Sumário
2 Sentido literal, alegórico, espiritual, moral, pleno
4 Leitura, abordagem, método: o problema da nomenclatura
6.1 Análise da estrutura literária
7.2 Análise dos gêneros literários
9.1 Leitura socioantropológica e política
11 Referênciasbibliográficas
1 Uma Bíblia, muitas leituras
O livro que chamamos de Bíblia ou Sagrada Escritura está aberto a muitas interpretações, não só àquelas espirituais, religiosas e teológicas, mas também a outras, mais leigas e “profanas”. Uma vez saído da mão do autor, o texto adquire vida própria e significados que não dependem mais de quem o escreveu. Com a Bíblia não é diferente: há muitos modos de ler a Escritura, muitos sentidos para o mesmo texto, muitas interpretações para o mesmo versículo.
O que faz a riqueza e a pobreza de uma leitura da Bíblia não é o texto em si mesmo, mas a capacidade (ou falta dela) de encontrar as muitas possibilidades de interpretá-lo, desde os significados mais aparentes e imediatos, até os significados mais profundos e subentendidos.
Um largo leque de interpretações – às vezes em conflito, mas nem sempre – abre-se para o leitor que não se contenta com apenas uma leitura, mas que aceita a máxima rabínica: “a Escritura tem setenta faces”, isto é, há muitos modos diferentes de ler a Palavra de Deus e, portanto, não há o significado do texto, e sim os significados do texto.
Essa multiforme interpretação da Bíblia deriva de vários fatores: do próprio texto (a língua e o estilo do autor), do leitor (seus interesses pessoais, seus conhecimentos do universo bíblico), das etapas da história da teologia (dogmas, controvérsias, concílios) e do desenvolvimento das ciências em geral (arqueologia, história, sociologia).
É possível ler a Bíblia não só de modo espiritual e pastoral, mas também de modo científico. Por modo científico de ler a Bíblia, compreende-se não a aplicação dos postulados e dos instrumentos das várias ciências modernas (psicanálise, medicina, sociologia) ao texto bíblico, e sim um conjunto de metodologias, pressupostos e critérios para se fazer exegese, isto é, “extrair, levar para fora” o significado mais profundo. Dito de outro modo, fazer exegese é romper a superficialidade da explicação imediata e aparente e buscar outros significados, outros sentidos e outras relações, por meio de passos metodológicos consistentes e criteriosos.
2 Sentido literal, alegórico, espiritual, moral, pleno
Ao longo da teologia cristã, o problema hermenêutico conheceu diversas respostas, que dependeram não só do desenvolvimento da própria teologia, bem como do desenvolvimento do conhecimento científico em geral. Não obstante, é possível observar uma constante: gradativamente vai-se delineando a necessidade de distinguir entre o sentido literal e o sentido espiritual do texto.
Na Idade Média, solidificou-se a subdivisão do sentido espiritual em três – o alegórico, o espiritual e o moral –, que com o sentido literal formam os assim chamados “quatro sentidos medievais da Escritura”. A articulação destes quatro sentidos foi assim sintetizada:
“A letra ensina os fatos; a alegoria, aquilo em que deves crer.
O moral, aquilo que deves fazer; a anagogia, aquilo a que deves tender”
O sentido literal (ou histórico) exprime os fatos e os acontecimentos.
O sentido alegórico esclarece as verdades da fé (teológicas, cristológicas, mariológicas) transmitidas pelo sentido literal.
O sentido moral (ou tropológico) guia quem crê à ação, como deve agir em sua vida de fé.
O sentido anagógico orienta este mesmo fiel para os fins últimos, numa espécie de contemplação da vida eterna.
Esses quatro sentidos possuem uma hierarquia que é facilmente percebida quando se lê o Antigo Testamento. A tradição medieval segue os passos da tradição patrística e considera o sentido literal o menos importante e, inversamente, supervaloriza o alegórico, uma vez que toda a Sagrada Escritura (notadamente o Antigo Testamento) é interpretada em chave cristã, isto é, toda a Bíblia fala de Cristo, da Igreja e dos seus dogmas.
Como afirmado no início desta sessão, o desenvolvimento da teologia e do conhecimento científico ao longo dos séculos postulou questionamentos à leitura da Bíblia e obrigou a repensar não somente as definições de “sentido literal” e “sentido espiritual”, mas os sentidos em si mesmos, uma vez que a distinção entre um sentido literal e outro espiritual abria a possibilidade de afirmar que somente após Jesus as Escrituras hebraicas ganharam um significado espiritual, o que, entre outros problemas, colide com os conceitos de revelação e de inspiração.
Somente na primeira parte do século XX surgiu a expressão “sentido pleno” (em latim, sensus plenior), cunhada por A. Fernández, em 1925, para designar um sentido mais profundo do que o literal, desejado por Deus, mas que não estava suficientemente claro para o autor humano. Para se chegar a esse “sentido pleno” de um texto bíblico, é necessário estudá-lo à luz da revelação ulterior, isto é, com a ajuda de textos bíblicos escritos posteriormente e que citam e interpretam o texto estudado.
3 Exegese e hermenêutica
Exegese e hermenêutica não se confundem, embora estejam intimamente ligadas. Grosso modo, normalmente fala-se que hermenêutica é a ciência dos princípios de interpretação de um texto, enquanto exegese é a aplicação desses princípios para explicar o texto. Esta distinção, no entanto, não é suficiente.
No uso atual, o termo hermenêutica designa muito amplamente as metodologias de leitura da Bíblia que têm como objetivo encontrar os significados do texto bíblico e aplicá-los à realidade do leitor. Por isso, fala-se de “hermenêutica rabínica”, de “hermenêutica medieval” etc.
Por sua vez, o termo exegese é aplicado a um conjunto de procedimentos e abordagens críticas que têm como objetivo interpretar o texto em si mesmo: seu significado original, sua organização linguística e literária, seus conceitos teológicos, seus motivos literários, a história de sua formação.
A exegese é praticada em duas direções complementares: a sincronia e a diacronia (cf. veremos logo a seguir).
Também há de se distinguir entre exegese e teologia bíblica. Trata-se de duas ciências muito ligadas e complementares. Não se pode separá-las, porque os problemas de uma tornam-se também problemas para a outra. Mas, enquanto a teologia bíblica faz um esforço de síntese da mensagem bíblica, a exegese realiza um trabalho analítico. Em palavras pobres, a teologia bíblica busca o que os textos têm de semelhante, a exegese busca o que os textos têm de diferente.
4 Leitura, abordagem, método: o problema da nomenclatura
Os manuais e os artigos sobre exegese utilizam variada nomenclatura para definir os vários passos e aspectos da interpretação do texto bíblico: método, leitura, abordagem, análise. Por exemplo, o que um estudioso qualifica como “métodos diacrônicos” outro denomina “leituras diacrônicas”, enquanto um terceiro fala de “abordagens diacrônicas”!
O uso deste ou daquele termo parece ter como razão mais a preferência pessoal de quem escreve do que um fundamento objetivo. Por conseguinte, até o momento não se chegou a um consenso sobre o que distingue uma análise de uma leitura e, numa tentativa de hierarquia e agrupamento, se a análise é um tipo de leitura ou se a leitura é um tipo de análise.
Não obstante, alguns sintagmas acabaram se impondo, muito mais pelo uso do que por rigor terminológico. Tal é o caso de “método histórico-crítico”, “análise da estrutura literária”, “leitura sócio-antropológica”, “crítica textual”. Em outros casos, porém, há uma completa falta de consenso, a ponto de fazer supor que os termos sejam intercambiáveis: fala-se tanto de análise como de crítica dos gêneros literários; tanto de análise como de abordagem retórica; tanto de leitura como de análise sincrônica.
O termo método normalmente é usado para designar um conjunto articulado de análises, abordagens, leituras e críticas. Nas modernas ciências bíblicas, consagrou-se o método histórico-crítico, mas já bem antes dele, o método rabínico (targúmico/deráshico) e o método alegórico atingiram um alto grau de complexidade e articulação de critérios.
Aparentemente, o termo análise indica o estudo sistemático de um aspecto do texto, seguindo uma série de critérios: análise estilística, análise semântica, análise da estrutura/organização do texto. Devido à complexidade e à avaliação criteriosa dos dados que avaliam, algumas análises acabaram assumindo o nome de crítica: crítica textual, crítica literária, crítica dos gêneros literários, crítica da redação.
Leitura, por sua vez, é muitas vezes usado para designar modos de interpretação dificilmente classificáveis como método ou análise ou crítica. São três as possibilidades. Em primeiro lugar, quando a leitura não segue rígidos critérios e categorias de interpretação, mas valoriza o diálogo com o texto e, por conseguinte, pode ser praticada mais de modo empírico do que propriamente sistemático. Tal é o caso da “leitura popular”, da “leitura orante” e da “leitura pastoral”. Segundo, quando a leitura aplica ao texto bíblico critérios e procedimentos de outras ciências. Assim a “leitura sócio-antropológica” e a “leitura psicanalítica”. Por fim, o terceiro, quando a leitura assume um horizonte hermenêutico ou um aspecto dele. Tal é o caso da “leitura feminista” e da “leitura libertadora”.
No entanto, a falta de consenso quanto à nomenclatura não implica afirmar que todos esses modos de interpretar a Bíblia tenham a mesma validade científica (embora deva-se dizer que alguns são mais científicos que outros), nem que devam ser deslegitimados e descartados os modos “menos científicos” de ler e interpretar a Sagrada Escritura.
É necessário, antes, adaptar o modo de ler ao objetivo da leitura e, portanto, mais do que “interpretação correta”, é necessário falar de “interpretação adequada”: há o modo adequado para ler a Bíblia na oração, que não é o modo adequado para ler a Bíblia quando se quer fazer teologia e exegese, que, por sua vez, pode não ser o modo mais adequado para fazer uma boa catequese baseada nos textos bíblicos.
5 Exegese e texto original
O termo exegese vem do verbo grego ex-ágo, que significa: “levar para fora, tirar, extrair, fazer sair”. Em palavras simples, exegese é a ciência da interpretação que “extrai” o significado que está oculto no texto. Ela pertence às chamadas “ciências bíblicas”, isto é, um conjunto de abordagens críticas altamente elaboradas, corrigidas e completadas ao longo de séculos.
Não se pode fazer verdadeira exegese se não sobre o texto original. Por conseguinte, não se pode fazer exegese sem conhecer as línguas bíblicas (hebraico, aramaico e grego). Do contrário, qualquer afirmação acerca do significado de um texto ficará refém da natural impossibilidade de se traduzir com total exatidão na língua de chegada o que palavras e frases significam na língua de partida.
Quando se fala de texto original, o adjetivo “original” vai destacado, porque o que temos são cópias de cópias de cópias que, até o advento da imprensa, foram reproduzidas à mão. A exegese desenvolveu toda uma ciência chamada crítica textual, para confrontar e avaliar os vários manuscritos e, baseada nos resultados desta análise, reconstruir aquela que, muito provavelmente, foi a redação do texto.
Uma vez estabelecido o texto original, é chegado o momento de analisá-lo metodicamente. A exegese toma duas direções: a sincronia e a diacronia. Em exegese, estes termos tem um significado um pouco diferente daquele dado por Saussure no seu tratado fundante de semiologia. Em exegese, a sincronia (do grego syn+chronos) refere-se à leitura do texto como ele é, na sua redação final, que é a que conhecemos. Diferentemente, a diacronia (do grego dia+chronos) preocupa-se com a evolução do texto até ele chegar a ser o que é hoje, ou seja, quais etapas e quais elementos concorreram para a redação final. Na história da exegese, o conjunto das análises diacrônicas recebeu o nome de “método histórico-crítico”.
Sincronia e diacronia são complementares, o que significa que a boa exegese não pode se reduzir a uma ou outra. Todavia, é preferível fazer primeiro a leitura sincrônica, pois é mais prudente começar compreendendo o texto como ele está hoje, e só depois questionar como ele chegou a ser o que é.
6 Leituras sincrônicas
As principais leituras sincrônicas são:
6.1 Análise da estrutura literária
Por definição, um texto não é somente um acumulado de palavras e frases desconexas, nem tampouco um amontoado de fatos lineares ou de ideias encadeadas aleatoriamente. Ao contrário, para ser verdadeiramente um texto, deve estar articulado por um fio condutor, que faz com que o escrito tenha começo, meio e fim.
A análise da estrutura literária estuda como o texto se organiza, como palavras, frases e parágrafos se articulam para transmitir o conteúdo e o significado do texto. Para isso, subdivide o texto em blocos menores, de uma frase a vários versículos, conforme as funções e as relações de cada uma dessas pequenas partes no conjunto.
A seguir, coloca em evidência e analisa essas funções e relações, de modo a determinar a fluência dos momentos narrados e a concatenação dos ensinamentos transmitidos.
6.2 Análise da narrativa
Como o nome já diz, trata-se de uma leitura adequada para narrações ou relatos. Estuda as relações entre os personagens, as ações, os acontecimentos, o enredo, as forças que agem no desenrolar da história. Sem dúvida, os relatos bíblicos são muito diferentes dos modernos romances de ficção; todavia, pelo simples fato de fazerem parte do gênero narrativo, os relatos bíblicos possuem as mesmas características de todo e qualquer escrito no qual são descritas as ações de personagens em situações (fictícias ou não) por meio de um enredo bem elaborado com começo, meio e fim.
Deste modo, aos relatos bíblicos são feitas as mesmas perguntas de toda e qualquer trama narrativa: os personagens e seus papéis, os “motores” da ação, o tempo da história e o tempo do discurso, as subdivisões da trama, o narrador, o leitor, o ponto de vista.
6.3 Análise retórica
Uma vez que o próprio termo retórica adquiriu diversas acepções, também no universo das ciências bíblicas a análise retórica tomou mais de uma direção, desde a aplicação dos elementos da retórica grega aos textos neotestamentários (principalmente os escritos epistolares), até a busca de uma retórica semita nos textos veterotestamentários (principalmente os escritos proféticos e sapienciais).
A análise retórica estuda os vários tipos de discurso (judiciário, deliberativo, demonstrativo), a fim de identificar quais efeitos quer produzir e qual a linguagem usada para este fim. Por isso, aproxima-se do juízo estético, mas não se reduz a ele, uma vez que seu objetivo não é a beleza do texto em si mesma, mas como este aspecto estético atinge o racional e o afetivo do leitor, a fim de persuadi-lo e convencê-lo.
6.4 Análises linguísticas
Estudam o vocabulário, a sintaxe e também as figuras de linguagem.
A análise do vocabulário (ou lexicográfica) preocupa-se com o uso e a significação das palavras utilizadas no texto, de modo a definir os valores e as nuanças, tanto para teologia como para a exegese. Isso significa que a análise lexicográfica preocupa-se não somente como os vocábulos que se tornaram densos de significado pelo largo uso na teologia, mas também pelos vocábulos raros e os usados uma única vez (hapaxlegómena) em um livro ou, em casos mais extremos, em toda a Bíblia.
A análise da sintaxe tem como finalidade identificar o modo e os níveis em que o vocabulário é usado e articulado. O valor de preposições, as regências e os tempos dos verbos, as alternâncias dos sujeitos etc. Tudo isso tem vital importância para a interpretação do texto.
O estudo das figuras de linguagem corresponde à análise estilística: de que modo o autor dá maior expressividade, colorido e vivacidade ao texto, ou, ao contrário, propositadamente o deixa mais ambíguo, sombrio e lento. As figuras de linguagem são divididas em três grupos: as figuras de pensamento ou de retórica (ligadas ao modo de organizar as ideias); as figuras de construção ou de sintaxe (ligadas ao modo de formular as frases); as figuras de palavras ou de estilo (ligadas ao uso dos vocábulos e dos conceitos).
7 Leituras diacrônicas
As principais leituras diacrônicas são:
7.1 Literarkritik
Este termo alemão provocou muito desacordo acerca de como traduzi-lo para as línguas latinas, uma vez que “crítica literária” não traduz com eficiência o que Literarkritik significa em alemão. Por isso, alguns preferiram utilizar “crítica das fontes”. Seja qual for a tradução do termo preferida pelo exegeta, este passo metodológico pergunta se o texto atual não é o resultado da reelaboração de um ou mais textos prévios. Questionando se o texto estudado é unitário ou compósito, a Literarkritik tenta identificar estratos redacionais, fontes, acréscimos e outros elementos utilizados pelo autor[1] na composição do texto que temos hoje.
7.2 Análise dos gêneros literários
Há certo dissenso entre os exegetas: enquanto alguns falam de “gêneros literários”, outros optam por “formas literárias”, e outros ainda, em determinados casos, preferem falar de “cenas típicas”. Esta discussão tem a ver com opções metodológicas assumidas pelos que criaram e desenvolveram este tipo de análise.
Independente da nomenclatura adotada, este passo metodológico se aproveita dos resultados da análise da estrutura literária e compara textos formalmente semelhantes (isto é, com os mesmos elementos estruturais), em busca de um esquema minimamente comum, bem como das diferenças devidas ao autor.
Para que se possa falar de “gênero literário”, é necessário que haja ao menos dois textos formalmente semelhantes e, de preferência, em corpos literários distintos.
7.3 Análise da tradição
Não necessariamente os autores bíblicos compuseram textos a partir do zero. Em muitos casos, eles utilizaram material preexistente, tanto escrito como oral. E não só relatos e formulações, mas também conceitos, motivos, imagens, convenções, esquemas de pensamento.
Este material tradicional herdado já havia atingido certo grau de fixação e, em muitos casos, era de algum modo já conhecido pelos leitores para quem os autores bíblicos escreviam. Por isso, tratava-se de um excelente conjunto de códigos à disposição para ser apropriado, usado e modificado na fase de redação, a fim de transmitir novos ensinamentos, lançar luz sobre novos aspectos de algo já conhecido ou aplicar a uma realidade nova antigos preceitos.
7.4 Análise da redação
Embora possam ter utilizado textos e tradições orais herdados de outras pessoas, os autores bíblicos não foram meros compiladores, mas, ao contrário, atuaram de modo criativo, por vezes modificando material preexistente, por vezes compondo um texto totalmente novo. Seja no caso de um texto específico, seja no caso de todo um livro, a análise da redação investiga quais critérios os autores bíblicos utilizaram para selecionar, organizar e, eventualmente, completar o material que tinham à sua disposição.
O expediente redacional dos autores bíblicos nos legou correções estilísticas, acréscimos etiológicos, contextualizações culturais, molduras literárias, reutilização de textos e ditos tradicionais, conexões hermenêuticas de textos independentes, leitmotive e vários outros elementos textuais, no qual se fazem nítidos o plano geral da obra e o escopo literário-teológico pretendidos pelos hagiógrafos.
8 Leitura fundamentalista
O fundamentalismo é tema bastante complexo e muito estudado por sociólogos, antropólogos, psicanalistas, historiadores e estudiosos da religião, entre outros, e não se limita à leitura da Bíblia e muito menos ao campo religioso. Pode-se, por exemplo, falar de fundamentalismo político.
A leitura fundamentalista da Bíblia, portanto, é reflexo e expressão da atitude fundamentalista, que leva alguém a buscar valores e/ou ideias básicas, simples, claras e universalmente válidas.
Quem lê o texto bíblico de modo fundamentalista tem dificuldade para lidar com a complexidade do texto bíblico – tanto no que se refere à composição do texto bíblico (contextos históricos, diversidade de formas literárias etc) como no que se refere à sua teologia (pluralismo de concepções teológicas, divergências em relação ao mesmo tema etc) – e, por isso, prefere acreditar que não é necessário interpretar o escrito, que não se deve questionar o texto acerca dos possíveis significados de suas palavras e frases, pois tudo está expresso de modo claro e perfeitamente compreensível.
A atitude fundamentalista em relação à Bíblia adota as seguintes posturas:
a) a Bíblia está livre dos erros, das imperfeições e dos condicionamentos da palavra humana, graças à ação divina na revelação e na inspiração. Por isso,
b) o sentido do texto bíblico é claro e expresso em palavras perfeitamente adequadas. Assim, não é necessário interpretar o texto, pois o significado é evidente por si mesmo. Deste modo,
c) a Bíblia é a única autoridade para a doutrina e para a moral. É o princípio de que “só a Escritura” tem relevância para a fé e a moral cristãs. Mais ainda,
d) os textos bíblicos têm uma aplicação moral, resistente ao tempo, à história e às diferenças culturais. A Bíblia não necessita de atualização: ela é perene e a-histórica. Por isso,
e) o texto bíblico é um tesouro de argumentos que confirmam o credo e a doutrina de um grupo. Ele é usado para provar que determinada doutrina ou postura moral é universalmente válida. E ainda,
f) do início ao fim, toda a Bíblia pode ser interpretada do mesmo modo. Por isso, deve-se renunciar ao senso crítico e à própria capacidade de buscar sentidos novos para o texto bíblico.
9 Novas abordagens
9.1 Leitura socioantropológica e política
Este tipo de leitura examina não somente a sociedade que aparece no texto, mas também a sociedade que está por trás do texto, isto é, as instituições sociais, os costumes, as realidades econômicas, históricas e políticas que o texto supõe e que influenciaram na produção da literatura bíblica. Para isso, é necessário situar o autor, os personagens, os fatos e as circunstâncias no seu adequado contexto histórico, ideológico e simbólico. Deste modo, não só os acontecimentos narrados, mas também os conceitos teológicos subjacentes ao texto adquirem novos contornos, dimensões e significações.
A leitura socioantropológica e política está muito ligada aos métodos histórico-críticos, uma vez que é também uma abordagem histórica na qual a própria formação do texto é vista não como algo espiritual e supranatural, mas situado e condicionado pela cultura, pela economia, pela política, pela ideologia.
9.2 Leitura feminista
A leitura feminista da Bíblia surgiu no final do século XIX, no contexto da luta pela igualdade de direitos, e liga-se à teologia feminista. O ponto de partida é saber se é possível ler a Bíblia e, mais amplamente, fazer teologia “como mulher”. Não somente se é realizável, mas também e principalmente se é academicamente válido e importante.
O primeiro e principal critério da leitura feminista é a “questão de gênero” como ferramenta de interpretação e análise dos textos bíblicos. Na prática isso significa assumir alguns pressupostos: que a sociedade na qual a Bíblia nasceu e foi escrita era patriarcal e androcêntrica; que também as traduções e as interpretações de textos bíblicos são marcadas pelo patriarcalismo e androcentrismo; que o próprio texto bíblico tem, quase na sua totalidade, uma visão masculina, mesmo quando fala de mulheres.
Adotando e adaptando aos seus próprios pressupostos os métodos da exegese, bem como de outras ciências (sociologia, antropologia, história etc), a leitura feminista visa evidenciar o androcentrismo bíblico e reverter a interpretação dos textos. Neste projeto, a leitura feminista assumiu várias linhas, tais como: analisar criticamente o patriarcado e os conceitos dele dependentes e ligados à sociedade e à religião; expor a política sexual dos textos bíblicos; reclamar o universo feminino (linguagem, corporeidade, status público etc) subjacente aos textos; reavaliar e resgatar o modo feminino de viver e de praticar a religião.
10 À guisa de conclusão
Todos os métodos de leitura e todas as hermenêuticas possuem pontos fortes e pontos fracos. Por isso, nenhum modo de interpretar a Bíblia é tão completo a ponto de substituir e descartar todos os demais. Ao contrário, a Bíblia está sempre aberta a novas abordagens e novas interpretações.
É importante notar que os três documentos pós-conciliares[2] da Igreja Católica referentes à interpretação da Bíblia – A interpretação da Bíblia na Igreja, de 1993; Verbum Domini, de 2010; Inspiração e verdade da Sagrada Escritura, de 2014 – afirmam enfaticamente que todos os métodos de leitura são válidos e úteis para buscar os significados do texto bíblico. A única leitura rejeitada é a leitura fundamentalista!
Cássio Murilo Dias da Silva. PUC Rio Grande do Sul.
11 Referências bibliográficas
Básicas:
FITZMYER, Joseph A. A Bíblia na Igreja. São Paulo: Loyola, 1997.
PONTIFÍCIA Comissão Bíblica. Interpretação da Bíblia na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1994.
SILVA, Cássio Murilo Dias da. A Bíblia não serve só para rezar. São Paulo: Loyola, 2011.
Para saber mais:
ALETTI, Jean-Noël e outros. Vocabulário ponderado da exegese bíblica. São Paulo: Loyola, 2011.
FIGUEIREDO, Telmo (coord). Bíblia: teoria e prática. Leituras de Rute. Revista Estudos Bíblicos, n.98, 2008.
FITZMYER, Joseph A. A interpretação da Escritura. São Paulo: Loyola, 2011.
GILBERT, Pierre. Pequena história da exegese bíblica. Petrópolis: Vozes, 1992.
PARMENTIER, E. A Escritura viva. São Paulo: Loyola, 2009.
SCHNELLE, Udo. Introdução à Exegese do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 2004.
SIMIAN-YOFRE, Horacio (coord). Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000.
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 1999.
[1] Embora se possa fazer a distinção entre autor e redator, para simplificar a exposição usarei sempre o termo “autor”, a menos que a distinção seja absolutamente necessária.
[2] Isto é, após o Concílio Vaticano II (1962-1965).