O método da ciência litúrgica e sacramental

Sumário

Introdução

1 A inteligência da fé a partir dos “ritos e preces”

2 Modelos paradigmáticos da ciência litúrgica e sacramental

3 Perspectivas de uma nova relação

Referências

Introdução

A reflexão sobre o método da ciência litúrgica e sacramental (CLS), especialmente nos últimos dois séculos no contexto cultural ocidental, traz como qualquer outro campo do conhecimento e da condição da razão científica o acúmulo de dados, a construção de paradigmas, a provisoriedade, a especialização de âmbitos, a delimitação metodológica, as abordagens diferenciadas e a possibilidade de absolutizar o que não passa somente de um aspecto histórico, ritual, semântico, linguístico, fenomenológico, especulativo-teológico e pastoral.

O interesse pela reflexão sobre a ação litúrgica sacramental coincide, pode-se afirmar, com a própria exigência evangélica de dar razão inteligentemente das “mirabilia Dei” acontecidas de uma vez por todas no mistério pascal de Jesus Cristo. De fato, a comunidade cristã, desde o seu início, de vários modos, celebrou, acreditou e viveu essa realidade plena de fé. Em seguida, tal ritualidade foi explicitada através das categorias helenísticas pelos padres da Igreja, na era patrística. Na Idade Média, constatou-se o distanciamento entre teologia-liturgia-sacramentos por meio de categorias alegóricas e escolásticas, enquanto que o período pós-tridentino foi fortemente caracterizado pelo momento disciplinar da contrarreforma, pela crise da teologia escolástica, pelo crescimento do interesse pelos estudos históricos, pelo progressivo abandono da interpretação alegórica da liturgia e pela necessidade de responder às críticas dos reformadores protestantes.

Nos séculos XVII-XVIII, a liturgia se descobrirá com uma excessiva atenção ao aspecto rubricístico-jurídico e, nesse contexto, aparece o interesse e o surgimento da ciência litúrgica (CL), sobretudo na primeira metade do século XIX, na Alemanha, motivado, por um lado, pela “Katholische Tübinger Schule” e a Neoescolástica de endereço tomista, e por outro, pela perspectiva eclesiológica e a renovação da teologia dos sacramentos através da ação ritual a partir do evento cristológico. Isso desencadeará, paulatinamente, um novo processo no modo de pensar a realidade litúrgico-sacramental. Daí surgirão a reflexão e o amadurecimento de algumas constantes que se tornarão um verdadeiro mutirão de ideias, sobretudo na Europa, e que será chamado de Movimento Litúrgico. Para Ubbiali (1993), tal movimento reagirá à falta de atenção que o manual de sacramentária reservava à práxis litúrgica, e aprofundará a relação entre a teologialiturgia-sacramentos, adquirindo consistência e qualidade às intuições e respostas à “Questão litúrgica” e que, com o aprofundamento de conceitos fundamentais como participação ativa, pensamento total, mistério do culto, conhecimento simbólico, contribuirá fortemente para a reflexão antes, durante e depois do Concílio Vaticano II.

1 A inteligibilidade da fé a partir dos “ritos e preces” (MEDEIROS, 2011, p. 15-42)

A Teologia dos sacramentos, já antes do evento conciliar do Vaticano II, enucleou alguns eixos da inteligência desses sacramentos, sobretudo nos âmbitos da eclesiologia e da antropologia. Em primeiro lugar, a eclesiologia foi norteada a partir da perspectiva de Rahner (1965). Em tal ótica, a Igreja é lida como o símbolo permanente da ação salvífica divina, a realidade histórica visível na qual Deus se doa a si mesmo. No âmbito antropológico, a atenção ao humano é certamente a primeira intenção de subtrair o sacramento ao distanciamento em relação à cultura moderna. Nesse sentido, tal reflexão produziu uma nítida decisão de ampliar a dimensão antropológica do sacramento e acrescentou, desse modo uma posição própria para completar o discurso teológico já estruturado e unificado em chave sacramentária. Especificamente na sequência: a cristologia (Jesus Cristo sacramento priomordial), a eclesiologia (a Igreja sacramento fundamental, ou radical), a sacramentologia (os sete sacramentos), se acrescentou ainda a antropologia (a pessoa e o mundo, sacramento natural).

A vertente propriamente científica da liturgia, por sua vez, pode-se dizer que encontrou em Guardini (1921) um dos principais expoentes na primeira hora do Movimento Litúrgico. Ele foi o primeiro a tratar da questão epistemológica, concluindo que a ciência litúrgica exigia dois níveis complementares, qualificados por ele como investigação histórica e investigação sistemática. Segundo ele, a investigação histórica aconteceria em nível diacrônico-evolutivo e teria por objeto o estudo do devir do culto, sem o qual cairíamos em afirmações gratuitas. E a investigação sistemática, em nível sincrônico, teria por objeto o estudo da Igreja, como sujeito do culto, e de seus elementos vinculantes e permanentes. Sem a reflexão sistemática, a história perder-se-ia em dados desunidos.

Atualmente, podemos resumir basicamente em três grandes tendências metodológicas para o aprofundamento epistemológico da liturgia, como áreas de onde se podem haurir seu especificum como ciência estruturada, com métodos e leis próprias: a sistemática, a histórica e a pastoral.

Por conseguinte, pode-se dizer que essas três direções estão presentes simultaneamente na reflexão da pesquisa da liturgia, com seus legítimos representantes, na busca de uma maior consistência epistemológica e que é testemunhada por uma pluralidade de teologias litúrgicas e sacramentais contemporâneas. Todavia, o princípio norteador deve ter presente que o intellectus fidei sempre esteve, desde o início, em relação com a ação litúrgica da Igreja. Consequentemente, a reflexão teológica nunca pode ignorar a ordem sacramental instituída pelo próprio Cristo e, por outro lado, a ação litúrgica nunca pode ser considerada de forma genérica, deixando de lado o mistério da fé (Sacramentum caritatis, n. 34).

Inegavelmente, a teologia sacramentária e a teologia litúrgica se aproximaram, nas últimas décadas, tendo como “locus” comum a atenção ao rito, colocando a questão do símbolo no seu contexto próprio: a ação ritual. Portanto, a perspectiva lógica para refletir sobre a questão do símbolo em chave hermenêutica para a compreensão dos sacramentos se torna a ação ritual. Com certeza, a CLS considera que um dos frutos mais significativos do Movimento Litúrgico foi perceber que o rito é a forma na qual o sacramento acontece. Aqui se dá o “locus” do encontro com o Senhor, da profissão de fé, da sinergia, da visibilidade, da invisibilidade e a fonte da teologia como momento de investigação racional da fé à luz do que hodiernamente é denominado da nova fronteira da “questão litúrgica”, segundo a contribuição de Grillo na sua “liturgia fundamental: introdução à teologia da ação ritual” (2022a).

Por consequência, o conceito de forma entra na teologia contemporânea como uma categoria nova, inaugurando, no sentido moderno da palavra, a compreensão da CL e do processo de reforma litúrgica implementado ao longo do século XX, como afirma J. Ratzinger (2019). Tal conceito é capaz de estabelecer conexões com áreas diversas que formam o todo da reflexão litúrgica e sacramental.

Desse modo, a reflexão da CLS contemporânea, paulatinamente, está superando categorias não apropriadas na definição e compreensão da ação litúrgico-sacramental da Igreja e, ao mesmo tempo, colocando à prova as categorias (rito, forma, linguagens, mistagogia) em vista de uma reelaboração do saber unitário e com uma sólida aliança entra uma sacramentaria que descobre o gênero ritual e os novos ordines litúrgicos.

2 Modelos paradigmáticos da Ciência litúrgica e sacramental (MEDEIROS, 2014, p. 145-168)

Podemos colher, a partir de algumas propostas de modelos ou paradigmas contextualizados, o horizonte dos estudos sobre a CLS nas últimas décadas. Por isso mesmo, propomo-nos percorrer a evolução do tema em estudo no contexto alemão, francófono, espanhol, anglófono e brasileiro.

2.1 Contexto alemão

Foi muito significativa, para o estudo sobre a CLS, a contribuição de Guardini (1921) sobre o método sistemático da ciência litúrgica. De fato, ele entrevê a liturgia consonante e integrada à teologia, visto que aquela está relacionada à vida sobrenatural, ela torna-se competente através da ação do Espírito Santo e é orientada pelo Magistério. Além do mais, o aspecto teológico da liturgia deve ser sempre presente em qualquer tipo de estudo sistemático que se realize. Para Guardini, a liturgia enquanto teologia possui um método próprio que a diferencia não somente das outras ciências, como também dentro do âmbito teológico, e não pode nem sequer ser considerada como parte da teologia pastoral que se elabora e se desenvolve a partir da práxis e que entra num estudo sistemático da liturgia. Podemos dizer que, para Guardini, a liturgia é teologia e por isso que essa perspectiva de ver e conhecer colhe o conteúdo da fé na manifestação cultual da vida da Igreja.

Outrossim, Casel (1941) afirma que a obra da salvação de Cristo Jesus, presente na celebração litúrgica, não é somente um dogma para ser acreditado, mas é “atuação da fé” segundo uma determinada forma simbolicamente sacramental, ou seja, faz-se teologia no sentido próprio quando se procura aprofundar o conhecimento dessa obra de salvação através do símbolo ritual. Não é um conhecimento abstrato, mas o aprofundamento daquela “realidade salvífica” presente no momento litúrgico, isto é, como salvação em perspectiva simbólico-ritual.  Assim sendo, para Casel existe a teologia litúrgica somente quando o dado da fé assume a dimensão de concreta comunicação do mistério de Cristo à Igreja, quando há o diálogo sobre “Deus a partir de Deus”.

A teologia litúrgico-sacramental, em âmbito alemão, buscou também o contato com as ciências humanas, impostando melhor o seu discurso, à procura de uma categorização mais científica. Avaliando a ciência litúrgica, vinte anos depois do Concílio Vaticano II, Häussling (1982) analisa as vicissitudes pelas quais ela passou, principalmente em confronto com as ciências humanas, com o ateísmo, com a realidade ecumênica e com os desafios das liturgias juvenis. Além disso, Gärtner e Merz (1984) procuram emitir os princípios para um método integrativo da CL, partindo dos paradigmas tradicionais, mas dialogando com as ciências humanas, valorizando o aspecto da experiência, em vista de um método empírico-crítico da CL. Por sua vez, Stenzel aprofunda o tema em referência, discorrendo sobre a liturgia como lugar teológico.

Por outro lado, Häussling (1982) constata que a liturgia tem necessidade de diálogo com as outras disciplinas teológicas, como a dogmática, a exegese e a teologia moral. Para ele, outra causa para a falta de consideração da liturgia, em campo teológico, é uma falsa ideia daquilo que seja liturgia, agora reformada e compreensível. Ademais, Lehmann (1980) escreve sobre a celebração enquanto expressão da fé e considera que os “loci theologici” são o resultado de uma metodologia escolástica, e que a ciência teológica, com o passar dos anos, perdeu a sua ligação com a liturgia da Igreja. Lehmann alinha-se na posição daqueles teólogos que veem tal colaboração estreitamente ligada à teologia prática homilética, teologia pastoral, pedagogia religiosa e catequética, e em relação à teologia dos sacramentos, principalmente em relação à perspectiva dogmática e à teologia moral, ao direito dos Sacramentos e ao ecumenismo. Já Vorgrimler (1992) defende a liturgia como argumento da dogmática. E interroga-se sobre algumas questões referentes à liturgia com o intento de envidar esforços para uma maior cooperação entre liturgia e dogmática.

A teoria sobre os sacramentos, na Alemanha, ganhou terreno nos anos setenta do século passado, conforme Seils (1994), a tal ponto ser forma de uso corrente. Nesse sentido, a sacramentaria encontrou uma nova inspiração e conheceu uma profunda mudança, e isto parecia justificado pela nova atenção ampliada da compreensão da sacramentalidade. Tais transformações podem ser reconduzidas substancialmente à teologia “Igreja-sacramento” que marcou o ocaso da metodologia manualística, incapaz de mostrar a convivência dos sinais eficazes da graça ao mistério da redenção. Na leitura de Bozzolo (1999), as correntes que se tornaram mais significativas na ótica de um aprofundamento da identidade simbólica iam em três direções: o sacramento como símbolo na perspectiva antropológica de abertura ao sentido da existência (Ratzinger (1966) e Kasper (1969); o sacramento como “práxis da esperança”, isto é, como símbolo nas dinâmicas sociais e culturais (Schupp (1974), Schaeffler (1991), Schneider (1979) e Vorgrimler (1992)); o sacramento como símbolo comunicativo na vida da Igreja (Hünermann (1982) (Ganoczy (1984) e Lies (1990).

Segundo Gerhards (2002), as pesquisas recentes postulam cada vez mais a questão do método, levando em conta os desafios à ciência litúrgica advindos do próprio contexto cultural e eclesial hodiernos e que envolvem a comunidade eclesial na sua compreensão e participação litúrgicas, a questão ecumênica, a questão histórico-genético-ritual da liturgia, a questão da ritualidade, da própria liturgia teológica ou da teologia da liturgia, da pastoral litúrgica e das ciências humanas. Assim sendo, no contexto alemão, não há uma única ciência litúrgica, mas diversas tendências com a pesquisa na área da filologia-histórica, da teologia sistemática ou da antropologia e da dimensão prática.

Uma observação que se pode salientar, nesse contexto, é o fato da ausência de uma literatura sobre o rito. Tal ausência pode ser considerada talvez pela menor incidência do debate litúrgico, talvez pelo fato de se terem dedicado ao símbolo, que tem parentesco com o rito. Certamente tal reflexão teria oferecido elementos significativos e uma reorientação da sacramentalização ocorrida em ambiente alemão.

2.2 Contexto francófono

Na França, a teologia pós-conciliar foi marcada por um diálogo intenso com a teologia alemã. Todavia, registra também sua marca original, qual seja a profunda renovação patrística e litúrgica, um fecundíssimo diálogo ecumênico, quer com os fiéis da Reforma quer com os ortodoxos. A preocupação teológica francesa, mais propriamente, voltou-se para as questões cristológicas, da teologia da redenção e do próprio projeto teológico destinado a entabular as questões emergentes com a cultura moderna e da pós-modernidade.

Segundo Winling (1989), a teologia católica francesa tem um perfil que a distingue das de outras áreas. A França caracterizou-se como centro de pesquisa e ensino para as congregações religiosas, o diálogo com pensadores representantes de várias correntes e o repensamento de uma espiritualidade adulta para os leigos da Ação Católica. É digno de se sublinhar o diálogo com a filosofia que, contudo, não se deve entender como serviço desta em relação à elaboração de uma teologia sistemática, mas como fermentação da teologia a partir de numerosos temas e problemáticas típicas da filosofia francesa que produz “la théologie herméneutique, la théologie de l’alterité de Dieu, la théologie pratique”, em autores como Duquoc, Chauvet, Moingt que, influenciados pelo pensamento de Lévinas (1961), falam de Deus, não em termos ontológicos, mas em termos de “alteridade”, tendo presente a estreita ligação que subsiste entre teologia trinitária e a teologia da cruz.

Em campo especificamente teológico-litúrgico, temos o surgimento do Institut Supérieur de Liturgie, em outubro de 1956, sendo o seu primeiro Diretor, padre B. Botte e, encarregado dos estudos, padre J.-M Gy. Podemos dizer que o Institut viveu intensamente duas nítidas fases: de 1956-1968 e, depois, de 1968 até hoje. A primeira, caracterizada por um método mais histórico-positivo; a segunda, marcada pelo colóquio organizado pelo Centre National de Pastorale liturgique, realizado em Lovaina, em junho de 1967, com o tema Liturgie et sciences humaines, que foi o marco decisivo para esse segundo momento de existência do Institut. A partir daí, as novas ciências como sociologia, psicologia e semiologia tornaram-se indispensáveis para o estudo da liturgia.

Neste clima de diálogo entre ciências humanas e liturgia é que encontramos Chauvet, desde 1972 na docência no Institut Supérieur de Liturgie, bem como em outros centros de estudos parisienses. A interrogação mais profunda não é mais: como celebrar os sacramentos? Mas para que existem os sacramentos? Podemos dizer que tanto Chauvet, como vários outros estudiosos, tais como Gy, Didier, Bouyer, Dye, Hameline, Vergote, Dalmais, Lukken, contribuíram para a renovação da liturgia e da teologia sacramental em diálogo com as ciências humanas.

Do ponto de vista da teologia sacramentária, pode-se considerar três etapas significativas: na primeira etapa, nos anos 1960, nasceria a pesquisa entre sacramentária e antropologia ao redor da revista La Maison-Dieu, através de uma integração ao debate litúrgico dos resultados das ciências humanas, principalmente a sociologia da assembleia, a antropologia do símbolo e do rito, a semiótica, a história e a psicanálise. Na segunda etapa, nos anos 1970, apareceram vários esforços de síntese, sobretudo os trabalhos de Vergote, Didier – esse último teve o mérito de assumir o ponto de vista decisivamente antropológico, considerando o sacramento sobre a base da ritualidade e do símbolo. E por último, a contribuição de Chauvet (1979), que estuda a liturgia a partir da dimensão antropológica do símbolo. Por considerar que a teologia clássica da eficácia dos sacramentos não é mais relevante para o homem de hoje, ele se propõe a encarar sua realidade numa perspectiva simbólica, criando assim as condições para uma nova compreensão da teologia sacramental.

A proposta de Chauvet aceita plenamente a contribuição das ciências humanas: do uso da filosofia da linguagem à inversão da relação entre sujeito e objeto, o que revoluciona completamente as concepções antropológicas anteriores. Refere-se a toda a problemática da relação entre o homem/mulher e a realidade: seja qual for o modo de encarar a questão, as coisas são significativas na medida em que entram em comunicação com a própria condição existencial e a colocam diretamente em questão. Se a vida é um problema para o fiel, se nada é simples para ele, isso acontece porque nada é imediato: o reino do homem/mulher é o da mediação. A reflexão teológica, que tem os sacramentos como objeto de estudo, não deve mais considerá-los como objetos-intermediários, que atuariam como ponte entre o sujeito crente e o Deus transcendente, mas como um ato de linguagem eclesial, em que a condição se realiza, da fé que aí se exprime.

A posição epistemológica de Chauvet, no que diz respeito à configuração do sacramental, encontra um terreno comum nos novos cenários epistêmicos de vários países europeus, mas, ao mesmo tempo, a novidade de sua abordagem também suscitou críticas. De um modo geral, na reflexão de Chauvet vemos, sem dúvida, um esforço para ir além da compreensão do extrinsicismo entre signum et res do ponto de vista do simbólico e na superação do que poderia parecer coisificador ou mágico em benefício de uma compreensão real da relação sacramento-celebração, onde o crente tem um lugar indispensável, como elemento constitutivo, com a sua participação, superando a separação que pode existir entre experiência e ação celebrativa.

Recentemente, Belli com o resultado de sua pesquisa sobre o “Interesse da fenomenologia francesa para a teologia dos sacramentos” (2013) aprofunda a crise ontológica e epistemológica da teologia sacramentaria no século XX, apresenta uma reflexão hermenêutica analítica sobre a “Questão litúrgica”, a resposta dada pelo Movimento Litúrgico e com a contribuição da teologia sacramentaria. De modo que a “quaestio sacramentis” é profundamente repensada e exposta a novos questionamentos. O êxito de tal análise abre para a contribuição recente da fenomenologia francesa para o estudo sobre os sacramentos na ótica de três autores: J.-L. Marion, M. Henry e E. Falque. Sem dúvida, a pesquisa de Belli (2013) oferece uma contribuição na determinação metodológica interdisciplinar do trabalho de reflexão sobre o sacramento na mediação entre teologia e filosofia, litúrgico-sacramental.

2.3 Contexto espanhol

A respeito da relação entre liturgia e teologia neste contexto cultural, o primeiro estudo a ser elencado é de 1966, durante o II Congresso Litúrgico de Montserrat, no qual Vilanova (1966) profere uma conferência sobre os cinquenta anos da teologia da liturgia. Vilanova faz uma retrospectiva da teologia da liturgia, tomando em consideração, principalmente, a orientação dada nesse campo pelos pioneiros do Movimento Litúrgico, tais como: Festugière, Beauduin, Cabrol, Gomà, Brinktrine, Oppenheim, Cappuyns, Dalmais, Pinto, Parscher.

Na fase pós-conciliar, López Martín (1982) reflete sobre a relação entre liturgia e fé, em particular a liturgia como transmissora da fé, e estabelece campos nos quais delineia uma situação ainda não muito clara a respeito de tal relação. O primeiro é o da compreensão teológica da mesma liturgia, o segundo é o lugar da liturgia na estruturação da teologia e o terceiro é o da implicação mútua entre a liturgia e a catequese na ordem da pedagogia da fé. Além disso, Fernández (1985) esboça, de forma didática, a distinção entre o que é liturgia daquilo que é teologia litúrgica. O autor prossegue afirmando que os sacramentos, antes de serem reflexão, são ações litúrgicas. Com tal afirmação, Fernández abre a sua seção de sacramentologia fundamental na revista Phase e indica com clareza qual seria a orientação prevalente da pesquisa sacramental em âmbito espanhol. Na Espanha, segundo Bozzolo (1999), mais do que em outras áreas culturais, o contato entre a sacramentária sistemática e a disciplina litúrgica se fez tão estreito a tal ponto de não se ter mais condições quase de distinguir o específico das competências. Pode-se acrescentar que, entre os anos 1991-1995, apareceram ao menos cinco tratados de sacramentária fundamental.

O Instituto de Liturgia do Centro de Barcelona teve um papel importante no cenário da liturgia pós-conciliar e, portanto, na esfera CLS. É emblemática, nesse contexto, a colaboração de Borobio (1978), que, embora situando-se num horizonte rahneriano, assume, de fato, as teses decisivas numa perspectiva antropológica e ritual proposta pelos autores franceses. O seu programa encontra expressão não somente nas suas publicações pessoais, mas também na obra La celebración en la Iglesia. v. I (1985), coordenado por ele, e que tem como objetivo superar a tradicional separação entre liturgia e sacramento. O que surpreende, nessa obra, é o fato da pacífica convivência de modelos tão heterogêneos, ou seja, o antropológico com referência ao símbolo e o rito, considerando os sacramentos como expressão simbólica da salvação nas situações fundamentais da vida e aquele modelo dos discípulos de Rahner, que atribui a sacramentalidade a Cristo, à Igreja, ao homem/mulher e ao mundo para depois passar para uma sacramentalidade concentrada nos sete sacramentos. E o que prevalece não é um projeto sistemático entre a liturgia e os sacramentos, tomando em consideração o sacramento a partir da celebração, mas da teoria do sacramento de fundo rahneriano.

2.4 Contexto anglófono

A relação entre a teologia e a liturgia é aprofundada, seja em campo católico seja naquele evangélico. Todavia, a reflexão tem seguido e reagido ao que acontece, principalmente no continente europeu. Assim, não temos substancialmente uma proposta que saia dos parâmetros até agora apresentados.

Taft (1982) apresenta num artigo a síntese de sua conferência na University of Notre-Dame – USA sobre a Liturgy as Teology. O autor considera seja a não comum avaliação da liturgia como ciência teológica seja que a liturgia é um objeto de investigação teológica. Semelhantemente, Lacugna retoma a questão se a Liturgia pode se tornar uma fonte para a teologia. E Driscoll (1994), por outro lado, procura estabelecer uma nova relação entre liturgia e teologia fundamental. Ele considera que nessa relação existem caminhos de possíveis trabalhos em parte já estabelecidos, especialmente a partir da teologia litúrgica de Marsili (1974).

Igualmente, Irwin (1994) elabora uma proposta de teologia litúrgica e apresenta algumas observações sobre o método usado na teologia litúrgica contemporânea. Para ele, o método do ato litúrgico deveria ter articulação com a Palavra, o símbolo, a eucologia e a arte litúrgica. Ele discute a contribuição com a qual a teologia que deriva da liturgia pode realizar uma discussão contemporânea sobre a natureza da teologia. A proposta de Irwin constitui o aprofundamento, em vista da compreensão global da liturgia, a partir de uma liturgia primeira e uma liturgia segunda, ou seja, uma componente, sempre teológico-litúrgica, que nasce da relação das duas acima relacionadas, e que ele chama de teologia terceira, isto é, uma teologia que diga respeito à vida, à espiritualidade, à moral, em relação aos mistérios de Deus e do Evangelho, mas experienciados e celebrados na liturgia. Esta terceira liturgia está em relação intrínseca com a “lex orandi, lex credendi” e traz uma perspectiva doxológica.

Em síntese, podemos aceitar a ponto de vista de O’Connell (1965), que considera que a pesquisa americana pós-conciliar foi caracterizada, por um lado, pela discussão conciliar e a recepção da Sacrosanctum concilium, e por outro lado, pela tradução das obras de Rahner e Schillebeeckx. Na América do Norte, sobretudo, o ponto de partida para repensar a nova sacramentária foi o abandono da síntese clássica do De sacramentis in genere e a introdução da perspectiva personalista e existencialista, centrada na noção de Cristo-sacramento e de Igreja-sacramento. Todavia nos anos 1980-1990 houve um excesso de novos dados, segundo Levesque (1995), impossibilitando desse modo uma síntese a tal ponto de Hellwig (1978) afirmar que a teologia sacramentária, em sentido estrito, tenha desaparecido. Na análise de Bozzolo (1999), inclusive, se detecta uma literatura difusa sobre o conceito do símbolo, assumido como conceito idôneo para a interpretação da realidade sacramental. Todavia, em relação à pesquisa teórica, parece prevalecer a intenção prático-pastoral e a escolha de uma “divulgação teológica” dos conceitos que veiculavam na Europa.

2.5 Contexto brasileiro

A reflexão litúrgica pós-conciliar no Brasil é nitidamente marcada pelas seguintes características: dependência da teologia europeia, nas suas vertentes, mas principalmente a centro-europeia; profundamente marcada pela situação sociocultural em que vive o povo latino-americano; orientada pastoralmente pelas conferências episcopais do continente, de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida; por um grande número de jovens igrejas; pelos desafios das minorias étnicas, de modo particular, negros e indígenas; uma teologia voltada para os desafios pastorais, mais do que envolvida com a fundamentação teórica universitária, não obstante a pesquisa constante e crescente no contexto latino-americano, uma teologia que vive do momento, da criatividade, ansiosa para responder aos desafios urgentes das comunidades e da inculturação litúrgico-sacramental.

Do ponto de vista teológico-litúrgico, muito se deve à criação do Centro de Liturgia, em São Paulo, em 1987 (Adão, 2008). Através dele, constituiu-se posteriormente a Associação de Professores de Liturgia do Brasil, em 1987. Daí partiu, mas não somente, uma reflexão litúrgica marcadamente pastoral, com grande espírito de animação e de criatividade em todos os campos da pastoral litúrgica.

Indubitavelmente, do ponto de vista do aprofundamento da CL, o trabalho de Ione Buyst é deveras significativo. De fato, a atividade litúrgico-pastoral de Buyst teve como meta principal a participação do povo na preparação e na celebração de uma liturgia popular, orante, e que fosse expressão de uma fé engajada na transformação do continente latino-americano, bem como na busca ecumênica da paz mundial, na busca de uma pedagogia ativa, que envolvesse a participação dos envolvidos e com uma metodologia científica que partisse da realidade litúrgica e articulasse teoria e prática, teologia e pastoral.

Além disso, ela procurou responder a dois motivos fundamentais: primeiro, a peculiaridade das liturgias celebradas, que formam o objeto real da CL e que são uma expressão da peculiaridade da Igreja neste continente – a mudança no objeto real exige novos métodos de abordagem e de análise. De fato, a liturgia como “cume e fonte” de toda a vida eclesial (SC n.10) acompanha as mudanças que ocorrem no modo de ser ou de conceber a Igreja neste continente. Buyst (1989) escreve que a Igreja latino-americana é a que se expressou e tentou definir a si mesma e a sua missão através das assembleias da conferência episcopal latino-americana, que marcaram profundamente a vida eclesial pós-conciliar nesse continente. Para o autor, o modelo eclesial latino-americano é caracterizado pela perspectiva de que a Igreja nasce das bases populares, suscitada pela força do Espírito Santo. A irrupção dos pobres na Igreja, o vertiginoso crescimento do número de comunidades eclesiais, seu dinamismo e vitalidade são considerados obra do Espírito Santo e não apenas do esforço evangelizador da Igreja-instituição por ordem de Cristo, ou seja, a eclesiologia da libertação não se baseia somente na cristologia, mas principalmente numa pneumatologia (Buyst, 1989).

Dessa nova prática litúrgica, emergente na Igreja dos pobres e veiculada na evangelização, na catequese e na pregação, foi surgindo uma nova teologia litúrgica, que deverá ser retomada, avaliada e fundamentada ou rejeitada por uma teologia litúrgica elaborada cientificamente a partir desta teologia primeira vivida nas comunidades. Alguns tópicos já começam a despontar: o sujeito privilegiado, convocado por Deus para a assembleia litúrgica, é o povo pobre e oprimido, reunido em comunidades; o mesmo povo é também o primeiro destinatário da Boa-nova, o evangelho anunciado na liturgia; o grito e o lamento do povo, expressos na oração dos fiéis, têm força junto a Deus, que ouve o seu clamor e desce para fazer justiça e libertar; a liturgia é a ação comunitária: toda a comunidade é povo sacerdotal, participante do sacerdócio de Jesus Cristo; o Cristo, que está presente na assembleia litúrgica, é o Cristo que se identifica com os pobres; tem compaixão do povo, para ver e ouvir seus problemas, hoje como ontem.

A publicação do Manual de Liturgia promovido pelo CELAM, A celebração do mistério pascal (2004-2007), em quatro volumes, manifesta o grau de amadurecimento teológico-litúrgico-sacramental no continente e é elaborado a partir da dimensão celebrativa do mistério pascal de Cristo, enriquecido pelo mosaico de culturas, etnias e tradições religiosas presentes na América Latina e Caribe, além de considerar a expressão simbólica do corpo, a dança e a dramatização na liturgia. Tal obra, pioneira neste âmbito, postula ainda um maior aprofundamento dos temas abordados numa ótica antropológica, no sentido de uma educação ao rito e por meio do rito e a partir não somente dos atos verbais, mas também não verbais, qual forma mistagógica para uma contribuição ao intellectus ritus.

Nesse sentido, Taborda enriquece o debate teológico-litúrgico brasileiro com a reflexão sobre uma “abordagem mistagógica dos sacramentos” (2004). Tal consideração é motivada pela necessidade postulada também pela cultura da pós-modernidade, da atenção ao progredir da celebração à teologia, o que leva a reconhecer a liturgia como lugar teológico. Em si, o caminho não é novo, tendo sido trilhado por muitos, a começar pelos Padres da Igreja. No entanto, o que nos apraz sublinhar é o fato de que o teólogo jesuíta trabalha a liturgia como lugar da expressão da fé, em que a revelação se torna acessível a nós. A fonte da teologia é a fé da Igreja, não só a explicitada em dogmas e outras verbalizações, mas também a fé vivida concretamente em ações, obras, símbolos, ritos. Essas expressões de fé ou lugares teológicos constituem a teologia primeira, a teologia no frescor de sua expressão mais legítima e viva. Nela se fundem e se unem intrinsecamente a teologia e a vida. O que os teólogos e o magistério fazem é teologia segunda. Tais condições levam o autor a trabalhar a questão sacramental do batismo e da eucaristia numa abordagem mistagógica, como resposta a desafios hodiernos (Taborda, 2004).

2.6 Contexto italiano

As contribuições significativas na área italiana retomam a riqueza do Movimento Litúrgico como também a renovação teológico-litúrgica desencadeada pelo Concílio Vaticano II. Dentre os nomes, podemos citar nas últimas quatro décadas: de Cipriano Vagaggini a Zeno Carra, de Salvador Marsili a Ubaldo Cortoni, de Pelagio Visentin a Pierpaolo Caspani, de Emanuel Caronti a Manuel Belli, de A. M. Triacca a Elena Massimi, de Aldo Terrin a Giorgio Bonaccorso, de Silvano Maggiani a Loris Della Pietra, de Roberto Tagliaferri a Andrea Grillo.

O contexto italiano é, sem dúvida, privilegiado, no sentido que contou com muitos e bons liturgistas pioneiros do Movimento Litúrgico. Encontrou no Centro di Azione Liturgica o instrumento importante para a difusão da reforma litúrgica em contexto de pastoral litúrgica. Outrossim, o próprio Pontifício Instituto de Liturgia de Santo Anselmo, inaugurado em Roma, em 1961, com a finalidade de formar no empenho da CL, foi um parceiro competente e audacioso, oferecendo novos horizontes a serem percorridos. Outra referência significativa foi a criação da Associazione di Professori di Liturgia, que através de seus temas de estudos tem procurado responder aos desafios da liturgia em chave pastoral e teológica. E mais recentemente, a criação do Instituto de Pastoral Litúrgica de Santa Justina, em Pádua, que se dedica ao estudo da pastoral, com uma atenção significativa na vertente antropológica, tem qualificado qualitativamente o debate litúrgico-sacramental.

A contribuição de vários mestres marca a consistência da reflexão teológica nesse contexto. Vagaggini (41965) e Marsili (1971), que aprofundam o lugar da liturgia na estruturação dos estudos teológicos e como locus theologicus. Visentin (1971), que afirma que nem sempre a própria liturgia soube tirar proveito de seu status de locus theologicus e reivindica que hoje não se pode fazer ciência teológica como um compartimento fechado, algo só para especialistas em ambiente somente intraeclesial. Ele fala também de uma dimensão litúrgica da teologia dogmática. Analogamente, a contribuição de Triacca (1986) é caracterizada por aquela preocupação de colher a realidade integral salvífica: mysterium-actio-vita. De fato, Triacca passa através da compreensão da dimensão diaconal da teologia, numa linha de redescoberta da função do próprio ato litúrgico.

Tagliaferri (1996), por outro lado, centra a sua pesquisa como fenomenologia do rito cristão, o pesquisador relê a Sacrosanctum Concilium e constata que o objeto da ciência litúrgica é o rito. Se dedica à formulação de uma proposta denominada por ele como “progetto di una scienza liturgica, na qual ele procura fundar o seu trabalho, considerando que o objeto da CL, indagado no seu aspecto de mediação, pareça, portanto, ser o rito, que se inscreve no fundamental dinamismo sacramental de Cristo e da Igreja, mas que mantém uma própria configuração antropológico-cultural. Podemos destacar, na pesquisa de CLS em Tagliaferri, que a liturgia é um rito cristão, mantendo sua própria originalidade. Esse rito deve trazer as marcas de todos os outros ritos, ou seja, deve ser simbólico e lúdico, se quiser permanecer na esfera ritual, e ter a possibilidade de transgredir o primeiro sentido; o rito, como tal, não perturba em nada o encontro com Cristo; pelo contrário, exprime as suas infinitas riquezas, precisamente pelo seu incontornável envolvimento antropológico; no final, revela-se a possibilidade mais autêntica oferecida ao homem para entrar no mistério.

Por outro lado, Bonaccorso (1996) realiza sua abordagem epistemológica litúrgica referente ao tempo, à linguagem e à ação ritual, em que a liturgia é considerada em sua estrutura expressiva e comunicativa, segundo a dimensão sacramentalmente unida ao conceito de sinal. Esse autor está, portanto, atento ao universo da linguagem semiótica.

Porém, é Grillo (1995) quem lança luz sobre o fato de que o ritus sempre foi necessário para a fides – enquanto o intellectus fidei se desenvolveu desde o início na reflexão da Igreja, o intellectus ritus se manifesta como um novo tipo de discurso, que pela teologia hodierna ainda é visto com desconfiança e temor, pois só fez emergir suas exigências no século passado e se impôs à atenção e à prática eclesial nos últimos cinquenta anos. Na esfera eclesial, houve uma verdadeira marginalização do rito, mesmo com atitudes de pressuposição, afastamento e reintegração. A necessidade de reintegrar o rito no fundamento da fé visa reconstruir, pelo menos teoricamente, a experiência global da fé em todos os seus pressupostos, que necessariamente, embora nunca exclusivamente, incluem também experiências rituais específicas.

Mais recentemente, Della Pietra (2012) examinou a questão do rituum forma litúrgico como fonte da vida cristã e destacou a possibilidade de reflexão para a implementação de uma verdadeira “reforma”. De fato, no percurso histórico da reflexão teológica e da prática celebrativa, a mudança no conceito de forma inovou radicalmente a compreensão do sacramento e sua eficácia estruturalmente ligada ao seu aspecto ritual: essa nova percepção, que reabilita significativamente o rituum forma, não pode mais ser negligenciada ou levada ao esquecimento pela teologia dos sacramentos, pela experiência espiritual, pela pastoral ordinária e extraordinária e pela relação mútua entre as disciplinas teológicas.

Tal enquadramento conceitual foi empregado também nas pesquisas seja de Paranhos (2017) seja de Buziani (2021), resultando o reconhecimento da correlação intrínseca entre teologia sacramental, liturgia e ciências humanas. Sem uma renovação corajosa da CLS, a reforma litúrgica perde seu significado e se fecha sobre si mesma, deixando espaço às nostalgias e às improvisações, conforme sublinha de forma inequívoca na sua reflexão sobre a forma celebrativa e a forma teológica.

Em sua recente publicação, Eucaristia, azione rituale, forme storiche e essenza sistematica, Grillo (2019) propõe um Manual no qual coloca a atenção na ação ritual originária, através da interpretação sistemática do significado e do desenvolvimento histórico, paralelo e enraizado, entre as ações e as suas interpretações. Tal cruzamento de níveis permite restituir hoje, de modo coerente, uma inteligência da fé implicada e alimentada pelo fenômeno eucarístico. Ela reconhece a realidade da inteligência ritual da fé de que a eucaristia é fonte, precisamente operando per ritus et preces. Nesse sentido, a proposta do Manual de Grillo (2019) faz um salto qualitativo passando de uma rígida separação entre o significado teológico e cerimonial do rito, em âmbito eucarístico, a uma construção de uma teologia do rito e à descoberta da ação ritual, restituindo, desse modo, o valor de forma do sacramento.

3 Perspectivas de uma nova relação (MEDEIROS, 2019, p. 598-603)

As abordagens atuais e abertas para uma nova relação entre liturgia e teologia sacramental, entre ação ritual e sentido da fé, entre liturgia e vida da Igreja, entre a fenomenologia e a liturgia marcam, sem dúvida, um cenário de mudança paradigmática, ou seja, a passagem epistemológica de uma perspectiva teológico-litúrgica-sacramental em geral signi et causae para uma nova abordagem em geral symboli et ritus, como convergência iniciada pelo Movimento Litúrgico, aprofundado pela Sacrosanctum Concilium e que vem amadurecendo nas últimas duas décadas em relação à CLS.

A releitura recente sobre a relação entre liturgia e rito nos levou a tomar consciência da questão do pressuposto do rito pela teologia clássica, de um afastamento do rito pela teologia moderna e de uma reintegração do rito por parte da teologia contemporânea para a recuperação do pressuposto imediato no que diz respeito à mediação teológica.

Com efeito, deve-se admitir que entre o gênero do ritus e o gênero do signi não há uma alternativa substancial autêntica, mas apenas uma diferença conceitual: essa diferença, porém, constitui uma passagem obrigatória e nada opcional ou acessória para a teologia contemporânea. Portanto, se um dos novos aspectos da compreensão dos sacramentos é a possibilidade de compreendê-los no rito, é necessário esclarecer melhor quais consequências essa difícil evolução pode ter para a teologia.

Certamente, a nova prática ritual inaugurada pela reforma litúrgica, fundada por uma nova teologia sistemática sacramental, ao mesmo tempo é o princípio de uma nova elaboração sistemática, com o entrelaçamento entre teoria e práxis, iluminado pela consciência da “revolução linguística” que nos permite aprofundar o valor último da sistematização da participação ativa.

A mudança paradigmática que essa transformação trouxe para a sensibilidade teológica contemporânea, que ainda não integramos no nosso pensar litúrgico-sacramental, levou, no entanto, à passagem para a nova consideração do sacramento na esfera do rito, como forma de reapropriação da teologia por um dos pressupostos da experiência cristã do Deus de Jesus Cristo, e não mais a abordagem de CLS tradicional, que colocava o sacramento somente na esfera do sinal-significado. O limite dessa tradição era a compreensão do sacramento de que o “rito podia ser decodificado e transcrito em uma linguagem discursiva, o que permite sua compreensão mais facilmente” (GRILLO, 2022b). Portanto, se um dos novos aspectos da compreensão dos sacramentos é a possibilidade de recompreendê-los na esfera do rito, é justamente porque os sacramentos não são sinais a serem lidos, mas ações a serem realizadas, e cabe precisamente à teologia fazer do momento ritual uma interação decisiva da relação entre Deus e a humanidade, entre graça e história, entre misericórdia e prática ética, entre revelação e fé.

Conclusão

Podemos dizer que, dentre as diversas abordagens de CLS consideradas acima, certamente para o contexto latino-americano, se tornam significativas e estimulam as pesquisas os enfoques entrevistos pelas obras de: Maggiani (2002), na sua proposta de leitura de um Ordo litúrgico a partir de uma leitura linear, da análise performativa e da análise simbólico-funcional através das quais o texto litúrgico não existe somente enquanto “texto”, mas é um texto caracterizado para “a ação”, isto é, o texto escrito é para ser traduzido “em ação”. O Manual de Liturgia, v. II: A celebração do Mistério Pascal, do CELAM (2007), com vários colaboradores, valoriza a forma ritual do sacramento e a proposta de Buyst (1989) com o seu itinerário de como estudar liturgia. Taborda (2004), a partir da celebração à teologia dos sacramentos com uma abordagem mistagógica, responde aos desafios pós-modernos sem a eles submeter-se, mas trabalha com a grande narrativa da história da salvação, da valorização do sagrado, da tradição eclesial e para o encontro com o mistério nos sinais sacramentais. Grillo na sua proposta recente de um Manual sobre Eucaristia, a partir da ação ritual (2019), inaugura um novo período objetivando um cenário unitário entre ação litúrgica e sacramental.

O itinerário percorrido, de modo diacrônico e sincrônico, nos fez tocar a provisoriedade do método. A liturgia e os sacramentos são meios. Não fim. Desse modo, a CLS se orienta para uma meta enquanto os sacramentos vivem da/na fonte, como os peixes no rio, que é a própria celebração. E a celebração será sempre meio, através da qual os fiéis celebram, vivem e pensam essencialmente os mistérios de salvação de Cristo na actuosa participatio.

Damásio Medeiros – Unisal-Pio XI, São Paulo. Texto recebido em 20/05/2022; aprovado em 25/09/2022; postado em 30/12/2022. Texto original em português.

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