As cinco conferências gerais do episcopado latino-americano

As cinco Conferências gerais do Episcopado Latino-americano

Sumário

Introdução

1 Conferência do Rio

2 Conferência de Medellín

3 Conferência de Puebla

4 Conferência de Santo Domingo

5 Conferência de Aparecida

Conclusão

Referências

Introdução

A Igreja católica da América Latina conheceu uma importante evolução desde a fundação do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), deixando de ser, progressivamente, “Igreja espelho” para tornar-se “Igreja fonte”, como dizia Henrique Cláudio de Lima Vaz referindo-se ao Brasil, o que também pode ser aplicado a todo o continente (VAZ, 1968, p. 17-22). Nesse processo, as conferências do episcopado da região foram fundamentais. No começo, na conferência do Rio de Janeiro, em 1965, o foco de atenção estava mais voltado para o centro romano. Porém, a partir de Medellín, em 1968, houve uma verdadeira virada, que afetou não apenas o catolicismo latino-americano e caribenho, mas também, principalmente com o pontificado de Francisco, o conjunto da Igreja católica. O presente texto propõe uma síntese dos eixos principais de cada uma das cinco conferências[1].

1 Conferência do Rio

A primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-americano foi convocada por Pio XII e aconteceu no Rio de Janeiro, em 1955. Ele próprio assim o expressa:

Pareceu-nos oportuno, recolhendo ademais o voto que Nos apresentou o Episcopado da América Latina, que a Hierarquia Latino-americana se reunisse para realizar o estudo aprofundado dos problemas e dos meios mais aptos para resolvê-los, com essa prontidão e plenitude que as necessidades exigem (PIO XII, 1955).

O mais notável dessa Conferência foi, sem dúvida, o acordo de criação do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM): “A Conferência Geral do Episcopado Latino-americano aprovou, por unanimidade, pedir, e atentamente pede à Santa Sé Apostólica, a criação de um Conselho Episcopal Latino-americano” (DR 97). A missão que lhe é atribuída é preparar as Conferências Gerais do Episcopado, além do exercício da pastoral orgânica através de cinco subsecretariados (DR 97)[2].

Porém, também deve-se destacar que os bispos, instruídos pelos mais carismáticos, realmente se encontraram como bispos da Pátria Grande e debateram os temas.

A maior limitação, contudo, foi que tanto o presidente da Conferência como seu ajudante foram italianos eleitos pelo papa, que também foi quem deu o tom, o enfoque e a temática. A carta que lhes enviou antes das sessões foi quase literalmente a guia para a Declaração inicial e para as Conclusões. Assim o reconhecem os próprios bispos: “as importantíssimas Letras Apostólicas ‘Ad Ecclesiam Christi’ [que] constituíram para nós a ‘Magna Carta’ nos trabalhos e nas conclusões da Conferência” (DR, Declaração). No entanto, isso não deve ser visto como uma ingerência, porque os bispos estavam de acordo em que eles eram, digamos, os braços do papa.

As necessidades, segundo o papa e os bispos, eram, primeiramente, as da instituição eclesiástica. Assim o testemunham na Declaração e o repetiram no documento conclusivo: “a Conferência teve como objetivo central de seus trabalhos o problema fundamental que aflige nossas nações, a saber: a escassez de sacerdotes”. Qualificam-no como “a necessidade mais urgente da América Latina”. Por isso, a insistência na promoção de vocações e na sua preparação nos seminários, assim como, de modo mais geral, na instrução religiosa. O valor da doutrina cristã não poderia ser mais enaltecido:

A Santa Igreja, por disposição de Deus, é a depositária da doutrina cristã que, fundando-se nos princípios eternos e indestrutíveis da verdade divina, dá a solução a todos aqueles problemas que tocam, direta ou indiretamente, a vida espiritual e moral do homem, para que este realize plenamente sua condição de filho de Deus e se torne digno das promessas do Céu (DR, Declaração).

Esse valor da doutrina e da instituição eclesiástica, que é sua depositária, é tão grande que, ao recomendar o que chamam de “as Sagradas Letras”, insistem em que é preciso fazê-lo “destacando os textos mais importantes e fundamentais, como os relativos à Primazia de Pedro, à infalibilidade do Magistério Eclesiástico, ao valor da Tradição etc.” (DR 72). Como se percebe, a Bíblia e principalmente os Evangelhos não são a narração de um acontecimento salvífico, proclamado para que nos integremos a ele, mas um repertório de textos que ratificam a sacralidade e a autoridade da instituição eclesiástica.

A partir dessa absolutização da instituição eclesiástica, o Papa e posteriormente os bispos se referem aos inimigos. Citemos o Papa:

Muitos são, desgraçadamente, os ataques de astutos inimigos e, para rejeitá-los, é necessária enérgica vigilância: como os enganos maçônicos, a propaganda protestante, as diversas formas do laicismo, de superstição e de espiritismo, que quanto mais grave é a ignorância das coisas divinas e mais adormecida a vida cristã tanto mais facilmente se difundem, ocupando o lugar da verdadeira Fé e satisfazendo enganosamente as ânsias do povo sedento de Deus. A elas se acrescentam as perversas doutrinas dos que, sob o falso pretexto de justiça social e de melhorar as condições de vida das classes mais humildes, tendem a arrancar da alma o inestimável tesouro da religião (PIO XII, 1955).

Por isso, para vencê-los, insistem tanto na difusão da doutrina e da moral católicas.

Tendo em conta a escassez de sacerdotes, animam os leigos que “militam em uma ou outra organização de apostolado, com plena submissão às diretrizes e disposições dos Romanos Pontífices e da Sagrada Hierarquia” (PIO XII, 1955). Reconhecem que

o apostolado, mesmo sendo missão própria do sacerdote, não é exclusiva dele, mas também compete a eles, por seu próprio caráter de cristãos, sempre sob a obediência dos Bispos e dos Párocos e dentro das formas e ofícios que não são privativos do ministério sacerdotal (DR 43).

Seu conteúdo é absolutamente eclesiocêntrico:

além de um esforço contínuo por conservar e defender inteiramente a fé católica, deve ser um apostolado missionário de conquista para a dilatação do reino de Cristo em todos os setores e ambientes, particularmente onde não possa chegar a ação direta do sacerdote (DR 46).

No entanto, queremos destacar que, apesar de tanta intervenção, reconhecem o que posteriormente será enfatizado no Vaticano II: a missão lhes compete a eles como cristãos, ou seja, pelo batismo.

A problemática social é sublinhada pelo papa por sua íntima relação com a vida religiosa: “o campo social: tema que é merecedor da maior consideração em todos os povos, mas nas Nações Latino-americanas há motivos particulares para reclamar a solicitude pastoral da Sagrada Hierarquia, já que se trata de questão intimamente ligada com a vida religiosa” (PIO XII, 1955). Os bispos, na mesma sintonia, insistiram que o discípulo de Cristo deve ver tal problemática como um dever moral. A situação é vista fundamentalmente a partir da perspectiva do subdesenvolvimento: “muitos de seus habitantes – especialmente entre os trabalhadores do campo e da cidade – ainda vivem numa situação angustiante” (DR, Declaração). Por isso, a elevação das classes necessitadas acontecerá com o progresso e colaborar para que ele aconteça é um dever moral para o cristão:

O pensamento cristão, de acordo com os ensinamentos pontifícios, contempla como elemento importantíssimo a elevação das classes necessitadas, cuja realização enérgica e generosa surge para todo discípulo de Cristo não somente como um progresso temporal, mas como o cumprimento de um dever moral (DR, Declaração).

Essa elevação, tratando-se do indígena, é entendida como passar da barbárie à civilização: “um trabalho perseverante para que o ‘índio’ se incorpore com honra no seio da verdadeira civilização” (DR, Declaração). Como se percebe, identificam a cultura ocidental com a cultura e, consequentemente, as culturas indígenas como barbárie.

Concretizando um poco mais, referem-se à justiça social, que implica chegar à harmonia entre o capital e o trabalho: “solucionar esses problemas, procurando, principalmente, estabelecer a harmonia cristã entre o capital e o trabalho” (DR 80). A ação da Igreja deveria orientar-se fundamentalmente para impregnar o mundo econômico com sua doutrina e com o espírito de harmonia que a anima: “a presença ativa da Igreja é requerida, a fim de influir no mundo econômico-social, orientando-o com a luz de sua doutrina e animando-o com seu espírito” (DR, Declaração).

Seguindo o Papa, referem-se especificamente à “assistência espiritual aos emigrantes” (PIO XII, 1955).

Não há alusão às causas dessa situação de falta do essencial para as maiorias, nem – está claro – nenhuma denúncia. Pareceria que a difusão da doutrina cristã e o cumprimento do dever moral seriam suficientes para conseguir um desenvolvimento que basicamente solucionaria o problema. Por isso, Fernando Torres Londoño, depois de uma análise precisa, na qual reconhece tudo que há de positivo, conclui que essa primeira Conferência,

por seu espírito, pela temática que tratou e pelas conclusões às quais chegou, situa-se na mesma trajetória do Concilio Plenário Latino-americano de 1899. A Primeira Conferência mostra uma Igreja que ainda se pensa e se concebe em função dela mesma e de suas estruturas clericais (LONDOÑO, 1995).

2 Conferência de Medellín

Para entender Medellín, é necessário compreender seu modo de produção. À primeira vista, pareceria que se recolher num seminário, no centro de um bosque, não ajudaria a assumir a realidade, mas o isolamento provocou que o grupo como tal surgisse: os bispos, os peritos e os observadores se compenetraram nas eucaristias e nas conferências iniciais, nos grupos de trabalho e na partilha das comidas e do descanso, de maneira que todos se deixaram conquistar pelo tema e o enfocaram a partir de um mesmo espírito. Assim, as diferenças, na maior parte dos casos, chegaram a ser internas e todos se abriram para contribuir com o melhor de cada um para a elaboração conjunta. “Ao longo de duas semanas, uns 250 participantes da assembleia, cardeais, bispos, observadores, religiosos e leigos homens e mulheres, partilharam tudo: o trabalho, a mesa e a liturgia” (SCATENA, 2019, p. 14). Por isso, com exceção de dois capítulos (o da pastoral popular e o das elites), o restante possui uma unidade orgânica muito difícil de se alcançar em documentos elaborados em grupo. Por essa razão, “nessa experiência, se impôs a memória de muitos dos protagonistas, a ideia de uma efusão palpável do Espírito de Pentecostes, como depois disse o argentino Pironio” (SCATENA, 2019, p. 12). Ou como ponderou o cardeal Landázuri em seu discurso de encerramento:

O novo Pentecostes do qual várias vezes falamos a respeito dessa reunião é a grande ideia, o grande acontecimento. A consciência profética, que nesses dias se despertou e se vivificou, é a nova luz para a igreja, o novo Pentecostes para a Pátria Grande. Um novo Pentecostes que aconteceu no mesmo momento em que a igreja latino-americana decidiu encarar a nova realidade latino-americana em vez de olhar para si mesma (SCATENA, 2019, p. 27-28).

De fato, o título da Conferência foi: “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do concilio”, ou seja, o tema não foi ela mesma, mas a América Latina. A Igreja foi o sujeito que discernia – sendo parte certamente do tema – e os bispos foram capazes de interpretar profeticamente a transformação que estava acontecendo, tanto no social, no econômico e no político, como no antropológico, tanto nas elites desenvolvimentistas, como nos professionais solidários e no povo. Como contemplavam a transformação em curso a partir de Jesus de Nazaré, olhavam-na não de cima, mas a partir do povo, de sua inserção solidária nele e, por isso, a partir da escolha de um modo de vida atento ao indispensável. Essa perspectiva foi tão decisiva que a opção pelos pobres se tornou um eixo transversal e a perspectiva para ver e julgar a realidade e a ação da Igreja, refletindo-se principalmente na consideração dos pobres como sujeitos na sociedade (DM 2,27) e na Igreja, e também no compromisso dos bispos de estarem próximos dos pobres e, até certo ponto, serem pobres (DM 14: A pobreza da Igreja).

A metodologia de Medellín é ver, julgar e agir, mas tendo presente a interação das três fases. As pessoas que redigiram os documentos já estavam numa ação pastoral. A ela chegaram por uma visão e tomada de posição cristãs e é a partir daí que contemplam a situação. Esse é o ponto de partida dos inspiradores documentos de Medellín. Eles os relançam sobre a Igreja e a opinião pública de uma maneira mais objetiva: começando com a visão da realidade, iluminando-a com a revelação cristã e propondo os compromissos que derivam da consciência do que Deus nos exige para responder a essa situação. É claro que os que não partilham a opção, também não partilharão sua visão de continente, ainda que não rejeitem os dados.

Os documentos veem a situação da América Latina através de indicadores que a descrevem e de vetores que indicam suas linhas de força. Os indicadores compõem uma situação de subdesenvolvimento. Já os vetores das forças sociais mais organizadas vão em duas direções: uma modernização desenvolvimentista e uma revolução estrutural. Entretanto, sem coincidir com nenhuma delas, está a conscientização e a mobilização das massas populares por melhores condições de vida, pela superação de opressões injustas e por uma maior personalização e socialização.

Os documentos incluem quatro diagnósticos gerais do estado da América Latina e de sua dinâmica, que caracterizam certeiramente os aspectos mais decisivos do quadro latino-americano. Também contêm uma tipologia dos atores sociais organizados (DM 7,5-8). Além disso, descrevem a situação da família (DM 3,1-3), da educação (DM 4,2-6), da juventude (DM 5,1-3,9) e do impacto dos meios de comunicação (DM 16,1-2.6). Mas, principalmente no documento sobre a Paz, desenvolvem uma visão estrutural do subcontinente. Concentram-se, em primeiro lugar, nas tensões entre as classes: marginalidade e frustrações crescentes, desigualdades excessivas, opressão e repressão. Caracterizam o domínio das classes altas sobre as demais como colonialismo interno, e preveem que será difícil manter a paz pela insensibilidade dos “de cima”, a crescente conscientização dos “de baixo” e o interesse dos revolucionários em exacerbar as contradições.

Posteriormente, caracterizam como neocolonialismo a situação de dependência em relação às corporações transnacionais e ao capital financeiro mundializado, denominando-a imperialismo internacional do dinheiro. A distorção do comércio internacional, a fuga de dividendos e capitais econômicos e humanos, a evasão de impostos, o endividamento progressivo e o intervencionismo político e até militar seriam os índices mais decisivos. Por último, referem-se às tensões entre os países latino-americanos e à corrida armamentista.

Os bispos distanciam-se dos que promovem revoluções armadas como via para superar essa situação. Mesmo reconhecendo a nobreza de suas motivações, insistem que as consequências serão um agravamento da situação (DM 2,15.19). Acusam os que se opõem às necessárias reformas de serem os causantes das revoluções do desespero que podem sobrevir (DM 2,17). Propõem o desenvolvimento integral. Colocam o amor como a grande força libertadora da injustiça e da opressão e inspiradora da justiça social, entendida como concepção de vida e como impulso para o desenvolvimento integral (DM 1,5). Entendem o desenvolvimento integral como a passagem de condições de vida menos humanas a condições mais humanas:

A passagem da miséria para a posse do necessário, a vitória sobre as calamidades sociais, a ampliação dos conhecimentos, a aquisição da cultura […], o aumento na consideração da dignidade dos demais, a orientação para o espírito de pobreza, a cooperação no bem comum, a vontade de paz, […] a fé […] e a unidade na caridade de Cristo, que nos chama a todos a participar como filhos na vida de Deus vivo, Pai de todos os homens (DM Introdução,6; cf. DM 2,14a).

Esse processo requer mudanças tanto estruturais como pessoais. A situação “exige transformações globais, audazes, urgentes e profundamente renovadoras” (DM 2,16). Isso implica vencer o temor aos “sacrifícios e riscos pessoais que implica toda ação audaciosa e realmente eficaz” (DM 2,17). O risco aumenta pela oposição dos que detêm esse poder injusto e opressor. Por isso, falam da “energia forte e pacífica das obras construtivas” (DM 2,19). São as que se mencionam nos documentos sobre a família, a educação, a juventude e os leigos. Também são aquelas propostas nos documentos sobre Justiça e sobre Paz, de caráter mais global, ou seja, cidadão e político, com sua inevitável dimensão econômica.

Como a América Latina se considerava um continente católico, como os governantes se entendiam como tais, e igualmente o faziam as forças vitais do continente, dizendo-se ambos representantes de povos católicos, esse diagnóstico lhes resultou intolerável. Empreenderam, então, uma campanha virulenta de perseguição ideológica contra bispos e teólogos identificados com essa linha, acusando-os de comunistas.

A razão de ser e a inspiração de base desse documento, e também sua justificação cristã, é que Jesus se encarnou na humanidade. Por ele, que se fez não somente um de nós, mas especificamente nosso Irmão, Deus se “lançou à sorte” com a humanidade. Por sua vez, a humanidade não pode se entender adequadamente sem a referência a ele, não unicamente como Criador, mas também como Pai, através de seu Filho único, que se fez para sempre nosso Irmão e precisamente como pobre e, portanto, a partir dos pobres. Por isso, “todo ‘crescimento em humanidade’ capacita-nos a ‘reproduzir a imagem do Filho, para que ele seja o primogênito entre muitos irmãos’” (DM 4,9)

Essa unidade entre cristianismo e humanidade é o que o documento sobre a Catequese insiste que deva ser ressaltado:

Sem cair em confusões ou em identificações simplistas, deve-se expressar sempre a unidade profunda que existe entre o plano divino de salvação, realizado em Cristo, e as aspirações do homem; entre a história da salvação e a história humana; entre a Igreja, povo de Deus, e as comunidades temporais; entre a ação reveladora de Deus e a experiência do homem; entre os dons e carismas sobrenaturais e os valores humanos. (DM 8,4).

Por isso, ao contemplar essa situação a partir de dentro, os bispos a qualificam como “violência institucionalizada” (DM 2,16) que constitui uma situação de pecado (DM 2,1). Com efeito,

A paz com Deus é o fundamento último da paz interior e da paz social. Por isso mesmo, onde a paz social não existe, onde há injustiças, desigualdades sociais, políticas, econômicas e culturais, rejeita-se o dom da paz do Senhor; mais ainda, rejeita-se o próprio Senhor (DM 2,14 c).

Como se percebe, não se trata de uma análise meramente social nem de um juízo meramente político, mas de uma tomada de posição fundamentalmente cristã.

Por isso, a alternativa deve ser trabalhar para que o ser humano assuma sua dignidade e responsabilidade e, assim, se empenhe em transformar as estruturas que impedem a vida e a humanidade de se desenvolverem:

A originalidade da mensagem cristã não consiste tanto na afirmação da necessidade de uma mudança de estruturas, quanto na insistência que devemos pôr na conversão do homem. Não teremos um continente novo, sem novas e renovadas estruturas, mas sobretudo não haverá continente novo sem homens novos, que à luz do Evangelho saibam ser verdadeiramente livres e responsáveis (DM 1,3).

O que mais caracteriza o Documento é seu caráter responsável (TRIGO, 2018, p. 33-57): atribuem à Igreja, da qual são responsáveis, o equivalente ao que apontam para a sociedade e, em ambos os campos, estão dispostos a colocá-lo em prática, tanto como dirigentes quanto como cidadãos e membros do povo de Deus (DM Introdução 3). Antes de mais nada, exortam os privilegiados (DM 2,17), os passivos (DM 2,18) e os violentos (DM 2,19), assim como os cristãos, a assumirem sua responsabilidade e promoverem a paz trabalhando pela justiça (DM 2,14.16.22). Nessa direção, devem encaminhar-se as diversas expressões da pastoral (DM 2,24), nossas escolas, seminários e universidades (DM 2,25), a espiritualidade dos leigos (DM 10,17) e a tarefa do bispo (DM 15,17).

A alternativa tem que começar por uma mudança pessoal (DM 1,3), que é, simultaneamente, personalização e coesão fraterna (DM Introdução 4) e conscientização da realidade (DM 2,7). A isso são exortados os educadores (DM 4,8; 5,14), o que, cristãmente falando, é uma conversão (DM Mensagem; DM 14,17; 6,8.15). Por isso, os bispos dizem que lhes corresponde educar as consciências em todos esses aspectos (DM 2,20-21) e também fomentar os hábitos comunitários em vistas à colaboração (DM 1,17). Essa consciência crítica da realidade é fundamental para os cristãos (DM 1,6) e, por isso, parte ineludível da catequese (DM 1,17), uma vez que, para conhecer a Deus, é preciso conhecer o ser humano e em Jesus de Nazaré se manifesta o mistério humano (DM Introdução 1). Essa participação tem que chegar à política como exercício de caridade (DM 1,16).

A proposta de uma educação personalizante (DM 4,4.8.11) se expressa para a Igreja como necessidade de colocar em marcha uma catequese integral (DM 8,1.6). Propõem que sejam participativas tanto a sociedade (DM 7,21;5,1; 2,15;1,7;4,12; 1,12.16) como a Igreja (DM 15,3.6; 5,13,14; 11,16.19). À necessidade de que a sociedade se reestruture a partir das comunidades de base (DM 2,14.27) corresponde a de que a Igreja o faça a partir das comunidades cristãs de base (DM 15,10.13;8,10;6,14). Ocorre também correspondência entre a proposta de planificação participativa para a sociedade (DM 1,15;7,21) e a da pastoral de conjunto (orgânica) para a Igreja (DM 15,5.9.23; 9,13; 15,10). Essa mesma correspondência podemos observar entre as expressões societárias segundo as diversas culturas (DM 4,3;5,11) e a inculturação da pastoral (DM 8,15; 6,1; 8,8; 9,7.10-11).

Uma correspondência especialmente relevante e significativa é a que acontece entre a exigência de que as elites cedam seus privilégios em favor dos de baixo (DM 14,10; 2,5.17) e a decisão da instituição eclesiástica de mudança de destinatário privilegiado, de condição social e de situação (DM 14,9.11.15.16).

Se consideramos bem o que foi a primeira conferência episcopal, será fácil compreender o assombro diante dessas conclusões de Medellín, tanto entre os meios de comunicação e os intelectuais e, de forma mais geral, entre as elites latino-americanas, como na cúria vaticana e na cristandade do Ocidente e do terceiro mundo. Tal surpresa se notou principalmente na maior parte da instituição eclesiástica latino-americana e dos católicos clericalizados, que, em sua maioria, não tinham tomado conhecimento da novidade do Vaticano II ou não se abriram a ela e, por isso, não puderam aceitar o que era, na verdade, sua recepção criativamente fiel.

O pressuposto de todos eles era que, no episcopado latino-americano, não havia sujeito com sã autonomia, com qualidade cristã e perspicácia histórica. Por isso, não se via de onde havia saído o documento de Medellín. Parecia-lhes impossível que refletisse o pensar e o sentir, a posição vital e o discernimento dos bispos latino-americanos. Por essa razão, é especialmente digno de menção que o papa Pablo VI, que tinha presidido a inauguração da conferência, lhe desse um voto de confiança e aprovasse suas conclusões antes de lê-las.

3 Conferência de Puebla

Essa desconfiança da cúria romana em relação ao rumo que o episcopado latino-americano estava tomando se expressou institucionalmente quando interveio no CELAM, em 1972, impondo, por meio do núncio, a López Trujillo como secretário (COMBLIN, 2011, p. 147). Ele preparou o documento de trabalho para Puebla e também propôs coordenar a reunião. Entretanto, o presidente da assembleia, Lorscheider, submeteu o assunto a votação e a assembleia rejeitou ambas as medidas. Ainda que o discurso inicial do Papa impôs, em alguma medida, os temas de Jesus Cristo, o ser humano e a Igreja, a assembleia trabalhou com liberdade e referendou Medellín em vários textos (DP 12, 15, 25, 96, 142, 235, 260, 462, 480, 550, 590, 648, 1134, 1165, 1247). No entanto, nem todas as orientações seguiram essa linha. Por isso, podemos considerar o documento como um compromisso entre as diversas correntes (TRIGO, 1979, p. 98-107).

A proposta da minoria consistia em contrastar o radical substrato católico da cultura latino-americana e o secularismo da adveniente cultura universal e em optar por uma modernização sem secularismo. O documento, porém, insiste de modo contundente no fato escandaloso de que “em povos de fé cristã enraizada se impuseram estruturas geradoras de injustiça”, o que é “sinal acusador de que a fé não teve a força necessária para penetrar os critérios e as decisões dos setores responsáveis da liderança” (DP 437).

Para começar pelo método, Puebla assume o método ver, jugar e agir, utilizado em Medellín: começa com a visão pastoral da realidade latino-americana, continua com os desígnios de Deus sobre a realidade da América Latina, prossegue com os centros, os agentes e os meios de evangelizar, e finaliza com as opções e ações preferenciais. Para pôr em marcha as conclusões da assembleia, propõe um processo de participação educando “numa metodologia de análise da realidade, para depois refletir sobre essa realidade do ponto de vista do Evangelho, optar pelos objetivos e meios mais aptos, e seu uso mais racional na ação evangelizadora” (DP 1307).

A fundamentação teológica do método é que a salvação acontece na história, mas a história não é epifania de Deus. Assim sendo,

para que tudo isso se faça de acordo com o espírito de Cristo, devemos exercitar-nos no discernimento das situações e dos chamados concretos que o Senhor faz em cada tempo. Isto exige atitude de conversão e de abertura e sério compromisso com aquilo que foi reconhecido como autenticamente evangélico (DP 338).

É por essa razão que colocam como primeira opção pastoral a própria conversão da Igreja, que concretizam muito pertinentemente (DP 973-975).

Para Puebla, a primeira causa de todos os problemas é o sistema econômico imperante, que não considera o ser humano como centro da sociedade e, por isso, não se interessa em alcançar uma sociedade justa (DP 64, 129). Em função disso, o efeito desse sistema é a polarização crescente entre ricos e pobres (DP 1, 28, 30, 38, 47, 129, 138, 494, 542, 778, 1135, 1207-1209, 1264). Como em Medellín, os bispos qualificam essa situação como “de pecado” (DP 28, 70, 73, 281, 452, 487, 509, 1032) e propõem também a “conversão pessoal e mudanças profundas de estruturas” (DP 30; cf. DP 436-438 et passim).

O enfoque de Puebla estaria nas culturas e nas ideologias. Como tendência histórica dizem: “a programação da vida social corresponderá cada dia mais aos modelos buscados pela tecnocracia, sem correspondência com os anseios de uma ordem internacional mais justa” (DP 129). Ela utilizará os mass media: eles “irão programando cada vez mais a vida do homem e da sociedade” (DP 128; cf. DP 1072-1073). Puebla capta o deslocamento da cultura tradicional latino-americana para o que chama de “adveniente cultura universal”, que, impulsionada pelas grandes potências, “pretende ser universal. Os povos, as culturas particulares, os diversos grupos humanos são convidados, e mais ainda, obrigados a integrar-se nela” (DP 421). “A Igreja não aceita aquela instrumentação da universalidade que equivale à unificação da humanidade mediante uma injusta e lesante supremacia e domínio de uns povos ou setores sociais sobre outros povos e setores” (DP 427). Contudo, reconhece que essa cultura permeou tudo, de tal maneira que “se pode falar, com razão, de uma nova época da história humana (GS 54)” (DP 393).

Em relação às ideologias, os bispos se referem ao liberalismo capitalista (DP 47, 437, 452), ao coletivismo marxista (DP 48, 437, 543) e à Segurança Nacional (DP 49, 547-549). Como visões inadequadas do ser humano, mencionam a determinista (DP 308-309, 335), a psicologista (DP 310), a economicista (DP 311-313), a consumista (DP 311), a liberal (DP 312), a coletivista (DP 313), a estatista (DP 314), a cientista (DP 315).

Insistem nos direitos humanos e na dignidade absoluta da pessoa humana. Ressaltam o não reconhecimento dessa dignidade (e, portanto, a violação massiva de seus direitos), a fundamentação desses direitos e da apresentação positiva a respeito do que significa tal dignidade, além de explicitarem o que fazer para salvaguardá-la e fomentá-la. Por isso, denunciam o que nega mais radicalmente a pessoa, isto é, as idolatrias da nossa época: o dinheiro e o poder, combinados, que atuam buscando expandir-se e que, por essa razão, instrumentalizam todo o resto (DP 493-501). “É urgente libertar a nossos povos do ídolo do poder absoluto para conseguir uma convivência social em justiça e liberdade” (DP 502). Por essa razão, o documento insiste no direito primário da humanidade aos bens da terra, direito ao qual estão subordinados o da propriedade privada e o do livre comércio (DP 492, 542, 747, 1224, 1281).

Essa evangelização tem que penetrar nas culturas. Os bispos optam por duas direções complementares: a evangelização da cultura que foi forjada na América Latina nestes cinco séculos, por meio da evangelização da religiosidade popular, que é seu manancial mais profundo, e dos povos, que são seus portadores; e, simultaneamente, a evangelização da adveniente cultura universal pela evangelização dos construtores da sociedade pluralista que se está forjando nos nossos dias. Contudo, insistem complementarmente em que os pobres também são sujeitos evangelizadores:

O compromisso com os pobres e oprimidos e o surgimento das Comunidades de Base ajudaram a Igreja a descobrir o potencial evangelizador dos pobres, enquanto estes a interpelam constantemente, chamando-a à conversão e porque muitos deles realizam em sua vida os valores evangélicos de solidariedade, serviço, simplicidade e disponibilidade para acolher o dom de Deus (DP 1147).

Além disso, a opção pelos pobres não é apenas um dos capítulos do documento, mas um eixo transversal que o atravessa completamente (TRIGO, 1979, p. 108-111). Por isso, esse é o aspecto de Puebla que possui maior transcendência histórica, e que, sendo assumido pela Igreja latino-americana, foi proposto repetidamente pelo Papa João Paulo II à Igreja universal. Em Puebla, essa opção é tão crucial que a podemos considerar, juntamente com a apresentação de Jesus de Nazaré, como o que dinamiza, estrutura e unifica todo o documento. É particularmente pertinente sua fundamentação teológica: Deus toma sua defesa e os ama, porque “criados à imagem e semelhança de Deus para serem seus filhos, esta imagem está obscurecida e também escarnecida” (DP 1142). E pede que olhemos para rostos muito concretos que a pobreza generalizada toma entre nós (DP 32-39), para que reconheçamos neles “as feições sofredoras de Cristo, o Senhor, que nos questiona e interpela” (DP 31). Por isso, “o serviço dos pobres é a medida privilegiada, embora não exclusiva, de nosso seguimento de Cristo” (DP 1145). Cristo, que em todo o documento é inequivocamente Jesus de Nazaré, que “nasceu e viveu pobre no meio de seu povo de Israel, compadeceu-se das multidões e fez o bem a todos” (DP 190).

A medida da integralidade da opção pelos pobres é a pobreza evangélica que é “exigida a todos os cristãos” (DP 1148) e se caracteriza por três elementos: atitude de abertura confiada em Deus; uma vida simples, sóbria e austera, que afaste a tentação da ganância e do orgulho; e a comunicação de bens materiais e espirituais com os pobres (DP 1149-1150). Para os bispos, “esta pobreza é um desafio ao materialismo e abre as portas a soluções alternativas da sociedade de consumo” (DP 1152). Os bispos se alegram ao ver que muitos de seus filhos não pobres vivem essa pobreza cristã (DP 1151).

A partir da liberdade que dá a pobreza evangélica, têm sentido as propostas que se esboçam: a condenação da pobreza antievangélica à qual está submetida a maioria da América Latina, o esforço por conhecer cada vez mais os mecanismos que causam essa tragédia e denunciá-los, a soma de esforços com os que lutam por desenraizá-la e criar um mundo mais justo e humano, o apoio aos trabalhadores que querem ser tratados como livres e responsáveis e participar nas decisões que concernem suas vidas, a defesa do direito a que criem suas próprias organizações (Cf. DM 2,27), e o respeito e apoio às culturas indígenas (DP 1159-1164).

A partir dessa opção, compreende-se sua mensagem aos construtores da sociedade pluralista. Destacamos dois elementos: o primeiro diz respeito à defesa do salário dos trabalhadores, do direito a organizar-se e participar nas empresas, e do direito mais geral a uma política econômica que não se dirija à redução do emprego; o segundo refere-se à justiça no ponto específico dos contratos, além de sua legalidade, aborda-se o ponto mais genérico da destinação primária dos recursos da terra para a humanidade como magnitude real, como sujeito coletivo, a que está subordinada a propriedade privada.

O serviço do povo de Deus aos povos é a evangelização. Ela

dá a conhecer Jesus como o Senhor que nos revela o Pai e nos comunica seu Espírito. Ela chama-nos à conversão que é reconciliação e vida nova, leva-nos à comunhão com o Pai que nos torna filhos e irmãos. Faz brotar, pela caridade derramada em nossos corações, frutos de justiça, perdão, respeito, dignidade e paz no mundo (DP 352).

O documento insiste no binômio de comunhão e participação, tanto como estrutura da Igreja como missão que tem que levar ao mundo. O motivo é que o Reino “se realiza de certo modo onde quer que Deus esteja reinando mediante sua graça, seu amor, vencendo o pecado e ajudando os homens a crescerem até conseguir a grande comunhão que lhes é oferecida em Cristo” (DP 226). O desígnio de Deus é que os seres humanos construam a comunhão “em toda a sua vida”, inclusive “na sua dimensão econômica, social e política” (DP 215). Essa comunhão, que é a mais genuína produção humana, na perspectiva do plano transcendente, é “produzida pelo Pai, o Filho e Espírito Santo”, porque “é a comunicação de sua própria comunhão trinitária” (DP 215). Por isso, as formas de comunhão

humana, nos seus diversos âmbitos, “são animadas pela graça, primícias dela” (DP 218). No entanto,

o pecado, força de ruptura, há de impedir constantemente o crescimento no amor e a comunhão tanto a partir do coração dos homens, como a partir das diversas estruturas por eles criadas, nas quais o pecado de seus autores imprimiu sua marca destruidora. Neste sentido, a situação de miséria, marginalidade, injustiça e corrupção, que fere nosso Continente, exige do Povo de Deus e de cada cristão um autêntico heroísmo com seu compromisso evangelizador, a fim de poder superar semelhantes obstáculos (DP 281).

O Evangelho nos deve ensinar, em face das realidades em que vivemos imersos, que não se pode atualmente na América Latina amar de verdade o irmão nem portanto a Deus, sem que o homem se comprometa em nível pessoal e, em muitos casos, até em nível estrutural, com o serviço e promoção dos grupos humanos e dos estratos sociais mais pobres e humilhados, arcando com todas as consequências que se seguem (DP 327).

Nisso consiste a sacramentalidade da Igreja: em ser sinal credível de comunhão. Por isso,

cada comunidade eclesial deveria esforçar-se por constituir para o Continente exemplo de modo de convivência onde consigam unir-se a liberdade e a solidariedade, onde a autoridade se exerça com o espírito do Bom Pastor, onde se viva uma atitude diferente diante da riqueza, onde se ensaiem formas de organização e estruturas de participação, capazes de abrir caminho para um tipo mais humano de sociedade (DP 273).

Para que formem parte desse sinal, os pastores estão a serviço da Família de Deus como irmãos: “São irmãos chamados a cuidar da vida que o Espírito suscita, livremente, nos demais irmãos. É dever dos pastores respeitarem esta vida, acolhê-la, orientá-la e promovê-la, ainda que tenha nascido independentemente da iniciativa deles” (DP 249).

4 Conferência de Santo Domingo

Esta conferência foi celebrada no quinto centenário do “descobrimento”. O mais lógico teria sido realizar um discernimento desses cinco séculos, da atuação do cristianismo neles e fazer propostas para fortalecer o bom e superar o ruim. Entretanto, o Vaticano interveio de modo que, no nível estrutural, não foi uma conferência do episcopado, uma vez que mais da metade dos presentes não foram eleitos pelos bispos, foi descartado o documento de trabalho, os que a presidiram vieram de Roma e de lá também veio a normativa e, principalmente, porque não se admitiu a redação global do que os grupos de trabalho elaboraram e que, com exceção dos doutrinais, estavam na linha de Medellín e Puebla e avançavam nessa direção. Tampouco se admitiu o método ver, julgar, agir, que foi substituído por uma doutrina pré-conciliar sobre Jesus Cristo e a Igreja. Por pouco a assembleia não descartou tudo. Por fim, porém, reestruturou-se o que foi possível e o resultado foi satisfatório para a maioria, considerando que os capítulos sobre a promoção humana e a cultura cristã pareciam canais adequados para a pastoral.

Além disso, não foram favoráveis nem a separação entre o local de alojamento e o lugar de trabalho, nem a hospedagem do episcopado em hotéis luxuosos, que continuaram funcionando como tais. Nesse sentido, foi o mais oposto a Medellín.

O tema foi “impulsionar, com novo ardor, uma Nova Evangelização que se projete num maior compromisso pela promoção integral do homem e impregne com a luz do Evangelho as culturas dos povos latino-americanos” (DSD 1). A primeira parte, “Jesus Cristo, evangelho do Pai”, infelizmente, não recolhe a riqueza do conhecimento vivo de Jesus de Nazaré pela leitura orante feita nas comunidades, uma das grandes riquezas do cristianismo latino-americano que se expressou em Medellín e em Puebla. Nem sequer diz que foi entregue ao procurador romano para que fosse crucificado como subversivo, pelas autoridades religiosas, especialmente a aristocracia sacerdotal, que ressentia sua liderança com o povo, o que minava seu carácter institucional; “todo mundo vai atrás dele” (Jo 12,19).  O que se propõe é

Provocar nos católicos a adesão pessoal a Cristo e à Igreja pelo anúncio do Senhor ressuscitado; desenvolver uma catequese que instrua devidamente o povo, explicando o mistério da Igreja, sacramento de salvação e comunhão, a mediação da Virgem Maria e dos santos e a missão da hierarquia (DSD 142).

Como se vê, substitui-se a Jesus de Nazaré pelo ressuscitado e a catequese, em vez de se centrar no seguimento de Jesus, restringe-se à Igreja, à hierarquia e à devoção a Maria. Por isso, no documento, a liturgia não é a celebração da fidelidade no seguimento de Jesus na vida histórica, mas a fonte e o centro, a ser aplicado à vida (DSD 34-35). O doutrinarismo é tal que chegam a afirmar que os “valores, critérios, condutas e atitudes” da religiosidade popular, que “constituem a sabedoria de nosso povo”, “nascem do dogma católico” (DSD 36).

No entanto, existem muitos textos resgatáveis: a necessidade de uma

nova evangelização surge na América Latina como resposta aos problemas que apresentados pela realidade de um continente no qual se dá um divórcio entre fé e vida, a ponto de produzir clamorosas situações de injustiça, desigualdade social e violência. Implica enfrentar a grandiosa tarefa de infundir energias ao cristianismo da América Latina (DSD 24).

Os bispos afirmam que “o conteúdo da Nova Evangelização é Jesus Cristo” (DSD 27). Novas situações exigem novos caminhos. Não pode faltar “o testemunho e o encontro pessoal, a presença do cristão em todo o humano, assim como a confiança no anúncio salvador de Jesus” (DSD 29). O cristianismo e a Igreja têm “de inculturar-se mais no modo de ser e de viver de nossas culturas. (…) Assim, a Nova Evangelização continuará na linha da encarnação do Verbo” (DSD 30).

A proclamação evangélica e a catequese devem “nutrir-se da Palavra de Deus lida e interpretada na Igreja e celebrada na comunidade” (DSD 33). Realiza-se:

“difundindo seu testemunho vivo sobretudo com a vida de fé e caridade” (LG 12). O testemunho de vida cristã é a primeira e insubstituível forma de evangelização, como o fez presente vigorosamente Jesus em várias ocasiões (cf. Mt 7,21-23; 25,31-46; Lc 10,37; 19,1-10) e o ensinaram também os apóstolos (cf. Tg 2,14-18). (DSD 33)

Nessa nova evangelização, pedem “que os batizados não evangelizados sejam os principais destinatários da Nova Evangelização. Esta só será efetivamente levada a cabo se os leigos, conscientes do seu batismo, responderem ao chamado de Cristo a que se convertam em protagonistas da Nova Evangelização” (DSD 97). Por isso, deve-se “evitar que os leigos reduzam sua ação ao âmbito intraeclesial, impulsionando-os a penetrar os ambientes socioculturais e a serem eles os protagonistas da transformação da sociedade à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja” (DSD 98). “Uma linha prioritária de nossa pastoral, fruto desta IV Conferência, há de ser a de uma Igreja na qual os fiéis cristãos leigos sejam protagonistas” (DSD 103).

Já insistimos em que o que dizem sobre a promoção humana é fundamentalmente pertinente. Em primeiro lugar, afirmam que

os direitos humanos são violados não só pelo terrorismo, repressão, assassínios, mas também pela existência de condições de extrema pobreza e de estruturas econômicas injustas que originam grandes desigualdades. A intolerância política e o indiferentismo diante da situação de empobrecimento generalizado mostram desprezo pela vida humana concreta que não podemos calar (DSD 167).

Especificam-no convincentemente:

O crescente empobrecimento a que estão submetidos milhões de irmãos nossos, que chega a intoleráveis extremos de miséria, é o mais devastador e humilhante flagelo que vive a América Latina e Caribe. Assim o denunciamos tanto em Medellín como em Puebla e hoje voltamos a fazê-lo com preocupação e angústia. As estatísticas mostram com eloquência que na última década as situações de pobreza cresceram tanto em números absolutos como em relativos. A nós, pastores, comove-nos até as entranhas ver continuamente a multidão de homens e mulheres, crianças e jovens e anciãos que sofrem o insuportável peso da miséria assim como diversas formas de exclusão social, étnica e cultural; são pessoas humanas concretas e irredutíveis, que veem seus horizontes cada vez mais fechados e sua dignidade desconhecida.

Vemos o empobrecimento de nosso povo não só como um fenômeno econômico e social, registrado e quantificado pelas ciências sociais. Nós o vemos dentro da experiência de muita gente com quem compartilhamos, como pastores, sua luta cotidiana pela vida.

A política de corte neoliberal que predomina hoje na América Latina e no Caribe aprofunda ainda mais as consequências negativas destes mecanismos. Ao desregular indiscriminadamente o mercado, eliminar partes importantes da legislação trabalhista e despedir empregados, ao reduzir os gastos sociais que protegiam as famílias dos trabalhadores, foram aumentando ainda mais as distâncias na sociedade (DSD 179).

Por isso, afirmam que “descobrir nos rostos sofredores dos pobres o rosto do Senhor (cf. Mt 25,31-46) é algo que desafia todos os cristãos a uma profunda conversão pessoal e eclesial” (DSD 178). O texto especifica esses rostos.

A conclusão é:

Assumir com decisão renovada a evangélica opção preferencial pelos pobres, seguindo o exemplo e as palavras do Senhor Jesus, com plena confiança em Deus, austeridade de vida e partilha de bens. […]

Corrigir atitudes e comportamentos pessoais e comunitários, bem como as estruturas e métodos pastorais, a fim de que não afastem os pobres, mas que propiciem a proximidade e a partilha com eles.

Promover a participação social junto ao Estado, pleiteando leis que defendam os direitos dos pobres (DSD 180).

Referem-se concretamente à realidade do trabalho (DSD 186), avaliam-na cristãmente e propõem desafios e linhas pastorais consonantes (DSD 182-185). Igualmente o fazem sobre as migrações (DSD 186-189) e em relação à ordem democrática (DSD 190-193). Destacamos:

Corrigir atitudes e comportamentos pessoais e comunitários, bem como as estruturas e métodos pastorais, a fim de que não afastem os pobres, mas que propiciem a proximidade e a partilha com eles. Promover a participação social junto ao Estado, pleiteando leis que defendam os direitos dos pobres (DSD 180).

Também sobre a nova ordem econômica (DSD 194-203), destacamos:

Fomentar a busca e implementação de modelos socioeconômicos que conjuguem a livre iniciativa, a criatividade de pessoas e grupos, a função moderadora do Estado, sem deixar de dar atenção especial aos setores mais necessitados. Tudo isto, orientado para a realização de economia da solidariedade e da participação, expressa em diversas formas de propriedade (DSD 201).

Da mesma forma, em relação à integração latino-americana (DSD 204-209), ressaltamos o horizonte:

Todos sentimos a urgência de integrar o disperso e de unir esforços para que a interdependência se torne solidariedade e esta possa transformar-se em fraternidade […] A Igreja tem consciência de seu singular protagonismo e de seu papel orientador quanto à formação de uma mentalidade de pertença à humanidade e ao fomento de uma cultura solidária e de reconciliação (DSD 204).

Também nos parece pertinente o que se diz sobre a família, ainda que não partilhemos a insistência de que todo ato sexual deve estar aberto à procriação (DSD 210-227).

O tratamento da cultura padece do mesmo problema de enfoque que em Puebla, já que, de algum modo, pretende identificar os sinais de identidade católica, presentes massivamente no continente, com sua condição de evangelizado. Tampouco concordo com a pretensão de que exista ou possa existir uma cultura cristã (DSD 229). A evangelização da cultura se apoia, sem dúvida, em elementos positivos, mas nunca corrigirá totalmente os negativos estruturais. Além disso, não concordo que a inculturação do evangelho consista em introduzir valores (DSD 230): é demasiadamente etéreo.

Coincido com a importância da catequese, mas estou de acordo com o paradoxo de que coexistem “um desconhecimento da doutrina ao lado de vivências católicas enraizadas nos princípios do Evangelho” (DSD 247). Insistem, e é pertinente fazê-lo, em “apresentar a vida moral como seguimento de Cristo” (DSD 239). Entretanto, por isso mesmo, é uma debilidade que, ao apresentar Jesus, omitam a sua vida concreta.

É valiosa a indicação sobre o que significa a evangelização da cultura negra:

Conscientes do problema da marginalização e do racismo que pesa sobre a população negra, a Igreja, na sua missão evangelizadora, quer participar dos seus sofrimentos e acompanhá-los em suas legítimas aspirações em busca de uma vida mais justa e digna para todos (249).

O mesmo se aplicas às culturas indígenas:

Contribuir eficazmente para deter e erradicar as políticas tendentes a fazer desaparecer as culturas autóctones como meios de forçada integração; ou, pelo contrário, políticas que queiram manter os indígenas isolados e marginalizados da realidade nacional (DSD 251).

Ao se referirem à evangelização das culturas modernas, os bispos assinalam, desde o início, a “incoerência entre os valores do povo, inspirados em princípios cristãos, e as estruturas sociais geradoras de injustiças, que impedem o exercício dos direitos humanos” (DSD 253).

A caracterização da cidade e da pastoral proposta para ela revela a falta de uma compreensão mais profunda de sua realidade e de adaptação a ela (DSD 255-262).

“A educação cristã desenvolve e assegura a cada cristão a sua vida de fé e faz com que verdadeiramente nele sua vida seja Cristo” (DSD 264) Afirma-se o que acontece ou o que gostaríamos que acontecesse? Isso está sequer cogitado no que se chama educação católica?

O que é afirmado sobre a educação cristã é tão pertinente que seria bom que ao menos fosse considerado nos processos de iniciação cristã:

a educação cristã se funda numa verdadeira antropologia cristã que significa a abertura do homem para Deus como Criador e Pai, para os outros como seus irmãos, e para o mundo como aquilo que lhe foi entregue para potenciar suas virtualidades, e não para exercer sobre ele domínio despótico que destrua a natureza (DSD 264).

Os desafios da realidade estão bem definidos:

a realidade latino-americana nos interpela pela exclusão de muita gente da educação escolar, mesmo a básica, pelo grande analfabetismo que existe em vários dos nossos países; interpelados pela crise da família, a primeira educadora, pelo divórcio existente entre o Evangelho e a cultura; pelas diferenças sociais e econômicas que fazem com que para muitos seja dispendiosa a educação católica, especialmente nos níveis superiores. Interpela-nos também a educação informal que se recebe através de tantos comunicadores não propriamente cristãos, p. ex., televisão (DSD 267).

Há uma consciência muito realista da direção da demanda:

Geralmente nos pedem, com base em critérios secularistas, que eduquemos o homem técnico, o homem apto para dominar seu mundo e viver num intercâmbio de bens produzidos sob certas normas políticas; as mínimas. Esta realidade nos interpela fortemente para podermos ser conscientes de todos os valores que estão nela e podê-los recapitular em Cristo (DSD 266).

É possível, ou se tem que discernir o que sim e o que não? Por isso, pedem um diálogo com o homem técnico e com o humanismo cristão, de modo que se chegue à sabedoria cristã (DSD 268).

A fundamentação antropológica na qual se baseia o tratamento sobre a comunicação é certeira: “Cada pessoa e cada grupo humano desenvolve sua identidade no encontro com os outros (alteridade)” (DSD 279).

O problema é bem definido:

Damo-nos conta do desenvolvimento da indústria da comunicação na América Latina e no Caribe que mostra o crescimento de grupos econômicos e políticos que concentram cada vez mais em poucas mãos e com enorme poder a propriedade dos diversos meios e chegam a manipular a comunicação, impondo uma cultura que estimula o hedonismo e o consumismo e atropela nossas culturas com os seus valores e identidades.

Vemos como a publicidade frequentemente introduz falsas expectativas e cria necessidades fictícias; vemos também como especialmente na programação televisiva sobejam a violência e a pornografia, que penetram agressivamente no seio das famílias (DSD 280).

O que se diz sobre comunicação social e a cultura é suficiente, ainda que se reconheça que está apenas começando (DSD 275-286).

Recapitulando: “nos comprometemos a trabalhar em: 1. Uma Nova Evangelização de nossos povos. 2. Uma promoção integral dos povos latino-americanos e caribenhos. 3. Uma Evangelização inculturada” (DSD 292). São os três temas propostos pelo Papa e assumidos pela Conferência.

5 Conferência de Aparecida

O título da Conferência de Aparecida (2007) é “Discípulos e Missionários de Jesus Cristo, para que nEle nossos povos tenham vida”, um título que expressa adequadamente nosso ser cristão.

O documento gira ao redor da vida e o sujeito que a promove é o coletivo dos discípulos missionários, ainda que o sujeito transcendente seja Jesus Cristo. A primeira parte, “A vida de nossos povos hoje”, se apresenta como o olhar dos discípulos missionários sobre a realidade; a segunda, “A vida de Jesus Cristo nos discípulos missionários”, desenvolve sua vocação à santidade, sua comunhão na Igreja e seu itinerário formativo; e a terceira, “A vida de Jesus Cristo para nossos povos”, se refere à sua missão de serviço em favor da vida, da promoção da dignidade humana, especialmente dos pobres, dos que sofrem e particularmente da família e seus membros de diferentes idades e responsabilidades, concluindo com um capítulo sobre a evangelização da cultura.

O objetivo de Aparecida é “repensar profundamente e relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais” (DAp 11). A necessidade desse relançamento deriva da novidade da época, que exige evangelizá-la e inculturar nela o Evangelho. Por isso, o documento dedicará muitas páginas à sua caracterização como oportunidade e risco para a vida humana, e para a qualidade humana dessa vida e, mais especificamente, para a fé cristã. Porém, para os bispos, é também imprescindível uma nova evangelização fundante pela situação do catolicismo na nossa região. De fato, o documento reconhece que, na vida cotidiana da Igreja, “aparentemente tudo procede com normalidade, mas na realidade a fé vai desgastando-se e diluindo-se em mesquinhez” (DAp 12). Por isso, é imprescindível um “acontecimento fundante”, que esteja ligado a um “encontro vivificante com Cristo” (DAp 13).

Esse acontecimento diz respeito, de um modo ou outro, a todos os católicos: “A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo, reconhecendo que não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva” (DAp 12). Portanto, a revitalização do catolicismo “não depende tanto de grandes programas e estruturas, mas de homens e mulheres novos que encarnem essa tradição e novidade, como discípulos de Jesus Cristo e missionários de seu Reino” (DAp 11).

A partir desse objetivo, o documento afirma que foi escrito em continuidade com as Conferências anteriores (DAp 9, 16, 369, 396, 402, 446, 526), já que elas também tiveram o mesmo objetivo de atualizar o Evangelho nas suas próprias circunstâncias, tendo em vista contribuir para que os povos latino-americanos tenham vida humana segundo a humanidade de Jesus Cristo.

Queremos salientar a importância de conectar o encontro com Jesus de Nazaré com a entrega ao seu Reino. Uma entrega a Jesus que prescinda da tarefa do Reino não é entrega a ele, mas a um Cristo que inventamos, uma vez que ele rejeitou a proposta de Pedro de ficar no Tabor contemplando-o (Mc 9,5-8) ou a da Madalena de permanecer desfrutando de sua pessoa ressuscitada (Jo 20,16-18) e os enviou a prosseguir a missão que o Pai lhe havia encomendado (Jo 20,21). Assim, o encontro com Jesus não pode ser concebido como estar devotamente com ele (nisso consiste o pietismo), mas como o seguimento de sua missão com seu mesmo Espírito (DAp 129-153).

O método é partir do olhar crente sobre a realidade para ver nela a passagem de Deus e o que se opõe ao mundo fraterno das filhas e filhos de Deus, isto é, ao Reino que Jesus veio instaurar, ou, dito com outras palavras, ouvindo os sinais dos tempos:

Os povos da América Latina e do Caribe vivem hoje uma realidade marcada por grandes mudanças que afetam profundamente suas vidas. Como discípulos de Jesus Cristo, sentimo-nos desafiados a discernir os ‘sinais dos tempos’, à luz do Espírito Santo, para nos colocar a serviço do Reino, anunciado por Jesus, que veio para que todos tenham vida e ‘para que a tenham em plenitude’ (Jo 10, 10) (DAp 33; cf. DAp 366).

Por isso, o método adotado, em continuidade com as conferências anteriores, é o ver, julgar e agir:

Este método nos permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade; a assunção de critérios que provêm da fé e da razão para seu discernimento e valorização com sentido crítico; e, em consequência, a projeção do agir como discípulos missionários de Jesus Cristo (DAp 19).

A razão dessa sequência é que para fazer o equivalente do que ele fez na sua situação, que significa segui-lo (cf. DAp 139), não só é necessário conhecer seu modo de lidar com sua realidade, mas também com a nossa situação atual.

Parece bastante acertado que o tema seja a vida, já que, na América Latina, a vida é ameaçada e ultrajada de múltiplos modos. Por outra parte, existe, na nossa região, um desejo inegável de vida realmente humana. Além do mais, para isso Jesus veio ao mundo: para que tivéssemos vida e, inclusive, para nos dar vida com sua vida (DAp 347-364).

É decisivo que os cristãos tenhamos que ser discípulos, porque, como o documento reconhece com grande realismo, “se muitas das estruturas atuais geram pobreza, em parte é devido à falta de fidelidade a compromissos evangélicos de muitos cristãos com especiais responsabilidades políticas, econômicas e culturais” (DAp 501). Também é um acerto unir a condição de discípulos à de enviados, porque Jesus escolheu discípulos para que participassem de sua missão. Se os teve a seu lado, foi para que, na convivência, se impregnassem por conaturalidade (cf. DAp 336) de sua mentalidade, suas atitudes e seu modo de se relacionar. É também destacável que não proponha a missão como a maquinária das empresas para vender seus produtos, mas como um acontecimento “que precisa passar de pessoa a pessoa, de casa em casa, de comunidade a comunidade […], sobretudo entre as casas das periferias urbanas e do interior […], procurando dialogar com todos em espírito de compreensão e de delicada caridade.” E continua citando o Papa Bento XVI: “se as pessoas encontradas estão em situação de pobreza, é necessário ajudá-las, como faziam as primeiras comunidades cristãs, praticando a solidariedade, para que se sintam amadas de verdade” (DAp 550).

O documento especifica os lugares onde nos encontramos com Jesus de Nazaré: em primeiro lugar, nos evangelhos (DAp 247, 255), também na comunidade (DAp 256), notadamente nos pobres (DAp 257), na religião do povo (DAp 258-265) e, certamente, na Ceia do Senhor (DAp 251).

A partir desse encontro personalizado com Jesus de Nazaré, passa-se de uma Igreja clericalizada a outra, na qual todos são sujeitos que se edificam mutuamente e participam ativamente na missão (DAp 154, 156, 159, 162). O documento expõe os lugares de comunhão para a missão: a paróquia como comunidade de comunidades, as comunidades eclesiais de base e outras pequenas comunidades, e as conferências episcopais; em seguida, analisa como cada uma das vocações na Igreja contribuem para a comunhão.

O documento assinala que essa missão, por sua entrega aos pobres e a defesa deles, ocasionou mártires, um texto que era esperado desde Puebla:

Seu empenho a favor dos mais pobres e sua luta pela dignidade de cada ser humano tem ocasionado, em muitos casos, a perseguição e inclusive a morte de alguns de seus membros, os quais consideramos testemunhas da fé. Queremos recordar o testemunho corajoso de nossos santos e santas, e aqueles que, inclusive sem terem sido canonizados, viveram com radicalidade o Evangelho e ofereceram sua vida por Cristo, pela Igreja e por seu povo (DAp 98).

O documento tematiza a relação entre Jesus e os pobres de modo paradigmático: “são chamados a contemplar, nos rostos sofredores de seus irmãos, o rosto de Cristo que nos chama a servi-lo” (DAp 393). A razão é que “tudo o que tenha relação com Cristo, tem relação com os pobres, e tudo o que está relacionado com os pobres clama por Jesus Cristo” (DAp 393). Desse modo, temos que dedicar tempo aos pobres como amigos e procurar que eles sejam sujeitos de sua libertação (DAp 394). Por isso, assim como Jesus viveu e propôs a reciprocidade de dons,

os discípulos e missionários de Cristo promovem uma cultura do compartilhar em todos os níveis em contraposição à cultura dominante de acumulação egoísta, assumindo com seriedade a virtude da pobreza como estilo de vida sóbrio para ir ao encontro e ajudar as necessidades dos irmãos que vivem na indigência (DAp 540).

Os próprios pobres são também motivados pelos bispos a isso (DAp 257, 265).

Por essa razão, propõem una globalização alternativa, “que se fundamenta no evangelho da justiça, da solidariedade e do destino universal dos bens, e que supere a lógica utilitarista e individualista, que não submete os poderes econômicos e tecnológicos a critérios éticos” (DAp 474; Cf. DAp 64); “novas estruturas que promovam uma autêntica convivência humana, que impeçam a prepotência de alguns e facilitem o diálogo construtivo para os necessários consensos sociais” (DAp 384). Para possibilitá-lo, propõem

apoiar a participação da sociedade civil para a reorientação e consequente reabilitação ética da política […], a criação de oportunidades para todos, a luta contra a corrupção, a vigência dos direitos do trabalho e sindicais […], promover uma justa regulação da economia, das finanças e do comércio mundial (DAp 406).

Para que tudo isso seja possível, deve-se superar a divisão entre o público e o privado, típica da modernidade, que pode declarar esses temas como assunto de cada um, sem transcendência. Pelo contrário,

quanta disciplina de integridade moral necessitamos, entendendo essa disciplina no sentido cristão do autodomínio para fazer o bem, para ser servidor da verdade e do desenvolvimento de nossas tarefas sem nos deixar corromper por favores, interesses e vantagens. São necessárias muita força e muita perseverança para conservar a honestidade que deve surgir de uma nova educação que rompa o círculo vicioso da corrupção imperante (DAp 507).

Conclusão

É preciso assinalar, no entanto, a limitação do documento de Aparecida. Além do horizonte que, como em Puebla, e ainda mais em Santo Domingo, concebe a salvação na história e a celebra nos sacramentos, principalmente na Ceia do Senhor, também afloram outros dois horizontes incompatíveis: a teologia dos mistérios e una versão um tanto fundamentalista da teologia kerigmatica. É necessário dizer que os textos mais proféticos foram sistematicamente suprimidos pelos que tinham o controle final da redação (por exemplo, o que dizem das CEBs nos n. 193-195 da versão original aprovada pela assembleia e o que ficou nos n. 178-180 da versão definitiva). Isso porque os que promovem afirmações mais piedosas e transcendentalizadas são os que vivem mais adaptados a essa ordem social. Ambos remetem a Jesus de Nazaré, mas uns se restringem mais a seu mistério (por isso a abundância de citações de João) e são propensos a linguagens doxológicas, muito abundantes nesse documento, já que, para eles, o contato primário com Cristo é o culto. Outros, por sua parte, insistem que o mistério de Jesus reluz na sua história (por isso remetem aos sinóticos), nessa história deve-se descobrir seu sentido e, ao continuá-la, entra-se em comunhão com ele.

Os dois grupos valorizam a missa e gostam dela, mas os primeiros a entendem como o encontro fontal do qual vivem, e os segundos como a celebração vivificante e comprometedora do seguimento na vida. Para os primeiros, o Reino se identifica com a pessoa de Jesus. Isso tem duas consequências: a primeira é que o acontecimento do reino é um acontecimento intraeclesial, cuja porta é o batismo e cujo alimento é a Palavra e os sacramentos (por exemplo, DAp 382); a segunda, que a missão consistirá em pôr em contato com Jesus, para que se integrem à Igreja, na qual está a salvação. Para os segundos, Jesus é certamente interno ao Reino, mas a razão é que nele e só nele somos filhos de Deus e irmãos de todos os seres humanos (por exemplo, DAp 139, 361).

O objetivo desse texto é ajudar na compreensão do documento que foi produzido como um compromisso por esses dois grupos e, por fim, favorecer a compreensão da Igreja Latino-americana para nos situar conscientemente nela segundo o dom recebido.

Pedro Trigo, SJ. Facultad de teología de la Universidad Católica Andrés Bello, Caracas, Venezuela. Texto original espanhol.

Referências

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[1] Theologica Latinoamericana já publicou o verbere “As Conferências do Conselho Episcopal Latino-Ameriano”, texto de Sandra Arenas, com uma visão geral do conjunto das Conferências e dos temas tratados. O presente verbete enriquece o anterior, oferecendo outra chave de leitura.

[2] Dussel, na sua análise dessa Conferência, centra-se principalmente em como, a partir dela, começa a organização da Igreja latino-americana em todos os campos e a partir de si mesma (DUSSEL, 1964, p. 186-190).