Sumário
1 Jesus e a ética cristã
1.1 As raízes veterotestamentárias
1.2 O Mestre exemplar
1.3 O mandamento novo
2 A ética do Reino no Sermão da Montanha
2.1 A superação do legalismo
2.2 Uma nova forma de piedade
2.3 Um caminho de comunhão
3 A ética da comunidade cristã
3.1 “Um só coração e uma só alma”
3.2 Solidariedade com os empobrecidos e marginalizados
3.3 A exigência do perdão e da reconciliação
4 A ética do amor misericordioso
4.1 “Quem permanece no amor, permanece em Deus”
4.2 “A maior é a caridade!”
4.3 “Faze isto e viverás!”
5 Desafio atual
6 Referências bibliográficas
A Ética e a Teologia no Antigo Testamento foram abordadas em outro verbete, em que se mostrou como a fé se encarnou na vida de um povo, como modo de proceder peculiar, de alta qualidade humana. Trata-se de mostrar, agora, como o caminho aberto por Jesus leva adiante e radicaliza a tradição ética de Israel, num projeto de vida proposto às comunidades cristãs, as do Novo Testamento e as de todos os tempos.
As palavras e os gestos de Jesus configuraram um ethos particular no âmbito da religiosidade de Israel. Três palavras sintetizam sua ação: continuidade, ruptura e superação. Tudo quanto fez e ensinou situava-se no âmbito da ética israelita, forjada ao longo dos séculos. Nela se enraizava, dando-lhe continuidade. Entretanto, colocou-se na contramão de certas tendências da época, focadas na submissão aos ditames da Lei, sem comungar-lhe com o espírito. Quiçá os textos evangélicos induzam ao equívoco de se tomar o vocábulo farisaísmo como sinônimo de hipocrisia e falsidade. O Mestre Jesus é apresentado em contínuo conflito com a ala legalista do movimento farisaico, sem se dar conta de haver, também, uma vertente distinta, feita de piedade verdadeira. Pode-se afirmar que nem todo fariseu o é da maneira como se fala dos fariseus nos Evangelhos. Jesus, porém, quis ir além e apresentar um modo de proceder inteiramente centrado no querer do Pai, para além da letra da Lei. A síntese desse intento encontra-se em Mt 5,20: “Eu vos digo: se vossa justiça não for maior que a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus”. Assim, Jesus pretendeu forjar uma ética superior àquela praticada por certos grupos, apontando para o querer do Pai como absoluto na vida do discípulo do Reino.
1 Jesus e a ética cristã
A tradição cristã abriu novas perspectivas para a ética de Israel. Diferentemente dos rabinos e suas escolas para o ensino da interpretação da Lei Mosaica, Jesus transmitiu aos discípulos uma sabedoria de vida – uma ética – centrada no Reino de Deus e sua justiça, a serem buscados em primeiros lugar (cf. Mt 6,33). Escolheu um método existencial – “Aprendei de mim” (Mt 11,29) – para transmitir um modo de ser e de agir com o testemunho de vida, palavras e atos. A linguagem parabólica foi a maneira de pregar o evangelho do Reino. “Nada lhes falava a não ser em parábolas” (Mc 4,34). A vida e o mundo foram as escolas onde os discípulos de Jesus se confrontavam com uma “justiça superior à dos escribas e à dos fariseus” (Mt 5,20).
1.1 As raízes veterotestamentárias
Jesus não inventou uma nova ética. Antes, foi capaz de mergulhar nas raízes da fé de Israel e, deste tesouro, “tirar coisas novas e velhas” (Mt 13,52). Seu contexto ético-religioso exigia uma guinada. A prevalência da mentalidade de certas correntes do movimento dos escribas e fariseus deu origem a uma religião legalista, donde resultava uma ética feita de submissão aos 613 mandamentos e proibições, nos quais a Torá fora codificada. A religião e, com ela, a ética, tornaram-se um fardo pesado, um jugo esmagador, sem espaço para a liberdade. Jesus denunciava os opositores por causa da conduta imprópria. “Amarram fardos pesados e os põem sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos nem com um dedo se dispõem a movê-los” (Mt 23,4). Criavam normas para os outros, sem assumi-las para si.
Entretanto, o novo ethos introduzido por Jesus exigia dos discípulos profunda renovação interior. A continuidade com a tradição de Israel comportava, também, descontinuidade. Jesus usou duas parábolas para falar da disposição para acolher a novidade de sua proposta. “Ninguém põe remendo de pano novo em roupa velha, porque o remendo repuxa a roupa e o rasgão torna-se maior. Nem se põe vinho novo em odres velhos; caso contrário, estouram os odres, o vinho se entorna e os odres ficam inutilizados. Portanto, o vinho novo se põe em odres novos; assim ambos se conservam” (Mt 9,16-17). Sua proposta ética não podia ser confundida com o legalismo farisaico. O Reino de Deus requeria grande abertura de coração para ser acolhido sem reservas. Só assim se poderia captar a novidade ética do Mestre de Nazaré.
1.2 O Mestre exemplar
“Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais!” (Jo 13,15). Os discípulos eram desafiados a contemplar o agir do Mestre e nele se inspirar. Muito diferente dos fariseus hipócritas, contra os quais foram alertados. “Fazei e observai tudo quanto vos disserem. Mas não imiteis suas ações, pois dizem, mas não fazem” (Mt 23,3-4). Um aprendizado feito como antítese das lições dos mestres.
Jesus apresentava seu testemunho de vida como modelo. “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). Sua vida de bem-aventurado (cf. Mt 5,4) manifestava-se no trato com os pequeninos e marginalizados, com os quais convivia, a ponto de irritar os inimigos. “Os fariseus e os escribas murmuravam: ‘Esse homem recebe os pecadores e come com eles’” (Lc 15,2). E não lhe poupavam apodos ofensivos: “comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores” (Mt 11,19). Porém, nada o impedia de seguir o caminho cujo ápice seria a cruz (cf. Lc 4,30).
De forma alguma, sujeitou-se aos caprichos da liderança religiosa. Sua atitude foi de total liberdade diante das tradições, com suas exigências obsoletas. As exterioridades estão fora de seu interesse. Preocupa-lhe, antes, o que sai de dentro do ser humano, pois “isso é que o torna impuro” (Mc 7,20). Aí têm origem os mais horrendos desvios éticos: “prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, malícia, inveja, difamação, arrogância, insensatez. Todas essas coisas más saem de dentro do homem e o tornam impuro” (Mc 7,21-23). Sem um severo trabalho de educação do coração, qualquer conduta ética, decorrente do compromisso cristão, fica inviabilizada.
1.3 O mandamento novo
O Antigo Testamento conhecia duas versões do Decálogo (cf. Ex 20,2-17; Dt 5,6-21). Pode ser considerado a síntese da ética veterotestamentária. São balizas para a conduta humana, iluminada pela fé, caminho para se fazer, na história, a vontade de Deus. Todavia, o legalismo de sua época exigiu de Jesus reinterpretar, com total liberdade, o Decálogo, inclusive com o direito de eliminar o que lhe parecia ultrapassado (cf. Mt 5,21-47). Diante de si estava o Pai, cujo modo de agir os discípulos foram motivados a almejar. “Deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).
A pergunta de um fariseu permitiu a Jesus reduzir o Decálogo apenas a dois mandamentos. “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22,37-40). Assim era possível se posicionar diante da pluralidade de exigências da religião, onde coisas essenciais eram equiparadas a coisas de menor importância.
Entretanto, já no final de seu ministério, Jesus resume as exigências para os discípulos no “mandamento novo” correspondente ao amor mútuo. “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisso reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,34-35; cf. 1Jo 2,7-8). Ou, então, “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). O sinal distintivo da ética cristã é a capacidade de estabelecer um vínculo de caridade nas relações interpessoais. Detalhe: o exemplo inspirador é a oblação de Jesus na cruz, como prova insuperável de amor. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13).
2 A ética do Reino no Sermão da Montanha
O Sermão da Montanha sintetiza a ética do discípulo, na perspectiva do Reino. Mt 5-7 reúne ensinamentos de Jesus, com paralelos em Marcos e Lucas, em contextos diferentes. Esse catecismo do discipulado esboça, em grandes linhas, o agir de quem optou por centrar a vida no querer do Pai, nos passos de Jesus. Pode ser chamado de Torá (instrução, ensino) cristã, pois não pretende ser uma lei, no sentido jurídico do termo, e, sim, uma orientação, um projeto de vida.
2.1 A superação do legalismo
O Mestre Jesus ensina os discípulos a se colocarem diante da Lei com liberdade de coração, interpretando-lhe as exigências sob o prisma da vontade original do Pai. As releituras de alguns mandamentos do Decálogo servem de exemplo para o trato com os demais e toda e qualquer lei. O discípulo aprende a superar a materialidade da letra para atingir o espírito do mandamento. Não matar vai além da eliminação física do outro. A língua pode se tornar uma arma mortífera, capaz de ferir mortalmente o semelhante (cf. Mt 5,21-26). O divórcio, permitido pela religião da época, deve ser rejeitado por se configurar como desrespeito às mulheres (cf. Mt 5,31-33; 19,1-19). O adultério se comete no coração com um olhar libidinoso (cf. Mt 5,27-30). O juramento falso deve ser abolido de vez da vida do discípulo (cf. Mt 5,33-37). A chamada lei de talião – olho por olho e dente por dente – será substituída pela lei do perdão e da solidariedade (cf. Mt 5,38-42). Uma última ilustração: o amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo será substituído pelo amor e pela oração em favor dos inimigos e perseguidores (cf. Mt 5,43-47; 5,11-12). O discípulo recusa-se a interpretar a Lei ao pé da letra, para não cair no legalismo contrário ao querer do Pai.
O referencial do agir do discípulo é o Pai. “Deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48) é a orientação do Mestre Jesus. Tendo o agir do Pai como referência, o discípulo estará no bom caminho. O Pai não faz distinção de pessoas. Por isso “faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,46). Quem se deixa guiar pelo Pai, agirá inspirado nele. Essa é a forma de alcançar um modo de vida – justiça – superior à dos escribas e fariseus (cf. Mt 5,20).
2.2 Uma nova forma de piedade
Outra vertente da ética do discípulo é a dimensão religiosa. Certa corrente do farisaísmo praticava os atos de piedade sem qualquer profundidade, por se preocupar com o reconhecimento alheio. A religiosidade exterior escondia o interior cheio de malícia. Jesus denunciou com vigor profética tal esquizofrenia religiosa. “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Sois semelhantes a sepulcros caiados, que por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda podridão. Assim também vós: por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade” (Mt 23,27).
O discípulo do Reino é orientado a dar esmola da maneira mais discreta possível (cf. Mt 6,1-4). Nada de trombetear e chamar a atenção para si, com o desejo secreto de ser louvado. A regra do agir é: “Não saiba tua mão esquerda o que faz tua direita” (v.3). É a ética da discrição! A prática da oração segue a mesma linha (cf. Mt 6,5-6). Será feita no segredo do quarto, com as portas fechadas, para evitar que alguém veja o discípulo no diálogo com o Pai. Por fim, ao fazer jejum, evitará qualquer sinal exterior de autopunição física, que desfigura o rosto (cf. Mt 6,16-18). Antes, a cabeça ungida e o rosto lavado despistarão qualquer indício de jejum. Só o Pai conhecerá a disposição interior do discípulo.
2.3 Um caminho de comunhão
Bem situado na tradição religiosa de Israel, Jesus coloca-se ao serviço da reconstrução do projeto do Pai para a humanidade. Por isso, apontará aos discípulos um caminho de comunhão e de fraternidade, motivando-os a eliminar os focos de divisão e de inimizade.
O Mestre exorta-os a rejeitarem o materialismo que gera nos corações a sede de possuir e acumular, sem qualquer preocupação de compartilhar (cf. Mt 6,19-21). Esse tesouro enganoso pode ser perdido num piscar de olhos. Só os pobres em espírito são capazes de trilhar o caminho apontado pelo Mestre (cf. Mt 5,3) e estarem sempre prontos a servir a Deus e jamais ao dinheiro (cf. Mt 6,24). O discípulo é também exortado a ter cuidado com o olhar, porta por onde podem entrar em seu coração tantos sentimentos desumanizadores (cf. Mt 6,22-23). Cabe-lhe ser “puro de coração” (cf. Mt 5,8). A ética do Reino exige do discípulo cultivar a virtude da autocrítica para estar à altura de criticar o irmão ou a irmã de comunidade. A hipocrisia de ver o cisco no olho do próximo, sem se dar conta da trave que está no próprio olho, é incompatível com o desejo de viver centrado no Pai. Daí a ordem de não julgar para não ser julgado (cf. Mt 7,1-5).
Duas orientações de vida são fundamentais para o discípulo do Reino. A primeira é: “Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6,33). O foco da ética é o Pai e seu Reino. Todas as ações decorrerão desse filão teológico. A segunda é: “Tudo aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12). O olhar fixado em Deus está igualmente fixado no próximo. Porém, numa perspectiva peculiar: o discípulo deseja para si o mesmo que deseja para o semelhante. O olhar dirigido ao outro determinará o que é bom para si. Nada pode desejar para si, sem antes se perguntar se corresponde ao que deseja para o outro. Nada pode desejar para si, sem o desejar também para o outro. Nada pode desejar para o outro, sem que também seja desejável para si.
3 A ética da comunidade cristã
A ética cristã, no bojo da tradição de Israel, é comunitária por natureza. Os indivíduos são pensados nas relações interpessoais, jamais solitários. Desse modo, ao longo do seu ministério, Jesus lançou a semente do que haveriam de ser as comunidades cristãs. Seu projeto ético supunha os discípulos do Reino reunidos em comunidade.
3.1 “Um só coração e uma só alma”
As primeiras comunidades dos discípulos e discípulas de Jesus chamavam a atenção pela prática da solidariedade (cf. At 2,44-47). A adesão à fé levava-os a colocar tudo em comum, a ponto de se desfazerem de suas propriedades, pensando “nas necessidades de cada um” (v.45). O crescimento da comunidade se dava por seu modo de viver. A fraternidade solidária tornava-se um projeto de vida atraente para quem buscava um modo de vida alternativo ao que se conhecia no ambiente judaico e no ambiente romano.
Uma metáfora sugestiva descreve a vida dos primeiros cristãos. “A multidão dos que haviam crido era um só coração e uma só alma” (At 4,32a). Sem romantismo, tiravam as consequências práticas desse estilo de vida. Sempre na linha da solidariedade! “Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum” (At 4,32b). A comunidade se organizava em função das necessidades de seus membros, para que não houvesse necessitados. “De fato, os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas, e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um segundo sua necessidade” (At 4,34-35). A fé se desdobrava na ética da caridade!
3.2 Solidariedade com os empobrecidos e marginalizados
A carta de Tiago é uma súmula importante da ética cristã. Um tópico importante de sua catequese diz respeito à atenção devida aos empobrecidos e marginalizados. Não se admite que um pobre seja discriminado na assembleia da comunidade (cf. Tg 2,1-9). Engana-se quem oferece ao rico um lugar confortável e manda o pobre sentar-se abaixo, aos pés dos ricos (v.3). Este modo de agir desagrada a Deus, que “escolheu os pobres em bens deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que o amam” (v.5). Tiago denuncia a ingenuidade de quem bajula os ricos opressores e blasfemadores, que “os arrastam aos tribunais” (v.6). O desrespeito aos pobres atrai a ira de Deus, pois, ao se fazer acepção de pessoas, se comete pecado e se incorre na condenação da Lei, por transgressão (v.9).
Tiago estabelece a estreita relação entre fé e obras (cf. Tg 2,14-26). A fé torna-se imprestável, se não se explicitar em ações em favor dos empobrecidos. Não terá valor salvífico! De nada adianta ir ao encontro de um irmão ou irmã carente de vestuário e alimentação com augúrios dispensáveis – “Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos!” (v.16a) – sem “lhes dar o necessário para a sua manutenção” (v.16b). A solidariedade cristã tem valor salvífico quando supera a piedade vazia e parte para a ação, movida pela fé. É a ética verdadeira que, pela mediação do próximo necessitado, gera comunhão com o Pai do céu (cf. Mt 25,31-36).
3.3 A exigência do perdão e da reconciliação
O binômio perdão e reconciliação é indispensável na ética comunitária cristã. Por mais que os discípulos do Reino se esforcem, jamais está descartada a possibilidade de se romperem as relações. Isso pode ser inevitável. Entretanto, não se podem tolerar a inimizade e a acomodação em face aos vínculos rompidos. A comunhão fraterna é exigência inescusável!
O Pai não pode suportar o culto de quem está de relações cortadas com algum irmão. “Vai primeiro reconciliar-te com teu irmão” (Mt 5,24) é exigência para o culto agradável a Deus. Sem essa providência preliminar, o culto perderá a razão de ser.
Quem “não perdoar, de coração, ao seu irmão” (Mt 18,35) será réu de castigo divino. Afinal, cada vez que se perdoa apenas se compartilha com o próximo o perdão recebido do Pai do céu. A parábola do devedor que se mostra implacável ilustra este elemento da ética cristã (cf. Mt 18,23-35). O perdão do discípulo do Reino corresponde à partilha do perdão incalculável recebido do Pai, ilustrado na parábola com o cancelamento de uma dívida de dez mil talentos, sem qualquer exigência de ressarcimento. O perdão concedido ao irmão será irrisório, comparado ao perdão recebido de Deus. “Cem denários” é nada diante de “dez mil talentos”.
O perdão reconciliador, na ética cristã, não tem limites. O discípulo do Reino é desafiado a perdoar sempre. O diálogo entre Pedro e Jesus esclarece este viés do modo de proceder de quem adere ao Reino. “Senhor, quantas vezes devo perdoar ao irmão que pecar contra mim? Até sete vezes!” foi a questão levantada por Pedro (Mt 18,21). O discípulo propõe como parâmetro o máximo de vingança aludido no Antigo Testamento (cf. Gn 4,24). O Mestre abre-lhe a perspectiva do perdão ilimitado. “Não te digo até sete, mas até setenta vezes sete vezes” (Mt 18,22). O Mestre quis dizer: “Sempre!” Essa é a forma mais conveniente de “ser misericordioso como o Pai é misericordioso” (Lc 6,36).
4 A ética do amor misericordioso
O amor-ágape é a pedra basilar da ética cristã. Tudo parte dele e se direciona para ele. Quiçá seja esta a originalidade do ensinamento ético de Jesus, ao apontar um eixo vertebral da ação dos discípulos e discípulas do Reino, de modo a dar unidade a tudo quanto fazem. Uma frase de Santo Agostinho resume bem este vetor do agir cristão: “Ama e faze o que queiras!” No pressuposto de existir o amor, qualquer ação em favor do próximo será bem-vinda, por visar sempre o bem. Sem o “ama”, o outro pode se tornar objeto nas mãos de indivíduos sem escrúpulos. O amor faz tudo ser diferente!
4.1 “Quem permanece no amor, permanece em Deus”
Os escritos joaninos insistem no primado do amor na vida do cristão, pois “Deus é amor”. Por conseguinte, “aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele!” (1Jo 4,16). Teologia e ética fundem-se numa unidade existencial, expressa em cada gesto ou palavra do discípulo do Reino. Por conseguinte, o ato de fé se torna verdadeiro no ato de amor-ágape. Na direção contrária, o ato de amor-ágape é a expressão autêntica da fé, sem possibilidade de equívocos. A prática da caridade revela a comunhão do discípulo com Deus, pois Deus se faz presente e torna possível o ato de amor. Sem a presença divina, a caridade fica impossibilitada, já que o indivíduo está largado a si mesmo, sendo incapaz de superar os limites do egoísmo, raiz da maldade e da injustiça cometidas contra o semelhante, sendo os fracos e indefesos as primeiras vítimas.
O verbo grego ménō, traduzido por permanecer, significa habitar, morar. Isto permite descobrir uma rica semântica na afirmação joanina. O amor-ágape possibilita ao discípulo “morar em Deus” e “Deus morar nele”. Se o discípulo mora em Deus e Deus nele, só poderá agir movido pelo amor. O egoísmo jamais terá lugar em seu coração! Isso só será possível no dia em que mudar de morada. Em outras palavras, se abraçar uma ética contrária ao projeto do Reino, anunciado por Jesus.
4.2 “A maior é a caridade!”
Paulo, escrevendo à comunidade de Corinto, indica-lhe “um caminho que ultrapassa a todos” (1Cor 12,31): o caminho da amor-ágape! Servindo-se de linguajar poético, apresenta um projeto de vida ética de elevado teor, onde todas as ações humanas se alicerçam no amor que, no final das contas, será a única coisa que permanecerá na relação do ser humano com Deus. O “hino à caridade” é uma pérola dos escritos neotestamentários (cf. 1Cor 13,1-13).
Dois tópicos chamam a atenção. Paulo refere-se à possibilidade de se ter “toda a fé, a ponto de transportar montanhas”; sem a caridade, porém, “nada seria” (v.2). Não é fácil pensar “toda a fé” desprovida de caridade. Que fé seria? Ainda mais espantosa é a eventualidade de alguém distribuir todos os seus bens aos famintos e entregar seu corpo às chamas, sem ser movido pela caridade (v.3). Não seriam atos heroicos de oblatividade? Como pensá-los à margem da caridade? O apóstolo parece servir-se de uma linguagem paradoxal para chamar a atenção para o valor supremo da caridade.
O amor-ágape tem muitíssimos rostos: paciência, serviçalismo, gentileza, esperança, suportabilidade. Por outro lado, não cultiva a inveja, a ostentação, o orgulho, a irritabilidade nem o rancor. Não é inconveniente; deixa de lado o interesse pessoal; se entristece com a injustiça, mas se alegra com a verdade (v.4-7). A vida virtuosa é fruto do amor-ágape! Deixar-se guiar por ele corresponde à atitude mais sensata do cristão.
No ocaso da vida, o amor-ágape despontará como a virtude mais preciosa do cristão. Embora permanecendo a fé e a esperança, maior que ambas é a caridade (v.13).
4.3 “Faze isto e viverás!”
A parábola do bom samaritano comporta um ensinamento essencial para a ética cristã: a misericórdia deve ser radical (cf. Lc 10,25-37). A questão de fundo é a pergunta do doutor da Lei Mosaica, dirigida a Jesus: “Que farei para herdar a vida eterna?” (v.25).
A história contada para explicar “quem é meu próximo?” comporta dois personagens que, ligados a Deus por suas funções, praticam uma religião sem entranhas de misericórdia. O sacerdote e o levita passam insensíveis ao largo, ao se depararem com o homem caído na beira da estrada (v.31-32). A necessidade do próximo não lhes toca o coração. Deus lhes basta! Será?
No extremo oposto da relação com Deus na visão dos judeus, um samaritano é introduzido na história. Era bem conhecida a hostilidade dos judeus em relação aos samaritanos (cf. Jo 4, 9). Exatamente um samaritano se depara com o homem desnudado, espancado e deixado semimorto (v.30). A grande probabilidade de ser um judeu já seria motivo para passar adiante, sem se importar com sua sorte. Entretanto, deixando de lado os preconceitos, sua vida muda de direção. A carência do ser humano que tem diante de si lhe ocupa toda a atenção. Uma cascata de expressões de misericórdia acontece!
“Chegou junto dele, viu-o e moveu-se de compaixão” (v.33). É o começo de tudo! O samaritano deixou-se afetar pelo homem caído. A afecção tocou-lhe as entranhas, a ponto de não deixá-lo impassível. Antes, moveu-o a agir, sem interpor dificuldades. “Aproximou-se, cuidou de suas chagas, derramando óleo e vinho, depois o colocou em seu próprio animal, conduziu-o à hospedaria e dispensou-lhe cuidados. No dia seguinte, tirou dois denários e deu-o ao hospedeiro dizendo: ‘Cuida dele, e o que gastares a mais, em meu regresso te pagarei’” (v.34-35). O samaritano esgotou todas as possibilidades de se mostrar solidário com o homem aviltado em sua dignidade. Foi misericordioso até o extremo!
A palavra de Jesus ao mestre da Lei aplica-se a todos quantos se fazem discípulos do Reino, no seguimento do Mestre de Nazaré: “Vai, e também tu faze o mesmo” (v.37). A vivência radical da misericórdia, que se faz solidária com as carências do irmão sofredor, é a quintessência da ética cristã, caminho de comunhão com o Pai, revelado por Jesus.
5 Desafio atual
Os cristãos e cristãs da América Latina deparam-se com o desafio de viver a fé, com densidade ética, num Continente marcado pela injustiça, com seus muitos rostos de empobrecimento, miséria, desigualdade, violência, morte e corrupção. Dizer-se adorador ou adoradora do Deus de Jesus Cristo, esquivando-se do confronto com o irmão e a irmã cujos direitos lhes são negados, corresponde a rejeitar com a vida (ética) o que se professa com a fé (teologia). As palavras do Mestre de Nazaré continuam a soar, como aguilhão a despertar-lhes a consciência: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21). Qual é a vontade do Pai celeste senão que vivamos a caridade, “plenitude da Lei” (Rm 13,10)?
Jaldemir Vitório SJ, FAJE, Brasil. Texto original português.
6 Referências bibliográficas
ADRIANO, J. A caridade e a ética da vida. Revista de Cultura Teológica, n.9, p.37-59. 2001.
BARROS, M. Ética e solidariedade na Bíblia. Magis Cadernos de Fé e Cultura, n.2, p.109-32. 1994.
HARRINGTON, D. Jesus e a ética da virtude: construindo pontes entre os estudos do Novo Testamento e a teologia da moral. São Paulo: Loyola, 2006.
MATERA, F. J. Ética do Novo Testamento: os legados de Jesus e de Paulo. São Paulo: Paulus, 1999.
PONTIFÍCIA Comissão Bíblica. Bíblia e Moral: raízes bíblicas do agir cristão. São Paulo: Paulinas, 2009.