex opere operato significa, portanto, que agem por força da obra salvífica de Cristo presentificada pelo sacramento. Opus operatum e opus operantis se encontram no sacramento. Este é o momento em que a graça se expressa como graça que leva a pessoa a aceitá-la livremente e, por isso e ao mesmo tempo, o gesto pelo qual a pessoa expressa seu livre assentimento à graça, assentimento que, por sua vez, lhe é dado totalmente pela graça. Longe de se oporem, opus operatum e opus operantis se supõem mutuamente como graça e liberdade (cf. antropologia teológica).

Essa ação de Cristo no Espírito pelos gestos simbólicos da celebração é oferecimento que Deus faz de si próprio ao ser humano (autocomunicação de Deus). O oferecimento não deixa de ser oferecimento pelo fato de alguém não aceitar o que foi oferecido, embora para ser oferecimento sempre deva haver a possibilidade de aceitação. Se, por exemplo, um louco oferece a uma pessoa um terreno na lua, não é oferecimento real, porque ele não tem possibilidade de dar o que ofereceu. Também não é oferecimento se alguém oferece a um surdo-mudo um CD com uma sinfonia de Beethoven ou a alguém que amputou as duas pernas, um par de sapatos. Mas não deixa de ser oferecimento se alguém oferece a uma pessoa com plena capacidade auditiva um CD de Beethoven ou a alguém que tem ambas as pernas um par de sapatos, embora alguns não o aceitem, porque não gostam de música erudita, ou porque não se agradam do modelo do sapato. É um oferecimento real, mesmo quando não aceito. Também Jesus era uma chance de conversão para os fariseus, embora eles não o tenham aceitado. A ação ex opere operato dos sacramentos expressa essa estrutura fundamental do sacramento: Deus se oferece à pessoa através deles e esse oferecimento subsiste independente de que a pessoa o aceite.

Em resumo: a fórmula “os sacramentos agem ex opere operato” significa negativamente que a eficácia do sacramento não procede do ser humano; positivamente que a eficácia procede da obra de Cristo, sua vida, morte e ressurreição, objeto do memorial, e que o gesto sacramental é um oferecimento permanente de Deus ao ser humano, quer este o aceite, quer não. Por isso, a expressão põe em primeiro plano a ação sacramental como tal, pela qual o mistério de Cristo (opus operatum) é celebrado e assim oferecido como convite a esta pessoa e a esta comunidade para que assumam mais profundamente a vida de seguimento de Jesus.

Francisco Taborda SJ, FAJE, Brasil. Texto original português.

6 Referências bibliográficas

CHAUVET, L.-M. Le mariage, un sacrement pas comme les autres. In: LMD, n.127, p.85-105. 1976.

CONGAR, Y. A noção de sacramentos maiores ou principais. In: Concilium, n.31, p.21-31. 1968.

PAULO VI. A sagrada eucaristia: encíclica Mysterium fidei. Petrópolis: Vozes, 1965. Documentos Pontifícios, 153.

RAHNER, K.; THÜSING, W. Cristología: estudio sistemático y exegético. Madrid: Cristiandad, 1975. Biblioteca Teológica Cristiandad, 3.

TABORDA, F. Sacramentos, práxis e festa: para uma teologia latino-americana dos sacramentos. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

______. O memorial da Páscoa do Senhor: ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2009.

______. Nas fontes da vida cristã: uma teologia do batismo-crisma. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2012. Theologica.

[1] A qualificação do número três como número da divindade não tem nada a ver com a noção cristã de que Deus é Trindade. Esse sentido do número existe também no judaísmo, por exemplo.

Grandes figuras da mística cristã

Sumário

1 Figuras da mística no cristianismo antigo

2 Figuras da mística na Idade Média

3 Figuras da mística na época moderna

4 Figuras da mística na época contemporânea

5 Referências bibliográficas

A história do Cristianismo, de mais de vinte séculos, apresenta uma imensa riqueza de figuras protagônicas que viveram a experiência mística em suas vidas. Desde os primeiros tempos do Cristianismo, podemos encontrar homens e mulheres cujas vidas foram reconfiguradas pela experiência de gozosa união com o Deus de Jesus Cristo, do qual não hesitaram em dar testemunho inclusive com suas vidas.

1 Figuras da mística no cristianismo antigo

A palavra mística não se encontra nem no NT nem nos Padres Apostólicos e aparece pela primeira vez ao longo do século III. Por outra parte, a figura de Jesus presente nos Evangelhos, sobretudo nos Sinóticos, coincide mais com a de um profeta do Reino de Deus do que com a de um visionário. Os sinóticos parecem acentuar as condições morais e as virtudes que preparam a vinda do Reino. A mesma “visão de Deus” será atribuída, no Sermão da montanha, aos “puros de coração”.

Por isso não são raros os autores que excluem a experiência mística das fontes cristãs e explicam o surgimento da mística a partir de influxos externos, sobretudo a gnose e o neoplatonismo, tal como sucedeu com o judaísmo. Na mesma direção orientam-se algumas visões da história da mística cristã que opõem uma mística psicológica, introspectiva, que se haveria desenvolvido sobretudo a partir dos místicos espanhóis do século XVI, à mística objetiva, escriturística, eucarística dos tempos anteriores (VELASCO, 1999, p.211).

Diferentemente de outras religiões, o Cristianismo nunca equiparou seu ideal de santidade, sobretudo ou principalmente, com o atingimento dos estados místicos. Nem tampouco encorajou a busca de tais estados por si mesmos. No entanto, se vamos buscar em suas origens, vamos encontrar aí uma experiência religiosa forte, uma experiência mística, enfim. Foi um impulso místico que inegavelmente propalou aquilo que inicialmente era visto como um movimento a mais dentro da globalidade sinagogal e foi ganhando dimensões universais.  Certamente a profundidade mística do novo caminho proposto por Jesus de Nazaré, iluminado por sua morte e ressurreição, determinou muito de seu desenvolvimento posterior. [1]

A qualidade  mística da vida de Jesus é muito claramente afirmada nos evangelhos, mas – segundo L. Dupré – é sobretudo no Quarto Evangelho, escrito tardiamente, no final do século I, que encontra sua plena expressão (cf. DUPRÉ, 1987, p.251). Neste Evangelho,  as duas principais correntes do misticismo cristão têm sua fonte: primeiro, na teologia da imagem divina , que chama o cristão à conformação (com Cristo, adorado como Deus e através d’ Ele, com Deus), e segundo na teologia que apresenta a intimidade com Deus como relação com o amor em termos universais (cf. DUPRÉ, 1987, p.251).

As cartas de Paulo de Tarso – anteriores inclusive ao Evangelho, que testemunham o surgimento das primeiras comunidades cristãs –  desenvolvem a ideia da vida no Espírito (2 Cor 3,18).  O principal dom do Espírito, no entendimento de Paulo, consiste na “gnose”, aquele insight que faz penetrar no interior do mistério de Cristo, e capacita o crente a entender as Escrituras em um sentido mais profundo, revelado. Este insight, que mergulha no interior do sentido escondido das escrituras, leva à interpretação alexandrina do termo místico discutido abaixo (cf. DUPRÉ, 1987, p.251).

Na Antiguidade clássica, quando o Cristianismo já havia rompido com a sinagoga e feito suas primeiras sínteses com o mundo grego, há algumas figuras que se destacam não apenas pela profundidade de sua experiência mística como pela reflexão acurada que sobre ela fizeram. Assim, também aqueles que abriram novos continentes na história da experiência mística cristã.

Orígenes é um desses. Figura de primeira grandeza nos primeiros séculos da vida da Igreja, compara a vida espiritual ao êxodo dos judeus através do deserto do Egito.  Havendo deixado para trás os ídolos pagãos do vício, a alma cruza o mar vermelho num novo batismo de conversão.  Passa perto das águas amargas da tentação e das visões distorcidas da utopia até que, totalmente purgada e iluminada, alcança Terah, o lugar da união com Deus.  Seu comentário também apresenta a primeira teologia da imagem que foi desenvolvida: a alma É uma imagem de Deus porque abriga a imagem primal de Deus, que é a Palavra divina.  Da mesma forma pela qual essa palavra é uma imagem do Pai através de sua presença frente a ele, a alma é uma imagem através da presença da palavra que nela habita, isto é, através de sua (ao menos parcial) identidade com ela.  Todo este processo místico vem a consistir numa conversão à imagem, isto é, numa conversão a uma sempre maior identidade com a Palavra íntima.  O lugar privilegiado que Orígenes dá ao amor será o elemento que vai distinguir a teologia de Orígenes da filosofia neoplatônica.

Gregório de Nissa e Evagrio Pontico tem uma trajetória derivada da de Orígenes.  O primeiro descreve a vida mística como um processo de gnose iniciado por um Eros divino, que resulta na plenificação do desejo natural da alma para com Deus, de quem ela carrega a imagem.  Ainda que aparentada a Deus desde o começo, a ascensão mística da alma é um lento e doloroso processo que termina em um não conhecimento obscuro – a noite mística do amor.  Essa teologia da escuridão, ou “teologia negativa”, seria desenvolvida até os seus extremos limites por um misterioso sírio que escreveu em grego no sexto século e que se apresentou a si mesmo como o Dionísio a quem Paulo converteu no Areópago.  Neoplatônico como nenhum teólogo cristão jamais ousou ser, ele identificou Deus como o Uno não nomeável. (…) Através da constante negação, a alma ultrapassa o mundo criado, que previne a mente de alcançar seu último destino.  A Teologia Mística de Dionísio é mais extática do que introspectiva em seu conceito: a alma pode alcançar sua vocação de união com Deus somente perdendo-se a si mesma nos recessos da divina superessência.  A este respeito, ele difere do misticismo ocidental, o qual influenciou tão profundamente.

O segundo – Evagrio – busca a vida monástica e, como tal, sua aproximação do deserto se dá por etapas.  Progride até ficar em completa solidão, dedicado apenas a contemplação.  Para Evagrio a ascensão espiritual consiste em contemplar Deus em si mesmo, de modo que se vê Deus como num espelho. O caminho consiste em despojar-se dos pensamentos apaixonados, depois, mesmo dos pensamentos simples, até a completa nudez de imagens e conceitos.

Da mesma forma, não se pode esquecer a importância da mística cristã oriental.  O oriente cristão foi pródigo em práticas importantes que tiveram seu impacto inclusive no Ocidente.  Como, por exemplo, a prece do coração, a oração de Jesus, o hesicasmo, que tem sua origem em Santo Antão, monge do deserto e pai do monarquismo oriental.

Antão, Dionísio, Máximo o Confessor, Pacômio, Serafim de Sarov, entre outros, são grandes figuras místicas que marcaram a história do Cristianismo e mostram uma forma de vivê-lo que é muito mais centrada na espiritualidade do que na reflexão intelectual e na ação, como algumas vezes o foi a mística ocidental.

Agostinho, no século IV, abre uma nova e decisiva etapa na mística cristã. Descreveu a divina imagem antes em termos psicológicos, usando os termos das três potencias da alma – memória, inteligência e vontade – para explicar sua percepção da experiência de Deus.  Deus permanece presente à alma ao mesmo tempo como origem e como meta suprema.  A presença de Deus neste reino interior convida a alma a voltar-se para dentro e converter a semelhança extática em uma união extática. (…) A alma vai sendo então gradualmente unida a Deus. Até hoje Agostinho é considerado o pai da mística contemplativa que se eleva para abismar-se na verdade de Deus e que, ao mesmo tempo, se dá no coração. Foi alguém que uniu a genialidade intelectual à profundidade mística profunda.

2 Figuras da mística na Idade Média

A Idade Média foi de uma riqueza impressionante em termos de mística. No século XII Bernardo de Claraval, ainda muito jovem, decide ser monge da Ordem dos Cistercienses – novo ramo da antiga Ordem de São Bento (os beneditinos). Contemporâneo de Pedro Abelardo (1079-1142), bebe sua formação na Bíblia e nos Padres da Igreja. Para Bernardo, a aquisição dos elementos da doutrina cristã não deveria acontecer racionalmente, por meio do método dialético, mas através de uma experiência imediata com Deus, isto é, através de uma experiência mística. A experiência era baseada na fé e essa era entendida como antecipação da vontade. A mística de Bernardo não foi desenvolvida em tratados, antes ela se espalha pelos seus sermões. Trata-se de um misticismo de amor, que tem no Cântico dos Cânticos a fonte inesgotável que irriga sua teologia e que é combinada com a linguagem poética na qual formula seu pensamento. A experiência mística, para Bernardo de Claraval, é, portanto, a união amorosa entre a alma e Deus.

Master Eckhart – místico ousado, posto mesmo em suspeita pela hierarquia eclesiástica – experimenta e afirma que Deus é ser e ser no sentido estrito apenas Deus é.  Para Eckhart, a criatura qua não existe. (…) Assim, Deus é totalmente imanente na criatura como sua própria essência, ainda que totalmente transcendendo-a como o único ser (…) Apenas a auto expressão ilimitada de Deus em sua eterna Palavra (o Filho) é sua perfeita imagem (…) A mente (…) atualiza plenamente esta imanência (…) Antes que presença, Eckhart fala de identidade (…) O ser da alma é gerado em um eterno agora com (na verdade, dentro de) a divina Palavra. (…) Na verdade a alma espiritual não mais prepara um lugar para Deus, pois “Deus é ele mesmo o lugar onde Ele trabalha” (DUPRÉ, 1987, p.253). Teve muitos seguidores, dos quais um dos mais ilustres foi Johannes Tauler.  Durante sua juventude como monge dominicano, Tauler manteve estreito contato com Mestre Eckhart, cuja atividade foi intensa em Estrasburgo entre os anos 1313 e 1326.  A teologia mística de Tauler tem como suporte a mística Eckhartiana centrada na noção do grunt, a fusão do humano em Deus.  Difere desse, entretanto, no acento menor sobre as explorações filosófico-teológicas de temáticas como a divina natureza. E mantém certa originalidade em relação à mística Eckhartiana por enraizá-la na vida da Igreja, sobretudo em sua dinâmica sacramental.  Entendeu o seguimento de Cristo como processo que abarca uma experiência mística de abandono por Deus que, embora estranha a Eckhart, pode ser encontrada em outros místicos medievais, sobretudo mulheres.

Outra mística muito influenciada por Eckhart foi Marguerite Porete,  que viveu entre a segunda metade do século XIII e início do século XIV. Pertenceu ao Movimento Beguinal, que se desenvolveu como alternativa de vida religiosa leiga na Renânia e Países Baixos. A única obra de sua autoria que conhecemos – O Espelho das almas simples –  é uma alegoria mística sobre o caminho que conduz a alma à união perfeita com seu Criador e Senhor e estrutura-se como um diálogo em que os principais interlocutores são Amor, Razão e a Alma aniquilada personificados. Seu grande tema é o aniquilamento, descrito como o estado em que as almas simples adquirem a mais plena liberdade e o saber mais alto. De Deus, recebe mais saber do que o contido nas escrituras, mais compreensão do que a que está no alcance, capacidade ou no trabalho humano de alguma criatura. A alma, sendo nada, possui tudo e não possui nada, vê tudo e não vê nada, sabe tudo e não sabe nada. Marguerite Porete foi condenada à fogueira por heresia.

Hildegard de Bingen inaugura um outro tipo de mística, que faz fronteira bem próxima com a ciência. Sua mística combinava percepções sensoriais de várias espécies com um conteúdo alegórico-teológico intenso e profundo. Suas visões lhe surgiam em plena consciência desperta, vendo-as através de seus sentidos espirituais enquanto permanecia de posse de seus sentidos corporais, e também eram-lhe causa de sofrimento ou exaustão físicos, muito agravados quando ela se recusava ou tardava a colocá-las por escrito. A obra mística de Hildegard se constrói a partir de suas visões: primeiro, são descritas e, depois, interpretadas. Trata-se de visões cosmológicas, nas quais se assiste à Criação e ao fim dos tempos. A ambivalência própria do símbolo e a polivalência significativa estreitam-se na interpretação, sempre conforme a teologia cristã, mas, nas descrições, sua intensidade e riqueza ficam patentes.

O maior nome da mística medieval é, sem dúvida, Francisco de Assis.  É ele o primeiro a explicitar a ligação entre mística e conduta moral. Sua mística tem como centro a pobreza – a quem ele chama de Dama e com quem diz estar desposado – e o serviço aos pobres. Abandona também o estilo de Igreja organizada fortemente na sua hierarquização piramidal para se tornar frater, irmão de todos, sem nenhum título hierárquico. Francisco construirá toda uma fraternidade com os pobres, vivendo com eles e como eles.  Estabelecerá com os últimos da terra uma comunhão que não é só de ajuda material, mas de sentidos: “(…) toca-os, beija-os, come com eles da mesma panela, sente a sua pele (…)” (cf. a proximidade sensorial de Francisco dos pobres  2Celano 85. Ver também comentário em BOFF, 1988, p.142). E seu caminho autenticamente pascal, já que passa por uma ascese crucificante que de tudo se despoja chegando à nudez mais radical em comunhão com o Crucificado, recebe como graça uma dilatação interior que lhe permite comungar em maior profundidade com a beleza do mundo até sentir-se em comunhão com o universo inteiro.  Disso dão testemunho alguns de seus escritos, como o Cântico do Irmão Sol.

Por volta do século XIV, o mundo ocidental mergulhou em um período de crise econômica, demográfica e de valores.  O clero católico havia enriquecido e mostrava costumes dissolutos. Nos Países Baixos, surgiram grupos de homens e mulheres que viviam em recolhimento e praticavam a pobreza, a humildade, a obediência e a abnegação.  Tinham o objetivo de reformar a Igreja oficial com sua vida e seu ensino.

Essas atitudes deram início ao movimento chamado Devotio Moderna que se espalhou por toda a Europa Ocidental e cuja obra de referência é um pequeno livro chamado A Imitação de Cristo. A obra destinava-se a todos, sem exceção, mas principalmente àqueles desejosos de transformar e santificar o seu quotidiano.

3 Figuras da mística na época moderna

A Idade Moderna, com seu movimento de secularização e autonomia do ser humano em relação ao mundo teocêntrico da Idade Média, produziu, no entanto, grandes místicos.  Em primeiro lugar estariam os do Siglo de Oro espanhol: João da Cruz e Teresa de Ávila.

Juan de La Cruz nasceu Juan de Yepes Alvarez em 1542, em Fontiveros, Espanha. Oriundo de uma família de aristocratas empobrecidos, ingressa na Ordem Carmelita aos 21 anos, certamente impulsionado pelos ideais de solidão e contemplação absoluta dos primeiros eremitas fundadores da ordem.

Sua mística tem como uma das categorias centrais a noite escura, a qual, em clara contraposição à metáfora da luz, tantas vezes relacionada ao insight cognitivo que emancipa o humano das trevas da ignorância, fala da negação das possibilidades de conhecimento que é assumida como método para uma experiência que não é nem sensível nem inteligível, não sendo catalogável pelo nosso sistema de cognição. Apóstolo do absoluto desprendimento e do absoluto amor, João da Cruz conjuga essas duas características em uma mística que se encontra na esfera da passividade, onde a dicção mística assume-se feminina, discurso apaixonado de quem experimenta o pathos da Presença divina.

Teresa de Ávila foi a primeira mulher a receber o título de doutora da igreja, por decreto de Paulo VI. Ao lado de João da Cruz, foi a reformadora da Ordem do Carmo, fundando as Carmelitas Descalças, mais próximas do ideal místico contemplativo que originalmente orientava a Ordem. Há em Teresa uma profunda consciência de que o corpo é essencial não apenas para a experiência mística, mas para a própria espiritualidade cristã. Em sua autobiografia, Teresa defende firmemente a valorização do corpo contra teorias platonizantes que pregavam uma espiritualidade etérea, diz-nos a Santa: “(…) nós não somos anjos, ao contrário, temos corpo. Querer fazer-nos anjos estando na terra (…) é desatino. Ao contrário, é preciso ter apoio, o pensamento, para a vida normal. (…) em tempo de secura, é muito bom amigo Cristo, porque o vemos Homem, e o vemos com fraquezas e tormentos, e faz companhia” (JESUS, 1997, p.203-4). Essa consciência do corpo como lócus onde a experiência mística se dá aparece tanto em sua prosa, notavelmente na autobiografia Vida, como em sua lírica, que se destaca pelo pathos que a atravessa. Esses são versos que impressionam pelo erotismo místico, pois são, como a própria Teresa o confessa em um de seus poemas, “nacidos del fuego del amor de Dios que em sí tenía”.

Contemporâneo dos dois místicos acima citados, Iñigo López, posteriormente Inácio de Loyola, inaugurou uma mística mais sintonizada com a modernidade e seu novo estilo de vida.  Como cortesão, levou até os 26 anos vida de vaidades e mundanidade. Foi em uma batalha contra os franceses, em Pamplona, no ano de 1521, que uma bala de canhão atingiu-lhe gravemente uma das pernas e ele foi obrigado a recolher-se ao castelo de Loyola, onde viviam seu irmão e sua cunhada, pessoa muito religiosa.  Durante a longa convalescença, como não houvesse livros de cavalaria que o entretivessem, começou a ler a Vita Christi do cartuxo Ludolfo de Saxônia e a Legenda Áurea sobre a vida dos santos.

Uma vez curado, depôs suas armas de cavaleiro e vestiu o burel de peregrino, passando a andar pelos caminhos da Espanha em penitência e oração, e analisando e refletindo sobre as experiências que Deus lhe fazia viver. Em suas andanças teve experiências luminosas e também passou por longos períodos de trevas e aflição.  Isso lhe deu grande conhecimento sobre a vida no Espírito e passou a anotar suas experiências e sistematizá-las, a fim de que servissem a outros.  Assim nasceram as primeiras meditações do famoso livro que escreverá e que se chamará Exercícios Espirituais, um dos mais importantes livros de espiritualidade do ocidente cristão, que será um instrumento de formação de muitos e muitas que desejam crescer na vida espiritual.  Fundou a Companhia de Jesus, ordem missionária que presta especial obediência ao Papa para o maior serviço de Deus e das almas.

Ângelus Silesius nasceu na Polônia, em 1624, dentro de uma tradicional família luterana, tendo como nome de batismo Johannes Scheffer. O pseudônimo veio depois, com a conversão ao catolicismo (em 1653, aos 28 anos), e faz referência à Silésia, sua terra natal. Em 1653, em circunstâncias não muito claras, Scheffer converte-se ao catolicismo, começando a escrever sua grande e única obra mística O Peregrino Querubínico. Pertencendo à mesma tradição apofática de Eckhart, as imagens desérticas comparecem nos poemas de Silesius como figuras de uma necessária aporia: a necessidade de ir além Deus, ultrapassando toda forma de relação objetal entre um eu humano e um Tu divino.

Aparecem, a partir daí, não tanto grandes figuras individuais místicas, mas correntes espirituais destinadas a ajudar as pessoas a crescer na sua relação com Deus, como a “Introdução à vida devota” de São Francisco de Sales e outras.

Os séculos XVII e XVIII na França conheceram algumas figuras místicas um tanto atípicas, mas cuja contribuição à história mesma do cristianismo, não se pode ignorar.

Blaise Pascal nasceu em Clermont-Ferrand, França, em 1623.  O talento precoce para as ciências físicas levou a família a Paris, onde ele se consagra ao estudo da matemática, notabilizando-se nessa ciência para a qual deu notável contribuição. Convertido ao jansenismo, desenvolve enorme fervor religioso. Na sequência de uma experiência mística, em finais de 1654, faz a sua “segunda conversão” e abandona as ciências para se dedicar exclusivamente à filosofia e à teologia, num período marcado pelo conflito entre jansenistas e jesuítas. Recolhe-se posteriormente à abadia de Port-Royal-des-Champs, centro do jansenismo.  Grande crítico de Descartes, Pascal desenvolve uma mística do coração, sendo sua a célebre frase “O coração tem razões que a própria razão desconhece.” Sua visão jansenista faz com que sua mística seja muito impregnada de um rigorismo moral que o faz ser marcado por uma obsessão da culpa e da condenação. Moderno, Pascal é herdeiro de Agostinho quanto à mística e também ao rigor moral, além de fazer da ciência parte integrante de sua mística.

Jean Joseph Surin nasceu em 1600 e morreu em 1665. Era jesuíta e um grande diretor espiritual.  De temperamento obsessivo, a vida espiritual o consumia. Sua missão de ser exorcista no convento das ursulinas de Ludun, atormentadas pelo demônio, tanto o afetou que o fez oferecer-se a si mesmo para ser possuído pelo demônio a fim de expiar os crimes terríveis que ali se cometiam por sua maléfica ação. Foi assim atormentado até o fim de sua vida, mergulhando em profundas desolações e vivendo em uma tênue fronteira entre a mística e a loucura. Quando pregava, no entanto, Deus falava por sua boca. Nos últimos anos de sua vida viveu verdadeira santidade, permanecendo absorvido na abundância das divinas comunicações.

Além disso,  ainda no século XVII, surgiu na França uma devoção particular que teve origem nas experiências de uma mística: Margarida Maria Alacocque, uma religiosa da Ordem da Visitação.  Ela recebeu grandes revelações por parte de Jesus Cristo, que lhe mostrou os segredos de seu coração e a incumbiu de propagar esta devoção ao Coração de Jesus pelo mundo inteiro. Esta devoção propagou-se rapidamente, recebendo apoio de papas e bispos e também o ativo suporte da Companhia de Jesus, que ajudou a divulgá-la e praticá-la.

4 Figuras da mística na época contemporânea

O assim chamado século sem Deus – o século XX – não está vazio da presença e da experiência de Deus por parte das pessoas. Mas essa presença e essa experiência acontecem e se fazem visíveis de maneira diferente.  Os místicos não mais são encontrados principalmente dentro dos claustros ou das ordens religiosas. Podem ser vistos em fábricas, em meio ao ritmo barulhento e estressante das máquinas e indústrias. Ou nas ruas com os mais pobres e deserdados do assim chamado “progresso”. Ou na prisão, devido a sua atividade e compromisso, considerado perigoso por autoridades estabelecidas. Ou no inferno dos lagers e gulags de todas as origens e formas. Ou seja, em situações muito seculares.

Thomas Merton nasceu em 1915, no Sul da França, filho de artistas, Owen e Ruth: ele, neozelandês; ela, norte-americana. Ainda em meados dos anos 1930, Merton interessou-se por assuntos religiosos – na infância, passara por denominações protestantes, não criando vínculos. Após manifestar curiosidade por religiões orientais, voltou-se aos clássicos da espiritualidade cristã. Em 1938, converteu-se ao catolicismo romano.

No final de 1941 optou pela vida monástica, sendo admitido entre os trapistas da Abadia do Gethsêmani, no Kentucky. No claustro, Merton foi autorizado a escrever, passando a ser autor de sucesso.  Além da teologia e da profunda espiritualidade que se pode encontrar em seus escritos, tratou de diversas questões candentes da cada vez mais plural sociedade contemporânea: direitos civis e segregação racial, não violência, pacifismo e o risco de uma hecatombe nuclear, despertar da consciência ecológica no planeta, diálogo ecumênico e as relações entre culturas ocidentais e orientais. Sua preocupação era unir contemplação e ação e fazer dialogar a tradição cristã com outras. Neste espírito, viajou para o Oriente, em 1968, visitando a Ásia. Faleceu eletrocutado em Bangkok, quando tomava parte de encontro inter-religioso entre cristãos e budistas.

Charles de Foucauld nasceu em Estrasburgo, França, em 1858.  De meio aristocrático, ficou órfão cedo e tornou-se militar.  Perdeu a fé e levou uma vida dissipada, até deixar o Exército e ir ao Marrocos.  Ali, o testemunho da fé muçulmana o levou a recolocar-se a questão: Deus existe? Converteu-se aos 28 anos e começou uma vida de sempre maior busca de Deus, em um processo de descida kenótica ao lugar mais pobre e mais difícil.  Entrou na Trapa e saiu.  Tornou-se eremita e viveu em Nazaré trabalhando como carpinteiro para seguir Jesus em sua vida oculta.

Sua mística está centrada no amor por Jesus, na devoção eucarística e no aniquilamento da pobreza e da obscuridade para seguir Jesus mais radicalmente.  Instala-se na Argélia e leva uma vida isolada do mundo numa zona de Tuaregues, em um diálogo testemunhal com a população muçulmana. Não procurava converter ninguém, mas apenas amar, “gritar o Evangelho” com sua vida. Tem a intenção de criar uma nova ordem religiosa, o que sucede apenas depois da sua morte: os Irmãozinhos de Jesus. Morre assassinado por assaltantes de passagem em 1º de dezembro de 1916. Foi beatificado pelo Papa Bento XVI em 13 de novembro de 2005.

Edith Stein   nasce em Breslau, Alemanha, no dia 12 de outubro de 1891. É a filha mais nova de uma família de 12 irmãos. Seus pais são judeus praticantes e Edith bebe toda essa fé israelita no seio de sua família. Muito capaz intelectualmente, estuda psicologia e depois filosofia e torna-se a discípula predileta do grande filósofo alemão Edmund Husserl.

Converte-se ao catolicismo, em 1921, a partir da leitura do Livro da Vida, de Santa Teresa d’Ávila.  Afirma: “a Verdade que buscava era precisamente aquele Deus de quem e para quem a santa havia vivido”. Tornando-se católica e religiosa carmelita, o cristianismo reaviva sua fé judaica e seu amor pelo povo judeu. Jesus Cristo é aquele que vem concretizar as promessas salvíficas do Deus de Israel, o verdadeiro e único Deus, conforme as Escrituras judaicas.

O encontro do judaísmo e do cristianismo em Edith Stein a conduz ao lugar teológico por excelência desse encontro: a cruz de Cristo. Esta cruz retrata a imagem não apenas de todo o sofrimento do povo judeu, como também o sacrifício do próprio Cristo, e o de sua Igreja. Quando a perseguição nazista recrudesce, sente que seu destino está ligado ao deste povo no seio do qual nasceu e que nunca deixou de amar apesar de sua conversão. Escreve: Não é a atividade humana que nos salva, mas somente a Paixão de Cristo. Participar dela é a minha única aspiração”. Pede à superiora a permissão de oferecer sua vida pela redenção de seu povo e o faz.

Ela é tirada de seu convento pelas SS e levada ao campo de concentração. Depois, é deportada com outros judeus em trem em direção ao campo de extermínio de Auschwitz. Edith Stein morreu como todos os judeus que a acompanhavam, na câmara de gás.

Dietrich Bonhoeffer nasceu em 4 de fevereiro de 1906, em Breslau na Alemanha. Estudou Teologia na Itália, em Berlim e Tübingen, onde bacharelou-se aos 21 anos. Trabalhou como pastor em várias igrejas de língua alemã em outros lugares da Europa, como Barcelona e Londres. A partir de 1939, após recusar a oportunidade de permanecer nos EUA, oferecida quando foi ministrar um curso, engaja-se firmemente na resistência ao nazismo e participa de uma conspiração contra a vida de Hitler.

A operação da qual participava foi descoberta e, em 1943, ele foi preso em Berlim. No entanto, mesmo na prisão, ao se comunicar com parentes e amigos através de cartas, elabora sua teologia, que ganha ainda mais um acento testemunhal. Essas cartas da prisão foram publicadas após a sua morte, com o título de Resistência e submissão. Foi morto aos 39 anos, em 1945, já quase no final da guerra.  Ao ser conduzido ao julgamento sumário que o levou à forca, escreveu: “Isso é o fim.  Mas para mim é o início da vida!”

Pastor, teólogo e místico, Bonhoeffer deixou um legado precioso. Em sua vida, integrou experiência de Deus e testemunho, ação e contemplação – até as últimas consequências –, como fica evidente nas instruções dadas, no seminário clandestino, aos alunos que não aceitavam a instrução da Igreja evangélica oficial alemã. Considerava a experiência de Deus o critério fundamental e determinante para a tomada de decisão do sujeito dentro de um contexto específico que o chama à responsabilidade.

Não podemos deixar de mencionar, entre os místicos cristãos do século XX,  uma mulher que é uma mística de fronteira: Simone Weil. Nasceu em Paris no dia 3 de fevereiro de 1909, em uma família abastada de origem judia.  Irmã de André Weil, um dos grandes matemáticos do século, Simone buscou o estudo da filosofia. Mas, apesar de seus notáveis dotes intelectuais, seu processo interior começa a entrelaçar-se inequivocamente com a realidade da opressão e injustiça do mundo; da violência da qual são vítimas muitos milhares de seres humanos.

Após participar por algum tempo de lutas políticas partidárias de esquerda, toma a decisão de trabalhar em uma fábrica, durante um ano, para partilhar por dentro a vida dos operários.  Ao sair da fábrica, acontecem três experiências que vão levá-la ao encontro do Cristianismo (em Póvoa do Varzim, Portugal; em Assis e em Solesmes, França).  Após isso, um poema chamado “Love” (Amor) do inglês George Herbert a faz ter uma experiência mística definitiva: sentir-se tomada para si por Cristo. A guerra recrudesce e ela deve deixar Paris com os pais.  Em Marselha, conhece o padre dominicano Joseph Marie Perrin, com quem conversa.  Ele lhe propõe o Batismo, mas ela recusa, por dificuldades que tem com a Igreja e por não querer separar-se do que há de verdade nas outras religiões. Vai a Nova York com os pais e volta à Inglaterra, esperando poder entrar na França para ali trabalhar na Resistência. Não lhe é permitido e ela morre sozinha, em Londres, aos 34 anos. Uma amiga a batiza, em seus últimos dias, com água da torneira.

Sua mística, profunda e verdadeira, inclui um grande amor por Jesus Cristo crucificado, vendo nele a revelação perfeita de Deus.  E ao mesmo tempo uma grande identificação com os pobres e os desventurados a quem sua compaixão se dirige de maneira especial. A mística de Simone Weil, como ela mesma diz, é cristã, mas permanecendo no umbral da instituição e da pertença oficial.

Na América Latina, também encontram-se figuras místicas de grande importância, desde os tempos da colônia portuguesa e espanhola até os dias de hoje.  Uma delas é Santa Rosa de Lima, nascida em 1586. De família rica, renunciou a tudo para fazer-se Terceira Dominicana, vivendo em grande pobreza.  Recebeu imensas graças místicas e tinha o dom dos milagres, de forma que muitas pessoas vinham vê-la para obtê-los. Dela, disse o Cardeal Ratzinger, em homilia no Santuário de Santa Rosa de Lima, no Peru, em 19 de julho de 1986: “De certa forma, essa mulher é uma personificação da Igreja da América Latina: imersa em sofrimentos, desprovida de meios materiais e de um poder significativos, mas tomada pelo íntimo ardor causado pela proximidade de Jesus Cristo.”

Em tempos mais recentes, no continente latino-americano, outras grandes figuras místicas apareceram no contexto de uma Igreja que se voltou para os pobres,  e uniu indissoluvelmente Evangelho e justiça social. Entre eles destacamos Ernesto Cardenal (1925-), que sempre foi mais identificado como poeta e ativista revolucionário com fortes vínculos com a teologia da libertação. Mas o que mais chama a atenção hoje em sua pessoa e sua obra é o seu perfil espiritual e místico, detectado precocemente por Thomas Merton, seu mestre de noviços na Trapa, entre os anos de 1957 e 1959.

Algo profundamente significativo ocorreu com ele em 1956, e que por ele é considerado como uma conversão. Foi um profundo êxtase místico que transformou sua vida. Significou uma inaugural experiência contemplativa, que se conjugava com um projeto solidário ao serviço de seu povo. A partir daí decidiu entrar na Trapa, onde sob a guia de Merton desenvolveu uma sintonia entre vida contemplativa e vida ativa.

Por razões de saúde, teve que abandonar a Trapa e, depois de várias mudanças de lugar, estabeleceu-se no arquipélago de Solentiname, na Nicarágua, onde criou uma comunidade monástica que visava a uma presença espiritual distinta, com envolvimento vivo na comunidade dos pobres. Sua mística é uma “mística cósmica”, de abertura ao mundo e de sensibilização ao real. Tem uma perspectiva que envolve um olhar profundamente aberto para a realidade, para o cosmos e para o seu tempo. É também uma mística centrada na experiência do Deus da vida, núcleo de sua  trajetória espiritual.

Na mesma linha de Cardenal, há que citar outros místicos, que não optaram pela vida contemplativa, mas que se destacaram por um profetismo ardente em favor dos pobres e das vítimas de toda injustiça, oriundo de sua vivência mística.  São eles: Dom Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, que com suas homilias mobilizava o país inteiro e contrariava os interesses dos poderosos, nacional e internacionalmente, e terminou morto enquanto celebrava missa, no momento da consagração, por um atirador de elite contratado por um mandante interessado em calá-lo. Seus diários e homilias são um precioso exemplo de um homem inteiramente dócil à vontade de Deus e cuja única preocupação era construir seu Reino.

No Brasil há outros místicos inteiramente comprometidos com os pobres.  Destacam-se as figuras de Dom Helder Câmara, bispo de Olinda e Recife, que deixou uma vasta obra de escritos místicos, poéticos e proféticos.  Silenciado pela ditadura militar, percorreu o mundo defendendo a causa dos pobres e da paz. Também Dom Luciano Mendes de Almeida, arcebispo de Mariana,  reconhecido por sua santidade, que unia uma enorme inteligência a uma profunda mística e dedicação pessoal e amorosa aos mais pobres.  Escolheu como lema de seu episcopado: “Em nome de Jesus”.  Da mesma forma Dom Pedro Casaldáliga , bispo de São Felix do Araguaia, que é, além de místico, poeta e escritor exímio, tendo composto duas missas, uma sobre a mística dos povos indígenas (Missa da terra sem males) e outra sobre a mística dos povos afrodescendentes (Missa dos Quilombos). Seus poemas são todos eles prenhes de uma mística profunda e ardente, ao mesmo tempo que profética e comprometida.

Maria Clara Bingemer – PUC-Rio, Brasil.

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[1] Hoje há teólogos que discutem se seria apropriado chamar o Cristianismo de religião.  Os argumentos vão na linha de que Jesus era judeu e não teria pretendido fundar outra religião diferente da sua. Nesse sentido, seus ensinamentos, vida e prática  seriam mais vistos como um caminho , uma proposta de vida e não uma religião. Sobre isso v. a interessante reflexão que faz J. Moingt, L’ homme qui venait de Dieu, Paris:Cerf, 1997; e também, do mesmo autor, Dieu qui vient a l’ homme, Paris: Cerf, 2002. v.I.

Pastoral/Pastoreio

Sumário                                                            

1 Perspectiva bíblica

1.1 Antigo Testamento

1.2 Novo Testamento

2 Perspectiva patrística

3 Da cura de almas ao cuidado pastoral

4 Perspectiva teológica

5 Pastoral no Concílio Vaticano II

6 A conversão pastoral

7 Referências bibliográficas

Por ação pastoral entende-se a totalidade da ação da Igreja e dos cristãos, a partir da prática de Jesus, para instaurar o Reino de Deus. A pastoral, portanto, é o serviço salvífico da Igreja, cujo fundamento encontra-se no desígnio universal de salvação de Deus. Em Jesus Cristo, Deus confiou à Igreja a realização desse serviço como continuidade da obra pascal e escatológica de Cristo, por meio do Espírito em Pentecostes, na esperança da realização plena do Reino de Deus na parusia.

Essa atuação implica uma interpretação do mundo e da história e, igualmente, uma concepção sobre a adequada ação pastoral diante da realidade. Duas hermenêuticas, portanto, se entrecruzam na pastoral: a eclesial e a social.  O pastoreio, desse modo, relaciona-se sempre com as duas partes envolvidas na história da Salvação: Deus e o ser humano. Por ser responsável diante de Deus e da sua revelação, a pastoral deve ser também um serviço ao ser humano.

1 Perspectiva bíblica

A palavra pastoral ou pastoreio, originalmente, conota a tarefa do pastor na cultura de Israel. A Bíblia é marcada pela imagem da caminhada do Povo de Deus sob a guia do Pastor divino. Ele conduz e reconduz Israel nas vicissitudes de sua história (cf. VON RAD, 1973).

1.1 Antigo Testamento

No Antigo Testamento, aparecem três características fundamentais relacionadas ao termo pastor:

a) expressa o amor de Deus revelado na história de Israel. Os cuidados divinos traduzem-se na retirada do povo da escravidão, para conduzi-lo pelo deserto. Essa ação é comparada à imagem do pastor que conduz o rebanho e suas ovelhas (cf. Sl 78,52);

b) designa os servidores de Deus que dirigem o povo. Deus mesmo pastoreia o rebanho por meio de pastores que elege. Os servidores tinham Moisés como protótipo (cf. Sl 77,21). Josué sucede a Moisés para garantir que a comunidade não seja como um rebanho sem pastor (cf. Nm 27,17). Davi é eleito para apascentar o povo de Deus (cf. 2 Sm 5,2) e torna-se um pastor poeta e forte. A pastoral desses homens é avaliada de acordo com o cuidado pastoral de Deus. Há bons e maus pastores de acordo com a fidelidade ou infidelidade à Aliança estabelecida com o Senhor; e

c) indica os tempos messiânicos anunciados pelos profetas como a salvação futura. Eles convidam o povo para ser fiel à Aliança e denunciam os maus pastores de Israel que conduzem o rebanho à ruína. Isaías descreve o Senhor como o pastor que cuida do rebanho (cf. Is 31,4). Jeremias alerta que Deus mesmo providenciará pastores segundo o seu coração (cf. Jr 3,15). Ezequiel afirma que o rebanho conhecerá o único e verdadeiro pastor (cf. Ez 37,24).

A figura do pastor, portanto, passa a descrever o comportamento de Deus relativo aos cuidados que Ele dispensa aos seres humanos. Deus ama seu povo, por isso conduz, alimenta, defende e acompanha no caminho (BOSETTI, 1992, p.9).

1.2 Novo Testamento

Jesus de Nazaré é a encarnação do amor pastoral de Deus que confirma o seu povo como a comunidade da Nova Aliança, da qual participarão os excluídos e os perdidos.  A missão de Jesus revela-se como o pastor anunciado e esperado no Antigo Testamento. Sua fidelidade ao Pai se expressa na mediação que realiza entre Deus e a humanidade.  No Novo Testamento, encontram-se três situações fundamentais para a utilização do vocábulo pastor:

a) o povo vive numa situação comparada a de um rebanho sem pastor (cf. Mt 9,36; Mc 6,34): o que provoca a compaixão de Jesus que age para tirar o povo do abandono;

b) Jesus mesmo se apresenta como o Bom Pastor anunciado nos tempos messiânicos. No Evangelho de João, encontram-se diversas imagens que expressam esse pastoreio: a porta do redil; aquele que caminha à frente do rebanho; aquele que dá a vida pelo rebanho (cf. Jo 10,1-18);

c) a eleição dos discípulos pode ser entendida como o chamado de pastores para cuidar do novo Povo de Deus. A terminologia pastoral não é abundante ao caracterizar a ação dos discípulos, mas sua escolha e seu envio remetem à continuidade da missão de Cristo. Justifica-se essa relação no diálogo do Ressuscitado com Pedro e na recomendação para que o apóstolo apascente os cordeiros de Cristo (cf. Jo 21,15-17). O pastoreio de Jesus continua na pastoral daqueles que ele envia e, por isso, eles o denominarão Príncipe dos Pastores que entregará a coroa aos pastores fiéis (cf. 1Pd 5,4).

Os apóstolos proclamam o Evangelho como cuidadores do rebanho de Cristo. Eles devem seguir o exemplo do Bom Pastor e considerarem-se servidores das ovelhas (FLORISTÁN, 1968, p.22).  Na comunidade primitiva, com os apóstolos e profetas, estão também os pastores com uma função carismática. A eles são dadas recomendações precisas: “Apascentai o rebanho de Deus que vos foi confiado, não com força, mas com mansidão segundo Deus; não por lucro, mas com prontidão de ânimo; não como dominadores sobre a herança, mas servindo de exemplo para o rebanho” (cf. 1Pd 5,2-3).

Enfim, a ação de Jesus Cristo pode ser chamada de ação pastoral entendida como o cuidado que Ele dispensa ao rebanho. Igualmente a ação da Igreja recebe a mesma denominação para identificar a continuidade da missão que ela realiza em nome de Cristo.

2 Perspectiva patrística

Na Patrística, especialmente nos séculos IV e V, desenvolveu-se um perfil pastoral vigoroso nas comunidades cristãs. Apesar das crises e dos debates sobre as grandes questões dogmáticas e eclesiológicas, estabeleceu-se uma relação estreita entre o bispo e sua comunidade. A pastoral cuidava da unidade eclesial, que se manifestava pelos vínculos de comunhão entre as Igrejas. As comunidades dedicavam-se à solidariedade, na mútua ajuda e no apoio aos mais pobres. É conhecido o exemplo de São Lourenço e seu serviço diaconal em favor dos pobres de Roma. A vida litúrgica era igualmente importante, pois, pela dimensão cultual, a comunidade identificava-se a si mesma como societas sancta (BOURGEOIS, 2000, p.81).

A Igreja autocompreende-se como cuidadora da fé revelada em Jesus Cristo e como pastora pela ação sacramental e pelo serviço à vida dos fiéis. Os Santos Padres são, ao mesmo tempo, pastores de comunidades e comentadores da Sagrada Escritura. Nesse período, a Igreja mantém um admirável equilíbrio entre a Teologia e a Pastoral. Busca harmonizar as responsabilidades do ministério hierárquico e a missão dos fiéis batizados, entre a catolicidade universal e a assembleia local, entre o valor do sacramento e a importância da fé e da conversão de vida.

São muitos os escritos dos Santos Padres que expressam a preocupação em integrar catequese, liturgia e vida cristã. Inácio de Antioquia descreve uma espiritualidade que abraça tanto a dimensão individual da fé cristã quanto as dimensões comunitária e eclesial. Para ele, o bispo é, antes de tudo, um homem da Igreja. Esse é o lugar privilegiado da oração e do encontro com Cristo e os irmãos. Irineu de Lion insiste na afirmação da dignidade da vida humana que consiste na visão de Deus; alinhando a fé ao cuidado integral das pessoas. Agostinho de Hipona afirma que a caridade é a alma, o centro e a medida da perfeição cristã. Para ele, existe uma estreita relação entre a contemplação e a vida pastoral, pois os pastores deverão prestar contas a Deus do exercício do seu ministério, afinal, eles têm responsabilidade sobre o rebanho.

Um importante escrito é a Regra pastoral, de Gregório Magno, papa de 590 a 604. Trata-se da carta magna para formação dos pastores. Na segunda parte da Regra pastoral, onde se ressaltam as virtudes do pastor, São Gregório reforça:

O pastor tem uma atenção plena de compaixão para cada pessoa, uma contemplação que o desapegue da terra mais que todos os outros: pelas entranhas de sua bondade paternal, ele carregará sobre si as enfermidades dos outros, pela sua altura de sua contemplação ele se elevará acima de si mesmo aspirando aos bens invisíveis” (GREGÓRIO MAGNO, 2010, p.71).

Ensina também: “que os pastores se apresentem diante dos fiéis de tal forma que estes não se envergonhem de confiar os próprios segredos. Assim, quando são atacados pelas ondas da tentação, como crianças poderão se refugiar no coração do seu pastor como no colo de uma mãe” (GREGÓRIO MAGNO, 2010, p.74).  Enfim, sugere que o pastor não deixe, pelas ocupações exteriores, enfraquecer seu cuidado com a vida interior. Dessa forma, ele critica aqueles que se dedicam demais aos afazeres do mundo com interesses que podem prejudicar o zelo pastoral.

3 Da cura de almas ao cuidado pastoral

Diferentemente do tempo da Patrística, o período medieval se revela limitado na estruturação de uma pastoral orgânica e unitária. A evangelização expandiu-se para as populações rurais, e ocorreu a fragmentação da realidade social da Igreja. Reestruturou-se a relação entre o bispo e seu presbitério. Emergiu uma problemática pastoral porque se considerou a Igreja uma societas perfecta. Implantou-se o Direito Eclesiástico, que se converteu num meio de resolver os problemas pastorais. Insistiu-se em garantir a autonomia da Igreja diante do poder secular. A pastoral sacramental adquiriu uma importância crescente. O problema da Idade Média foi a determinação da vida cristã pelo acento na dimensão jurídica e disciplinar da fé (BOURGEOIS, 2000, p.90).

Após o impacto da Reforma Protestante, o Concílio de Trento representou uma recuperação tanto dogmática quanto pastoral da Igreja. A vertente pastoral de Trento procurou definir o lugar e o significado da Igreja como dispensadora do dom da salvação para a humanidade. O Concílio decretou ser errado acreditar que a economia da graça teria como base a destruição da natureza como resultado do pecado original. De maneira diferente dos reformadores, o Concílio afirmou o poder da graça que salva a natureza ferida pelo pecado, mas que conserva a grandeza e a dignidade conferidas pelo Criador. Unificou, assim, a sacramentalidade da Igreja com a sacramentalidade da criação (BOURGEOIS, 2000, p.92).  Por isso, a pastoral será tida como cuidado das almas para a salvação.

O termo mais utilizado para a ação da Igreja era cura animarum, indicando o cuidado das almas dos fiéis por parte dos pastores da Igreja. A palavra pastoral, entendida como cura de almas, foi criada especialmente no final do século XVIII e passou por uma evolução, recebendo muitos significados, alguns com certos reducionismos e ambiguidades. Alguns entenderam que pastoral seria um conjunto de atividades sob a responsabilidade exclusiva dos clérigos, orientada para atender apenas às necessidades religiosas e culturais dos cristãos. O sentido espiritualista reduziu a pastoral à dimensão religiosa e especificamente sacramental da fé cristã.

A Sagrada Escritura, porém, descreve o cuidado pastoral na integralidade do ser humano, na interação com toda a comunidade cristã, estendendo seu olhar sobre toda a  humanidade. Partindo desse sentido original, é possível aprofundar o significado da expressão cura de almas, libertando-a das falsas compreensões que ela recebeu ao longo da história. Originalmente, o termo cura, em latim quaera, era empregado num contexto de relações de amizade e amor, indicando atitudes de preocupação e cuidado para com alguém muito estimado. O cuidado pastoral deveria ser compreendido como interesse, atenção e preocupação. Essa solicitude, esse zelo e essa atenção traduzem-se na ação do pastor ou sacerdote que tem a missão de cuidar e acompanhar as pessoas em seu caminho espiritual. O agir pastoral, portanto, implica tanto a atenção para com as pessoas quanto a inquietação e ocupação do pastor para que todos se sintam afetivamente cuidados. Seu olhar não exclui a sociedade nem as diversas instâncias com as quais a vida humana está envolvida.

4 Perspectiva teológica

A fonte de toda a pastoral é a Santíssima Trindade: do Pai procede o desígnio da salvação; o Filho é enviado para revelar esse projeto de amor, sendo o sacerdote, pastor eterno e mensageiro do Reino; e o Espírito Santo é quem atualiza a ação salvífica do Pai e do Filho, para que todos tenham vida em abundância (cf. Jo 10,10). A ação pastoral de Cristo pretende “reunir em um só povo todos os filhos de Deus que estão dispersos” (cf. Jo 11,52), para que haja “um só rebanho e um só pastor” (cf. Jo 10,18).

A Igreja é sacramento de salvação, e todas suas ações estão marcadas pelo amor cuidador e salvífico da Trindade. O resultado da ação pastoral traduz-se na conversão das pessoas, na edificação da comunidade e na transformação da sociedade como sinal antecipado do Reino que Cristo inaugurou. O pastoreio da Igreja, desse modo, continua a ação de Jesus, o Bom Pastor, que doa sua vida pelas ovelhas. Trata-se da ação real, sacerdotal e profética da comunidade cristã que testemunha, anuncia e serve ao Reino de Deus acolhendo todas as pessoas e as amando como Jesus ensinou. Exerce-se, dessa maneira, o tríplice múnus que os apóstolos receberam de Cristo (cf. Mt 28,8-20). Trata-se da missão profética de proclamar a Palavra de Deus em todas as instâncias (evangelização, catequese, pregação); da missão sacerdotal, exercida no ministério litúrgico de celebrar os mistérios do culto cristão; e da missão real, com as tarefas de governo, disciplina, caridade e promoção integral da vida humana.

A pastoral estrutura-se, fundamentalmente, nas dimensões: eclesial, pessoal, social, cósmica e escatológica. Na dimensão eclesial, está o princípio formal de toda pastoral, pois Deus é a causa principal da salvação da qual Cristo é o único mediador. Na dimensão pessoal, faz-se a defesa da vida, especialmente dos pobres e excluídos, é a ação que liberta de todo pecado e escravidão. A dimensão social impele a cuidar das pessoas para que na sociedade se estabeleçam relações de liberdade, justiça e paz. A dimensão cósmica interessa-se pela criação, pelas questões ecológicas e pelo destino de todo o universo criado. E a perspectiva escatológica faz a Igreja voltar-se para o futuro da história e do mundo; quando o pastoreio pretende colaborar para que Cristo seja tudo em todos.

5 Pastoral no Concílio Vaticano II

O Concílio Vaticano II destacou a pastoral e a ação evangelizadora da Igreja para que ela seja sinal de Cristo no mundo. Para isso, é preciso considerar que as mudanças na Igreja, especialmente na sua forma de evangelizar, constituem a sua identidade de acolher o que o Espírito Santo revela em diferentes momentos históricos. A eclesiologia do Concílio Vaticano II (cf. Lumen Gentium) entende que a pastoral é o ministério da Igreja, Povo de Deus, guiado pelo Espírito Santo que atualiza a ação evangelizadora de Cristo, com o objetivo de expandir o Reino de Deus no mundo.

A Constituição Pastoral Gaudium et Spes responde ao amadurecimento da consciência de que a Igreja existe na história e nela aprofunda sua missão e sua natureza.  A Igreja é Povo de Deus em comunhão, o qual possui a característica de ser sujeito histórico, que vive no tempo, que cumpre sua missão aproximando-se dos problemas culturais e sociais de cada época. A Igreja empenha-se em apresentar ao mundo o Evangelho da salvação e colabora com a humanidade na busca da verdade, da justiça e da paz. Desse modo, a pastoral supera a excessiva atenção que é dada aos assuntos internos da Igreja e abre-se à interação com o ser humano, com suas alegrias e tristezas, angústias e esperanças. A partir da Gaudium et Spes, a pastoral não pode ser compreendida apenas com a dimensão prática da doutrina eclesial, pois integra e reconcilia os planos teórico e prático do Cristianismo.

Outra importante insistência do Concílio Vaticano II está na dignidade de todo batizado. Todo cristão é sujeito da ação pastoral da Igreja (RAMOS, 2006, p.78). Pelo batismo, o cristão pertence ao Povo de Deus, e essa incorporação é anterior a toda divisão de carismas e ministérios. O batismo faz com que todo cristão participe do sacerdócio comum, recebendo a tarefa de transformar a realidade a partir do Reino de Deus. A dignidade batismal insiste na especial vocação do apostolado dos leigos. Isso implica superar uma visão de pastoral como atividade preferencial de clérigos. A pastoral é a ação de todo o Povo de Deus, não é um ministério exclusivo da hierarquia eclesiástica, pois todos os fiéis participam da ação pastoral com seus múltiplos carismas e ministérios, de acordo com sua vocação específica.

6 A conversão pastoral

A expressão conversão pastoral foi formulada pela Conferência do Episcopado Latino-Americano em Santo Domingo (1992) e retomada na Conferência do Episcopado Latino-Americano em Aparecida (2007). Ela remete à superação de uma pastoral de conservação pela renovação do Concílio Vaticano II e à tradição latino-americana e pretende uma nova evangelização. Trata-se de uma conversão pessoal e comunitária. É preciso renovar, em cada batizado, o ardor de ser discípulo de Jesus Cristo e missionário da Boa Nova do Reino de Deus. Emprega-se o termo conversão para indicar a mudança que se faz necessária. É preciso arrepender-se de um estilo de pastoral de manutenção para assumir uma nova postura missionária. Há muitos batizados e até agentes de pastoral que não fizeram o encontro pessoal com Jesus Cristo, que muda a vida e converte a pessoa. Alguns vivem o Cristianismo de forma sacramentalista, sem deixar que o Evangelho renove sua vida. Outros perderam o sentido do discipulado e esqueceram a dimensão missionária da fé cristã.

A falta de consciência comunitária, que o individualismo moderno instalou até mesmo entre os líderes da pastoral, e a cultura do egoísmo e do isolamento suscitam mudanças na ação pastoral. Há muitas pessoas que buscam a experiência com o sagrado sem compromisso com a fraternidade e a solidariedade. Vivem a fé cristã buscando atender apenas às demandas pessoais. Fazer uma ação eclesial sem converter essas buscas é sustentar uma religiosidade que não é evangélica, portanto, carece do cuidado pastoral que Jesus propõe.

Somente com uma profunda conversão de pessoas e estruturas será possível superar uma pastoral de mera conservação ou manutenção, para assumir uma pastoral decididamente missionária (CELAM, 2007, n.370).  A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium explicitou as consequências dessa conversão:

A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de “saída” e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade (FRANCISCO, 2013b, p.27).

Enfim, a pastoral é a ação de Deus por meio do seu Espírito. O ator principal da pastoral é o Espírito Santo, que atualiza a prática de Jesus; esta é a norma de todo o ministério pastoral da Igreja. Somente o que possibilita atualizar a presença de Jesus na Igreja e no mundo pode receber o título de pastoral. Por isso é importante também a evangelização, o anúncio da Boa Nova, a pregação do Reino de Deus. Pastoral e evangelização não se separam. Não pode haver pastoral sem a prioridade da evangelização integral e missionária. Não basta cuidar de manter o culto, a catequese e a caridade. É preciso ser missionário, capaz de atrair muitos outros que acolham o desígnio universal de salvação.  A pastoral da Igreja jamais pode ser fechada às diversas realidades que afetam o seu contexto. Não se trata de um grupo que satisfaz apenas sua dimensão religiosa, mas que integra toda experiência pessoal, comunitária e social a partir da fé em Jesus Cristo. Para o Papa Francisco, a “pastoral nada mais é que o exercício da maternidade da Igreja. Ela gera, amamenta, faz crescer, corrige, alimenta, conduz pela mão… por isso, faz falta uma Igreja capaz de redescobrir as entranhas da misericórdia” (FRANCISCO, 2013a, p.54).

Leomar Antônio Brustolin – PUC RS, Brasil. Texto original português.

7 Referências bibliográficas

BOSETTI, Elena.  La tenda e il bastone: figure e simboli della pastorale biblica. Cinisello Balsamo: Paoline, 1992.

CELAM. V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Documento de Aparecida. São Paulo: Paulus; Paulinas, 2007.

FLORISTAN, S. C.; USEROS, C. M. Teologia de la acción pastoral. Madrid: BAC, 1968.

GREGÓRIO MAGNO.  Regra pastoral.  São Paulo: Paulus, 2010. Coleção Patrística.

FRACISCO. Pronunciamentos do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulus, 2013a.

FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013b.

RAMOS, J. A. Teología pastoral. Madrid: BAC, 2006.

SZENTMÁRTONI, Mihaly.  Introdução à Teologia Pastoral.  São Paulo: Loyola, 1999.

VON RAD, Gerard. Teología del Antiguo Testamento.  Salamanca: Sígueme, 1973.

Para saber mais

ARNOLD, F. X. Teología e historia de l’acción pastoral. Barcelona: Herder, 1969.

BOURGEOIS, Daniel. La pastorale de l’Église. Paris: Cerf, 1993.

BRIGHENTI, Agenor.  A pastoral dá o que pensar: a inteligência da prática transformadora da fé. São Paulo: Paulinas; Valência: Siquém, 2006.

DUFFY, R. A. A Roman Catholic Theology of Pastoral Care.  Philadelphia: Fortress, 1983.

FLORISTÁN, S. Casiano.  Teologia práctica: teoria y práxis de la acción pastoral. Salamanca: Sígueme, 1991.

ZULEHNER, Paul M. Teologia pastorale. Brescia: Queriniana, 1992.