A eclesialidade dos sacramentos

Sumário

1 A Igreja faz os sacramentos

2 Os sacramentos fazem a Igreja

3 Os sacramentos irrepetíveis como constituintes da Igreja

4 Referências bibliográficas

O que caracteriza a autocomunicação de Deus através dos sacramentos é sua dimensão eclesial. Deus é soberanamente livre para se autocomunicar por vias só por ele conhecidas, pois “o Espírito sopra onde quer” (Jo 3,8). Mas, na dinâmica encarnatória própria à revelação, Deus se comunica em sinais sensíveis. Primeiramente através do Verbo feito carne e, em continuidade com ele, através da Igreja, corpo de Cristo, e dos gestos e ritos em que ela se realiza como veículo da graça.

A relação entre Igreja e sacramentos é mútua: a Igreja faz os sacramentos e, por sua vez, esses a criam e constituem como corpo de Cristo com a diferença de funções entre seus membros.

1 A Igreja faz os sacramentos (TABORDA, 1998, 145-50)

Toda celebração supõe uma comunidade que se reúne para celebrar, porque compreende o sentido da celebração e comunga com seu conteúdo. No caso dos sacramentos, em cujo núcleo está a atualização do mistério de Cristo, a celebração supõe a comunidade de fé, que é a Igreja. Somente nela, na comunhão com os que nos precederam na fé (dimensão diacrônica) e com os que conosco aceitam a fé (dimensão sincrônica), é possível fazer “memória da paixão e da ressurreição do Senhor”, porque a Igreja não é uma realidade extrínseca ao Mistério Pascal de Cristo que se lhe acrescente posteriormente, quase como por acidente. Não. A comunidade dos que creem no Ressuscitado é uma dimensão intrínseca à ressurreição de Jesus. Sem Igreja, não tem sentido a ressurreição, como vice-versa: sem a ressurreição de Jesus não há Igreja. Ressuscitando Jesus, o Pai dá origem à Igreja como Corpo do Ressuscitado, comunidade suscitada e reunida pelo Espírito Santo.

A ressurreição veio confirmar, da parte de Deus, que a vida e morte de Jesus revelam quem é Deus. A ressurreição, portanto, não importa só a Jesus, que assim supera a morte. Importa igualmente a toda a humanidade, a que Deus, desta forma, manifesta quem Ele é: o Deus dos pobres e não o Deus do poder (religioso e político) que condenou Jesus, considerando-o indigno de viver. Ora, se ressurreição é a autorrevelação de Deus à humanidade, se por ela Deus mostra quem Ele é, de nada adiantaria Jesus ter ressurgido, se nenhum ser humano tomasse conhecimento desse fato.

Suponhamos, por absurdo, que Jesus tivesse ressuscitado, mas ninguém o tivesse encontrado nem crido nele. Nesse caso, Deus não se teria manifestado em Jesus, mas no Sinédrio e em Pilatos. Pois o Sinédrio que condenou Jesus à morte e o entregou aos romanos dizia agir em nome de Deus. Conseguindo acabar com Jesus, que se pretendia Filho de Deus, estava em questão de que lado Deus estava: com o Sinédrio vitorioso ou com Jesus vencido, abandonado por Deus. Como ambos os lados se invocavam de Deus, a vitória de um deles mostraria com quem Deus estava. Se ninguém ficasse sabendo da ressurreição, Jesus teria ressuscitado em vão, pois a conc1usão lógica da história de Jesus teria sido: é mais um fanático idealista que morre a morte que merece. Ninguém hoje saberia nada de Jesus, a não ser talvez algum pesquisador ultraespecializado em Oriente Próximo antigo.

À ressurreição de Jesus pertence, portanto, a existência de testemunhas e de quem aceite seu testemunho e transmita esse testemunho às gerações futuras (RAHNER; THÜSING, 1975, p.43-4). Se a constituição da Igreja é momento intrínseco à ressurreição de Jesus, então só na comunhão da Igreja é possível fazer memória de Jesus como o Cristo, o Filho do Deus vivo. Só a comunidade de fé, a Igreja, é capaz de celebrar os sacramentos que são sempre memorial do Senhor.

A Igreja é, portanto, o sujeito atuante dos sacramentos. Mas não como mero aglomerado de pessoas. Por ela e nela atua o próprio Senhor Ressuscitado, do qual a Igreja é o Corpo. Esse o sentido mais profundo da afirmação da presença dinâmica de Cristo nos sacramentos (cf. SC 7). Qualquer que seja a comunidade eclesial celebrante, qualquer que seja o ministro que a preside, é Cristo mesmo quem neles atua pelo Espírito Santo. Por isso o ministro pode ser indigno, não viver o que os sacramentos contêm e anunciam e, no entanto, sob sua presidência se comunica a nós participação no mistério pascal de Cristo. Pois o ministro não os preside como indivíduo, dotado de méritos pessoais, mas como alguém com a função específica de presidir a comunidade de fé. Não atua por sua virtude, como tampouco a Igreja atua por própria força, mas pela presença perene de Cristo, que pelo Espírito Santo a cria e recria constantemente e assim a institui e com ela dá origem aos sacramentos (Sacramentos: 1 Instituição dos sacramentos por Cristo).

A presença de Cristo na Igreja é obra do Espírito Santo. O Cristo ressuscitado é o Cristo vivificado pelo Espírito (cf. 2Cor 3,17), que transmite o Espírito a seus discípulos. O dom do Espírito pertence como momento interno ao mistério pascal de Cristo (TABORDA, 2012, p.100-4). O Espírito suscita testemunhas, abre os olhos aos discípulos. Se há uma comunidade de fé, resulta da ação do Espírito Santo que desperta a fé. Nesse sentido, a Igreja, Corpo do Ressuscitado, é vivificada e animada pelo Espírito. Mais: é sacramento do Espírito Santo, visibilização do mesmo. Nela se manifesta o próprio da missão do Espírito: unir a pluralidade.

O sujeito dos sacramentos, aquele que os realiza é, pois, a Igreja, a comunidade toda em sua unidade e pluralidade, onde cada um atua conforme a função que o Espírito Santo lhe deu (cf. SC 28). Mas, na Igreja e através da Igreja, é Cristo mesmo por seu Espírito que nos aproxima do Pai.

A Igreja, comunidade dos que aderiram visivelmente a Cristo e vivem assim sua fé, faz os sacramentos. Exc1uem-se deles, portanto, os não queiram assumir o seguimento de Jesus. Mas a exc1usão dos sacramentos não significa a exc1usão da salvação. Deus pode salvar e salva também os que não pertencem visivelmente à Igreja. Daí pode nascer a dúvida sobre a necessidade dos sacramentos. Para que sacramentos, se a graça de Deus é mais ampla que sua visibilização eclesial? Essa questão permite perceber a indispensável dimensão eclesial como característica essencial dos sacramentos.

Para dar conta da re1ação entre a salvação dos que não conhecem a Cristo e a dos que a ele aderiram na Igreja, é preciso distinguir entre o processo da salvação e a mediação da salvação (RAHNER, 1966, p.55-61). O processo da salvação é a história da salvação universal. Onde quer que alguém realize o bem, a justiça, o amor, a fraternidade, enfim, os bens do Reino, está Deus atuando sobre ele com seu Espírito. Toda pessoa que aceita a salvação que Deus assim lhe oferece, através de sua consciência, de seus semelhantes, de sua cultura, de sua religião, está dentro do processo da salvação, acolheu a salvação oferecida por Deus, quer essa pessoa conheça a Cristo, quer não tenha jamais ouvido falar dele. Assim, todo o bem que qualquer pessoa pratica, creia ou não em Deus e em Cristo, é fruto da graça, presença da salvação. É salvação como processo e em processo.

Nem por isso a Igreja ou os sacramentos se tornam supérfluos. Esses são necessários, tão necessários como aquela. Para quem considera a Igreja com olhos de fé, não como mera organização religiosa de iniciativa humana, mas como Corpo do Ressuscitado, dimensão intrínseca da própria ressurreição de Jesus, negar a necessidade da Igreja para a salvação é negar a necessidade de Cristo e da revelação de Deus. Pois só pela comunidade dos que creem no Ressuscitado, a vida e morte de Cristo revelam o Deus verdadeiro. A necessidade da Igreja, no entanto, não se situa no âmbito do processo da salvação, mas no âmbito da mediação da salvação. A mediação da salvação designa a presença da salvação na dimensão histórica e palpável da Igreja, no conhecimento e reconhecimento explícito de Cristo como revelação do Pai. A mediação da salvação é, pois, mais restrita que o processo salvífico. O processo salvífico é, sim, mediado por Cristo, mas nem sempre as pessoas que nele estão envolvidas tomam conhecimento dessa mediação ou a reconhecem. E, no entanto, explicitar essa mediação é o termo a que tende a salvação como processo, pois o que se vive exige ser explicitado, para que se viva mais intensa e conscientemente.

Os sacramentos são necessários como celebração da Igreja, que, por sua vez, é necessária, como Cristo é necessário à salvação. A necessidade salvífica dos sacramentos não significa que sem eles Deus não se autocomunique ao ser humano em graça, mas sim que os sacramentos são necessários como celebração explícita da gratuidade do dom de Deus em Cristo que o Espírito faz presente em todo bem que qualquer pessoa faz.

A Igreja é assim sacramento-raiz ou sacramento fundamental, porque toda graça sacramental é mediada pela Igreja. Nela se enraízam os sacramentos, como manifestações da graça de Deus atuando por Cristo no Espírito Santo na vida das pessoas. Enquanto sacramento-raiz, a Igreja constitui e faz os sacramentos. Dela brotam os sacramentos, como os ramos de um arbusto são sustentados por sua raiz. Mas vale também o inverso: a Igreja é feita pelos sacramentos, como a raiz necessita dos ramos para ter sentido e ser fonte de vida.

2 Os sacramentos fazem a Igreja (TABORDA, 1998, p.150-6)

A expressão “sacramento-raiz” referida à Igreja quer também designar este segundo aspecto da relação Igreja-sacramento. A raiz deixada na terra, sem tronco e sem ramos, perde seu sentido e acaba apodrecendo. Se os ramos vivem da raiz, também é verdade que a raiz vive dos ramos. Sacramento-raiz, a Igreja precisa dos sacramentos que a tornam partícipes do Mistério Pascal de Cristo.

Os sacramentos, portanto, fazem a Igreja. O batismo e a confirmação agregam à Igreja. A penitência reconcilia o cristão pecador com a Igreja. A unção dos enfermos une o cristão enfermo à Igreja através da intercessão da comunidade. O matrimônio constitui homem e mulher em “eclesíola” doméstica, cria uma família no seio da comunidade. A ordem designa uma pessoa para o serviço da unidade da comunidade eclesial. A eucaristia torna visível o que é ser Igreja: comunhão fraterna em torno ao Cristo presente e a partir dele. Pelos sacramentos a Igreja é constantemente edificada por Cristo, que atua nos sacramentos na força do Espírito Santo. Os sacramentos constroem a Igreja exatamente por serem ações de Cristo, ações cuja meta é sempre o relacionamento com o Pai no Espírito Santo por meio de Cristo. A relação com a Igreja é de mediação; o ato terminal é a relação com Cristo e, por isso, os sacramentos fazem a Igreja, não são só feitos por ela.

Assim, os sacramentos criam e recriam a comunidade eclesial. Neles, em especial na eucaristia, o sacramento central, a Igreja encontra sua identidade: comunidade criada pela presença do Senhor Ressuscitado que, na diferenciação de suas funções e carismas, oferece ao Pai, unida a Cristo no Espírito Santo, o memorial do único sacrifício de Cristo e une a ele sua vida no seguimento de Jesus, que é o culto “em espírito e verdade” (Jo 4,24; cf. TABORDA, 2012, p.242-5). Mas também em cada um dos outros sacramentos aparece a identidade da Igreja: ela vive e cresce pela conversão (batismo-crisma); santa e pecadora, sempre de novo precisa aceitar a reconciliação oferecida pelo Pai (penitência); a exemplo de Jesus, volta-se aos enfermos e fracos levando-lhes solidariedade e consolo (unção dos enfermos); manifesta o amor de Deus aos humanos no amor conjugal (matrimônio); constitui-se na diferença de funções dadas por Deus como graça (ordem).

Santa e pecadora, a Igreja nos sacramentos é confrontada com a sua origem e o seu sentido, fazendo memória do Senhor Ressuscitado. Nessa confrontação, seu agir é questionado pelo Cristo presente e atuante que exige que ela corresponda, na vida, ao que celebra nos gestos. Aí ela encontra legitimação para sua existência: o exemplo e a força de Cristo atuante no sacramento renovam o ânimo para o seguimento histórico de Jesus e justificam a ousadia de pretender um relacionamento fraterno num mundo de ódio e de construir o Reino no aqui e agora do mundo pecador.

Enfim, os sacramentos organizam a Igreja tanto no plano espiritual como no plano da organicidade: a humilde atitude de constante conversão unida à imensa dignidade de membros do Corpo de Cristo (batismo-crisma); o reconhecimento do pecado e a aceitação do perdão de Deus e dos irmãos e irmãs (reconciliação ou penitência); a acolhida e o amor preferencial ao irmão enfermo, bem como a visibilização do vínculo entre o enfermo e a comunidade eclesial (unção dos enfermos); o reconhecimento de que no amor mais profundamente humano, o amor conjugal, está presente o sentido de todo amor: presença do amor de Deus à humanidade (matrimônio); a visão do ministério eclesial como serviço aos demais em favor da unidade da Igreja (ordem); e principalmente o reconhecimento de que é na partilha, no dar a vida pelo outro, que se fundamenta toda organização e toda autoridade (eucaristia). Tudo isso reestrutura a Igreja no Espírito de Jesus.

Dentre os sacramentos há três que marcam a organicidade da comunhão eclesial e a constituem como Corpo de Cristo uno e diferenciado.

3 Os sacramentos irrepetíveis como constituintes da Igreja (TABORDA, 1998, p.156-61; TABORDA, 2012, p.228-30; 241-7)

Os três sacramentos que estruturam a comunidade eclesial são, por sua constituição, irrepetíveis. Costumam ser chamados de sacramentos caracterizantes, por imprimirem caráter. A doutrina do caráter é um teologúmenon para explicar por que não se repetem esses três sacramentos.

A origem da doutrina do caráter está em Agostinho, em sua luta contra o rebatismo dos que, batizados numa seita herética, vinham para o seio da Igreja católica. Na discussão de Agostinho com os rebatistas, ambos partiam de um pressuposto comum: ninguém dá o que não tem. Os hereges não podem dar o Espírito Santo, porque não o têm. Surge então a questão: se o batismo dos hereges não dá a vida do Espírito, por que a tradição da Igreja não permite rebatizar? Para explicá-lo, Agostinho recorre à metáfora do caráter, tatuagem ou marca a ferro e fogo recebida pelos soldados do exército romano. O caráter (marca) era uma exigência permanente a que o desertor voltasse ao exército. Assim também o batismo nos marca com a exigência permanente de seguir Cristo e pertencer à sua Igreja. Mesmo que o batismo dos hereges não dê o Espírito Santo, ele dá o caráter, a exigência de pertença a Cristo na Igreja. O sentido de falar em caráter era explicar por que determinados sacramentos nunca se repetiam.

A Escolástica assumiu a doutrina agostiniana e trabalhou-a no contexto de sua sistematização. Os sacramentos irrepetíveis, dentro da explicação agostiniana, por um lado produzem certo efeito (o caráter), mas não seu efeito pleno. O caráter, por sua vez, pela própria metáfora que o sustém, possui a propriedade de ser um sinal. Ora, a metáfora, dentro do pensamento coisista da Escolástica, só pode ser entendida no sentido de que tais sacramentos imprimem um sinal na alma. A propriedade dessa construção não é questionada. Não ocorre perguntar, por exemplo, como algo espiritual pode ser ainda chamado de sinal. Enfim, a mesma mentalidade coisista faz inverter o sentido da metáfora do caráter: de explicação da irrepetibilidade dos três sacramentos, passa a fundamentar por que alguns sacramentos não podem ser repetidos. A relação gnosiológica entre irrepetibilidade e caráter é perdida de vista e fica a relação onto1ógica que, com base no caráter, afirma a irrepetibilidade.

Ao definir a questão contra os Reformadores, o Concílio de Trento descreve o caráter como “sinal espiritual e indelével” (DH 1609). Afirmar o caráter como um “sinal espiritual” parece contradição: se é sinal deve ser visível e não pode ser espiritual, ainda mais “impresso na alma” que tampouco se vê. Se se compreende o caráter de maneira ontológico-substancialista, não há, no entanto, como entender diferentemente. É possível, entretanto, interpretar a expressão numa perspectiva histórico-relacional.

Há acontecimentos que marcam o sujeito, sem que com isso se afirme uma marca visível, mas, no fundo, um “sinal espiritual”. Na vida de cada um há acontecimentos decisivos, fatos marcantes. Fatos que conformam indelevelmente a personalidade de quem o viveu. O sujeito o carrega por toda a vida, determinando suas atitudes e decisões. Fatos que o deixam marcado perante a sociedade. Podem inclusive originar um apelido ou apodo que o acompanha pela vida afora.

Tais fatos constituem o novo termo de comparação para compreender a irrepetibilidade de certos sacramentos e o caráter sacramental. Há sacramentos irrepetíveis, porque dão ao sujeito uma função, uma posição determinada na constituição da Igreja. Marcam o sujeito para sua função na comunidade. A marca é invisível, porque se dá no âmbito existencial e intersubjetivo. No âmbito existencial, porque o sujeito aceitou assumir a condição de membro[1] ou a função de ministro da comunidade eclesial. No âmbito intersubjetivo ou relacional, porque o fez diante de Deus e da comunidade, da Igreja presente na assembleia celebrante. Uma realidade existencial e relacional não é irreal ou menos real, como poderia parecer à mentalidade objetivista ou coisista. É tão real como a ação de Deus, a memória do sujeito e a memória histórica da comunidade. É tão real como o próprio sujeito que num dado momento foi determinantemente constituído por esse fato. A pessoa que recebeu os sacramentos irrepetíveis está numa relação, com os outros membros da Igreja, que é específica do sacramento recebido. Essa relação marca a pessoa, e marca-a no sentido de que a comunidade eclesial exige e espera dela uma determinada ação e atitude. É um “sinal espiritual”.

O fato histórico, visível, social de receber os sacramentos caracterizantes é, enquanto fato histórico, irreversível. O sujeito pode arrepender-se de tê-los recebido, pode voltar atrás em suas atitudes, apostatar, mas ele será sempre alguém que recebeu o sacramento em questão e, como tal, aquele fato o marcou indelevelmente, de maneira indestrutível (“sinal espiritual e indelével”).

Mas isso acontece com qualquer fato histórico. Nós carregamos sempre conosco tudo o que nos aconteceu, ainda que seja nas profundezas do subconsciente e do inconsciente. A diferença está em que o fato histórico de receber um sacramento irrepetível é um compromisso assumido. Todo compromisso tem dimensão social, é relacionado a outros, depende também dos outros. Mesmo que alguém se desdiga do compromisso assumido com Deus e com a Igreja num sacramento caracterizante, esse compromisso continua a significar relação com Deus e com a Igreja e essa, em seu caráter de realidade escatológica, continuará, em nome de Deus, a exigir o exercício daquela função. Os sacramentos caracterizantes são constitutivos da Igreja como comunidade (batismo e confirmação) e como comunidade diferenciada internamente por funções (ordem). Ora, como comunidade escatológica, corpo do Ressuscitado, ela permanecerá para sempre até o fim dos tempos. Por isso mesmo não pode abrir mão do compromisso daqueles que receberam um sacramento que lhe é constitutivo.

O caráter sacramental é, pois, um relacionamento visível e permanente com a Igreja. Ora, essa é, no mais íntimo de seu ser, sacramento da graça. Por isso o caráter não exige só uma função exterior, mas a assimilação pessoal diante de Deus dessa função. De fato, uma Igreja cujos membros não vivessem no seguimento de Cristo acabaria esboroando-se. Por isso, à promessa divina de indefectibilidade pertence a garantia de que sempre haverá batizados e crismados que vivam efetivamente no seguimento de Cristo. Isto significa que a exigência própria ao caráter sacramental não é só externa, mas atinge a pessoa internamente.

Algo análogo deve ser dito do sacramento (respectivamente, do caráter) da ordem: uma hierarquia que, em bloco, não vivesse a fé, não seguisse Cristo na vida, acabaria por destruir a Igreja, pois terminaria por não ver mais sentido em presidir uma comunidade reunida por uma Palavra em que não crê e visibilizada em sacramentos que considera vazios de sentido. Em consequência, deixaria de fazê-lo. Ora, a Igreja é constituída pela Palavra e pelos sacramentos em vista do seguimento de Cristo. Assim também o caráter sacramental é essencialmente salvífico, diz respeito à salvação ou perdição da pessoa na comunidade e através da comunidade. O Espírito Santo, que pelo sacramento constitui o sujeito como membro ou ministro da Igreja, é o Espírito santificador, o fogo devorador que não quer apenas tostar aquele a quem atinge, mas inflamá-lo totalmente. O caráter sacramental exige que se viva o acontecimento que nos marcou.

Entretanto, mesmo que alguém receba um sacramento caracterizante em contradição com sua vida, é membro/ministro da Igreja e assim, pela força do sacramento, é provocado a que faça sua vida corresponder à sua função. Essa função ele possui, mesmo que a vida não corresponda a ela: o membro pecador da Igreja não precisa, ao reconciliar-se, ser batizado ou crismado novamente; o ministro pecador não precisa, ao arrepender-se, ser reordenado. Mas o pecado no membro ou no ministro da Igreja está em contradição com o caráter que recebeu e que leva pela vida afora. O caráter tem tendência inerente a que se realize salvificamente, para a salvação de quem recebeu o respectivo sacramento. Com o teologúmenon caráter expressa-se a existência de um pacto irrevogável que se fundamenta na fidelidade do Deus vivo, na ação de Deus pelo sacramento, mas que supõe e exige a resposta do ser humano. Não por coação e sim por vocação e provocação esta pessoa é convidada a engajar-se na própria obra de Cristo presente pelo Espírito Santo na Igreja.

Francisco Taborda SJ, FAJE, Brasil. Texto original português.

 4 Referências bibliográficas

RAHNER, K. Heilsvermittlung und Heilsprozess. In: ARNOLD, F. X. et al. (ed.). Handbuch der Pastoraltheologie. v.II/1. Freiburg/Br: Herder, 1966. p.55-61.

RAHNER, K.; THÜSING, W. Cristología: estudio sistemático y exegético. Madrid: Cristiandad, 1975. Biblioteca Teológica Cristiandad, 3.

TABORDA, F. Sacramentos, práxis e festa: para uma teologia latino-americana dos sacramentos. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

TABORDA, F. Nas fontes da vida cristã: Uma teologia do batismo-crisma. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2012. Theologica.

[1] Pessoalmente ou através dos pais e padrinhos, no caso do batismo de crianças.