Sumário
1 Instituição dos sacramentos por Cristo
2 A hierarquia dos sacramentos
3 O número dos sacramentos
4 A eficácia dos sacramentos
5 Referências bibliográficas
Durante séculos a Igreja celebrou e refletiu sobre o que hoje chamamos de “sete sacramentos”, sem reuni-los numa lista à parte e pensá-los sistematicamente. A partir do séc. XII, aproximadamente, a teologia listou-os e procurou estabelecer certos traços comuns aos sete. Desde então determinados conceitos se tornaram temas obrigatórios na abordagem genérica dos sacramentos, tais como a afirmação de que os sete sacramentos foram instituídos por Cristo e de que sua eficácia se exerce ex opere operato, que alguns imprimem caráter e que não todos tem a mesma importância. Há, entre eles, uma hierarquia em que sobressaem, como “sacramentos maiores”, a eucaristia e o batismo.
Essas questões, devidamente sistematizadas, passaram ao patrimônio da fé na Igreja latina e foram assim apresentadas já no Concílio de Florença (1439), em vista da união com as Igrejas Orientais. Será, porém, no Concílio de Trento, contra as negações dos Reformadores, que os princípios da teologia dos sacramentos em geral tomarão forma, com concisão e exatidão escolástica, tornando-se, na teologia posterior a esse Concílio, como que a espinha dorsal do tratado De Sacramentis in genere.
Dentre os temas desse tratado, escolhemos quatro que parecem centrais e merecem que se procure seu sentido perene. (Veja-se, sobre o caráter, o verbete “A eclesialidade dos sacramentos. 3 Os sacramentos irrepetíveis como constituintes da Igreja”).
1 Instituição dos sacramentos por Cristo (TABORDA, 1998, p.115-24)
O Concílio de Trento afirmou como característica fundamental dos sete sacramentos sua instituição por Cristo (cf. DH 1601). O ponto central dessa afirmação dogmática consiste em professar a origem dos sacramentos na iniciativa divina e não na invenção humana. Cristo é a origem dos sacramentos, que estão todos nele fundamentados e enraizados.
A exegese moderna não permite que se entenda por “instituição” um suposto ato jurídico de Jesus, determinando que haja tal sacramento e seja administrado de tal ou tal forma. Nesse sentido, será vão procurar no Novo Testamento textos que demonstrem a instituição de cada um dos sacramentos. Mesmo para os sacramentos claramente atestados pela Escritura subsiste o problema. O “fazei isto em memória de mim” talvez não se possa considerar ipsissima verba Jesu. O mandato do batismo é feito pelo Senhor Ressuscitado e não pelo Jesus terrestre e está numa perícope que é composição de Mateus.
Já muito antes de a exegese moderna ter surgido e adquirido foro de cidadania na Igreja católica, era conhecido o problema, pelo menos com relação a alguns sacramentos. Tendo-o em vista, discutia-se se a instituição fora mediata (por meio de outros) ou imediata (diretamente por Cristo). Mas disputava-se também se ela fora específica (indicando em linhas gerais matéria e forma de cada sacramento – cf. hilemorfismo sacramental) ou genérica (determinando a graça de cada um, mas não os elementos físicos/visíveis que o constituiriam), direta (ordenando que se fizesse assim) ou indireta (deixando entender determinada prática sacramental). O Concílio de Trento tinha consciência dessa discussão, mas não quis dirimir a questão, seguindo o princípio que se impusera de não intervir nas disputas entre as escolas teológicas católicas. Apenas afirma, contra os Reformadores, a instituição por Cristo.
A própria evolução histórica dos gestos sacramentais – em parte conhecida pelos Padres de Trento – não permitia reconduzir a uma determinação de Jesus cada um dos sacramentos em sua feição histórica concreta. Bastava percorrer as modificações havidas nos ritos essenciais de cada sacramento para se perceber o problema.
Levando em consideração essa evolução indiscutível, é preciso pôr o problema da instituição dos sacramentos num contexto mais amplo. As formas de expressão do sacramento são secundárias (não no sentido de serem menos importantes, mas no sentido de serem decorrentes da graça significada pelos gestos). Assumem-se, pois, gestos que no contexto cultural em que se formou o cristianismo são significativos do aspecto do mistério de Cristo que deve ser significado e celebrado por eles. O sacramento enquanto forma de expressão (isto é, enquanto gesto; o sacramentum tantum da Escolástica) pode já existir antes. Logicamente anterior ao sacramento como expressão e mais básico do que ele, é o acontecimento que ele expressa e realiza: a participação no mistério de Cristo. Em outras palavras: Deus, enquanto por Cristo no Espírito Santo reúne a Igreja e a convoca e provoca pelo memorial do mistério de Cristo, é o autor dos sacramentos.
O problema da instituição dos sacramentos só pode ser resolvido satisfatoriamente, se se considera que Cristo instituiu primeiramente um caminho de vida e consequentemente seu seguimento. No contexto desse caminho, pela necessidade antropológica de expressar através de ritos o fundamento da vida cristã, adquirem sentido os sacramentos. Instituindo um caminho de vida, convidando ao seguimento, Cristo institui os sacramentos. Assim Deus, Cristo, o Espírito Santo, a Igreja – cada qual a seu modo, na medida e forma de sua participação no plano salvífico – são autores dos sacramentos: Deus como fonte última da salvação, Jesus como o mediador único, o Espírito Santo como quem presentifica Cristo através dos séculos, a Igreja como corpo do Senhor Ressuscitado (cf. verbete “A eclesialidade dos sacramentos: 1 A Igreja faz os sacramentos”).
Essa explicação não contraria o Concílio de Trento (cf. DH 1601), porque não se deve nem se pode reduzir a instituição a um ato jurídico-formal realizado no passado e tampouco o texto conciliar o exige. Pelo contrário, a interpretação mística dos Padres da Igreja, segundo os quais os sacramentos têm sua origem no acontecimento da cruz, o que é expresso pelo sangue e pela água jorrados do costado de Cristo, é bem mais fundamental que a discussão em moldes jurídicos dos teólogos medievais.
A instituição dos sacramentos, como a da Igreja, é algo constante, permanente, expressão do “estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). De fato, em geral a palavra “instituição” sugere um ato realizado num determinado momento do passado. Mas então a Igreja – e com ela os sacramentos – estaria sujeita a desaparecer com o passar das gerações, pela vontade dos humanos, da mesma forma como deixa de existir com o tempo uma sociedade criada por seres humanos para cultuar a memória de algum personagem eminente. Passado o impacto da presença histórica daquela pessoa, a sociedade acaba por desfazer-se e morrer. Mas a Igreja não cai nessa categoria de associações, porque é sempre de novo constituída por Cristo Ressuscitado, presente a ela por seu Espírito. A Igreja não é mero acaso nem invenção humana: ela pertence ao próprio mistério da ressurreição de Cristo. Sem Igreja, isto é, sem a comunidade dos que creem no Ressuscitado, a ressurreição de Jesus não teria sido a manifestação definitiva e escatológica do Deus revelado (RAHNER; THÜSING, 1975, p.43-4). Por isso, a Igreja é o Corpo do Ressuscitado, vive da vida do Ressuscitado. Vale dizer: é criada constantemente pela presença e atuação de Cristo no Espírito Santo. Nesse sentido Cristo funda e institui a Igreja sempre de novo. Ela está enraizada em Cristo e, como para a árvore, não basta que um dia tenha tido raízes para poder ainda hoje viger, crescer e produzir frutos, assim também a Igreja. A raiz precisa estar presente e atuante para que a árvore viva. Semelhantemente também Cristo, porque permanece na Igreja, a institui – como raiz – sempre de novo e, com isso, institui constantemente os sacramentos pela ação do Espírito Santo.
À luz dessa instituição permanente dos sacramentos, entende-se melhor o axioma agostiniano: “Quer batize Pedro, quer batize Judas, é Cristo quem batiza” (AGOSTINHO, In Joannis Evangelium 6, 7: PL 35, 1428). Assim se compreende que o sacramento independe da dignidade e santidade do ministro (cf. DH 1612 e 1611), porque é o próprio Cristo que atua nele. Essa presença dinâmica de Cristo nos sacramentos se enquadra no contexto geral da presença do Senhor Ressuscitado em sua Igreja (cf. SC 7; PAULO VI, 1965). Porque os sacramentos estão enraizados em Cristo, Deus não deixa de atuar neles e se autocomunicar indefectivelmente pelo fato de a celebração ser presidida por um homem indigno, que vive longe do caminho de Jesus. É Cristo quem age, porque ele constantemente fundamenta os sacramentos.
Nessa perspectiva, a preocupação de buscar no Novo Testamento uma instituição dos sacramentos pelo Jesus pré-pascal deixa de ter interesse. Ela seria, aliás, insuficiente, pois os sacramentos só podem ter sentido depois da Páscoa. Tomás de Aquino estabelece um princípio muito válido nesse contexto – embora ele próprio o aplique insuficientemente. Escreve: “É por sua instituição que os sacramentos conferem a graça. Conclui-se, pois, que um sacramento é instituído no momento em que recebe a força de produzir seu efeito” (STh III, q.66, a.2). Ora, a força dos sacramentos provém do mistério pascal de Cristo e dos mistérios da vida de Cristo, enquanto preparam e levam à morte e ressurreição e são confirmados e transfigurados por esta. Segue-se, pois, que só após a Páscoa cabe falar da instituição dos sacramentos, no sentido pleno da palavra. Por isso a Tradição patrística ensinava que os sacramentos jorraram do costado aberto do Senhor.
Se os sacramentos radicam em Cristo, a Igreja não é senhora, mas servidora dos sacramentos. Essa verdade é expressa pelo Concílio de Trento ao declarar que a Igreja não pode mudar a “substância dos sacramentos” (DH 1728). A “substância dos sacramentos” não é o gesto simbólico ou o rito, mas sua significação, seu sentido que é o sentido mesmo de tudo o que Jesus fez e ensinou. Significa que é a impossível a Igreja se estruturar ou modificar por si mesma, pelas veleidades dos seres humanos que a constituem. Ela tem que ser fiel ao caminho instituído por Cristo, do qual ela é o sacramento e os sete sacramentos suas expressões rituais.
2 A hierarquia dos sacramentos (TABORDA, 1998, p.124-7; CONGAR, 1968)
Apesar de serem listados num rol de sete, como se fossem iguais, os sacramentos diferem entre si. A afirmação do Concílio de Trento de que há sacramentos “mais dignos” que outros (cf. DH 1603), supõe uma diferença radical entre eles, desde o ponto de vista teológico.
Os sacramentos celebram nossa participação no mistério de Cristo. Ora, tanto a vida cristã como o mistério de Cristo têm momentos de diferente densidade. A vida humana não é uma monótona planície, onde um fato se desenvolve depois do outro, com a mesma importância. Também a vida de Jesus apresenta momentos diferenciados por sua intensidade. O mistério pascal de Cristo é um momento de muito maior peso que qualquer outro momento da vida de Jesus, até por ser o resultado de todos os outros momentos menores e iluminar todos eles. Como os sacramentos celebram nossa participação no mistério de Cristo, também eles têm diferente peso para a vida cristã. Há entre eles uma hierarquia, onde se destacam sacramentos maiores ou principais. Quanto mais um acontecimento da vida do cristão significa participação no centro do mistério de Cristo, sua Páscoa, tanto mais importância tem o sacramento que sinaliza essa comunhão com o cerne do mistério de Cristo.
É verdade que todo sacramento relaciona a vida do cristão e da comunidade com o mistério pascal, mas há sacramentos em que a participação no mistério pascal está em primeiro plano, inclusive do ponto de vista do gesto simbólico. Tal é o caso do batismo e da eucaristia. A passagem pela água é um símbolo que evoca a passagem da morte à vida que é a conversão dos ídolos ao Deus verdadeiro. Como outrora o povo escolhido passou da escravidão à liberdade pela travessia do Mar Vermelho, pelo batismo o neófito passa da vida velha do pecado à nova vida à imagem de Cristo. Como Cristo atravessou o mar da morte, passando da morte à vida em seu mistério pascal, também o cristão pelo batismo se renova e se reveste do “homem novo” em Cristo (TABORDA, 2012, p.155-81). Na eucaristia, a ação de graças sobre o pão e o vinho faz memória do corpo entregue por nós na morte de Jesus, desse corpo que é fonte de vida, que se entrega em favor da vida dos demais. Do ponto de vista do gesto simbólico, o partir do pão e o distribuir do cálice evoca a doação de vida pelo outro que Jesus realizou na cruz e ressurreição (TABORDA, 2009, p. 56-82). Mostra-se assim o lugar central do batismo e da eucaristia, entre todos os sacramentos.
A centralidade dos dois sacramentos maiores é ainda corroborada por serem ambos constitutivos do ser cristão e edificadores da Igreja enquanto tal. Fazem da multidão o Povo de Deus. O batismo, porque incorpora à Igreja quem o recebe. A eucaristia, porque faz da multidão dos redimidos o Corpo de Cristo, cria e exprime a unidade e a comunhão dos muitos em Cristo. Em outras palavras: batismo e eucaristia constituem a pessoa como cristão. Os demais sacramentos atingem-na em situações particulares da vida cristã: o pecado, a doença, a vocação ministerial, o amor conjugal. Estão, por isso mesmo, em outro nível de importância.
A afirmação do batismo e da eucaristia como sacramentos principais é o conteúdo essencial de uma hierarquia dos sacramentos. A hierarquização que se possa estabelecer entre os demais sacramentos é secundária e dependerá dos critérios que se adote para estabelecê-la, variando segundo o ponto de vista assumido. A perspectiva, no entanto, pela qual se estabeleceu aqui a principalidade de batismo e eucaristia é a perspectiva básica por fundar-se no significado mesmo do sacramento.
Recuperar na teologia sacramental esse dado da Tradição, reafirmado no Concílio de Trento (cf. DH 1603), é de grande interesse ecumênico, tendo em vista a posição das Igrejas históricas provenientes da Reforma que aceitam só dois sacramentos: batismo e eucaristia. Tem também sua importância pastoral em vista da seleção espontânea praticada por nosso povo que procura, por exemplo, o batismo para as crianças e a missa em determinadas ocasiões (no sétimo dia do falecimento de um fiel, em datas especiais como as bodas de prata ou de ouro…). O “instinto da fé” os orienta nessa direção.
3 O número dos sacramentos (TABORDA, 1998, 138-43)
O número “sete” dos sacramentos não é primeiramente aritmético-numérico-quantitativo, mas simbólico. Tanto é assim que a afirmação de Trento, de que os sacramentos são sete, nem mais nem menos (cf. DH 1601), pode ser mantida, ainda que se admita que episcopado, presbiterado e diaconado são sacramentos (o que poderia elevar a nove a numeração aritmética dos sacramentos); ou se mantenha com o Concílio de Trento que a extrema-unção é “o acabamento” da penitência (cf. DH 1694), o que a constituiria como uma quase-unidade e perigaria diminuir para seis o valor aritmético da lista sacramental; ou ainda se aceite a íntima unidade entre batismo e confirmação que poderiam ser considerados sacramentos complementares e com isso somar como um no rol dos sacramentos.
Para entender o que significa afirmar que o número “sete” dos sacramentos é uma grandeza antes simbólica que aritmética, antes qualitativa que quantitativa, será preciso considerar alguns elementos históricos.
O número “sete” não foi simplesmente consequência lógica de uma definição exata de sacramento. Os teólogos não definiram primeiro o que é sacramento e depois saíram à busca de ritos que preenchessem os requisitos da definição, encontrando casualmente sete, nem mais nem menos. O fato histórico é que na evolução da teologia sacramental o número “sete” aparece simultaneamente com um conceito ainda amplo de sacramento, o que sugere que número e definição são questões independentes. Aliás, em toda a história da teologia dos sacramentos, nunca se chegou a um conceito que de fato abrangesse todos os sete e só os sete (CHAUVET, 1976).
Desta consideração histórica, decorre como conclusão provável que não foi a definição de sacramento que serviu de critério para escolher os sete. Mas tampouco foi a prática litúrgica e eclesial que levou a privilegiar esses sete e não outros. Nessa prática, só batismo e eucaristia sempre tiveram o primado incontestável; os demais “sinais sagrados” mereceram diversos acentos.
A razão é que o número sete não tem significado quantitativo-numérico, mas qualitativo. Claro que o conceito qualitativo só existe se podem ser enumerados sete quantitativamente, mas o número sete não é autônomo.
O conceito qualitativo de número situa-se no contexto de mística dos números da Idade Média. Essa é muitas vezes fundamentada em Sb 11,20: “Tudo dispuseste com medida, número e peso”. Pensava-se, a partir daí, que o número expressasse ao mesmo tempo o pensamento divino e a estrutura fundamental da realidade. A mística dos números remonta, através de Isidoro de Sevilha (†636), a Agostinho (†430) e, por meio deste, a Platão (†347 aC) e daí a Pitágoras (†495 aC). Seu pressuposto é que, compreendendo-se as relações numéricas, não se fala sobre a realidade, mas a própria realidade nelas se manifesta. A mística dos números era enormemente estendida na Idade Média, como o prova sua existência também entre os judeus (cabala). Pelo simbolismo dos números, a cabala queria fundir os princípios matemáticos e científicos para poder, por assim dizer, espiar para dentro do mistério das coisas. O simbolismo dos números transcende o pensamento e permite penetrar mais a realidade. A mística dos números, nessa perspectiva, não é uma meta de conhecimento, mas uma instância mediadora de maior conhecimento.
Nessa perspectiva do simbolismo numérico para expressar a natureza das coisas, sobressai o número sete por seu significado. O número sete é símbolo qualitativo da perfeição: o número um significa origem, aludindo ao uno antes de seu desdobramento em múltiplos; o número dois representa o outro, fundamento da multiplicidade; o número três tem sua importância como síntese da unidade (número 1) com a multiplicidade (número 2), além de ser o número da mais simples figura geométrica, o triângulo. Por essa razão, três é o número da perfeição divina[1], designa a totalidade, símbolo da unidade do uno (número 1) e do múltiplo (número 2). O número quatro é o número da perfeição material, cósmica, o número da proporção perfeita (2:2) e, portanto, da ordem do cosmos. Quatro são os elementos, os ventos, os rios do paraíso, os impérios segundo as visões de Daniel etc. Como soma de três e quatro, o sete é a perfeição por excelência, pois une numa totalidade a tríade divina e o quaternário cósmico. É, pois, o número da harmonia. Daí ser ele frequente: sete são não só os sacramentos, mas também as virtudes, os dons do Espírito Santo, os pecados capitais, os planetas, os períodos celestes, os tons da escala musical, sem falar nas diversas ocorrências do septenário no livro do Apocalipse de São João.
Nesse horizonte é que se devem localizar os sete sacramentos. O número sete já é uma definição de sacramento: Deus (tríade divina) que se comunica aos humanos na realidade cósmica dos gestos simbólicos (o quaternário cósmico). Mesmo em Trento, apesar do acento quantitativo, permanece o sentir qualitativo. O acento aritmético responde à negação protestante que também é aritmética. A Reforma protestante se agarra à letra da Escritura e não apreende o alcance qualitativo do número sete. Posicionando-se sempre face às afirmações ou negações dos Reformadores, Trento entra no terreno do valor aritmético de sete nem mais nem menos. Entretanto, a Reforma nega não só o número dos sacramentos, mas o próprio princípio da sacramentalidade. Trento, defendendo o número sete e pondo-se em pé de igualdade (aritmeticamente) com a Reforma, na realidade defende a própria sacramentalidade da salvação, expressa simbolicamente no número sete.
O parentesco qualitativo-aritmético com a posição protestante teve, no entanto, consequências: a quantificação dos sacramentos com a correspondente tendência a medir a intensidade da vida cristã pela frequência aos sacramentos. Não é preciso ser contra a quantificação matemática dos sete, mas contra a perda de seu valor qualitativo e o consequente “consumo” dos sacramentos.
Mesmo reconhecendo o valor simbólico do número sete, no entanto, não se pode abstrair do fato de que ele é mediado pelo valor aritmético sete. Isto é: sete ações simbólicas da Igreja – e não outras – foram reconhecidas aptas para expressar simbolicamente, no simbolismo dos números, o princípio da sacramentalidade, a saber: que Deus se comunica ao ser humano no histórico-sensível.
Em primeiro lugar é preciso dizer que não se pode estabelecer a priori que sejam esses e por que esses e não outros os sete sacramentos. Mas, a posteriori é possível encontrar uma lógica na escolha dessas ações simbólicas e não de outras. É que essas ações simbólicas marcam momentos decisivos na vida do cristão e consequentemente na própria vida da comunidade eclesial. Historicamente, não é de desprezar o confronto do problema concreto “quais sete?” com os dados da Escritura, que a seleção desses gestos simbólicos implica. De todos eles o teólogo medieval encontrava resquícios no Novo Testamento. Além do batismo e da eucaristia, que obviamente são dados bíblicos, via-se a confirmação na imposição das mãos pelos apóstolos em At 8,17; a penitência, em Jo 20,23 e Mt 18,18; a unção dos enfermos, em Tg 5,14; a ordem, em At 6; o matrimônio, em Ef 5,32, onde a tradução latina fazia ler magnum sacramentum, expressão forte, tão incisiva que foi capaz de vencer os preconceitos vigentes contra o sexo e o matrimônio.
Na fixação dos sete sacramentos, há um paralelismo com a formação do cânon neotestamentário: só depois de uma evolução, de um lapso relativamente longo de tempo, a Igreja chegou a fixar o cânon. Poderá, à primeira vista, ter sido levada pela autoria apostólica dos escritos, que hoje, para muitos livros, é negada ou pelo menos posta em questão. Nem por isso os livros selecionados na formação do cânon deixam de ser inspirados e canônicos. A própria história da Igreja, sua identidade, que se construiu sobre esses livros e somente esses, não permite voltar atrás. E, para quem crê que a Igreja é conduzida pelo Espírito Santo, é uma garantia da propriedade da escolha.
Semelhantemente se poderia dizer dos sete sacramentos: a Igreja não apenas celebrou durante séculos esses sacramentos, talvez sem privilegiá-los, mas, uma vez reconhecidos, eles marcaram de tal forma a comunidade cristã, sua vida e sua prática, que já não pode viver sem celebrá-los. Conduzida pelo Espírito Santo, a Igreja só poderia ter aceitado evolução tão prenhe de consequências sob a ação do mesmo Espírito.
Além disso, discutir se se pode hoje voltar atrás de Trento e acrescentar “novos” sacramentos ou reduzir o septenário, é perder de vista que a Igreja não se reduz à celebração dos sacramentos, mas esses se põem no contexto mais amplo do testemunho de fé no mistério pascal de Cristo, decisivo para que os sacramentos deem frutos de vida cristã.
4 A eficácia dos sacramentos (TABORDA, 1998, p.170-2)
O Concílio de Trento ensina que “os sacramentos da Nova Lei (…) conferem a graça pela própria realização do ato <sacramental>” (ex opere operato) (DH 1608). O significado profundo dessa expressão, muitas vezes mal entendida num sentido mágico ou quase mágico, é que é Deus e somente Deus quem atua nos sacramentos. A análise da expressão tradicional ajudará a compreender melhor essa prioridade de Deus nos sacramentos.
A expressão opus operatum significa a “ação como tal”, “a própria realização do ato”. Contrapõe-se a opus operantis, que poderia ser traduzido literalmente como a “ação de quem atua”. Na primeira expressão se atende objetivamente à ação; na segunda, a um sujeito que realiza a ação. As expressões se elucidam, se se recorda o problema que historicamente está em sua origem. Elas surgiram na teologia (e mais exatamente na soteriologia) na segunda metade do século XII. Ao tratar da obra redentora de Cristo, distinguia-se o opus operatum, sua obra redentora ao morrer na cruz, sua ação de morrer, e o opus operantis, a ação dos que levaram Jesus à morte (Judas, por sua traição; Anás e Caifás, os membros do Sinédrio, e Pilatos, como mandantes do crime; os verdugos, como executores…). O efeito redentor da morte de Cristo se dá ex opere operato e não ex opere operantis; provém da ação de Cristo ao morrer e não da ação dos homens que o mataram.
No século XIII a expressão foi transposta para a teologia dos sacramentos: a graça sacramental não depende do ministro nem de quem recebe o sacramento (opus operantis), mas da ação sacramental, exterior, perceptível, visível (opus operatum). É importante considerar a preposição ex que ocorre na expressão. Ela significa “por causa de”, “a partir de”. O sacramento não é eficaz ex opere operantis, não significa que o opus operantis não seja importante, mas sim que a força do sacramento, a graça sacramental, não provém do ministro ou da fé de quem recebe o sacramento. Entretanto, para que o sacramento seja eficaz ex opere operato, é preciso sempre algum opus operantis, seja do ministro (“a intenção de (…) fazer o que a Igreja faz”, DH 1611), seja de quem o recebe (não pôr obstáculo à graça, cf. DH 1606). E, mais que a intenção, exige-se fé por parte de quem recebe o sacramento, uma entrega a Deus correspondente à graça concedida, uma vida de acordo com o sacramento ou, pelo menos, a disposição interna de começar um caminho de conversão. A eficácia ex opere operato não substitui o opus operantis; entretanto, a graça não vem do opus operantis. A fonte da graça é a ação sacramental, mas não no sentido mágico, pois o opus operatum não está na materialidade da ação sacramental, mas em ser ela ação de Cristo pelo Espírito Santo. Os sacramentos agirem ex opere operato significa, portanto, que agem por força da obra salvífica de Cristo presentificada pelo sacramento. Opus operatum e opus operantis se encontram no sacramento. Este é o momento em que a graça se expressa como graça que leva a pessoa a aceitá-la livremente e, por isso e ao mesmo tempo, o gesto pelo qual a pessoa expressa seu livre assentimento à graça, assentimento que, por sua vez, lhe é dado totalmente pela graça. Longe de se oporem, opus operatum e opus operantis se supõem mutuamente como graça e liberdade (cf. antropologia teológica).
Essa ação de Cristo no Espírito pelos gestos simbólicos da celebração é oferecimento que Deus faz de si próprio ao ser humano (autocomunicação de Deus). O oferecimento não deixa de ser oferecimento pelo fato de alguém não aceitar o que foi oferecido, embora para ser oferecimento sempre deva haver a possibilidade de aceitação. Se, por exemplo, um louco oferece a uma pessoa um terreno na lua, não é oferecimento real, porque ele não tem possibilidade de dar o que ofereceu. Também não é oferecimento se alguém oferece a um surdo-mudo um CD com uma sinfonia de Beethoven ou a alguém que amputou as duas pernas, um par de sapatos. Mas não deixa de ser oferecimento se alguém oferece a uma pessoa com plena capacidade auditiva um CD de Beethoven ou a alguém que tem ambas as pernas um par de sapatos, embora alguns não o aceitem, porque não gostam de música erudita, ou porque não se agradam do modelo do sapato. É um oferecimento real, mesmo quando não aceito. Também Jesus era uma chance de conversão para os fariseus, embora eles não o tenham aceitado. A ação ex opere operato dos sacramentos expressa essa estrutura fundamental do sacramento: Deus se oferece à pessoa através deles e esse oferecimento subsiste independente de que a pessoa o aceite.
Em resumo: a fórmula “os sacramentos agem ex opere operato” significa negativamente que a eficácia do sacramento não procede do ser humano; positivamente que a eficácia procede da obra de Cristo, sua vida, morte e ressurreição, objeto do memorial, e que o gesto sacramental é um oferecimento permanente de Deus ao ser humano, quer este o aceite, quer não. Por isso, a expressão põe em primeiro plano a ação sacramental como tal, pela qual o mistério de Cristo (opus operatum) é celebrado e assim oferecido como convite a esta pessoa e a esta comunidade para que assumam mais profundamente a vida de seguimento de Jesus.
Francisco Taborda SJ, FAJE, Brasil. Texto original português.
6 Referências bibliográficas
CHAUVET, L.-M. Le mariage, un sacrement pas comme les autres. In: LMD, n.127, p.85-105. 1976.
CONGAR, Y. A noção de sacramentos maiores ou principais. In: Concilium, n.31, p.21-31. 1968.
PAULO VI. A sagrada eucaristia: encíclica Mysterium fidei. Petrópolis: Vozes, 1965. Documentos Pontifícios, 153.
RAHNER, K.; THÜSING, W. Cristología: estudio sistemático y exegético. Madrid: Cristiandad, 1975. Biblioteca Teológica Cristiandad, 3.
TABORDA, F. Sacramentos, práxis e festa: para uma teologia latino-americana dos sacramentos. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
______. O memorial da Páscoa do Senhor: ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2009.
______. Nas fontes da vida cristã: uma teologia do batismo-crisma. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2012. Theologica.
[1] A qualificação do número três como número da divindade não tem nada a ver com a noção cristã de que Deus é Trindade. Esse sentido do número existe também no judaísmo, por exemplo.