Liturgia das horas

Sumário

Introdução

1 Desenvolvimento Histórico

2.1 A oração das horas no Novo Testamento

2.1.1 Jesus orava e recomendava a oração incessante

2.1.2 Oração das horas na Igreja Apostólica

2.2 A evolução do Ofício Divino do séc. II ao séc. V         

2.3 O Ofício Divino da Idade Média ao Vaticano II

3 Estrutura e elementos do rito da Liturgia das Horas

4 Simbolismo e Teologia da Liturgia das Horas

5 Pastoral

Considerações conclusivas

Referências

Introdução

A Liturgia das Horas é uma das várias formas de oração da Igreja, que visa santificar o dia inteiro através da oração ininterrupta. Composta por hinos, salmos, cânticos, antífonas, leituras bíblicas e textos de grandes escritores eclesiásticos e documentos do Magistério, ela é rezada em horas determinadas: Horas Maiores: Laudes (ao amanhecer) e Vésperas (ao entardecer); Horas Menores: Terça (à metade da manhã), Sexta (ao meio-dia), Nona (à metade da tarde) e Completas (antes do repouso noturno). Assim sendo, já se pode perceber que seu simbolismo é cósmico e que, por causa dos diferentes fusos horários das diversas regiões do nosso planeta, a cada hora a Terra é banhada por uma onda de oração. Essas horas têm também um valor simbólico-sacramental, uma vez que remetem a determinados eventos importantes na vida de Jesus de Nazaré e dos Apóstolos, portanto, um caráter salvífico (cf. AUGÉ, 2005, p. 230).

A Liturgia das Horas, como já sugere o próprio nome, insere-se na dinâmica ritual e teológica do espaço e do tempo litúrgicos. Essa dinâmica, por sua vez, enraíza-se no fato da encarnação do Verbo eterno do Pai, Jesus Cristo. De fato, com a encarnação do Verbo, Deus irrompe na história humana e, de modo indelével, se une à humanidade assumindo a nossa carne na pessoa de Jesus de Nazaré. O Eterno entra no espaço e no tempo e, com esse fato, transforma o krónos em Kairós, ou seja, em tempo de salvação.

Contudo, essa dinâmica da encarnação do Verbo eterno recebe sua luz do Mistério Pascal de Cristo. De fato, no centro de toda a vida da Igreja – estrutura, culto, ação apostólica, espiritualidade, teologia, ética etc. – está a Páscoa do Cristo. Disso se conclui que a Liturgia das Horas é um tipo de oração essencialmente pascal, todas as horas referem-se ao Mistério Pascal de Cristo. Aliás, é esse último que está no centro, não só da Liturgia das Horas, mas de toda a vida litúrgica da Igreja.

1 Desenvolvimento histórico
2.1 A oração das horas no Novo Testamento

Certamente aqui não é nossa intenção encontrar a estrutura da Liturgia das Horas, conforme a conhecemos hoje ou o mais próximo disso, mas simplesmente encontrar as raízes bíblicas do costume da Igreja de rezar em horas determinadas, algo que sempre esteve presente na sua vida desde os seus primórdios. A Liturgia das Horas, embora tenha suas raízes na oração de Jesus e dos seus santos Apóstolos que, por sua vez, seguiam os costumes de sua religião, o judaísmo, conheceu um longo e profundo desenvolvimento ao longo da história da Igreja, o que veremos a seguir.

2.1.1 Jesus orava e recomendava a oração incessante

Nos evangelhos podemos encontrar informações sobre a oração de Jesus. Ele, seguindo os costumes da religião de seus pais, o judaísmo, observava as suas prescrições litúrgicas além de se dirigir a Deus na intimidade ao Pai. Assim sendo, Jesus, desde a infância, na companhia de seus pais, frequentava anualmente o templo nas grandes festas pascais (cf. Lc 2,41), e também na idade adulta (cf. Jo 2,13-14). Costumava frequentar a sinagoga em dia de sábado (cf. Mt 12,9; Mc 3,1; Lc 4,16). Afastava-se sozinho para rezar em lugares desertos (cf. Lc 5,16) e, às vezes, à noite (Mc 1,35). A oração era um hábito na vida de Jesus; o evangelista Lucas cita várias vezes a oração de Jesus (cf. 5,16; 6,12; 9,18.28-29 passim); e nesses momentos ele se dirigia a Deus na intimidade filial (cf. Lc 10,21; 22,42; 23,43.46; Jo 11,41-42; 17,1).

A prática da oração de Jesus não se restringia a ele, pois ensinava seus discípulos a orar (cf. Mt 6,5-13); e recomendava vivamente aos seus discípulos a oração incessante (Lc 18,1-7; 21,36)). Ensinava-lhes, além da oração pessoal, a oração comunitária (Mt 18,19-20).

Além disso, sabemos que os evangelhos não são a biografia de Jesus, senão uma cristologia das comunidades dos seus redatores. Portanto, é de se imaginar que as orações que os evangelistas atribuem a Jesus são também as orações praticadas pelas comunidades, no seio das quais surgiram esses tratados baseados nas experiências que elas fizeram do encontro com Jesus de Nazaré.

2.1.2 Oração das horas na Igreja Apostólica

Entretanto, os outros escritos neotestamentários – além dos quatro evangelhos – nos dão informações sobre a oração das primeiras comunidades cristãs. Podemos ver Pedro e João subirem ao Templo para a oração das três horas da tarde (At 3,1), isto é, a hora nona. Mas, ao que tudo indica, também toda a comunidade da Igreja nascente tinha o costume da oração incessante. De fato, “eles eram assíduos ao ensinamento dos apóstolos e à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações” (At 2,42); também “de comum acordo iam diariamente ao Templo com assiduidade: partiam o pão em casa, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46). O apóstolo Tiago recomenda à sua comunidade: “Algum de vós está sofrendo? reze” – aqui se trata da oração pessoal, mas logo a seguir se refere à oração da Igreja (TEB, nota versão): “Algum de vós está doente? Mande chamar os anciãos da Igreja e estes orem” (Tg 5,14).

2.2 A evolução do Ofício Divino do séc. II ao séc. V         

Esse hábito da oração pessoal e comunitária incessante passará às comunidades pós-apostólicas e acompanhará a Igreja ao longo de toda a sua história, até os nossos dias. Já no final do séc. I ou início do séc. II, na Didachè, capítulo IX, recomenda-se rezar a oração do Pai Nosso três vezes ao dia. No norte da África, onde muito cedo se formaram fervorosas e bem estruturadas comunidades cristãs, temos o testemunho de Clemente Alexandrino (Stromata); também temos informações do primeiro escritor eclesiástico de língua latina de que se tem notícia, Tertuliano (De oratione; De ieiuno), passando por Cipriano (De oratione dominica) a Agostinho de Hipona (Sermones ad competenti).

Atribuída a Hipólito de Roma, temos também a Traditio Apostólica (início do séc. III) que nos dá informações das horas de oração: ao amanhecer antes de começar qualquer atividade (esta hora na Igreja); à hora terça, à hora sexta e à hora nona, onde quer que esteja; antes do repouso noturno; e, por fim, à meia-noite. No final do séc. IV, a peregrina Egéria, que passou três anos na Palestina, dá informações sobre a liturgia de Jerusalém, especialmente, sobre as orações das horas na Igreja da Anástasis: Vigília (monges, virgens e leigos) entoam hinos, salmos, aos quais se responde com antífonas; depois que chegam dois ou três presbíteros e os diáconos, dá-se início à oração da manhã. O bispo chega com seus presbíteros e reza uma oração e dá a bênção aos que indicam seus nomes, por detrás das grades que fecham a gruta do túmulo onde o corpo de Cristo foi depositado. Depois voltam a se reunir no mesmo lugar à hora sexta e nona; à décima hora se faz o lucernário, as Vésperas (SCh, 2002, p. 239-241); não menciona uma oração noturna, mas nas páginas seguintes relata os ofícios solenes da Epifania, os quarenta dias que a seguem e os ofícios das festas pascais: Quaresma, Semana Santa, Páscoa, Oitava até Pentecostes (SCh, 2002, p. 251-305).

A partir dessa época, isto é, séc. IV, começam as primeiras tentativas de se organizar a oração das horas. Os autores costumam distinguir dois caminhos: um primeiro seguiria numa direção que chamamos Ofício Catedral, e um segundo numa outra direção que chamamos Ofício Monástico. O Ofício Catedral – também o paroquial – já era constituído das Horas Maiores – Laudes e Vésperas – sendo as Laudes precedidas de uma vigília aos domingos e dias festivos. O Ofício Monástico, além dessas duas Horas Maiores, se constituía de três horas diurnas, Terça, Sexta e Nona, e mais a Primeira e Completas. Além disso, os monges institucionalizaram as vigílias de oração como ofício cotidiano, uma vez que o seu ideal era o de recitar integralmente o Saltério (cf. LEIKAN, 2000, p. 48).

Digna de nota é a presença do Salmo 62 nas Laudes e do Salmo 140 nas Vésperas em todas as Igrejas já desde o séc. IV, segundo o testemunho de Eusébio de Cesareia (Comentário ao Salmo 140 e 142), João Crisóstomo (Catequeses batismais) e das Constituitiones Apostolorum. Esse último documento (fins do séc. IV ou inícios do V) já registra a presença do Nunc dimittis (Lc 2,29-32) no ofício vespertino.

2.3 O Ofício Divino da Idade Média ao Vaticano II

Entretanto, o Ofício monástico desenvolveu-se de tal forma que acabou influenciando o Ofício catedral. Para além do surgimento de novas línguas e o uso cada vez mais restrito do latim, outras razões – que não vem ao caso serem expostas aqui – fizeram com que o povo não tivesse mais acesso à liturgia em geral, passando o ofício a ser de “mão de obra especializada”, ou seja, do clero e dos monges. A partir do séc. IX, em muitas Igrejas locais, impunha-se ao clero a obrigação de recitar o ofício, então, fortemente influenciado pelo Ofício monástico que, por sua vez, previa mais horas e textos mais longos: ao longo do curso de uma semana, recitava-se todo o saltério e, em um ano, lia-se toda ou quase toda a Bíblia, e mais os hinos, cânticos, antífonas, responsórios etc.

Aqui não se pode deixar de mencionar a Regra de São Bento que, principalmente por obra de Carlos Magno, se impôs em quase todos os mosteiros do Ocidente. Na Regula Monasteriorum Sancti Benedicti Abbatis prescrevem-se sete orações das horas por dia citando o Salmo 118,164: “Eu vos louvo sete vezes cada dia” (Cap. XVI). Essas horas são: Laudes, Prima, Terça, Sexta, Nona, Vésperas e Completas.

Para a Hora Noturna, durante o Inverno (início de novembro até a Pascoa), são previstos 6 salmos precedidos do versículo “Abre, Senhor, os meus lábios e minha boca anunciará o vosso louvor”, ao qual segue o Salmo 3, o Glória, o Salmo 94 com antífona, seis salmos com antífonas, três leituras bíblicas com responsório, mais 6 salmos com aleluia, leitura do Apóstolo, e conclui-se com a súplica litânica, ou seja, Kyrie eleison (Cap. IX). A Hora Noturna é rezada na metade da noite por causa do Salmo 118,62: “Alta noite eu me levanto e vos dou graças”. Para o restante do ano, por causa da brevidade das noites, se faz apenas uma leitura do Antigo Testamento, permanecendo todo o resto como no período de Inverno (Cap. X). Aos domingos, porém, leem-se quatro leituras com responsório depois dos seis primeiros salmos e mais quatro depois dos outros seis salmos; três cânticos do Antigo Testamento com Aleluia; mais quatro leituras com responsório, Te Deum laudamus, leitura do Evangelho, Te decet laus e bênção final (Cap. XI).

As laudes, por sua vez, se compunham do Salmo 66 com antífona, seguido do Salmo 50 com Aleluia, o Salmo 117 e 62, o Benedictus, “Laudes”, uma leitura do Apocalipse, com responsório, hino ambrosiano, um versículo, cântico evangélico e se concluíam com a litania (Cap. XII). Para as demais horas, as composições são as seguintes: Prima: três salmos com um único Glória, hino, depois o versículo Deus, in adiuntorium meu…, três salmos, uma leitura, um versículo, Kyrie eleison e conclusão; a Terça, a Sexta e a Nona, o Ofício segue a mesma ordem para as três: versículo, o hino próprio da hora, três salmos, as leituras, o Kyrie eleison e as preces finais (Cap. XVII). Aqui se recomenda que, se a comunidade for numerosa, recitem-se os salmos com antífona.

As Vésperas se compõem de quatro salmos com as antífonas, a leitura, responsório, hino, versículo, cântico evangélico, a prece litânica e se concluem com o Pai Nosso. Nas Completas, se recitam os três salmos seguidamente sem antífona, o hino, uma única leitura, o versículo, o Kyrie eleison e se concluem com a bênção (Cap. XVII).

Da influência das regras dos mosteiros romanos no Ofício catedral surgirá uma espécie de Ofício monástico-eclesiástico; uma dessas novas regras será adotada pelo papa e os seus curiais a partir dos finais do séc. X ou início do séc. XI, o que ficou conhecido como Breviário da Cúria romana (cf. RAFFA, 2004, p. 655). Na primeira metade do séc. XIII, São Francisco de Assis adotará esse Ofício para sua ordem, o que, por sua vez, contribuirá para sua grande difusão em quase todo o Ocidente, se tornando a forma predominante (cf. RAFFA, 2004).

Na reforma tridentina do Breviário Romano, Pio V, com a bula Quod a nobis (1568), reduziu o número de salmos, mas introduziu o Ofício de Santa Maria no Sábado; reduziu ainda os textos hagiográficos. A bula não contempla os leigos, quando elenca os grupos de pessoas que estão obrigadas a rezar o ofício, e compromete o simbolismo das horas ao prever a recitação privadamente, chega mesmo a equipará-la à comunitária com a consequente recitação na hora que se pudesse. Doravante, o Breviário de Pio V será praticamente a única regra em toda a Igreja do Ocidente. Uma nova reforma só viria já no séc. XX, por obra de Pio X, com a bula Divino afflatu: reduziu o número de salmos em todas as horas, mas manteve a recitação do saltério no curso de uma semana fazendo uma nova distribuição dos salmos. Pio X fez essa reforma tendo em vista, sobretudo, as exigências do trabalho pastoral do clero.

Da reforma promovida pelo Vaticano II surge a Liturgia das Horas de Paulo VI, promulgada em 1º de novembro de 1970, a que usamos hoje. As grandes novidades aqui são: distribuição dos salmos em quatro semanas (cf. SC 91); a supressão da Hora Prima (SC 89); a possibilidade de a hora chamada Matinas ser recitada a qualquer hora do dia, embora conserve no coro a índole de louvor noturno, e reduz-se o número de salmos, mas propõe leituras mais longas; para as chamadas Horas Menores, a saber, Terça, Sexta e Nona, pode-se escolher uma delas fora do coro (SC 90) e, por fim, o uso da língua vernácula (SC 101). Recomenda-se ainda devolver fidelidade histórica aos martírios ou às vidas dos Santos (SC 92) e que “sejam retiradas ou mudadas aquelas coisas que sabem a mitologia ou são menos condizentes com a piedade cristã” (SC 93).

3 Estrutura e elementos do rito da Liturgia das Horas

A Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas (IGLH), no Capítulo II, muito apropriadamente, apresenta o rito com o título “A santificação do dia ou as diversas Horas do Ofício Divino”. São sete os momentos de oração (cf. Sl 118,164): Ofício das Leituras, Laudes, três Horas Médias, Vésperas e Completas. A Introdução do Ofício é, na primeira hora rezada (Laudes ou Ofício da Leituras), o Invitatório “Abri os meus lábios, ó Senhor. E minha boca anunciará o vosso louvor”, com o que “os fiéis são convidados cada dia a cantar os louvores de Deus e a escutar sua voz…” (ILGH 34); segue-se o Sl 94(95), que pode ser substituído pelos salmos 99(100), 66(67) ou 23(24) com suas respectivas antífonas. O salmo de abertura é rezado de forma responsorial, ou seja, a antífona se comporta como um refrão, mas, se for rezado individualmente, basta dizer a antífona no seu início e seu fim.

A hora chamada “Matinas” comparece na Liturgia das Horas de Paulo VI sob o título “Ofício das Leituras” que, como prevê a Sacrosanctum Concilium – já o mencionamos mais acima – pode ser rezado a qualquer hora do dia, embora conserve seu caráter de oração noturna (cf. SC 89; ILGH 57). Quando se abre o Ofício, reza-se no início o Invitatório, como dito no parágrafo anterior. Diferentemente da salmodia do ordinário do rito, o Salmo Invitatório é recitado de forma responsorial, ou seja, a antífona se comporta como um refrão, e o mesmo se diga para as outras opções de salmos previstos para esta hora. Quando o Ofício das Leituras não abre o ofício cotidiano, ele é aberto como as demais horas, ou seja, versículo de abertura e, logo em seguida o Hino. A salmodia, como nas demais horas, é composta de três salmos com as antífonas correspondentes; a isso segue o versículo, que faz a transição da salmodia para a escuta da Palavra de Deus. De fato, logo a seguir se lê uma leitura bíblica seguida de seu responsório. A segunda leitura é tomada das obras dos Santos Padres ou de outros escritores eclesiásticos. Aos domingos, dias de solenidade ou festa, entoa-se o Te Deum. O Ofício é encerrado com a Oração Conclusiva e o “Bendigamos ao Senhor. Graças a Deus”.

As Horas Maiores, ou seja, Laudes e Vésperas, são abertas com o versículo introdutório “Vinde, ó Deus, em meu auxílio. Socorrei-me sem demora”. As Laudes, porém, se forem a primeira oração do dia, são abertas com o Invitatório, seguido do Glória ao Pai, o hino próprio da hora, a salmodia com as respectivas antífonas com Aleluia – exceto no tempo da Quaresma – ditas no início e no fim, neste último caso, são precedidas do Glória ao Pai… Segue-se a recitação do hino, dos dois salmos, entre os quais, recita-se um cântico do Antigo Testamento, cada qual destes três elementos com suas respectivas antífonas no início e no final. Em prosseguimento, se lê a leitura breve com seu responsório – caso seja oportuno, pode-se fazer uma homilia ou um breve tempo de silêncio antes do responsório; essa leitura pode ser substituída por uma mais longa escolhida à vontade. Então recita-se o Cântico evangélico Bendictus – O Messias e o seu precursor (Lc 1,68-79) – com a sua antífona. Seguem as preces para consagrar o dia e o trabalho a Deus; a oração do Pai Nosso e, concluindo a ofício, a oração conclusiva e a despedida.

As Vésperas têm uma estrutura muito semelhante. Nunca se abrem com o Invitatório porque não é a primeira oração do dia. O Hino é o próprio dessa hora e outra diferença está na salmodia, ou seja, em vez de se rezar um cântico do Antigo Testamento, como nas Laudes, reza-se um do Novo Testamento. Outra diferença ainda está no Cântico evangélico: aqui se recita o Magnificat. Tudo o mais é feito como nas Laudes, evidentemente com os conteúdos próprios de cada hora. Observe-se aqui que nos sábados não há Vésperas porque, nesta hora, rezam-se as primeiras Vésperas do domingo, que é sempre solenidade; exceção a isto que acabamos de dizer é o Sábado Santo, porque não se rezam as primeiras Vésperas do Domingo de Páscoa que não pode ter outra oração antes da grande Vigília Pascal.

As Horas Médias têm uma estrutura bem mais simples: abertura como as Horas Maiores – nunca o versículo “Abre meus lábios, Senhor…” –; o hino próprio de cada hora; salmodia – quando se rezam as três horas, somente uma usa os salmos distribuídos no Saltério com suas antífonas, para as outras duas tomam-se dos Salmos Complementares, os assim chamados “Salmos Graduais”; leitura breve com seu responsório, oração conclusiva e despedida: “Bendigamos ao Senhor. Graças a Deus”. Observe-se que nestas três horas não se faz menção da memória dos Santos.

Antes do repouso noturno, a Igreja convida seus fiéis a elevarem suas mentes a Deus, em ritmo de oração. Para tanto, recitam-se as Completas que, como o próprio nome sugere, conclui o ofício cotidiano. De todas as horas, as Completas são as mais simples e breves em sua estrutura. Esta hora antes do repouso noturno é iniciada como as demais horas, – exceto a primeira oração do dia, isto é, Ofício das Leituras ou Laudes –, continua com o Hino, a salmodia composta de apenas um salmo, salvo quando são rezadas depois das primeiras vésperas dos domingos e solenidades, quando se rezam os salmos 4 e 133(134). Depois da salmodia se faz a Leitura Breve com o responsório “Senhor em vossas mãos entrego meu espírito… Vós sois o Deus fiel que salvastes vosso povo. Glória ao Pai…”; logo em seguida entoa-se o Nunc Dimittis, o Cântico de Simeão (Lc 2,29-32), com sua antífona. Essa hora termina com a Oração Conclusiva seguida da bênção “O Senhor todo-poderoso nos conceda uma noite tranquila e, no fim da vida, uma morte santa”; e, por fim, reza-se uma das antífonas de Nossa Senhora propostas na Liturgia das Horas.

Antes de passarmos ao próximo ponto é útil lembrar que a Liturgia das Horas segue o Ano Litúrgico e o Calendário Romano. Deste modo, o conteúdo eucológico varia de acordo com o teor teológico de cada tempo (Advento, Natal, Quaresma, Páscoa e Tempo Comum) – eis porque não se diz o Aleluia no final das antífonas na Quaresma –; e do mesmo modo celebram-se as solenidades, as festas e a memória dos Santos.

4 Simbolismo e teologia da Liturgia das Horas

Nas últimas décadas, se verifica uma forte tendência de fazer teologia da liturgia em geral e de suas celebrações “a partir da Lex Orandi”[1], ou seja, comentar a teologia dos sacramentos e demais celebrações litúrgicas a partir, principalmente, do rito e de seus conteúdos. Para a Liturgia das Horas não poderia ser diferente, tendo em vista a riqueza simbólica e espiritual de suas diversas horas.

Muito útil para a sua compreensão é começar pela nomenclatura. “Liturgia das Horas” é um título surgido em 1959 e é muito apropriado, porque expressa a finalidade dessa oração da Igreja, a saber, a santificação do curso do dia, em que o fiel se santifica – no rito bizantino se diz “relógio” pelo mesmo motivo. “Ofício Divino”, usado ainda hoje ao lado de Liturgia das Horas, este termo foi usado outrora para designar todo ato de culto e, depois, para designar a celebração litúrgica da Igreja, mas parece que visa também acenar para o caráter obrigatório, canônico, (Officium, dever) de sua recitação (cf. RAFFA, 2004, p. 652). “Breviário” parece-nos um tanto pobre para designar tão rica expressão litúrgica da Igreja, uma vez que foi usado para designar compilação, abreviação etc. dos diversos livros litúrgicos usados para a oração das horas na Idade Média. Ainda ao longo da história da liturgia foram usados os seguintes nomes: cursus, preces horariae, opus Dei, horae canonicae (cf. RAFFA, 2004, p. 652).

Originalmente, o Oficio das Leituras – na Sacrassanctum Concilium ainda se usa a expressão “Matinas” – tem caráter noturno. Rezava-se na metade da noite, sobretudo nos mosteiros, uma referência ao Salmo 118(119),62. O simbolismo dessa hora é o das “trevas”, das quais Cristo nos arrancou. Podemos encontrar um exemplo no hino “A noite escura apaga”. Já na primeira estrofe se diz: “A noite escura apaga da treva toda cor…” sugerindo que as trevas nos impedem a visão física, metáfora da visão beatífica. E segue “Juiz dos corações a vós nosso louvor” sugerindo que o nosso louvor ao Cristo é incessante.

Isso que acabamos de dizer parece ser reforçado pela parábola das “dez virgens” (Mt 25,1-10), que se insere num quadro literário de teor marcadamente escatológico: a vinda do Filho do Homem (Mt 24,26-35); desconhecimento do dia do juízo final (Mt 24,36-51); os talentos (Mt 25,14-30); o juízo final (Mt 25,31-46). O simbolismo das lâmpadas com óleo suficiente para serem acesas à chegada do esposo sugere não só uma atitude de vigiar (cf. Mt 24,42), mas sobretudo o estar preparado para a “hora”.

As Laudes têm um simbolismo natural, o sol, pelo fato de serem rezadas às primeiras luzes. O sol, “o astro nascente”, de fato, é uma referência bíblica ao Messias (para indicar o descendente de Davi: Jr 23,5; Zc 3,8; 6,12; o verbo correspondente para indicar o do astro messiânico: Nm 24,17; cf. Ml 3,20; Mt 2,2; Lc 1,78). O sol, portanto, a luz, é um simbolismo já presente tanto no Antigo como no Novo Testamento, aqui especialmente na literatura joanina:

Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, e as trevas não a compreenderam. Houve um homem enviado por Deus; o seu nome era João.  Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por ele. Ele não era a luz, mas devia dar testemunho da luz. O Verbo era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem (Jo 1,4-9).

João volta a insistir neste simbolismo: “Novamente Jesus lhes dirigiu a palavra: ‘Eu sou a luz do mundo. Aquele que vem em meu seguimento não andará nas trevas; ele terá a luz que conduz à vida’” (Jo 8,12); e mais adiante escreve: “por quanto tempo eu estiver no mundo, eu sou a luz do mundo” (Jo 9,5); e ainda:

Jesus lhes respondeu:

A luz ainda está entre vós por pouco tempo. Caminhai enquanto tendes a luz, para que as trevas não se apoderem de vós; pois quem caminha nas trevas não sabe para onde vai. Enquanto tendes a luz, crede na luz, para vos tornardes filhos da      luz. (Jo 12,35-36)

E mais: “Eu, a luz, vim ao mundo a fim de que todo aquele que crê em mim não pereça nas trevas” (Jo 12,46). Notemos que, em todos esses versículos, Jesus se autoidentifica com a luz, símbolo da salvação, enquanto à treva é identificado o pecado, o não estar e andar na presença de Deus.

Contudo, João não é o único a usar o simbolismo da luz aplicado ao Cristo e à salvação que Ele nos alcançou em seu mistério pascal. Podemos também encontrar esse simbolismo nos escritos paulinos: “Dai graças ao Pai que vos permitiu partilhar da herança dos santos da luz. Ele nos arrancou do poder das trevas e nos transferiu para o reino do Filho do seu amor” (Cl 1,12-13; cf. 1Ts 5,5; Hb 6,4; 10,32).

Robert Taft observa que o simbolismo da luz, ao ser aplicado aos que vivem em Cristo (Ef 5 e 1Jo 1,5-7; 2,8-11), tem uma dimensão moral e comunitária, bem como observa que o livro do Apocalipse é concluído com um belo hino que faz referência à luz do Cordeiro na Cidade Santa da Jerusalém celeste (Ap 21,22-26) (TAFT, 2000, p. 157).

Mas vejamos agora como esse tema da luz, no seu simbolismo natural, o sol, aparece no rito das Laudes, com uma clara referência à ressurreição de Jesus. De início, observemos que este tema é constante nessa hora por causa do hino Benedictus, também conhecido como “Canto de Zacarias”. No hino do Advento, proposto para essa hora, podemos ler: “Em meio à treva escura, ressoa clara voz. Os sonhos maus se afastem, refulja o Cristo em nós. Despertem os que dormem feridos de pecado. Um novo sol já brilha, o mal vai ser tirado”. No hino proposto para o tempo de Natal, o sol aparece como marcador da duração do louvor, mas não é aplicado ao Cristo tampouco à sua ação salvadora. Para o tempo da Quaresma, curiosamente o simbolismo da luz/sol não aparece no hino proposto para o domingo, o dia do sol, mas está no hino proposto para os dias da semana: “Ó Cristo, sol de justiça, brilhai nas trevas da mente. Com força e luz, reparai a criação novamente”. No hino das Laudes da Semana Santa, o tema é mais ligado aos mistérios da paixão de Cristo e não faz referência ao simbolismo luz/sol. Para os domingos de Páscoa, porém, o simbolismo aparece sob a imagem da “rutilante aurora” e, para os dias da semana, o simbolismo luz/sol aparece mais explicitamente: “A fiel Jerusalém canta um hino triunfal, celebrando, jubilosa, Jesus Cristo, a Luz pascal”.

Nas solenidades que ocorrem fora do Tempo Pascal, o tema vai aparecer no hino das Laudes da Santíssima Trindade e é igualmente atribuído à Trindade: “Ó Trindade, num sólio supremo que brilhais, num intenso fulgor”;  e ao Filho: “Esplendor e espelho da luz sois, ó Filho, que irmãos nos chamais”; e o Espírito Santo: “Piedade e amor, fogo ardente, branda luz, poderoso clarão, renovai nossa mente, ó Espírito, e aquecei o fiel coração”. Na solenidade do Sagrado Coração de Jesus, esse simbolismo aparece na quinta estrofe do hino das Laudes: “Ficai conosco, Senhor, nova manhã que fulgura e vence as trevas da noite, trazendo ao mundo a doçura”. Esta estrofe deixa claro que nas Laudes se celebram a presença do Cristo-Luz entre os fiéis e a vitória de Cristo sobre as trevas do pecado e da morte.

Muitos são os exemplos que aqui poderíamos citar, mas estes nos bastam para percebermos que o tema luz/sol, em oposição à treva, é central no ofício das Laudes. Esta centralidade do simbolismo do sol, para além de nos remeter à ressurreição de Jesus, nos lembra uma das grandes maravilhas da criação, fonte de luz e calor, de vida de alimento, o que nos leva ao louvor e ação de graças (cf. TAFT, 2000, p. 158) por tantos dons recebidos da bondade do Senhor.

Contudo há outros elementos na estrutura das Laudes, que nos proporcionam o seu conteúdo teológico. O primeiro desses elementos é a santificação do período da manhã, mas, antes de iniciar qualquer atividade do dia, o fiel é convidado a voltar a sua mente para o Senhor (cf. IGLH 38). Assim, o cristão estará seguindo o conselho de Paulo quando diz “Portanto, quer vós comais quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (1Cor 10,31), ou seja, toda a sua jornada bem como todas as suas atividades temporais serão feitas diante e para a glória de Deus.

As Vésperas e as Laudes são chamadas de Horas Maiores. As Vésperas, porém, são celebradas ao despontar do entardecer. Como nas Laudes, o simbolismo central é o tema da luz em oposição à treva. Ao pôr-do-sol, acendem-se as lâmpadas; isto significa a luz de Cristo que treva alguma pode vencer. Para além de evocar as trevas da paixão de Cristo, as Vésperas nos fazem meditar sobre a transitoriedade da nossa vida e de toda Criação. Isto que acabamos de dizer nos abre para a dimensão escatológica da oração vespertina, uma vez que tal transitoriedade da vida deve nos abrir para a esperança da vida eterna. Outros grandes temas que aparecem neste ofício são a ação de graças pelos benefícios recebidos, o trabalho realizado e o bem que pudemos fazer ao longo do dia. Contudo, o tema das trevas nos faz recordar a nossa condição pecadora e, por isso, nos leva ao arrependimento e pedido de perdão pelos pecados que, porventura, tenhamos cometido. Ainda o tema da treva nos convida a pedir proteção divina contra os perigos que ela oferece.

Vimos que, nas Laudes, o simbolismo sol/luz, em oposição à treva, nos recorda a salvação em oposição ao mal e ao pecado em várias passagens bíblicas. Algo semelhante acontece nas Vésperas, por exemplo, no hino proposto para estas horas até o dia 16 de dezembro no Tempo do Advento, o simbolismo luz (redenção) versus trevas (pecado) aparece explicitamente: “Eterna luz dos homens, dos astros Criador, ouvi as nossas preces, de todos Redentor” (1ª estrofe); “Se a sombra do pecado a tudo escurecia, Esposo, vós saístes do seio de Maria” (3ª estrofe). Após o dia 16 até as vésperas do Natal, o hino proposto liga o tema da luz, na sua forma verbal “iluminar” à concepção virginal de Maria por obra do Espírito Santo. No tempo do Natal até a Epifania, Jesus é “Do Pai luz e esplendor” (2ª estrofe).

No tempo da Quarema, o hino de Vésperas também não traz o tema da luz, mas nos dias da semana sim: “A abstinência quaresmal vós consagrastes, ó Jesus, pelo jejum e pela prece, nos conduzis da treva à luz”. Aqui notemos, entretanto, que o simbolismo treva e luz é aplicado ao pecado (treva) e à salvação (luz), ou seja, a luz é simbolismo da ação salvadora de Cristo e treva da ação pecaminosa da humanidade. Para o Tempo Comum, tomemos como exemplo o hino das primeiras Vésperas do domingo da primeira semana: “Ó Deus, autor de tudo, que a terra e o céu guiais, de luz vestis o dia, à noite o sono dais” (1ª estrofe); “Senhor vos damos graças no ocaso deste dia. A noite vem caindo, mas vosso amor nos guia” (3ª estrofe); “E assim, chegando a noite, com grande escuridão, a fé, em meio às trevas, espalhe o seu clarão” (5ª estrofe). Aqui tampouco o simbolismo da luz é aplicado ao Cristo, mas os termos luz, dia, noite, ocaso, escuridão, trevas e clarão indicam a origem da luz em Deus e sua difusão em meio às trevas como obra da fé. Além de indicar com muita precisão a hora do ofício de Vésperas, celebra a confiança da fé na luz divina para atravessar a escuridão da noite, metáfora do pecado e da morte.

Nas segundas Vésperas do primeiro domingo, se celebra o Deus da criação e da autoria dos tempos: “Criador generoso da luz, que criastes a luz para o dia, com os primeiros raios da luz, sua origem o mundo inicia” (1ª estrofe); “Vós chamastes de ‘dia’ o decurso da manhã luminosa ao poente. Eis que as trevas já descem à terra: escutai nossa prece, clemente”. Em seguida aparecem os temas do arrependimento e do perdão pelos pecados cometidos ao longo do dia: “Para que sob o peso dos crimes nossa mente não fique oprimida, e, esquecendo as coisas eternas, não se exclua do prêmio da vida” (3ª estrofe); “Sempre à porta celeste batendo, alcancemos o prêmio da vida, evitemos do mal o contágio e curemos da culpa a ferida” (4ª estrofe).

As Horas Menores ou Hora Média, a saber Terça (às nove horas), Sexta (ao meio-dia) e Nona (às quinze horas), têm um caráter simbólico-sacramental, pelo fato de fazerem referência aos momentos chave do mistério de Cristo e da ação apostólica dos Doze (cf. IGLH 75). Seu intuito é que os cristãos interrompam suas atividades e orem para a santificação do dia e de suas próprias atividades. Mas vejamos como os temas ligados ao mistério da paixão de Cristo aparecem no rito, especificamente, nos hinos dessas três horas.

Na Oração das Nove Horas, o hino proposto para o Tempo de Quarema é exemplar, porque confirma o que acabamos de dizer no parágrafo precedente. A primeira estrofe é um louvor às três virtudes teologais, dons que nos são oferecidos pelos méritos da paixão de Cristo: “Na fé em Deus, por quem vivemos, na esperança do que cremos, no dom da santa caridade, de Cristo as glórias entoemos”. A confirmação do que acabamos de fazer bem como a referência à paixão de Cristo aparecem na estrofe seguinte: “Ao sacrifício da Paixão na hora terça conduzido, Jesus levando a cruz às costas, arranca às trevas o perdido”. Essa referência à redenção sobressai mais nitidamente na terceira estrofe: “Vós nos livrastes do decreto duma total condenação; do mundo mau livrai o povo, fruto da vossa redenção”.

Na Oração das Doze Horas a referência à paixão de Cristo já aparece de modo explícito na primeira estrofe: “Na mesma hora em que Jesus, o Cristo, sofreu a sede, sobre a cruz pregado, conceda a sede de justiça e graça a quem celebra o seu louvor sagrado”. A estrofe seguinte é importante pelo fato de veicular a Liturgia das Horas ao sacramento da eucaristia: “Ao mesmo tempo ele nos seja a fome e o Pão divino que a si mesmo dá; seja o pecado para nós fastio, só no bem possa o nosso gozo estar”. Aqui se concebe a eucaristia como sacramento do sacrifício de Jesus.

A Oração das Quinze Horas, por sua vez, usa do simbolismo numérico para evocar o mistério da morte redentora de Cristo: “O número sagrado, três vezes três das horas, abrindo um novo espaço, nos chama à prece, agora. Ao nome de Jesus, perdão seu povo implora” (1ª estrofe). A terceira estrofe celebra a vitória da cruz sobre a morte e o retorno da luz após as densas trevas, uma clara referência à ressurreição de Cristo: “Agora morre a morte, vencida pela cruz; após as trevas densas, serena, volta a luz; o horror do mal se quebra, nas mentes Deus reluz”.

5 Pastoral da Liturgia da Horas

A liturgia em geral, já bem antes do final do primeiro milênio e devido a vários fatores, deixou de ser acessível ao povo cristão, já o dissemos, tornando-se “ofício” de “mão de obra especializada”, isto é, monges e clero. À eucaristia o povo assistia, mas não participava; ia à missa apenas para ver o “milagre eucarístico”. O famoso Decreto de Graciano (1140-1150) deixa muito clara a distinção entre os “espirituais” (os monges e o clero), classe destinada ao ofício divino, e os “carnais”, aqueles que se casam e podem depositar suas oferendas no altar, pagar os dízimos… (THION, 2005, p. 342). Uma situação que perdurou na Igreja Católica até o Concílio Vaticano II. Isso já aponta para o desafio de uma mudança de mentalidade, consolidada por séculos de história. Para agravar esse desvio, a Igreja precisa lidar com a questão do estilo de vida moderno, que deixa as pessoas cada vez mais sem tempo para cuidar de sua vida pessoal e, aqui, a dimensão espiritual é a mais prejudicada.

Algumas iniciativas têm sido tomadas: o reconhecimento oficial da Igreja que a liturgia é culto público, inclusive a Liturgia da Horas:

O exemplo e o preceito do Senhor e dos Apóstolos de orar sempre e com insistência não devem ser considerados como regra meramente legal, mas derivam da essência íntima da própria Igreja, que é comunidade e deve expressar seu caráter comunitário também ao orar. Mas a oração da comunidade tem dignidade especial, já que o próprio Cristo disse: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou ali, no meio deles” (Mt 18,20). (IGLH 9)

E mais adiante se reconhece que “A Liturgia das Horas, como as demais ações litúrgicas, não é ação particular, mas algo que pertence a todo o Corpo da Igreja e o manifesta e atinge” (IGLH 20), seguindo um princípio vital estabelecido pelo Vaticano II (SC 26). Além disso, reconhece que a Liturgia das Horas é ápice e fonte da atividade pastoral (IGLH 18), algo sobre o qual os leigos vêm assumindo cada vez mais sua responsabilidade. Contudo a participação dos leigos na oração das horas é ainda muito tímida.

Com relação à linguagem, no Brasil, há três décadas surgiu o Ofício Divino das Comunidades, porém a participação do povo continua tímida[2]. No conjunto da América Latina, difundiu-se também a prática da Leitura Orante, ligada não tanto à Liturgia das Horas, mas à prática, também monástica, da Lectio Divina. Urge, contudo, que tais iniciativas sejam aprofundadas por peritos em liturgia e lideranças comunitárias, sem os quais qualquer reflexão teológico-pastoral fica comprometida, e por pastores verdadeiramente comprometidos com as comunidades cristãs.

Contudo, adverte-se que seria totalmente ilusório esperar do cristão contemporâneo um grau de comprometimento semelhante ao dos cristãos dos primeiros séculos da vida da Igreja. Contudo, é neste mundo, através de avanços tecnológicos gigantescos que oferecem às pessoas diversões de todo o tipo, que a Igreja continua sendo enviada a anunciar, testemunhar e celebrar o Evangelho de Cristo.[3]

Considerações conclusivas

Ao longo do texto, procuramos conceituar, mostrar a evolução histórica, apresentar a teologia simbólica e os desafios pastorais da Liturgia das Horas. Com isso, esperamos ter conseguido mostrar o verdadeiro espírito dessa forma de oração da Igreja, que lhe é essencial. Chegamos à conclusão de que se trata de algo verdadeiramente evangélico e vital para o caminho dos cristãos, apesar de todas as suas vicissitudes. Uma vez que é o exercício sacerdotal de Cristo que une a si sua dileta Esposa, a Igreja, sob a ação do Espírito Santo, a Liturgia das Horas conserva sua força de santificar o ser humano e consagrar o tempo e todas as atividades humanas ao Deus da vida, banhando o mundo, a cada hora, com uma onda de Oração.

Marco Antonio Morais Lima, SJ. Universidade Católica de Pernambuco. Texto original português. Submetido: 15/11/2021. Aprovado: 15/12/2021. Publicado: 30/12/2021.

 Referências

AUGÉ, M. Liturgia. História, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 2005.

CONCÍLIO VATICANO II. Sacrosanctum Concilium. Constituição sobre a sagrada liturgia. Petrópolis: Vozes, 1968.

CONGREGAÇÃO DO CULTO DIVINO E DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Liturgia das Horas. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulinas/Paulus, 1995.

LEIKAM, R. M. La Liturgia delle Ore nei primi quattro secoli. In: CHUPUNGCO, A. J. Scientia Liturgica. Manuale di liturgia V. Casale Monferrato: Piemme, 2000. p. 90-130.

RAFFA, V. Liturgia das Horas. In; SARTORE, D.; TRIACCA, A. M. Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulus, 2004. p. 651-670.

TAFT, R. F. Teologia della Liturgia delle Ore. In: CHUPUNGCO, A. J. Scientia Liturgica. Manuale di liturgia V. Casale Monferrato: Piemme, 2000. p. 150-165.

[1] Veja-se a este respeito a breve, porém profunda, exposição de TABORDA, F. O Memorial da Páscoa do Senhor. Ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2009, p. 21-37.

[2] Sobre o Ofício Divino das Comunidades, veja-se o verbete nesta mesma Enciclopédia.

[3] Muito se investiu nos últimos anos na criação de aplicativos, que disponibilizam, em formato digital, o conjunto da Liturgia das Horas. Outros formatos, ligados à Leitura Orante, também estão disponíveis, como Lecionaltas, Passo a Rezar, Prayer walking etc.