A recepção do Vaticano II na América Latina e Caribe. Um olhar de conjunto sobre alguns pontos relevantes

Sumário

Introdução

1 Sinais dos tempos – Método Ver-Julgar-Agir

2 A irrupção dos pobres e para eles a manifestação de Deus

3 Transformações em algumas formas de vida no Povo de Deus

3.1 O serviço presbiterial

3.2 Transformações na vida religiosa ou consagrada

4 A leitura popular da Bíblia e a animação bíblica de toda a pastoral

5 A reforma litúrgica e a religiosidade popular

Reflexões finais

Referências

Introdução

Analisar a recepção conciliar nas igrejas de um continente é uma tarefa que requer  uma clara consciência dos limites. Por um lado, a obra do Vaticano II abrange os mais diversos temas da vida da Igreja e das teologias de uma região, por outro lado, particularmente na América Latina e no Caribe, cresce a conscientização sobre a complexidade e a diversidade das realidades socioculturais. Estas não são apenas as diferenças entre os países, mas também entre as múltiplas subculturas dentro deles. O Sínodo panamazônico de 2019 também revela que certas regiões compartilham formas de vida e desafios além das fronteiras políticas nacionais. São mais de sete milhões e meio de quilômetros quadrados com nove países (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela, incluindo a Guiana Francesa). A região registra a presença de cerca de três milhões de povos indígenas, representando cerca de 390 povos e nacionalidades diferentes. No entanto, mesmo com todas essas realidades plurais e complexas, é possível reconhecer características comuns, mesmo em referência à vida da Igreja, que nos permite falar de uma realidade latino-americana e caribenha.

Existiu e existe ainda hoje um consenso quase unânime sobre o valor positivo e decisivo do Concílio para a vida da Igreja neste continente. Isso pode ser verificado nos mais diversos textos: os episcopais – individuais e colegiados – as inúmeras produções teológicas e pastorais de múltiplos grupos, particularmente grupos de padres de diversos países, de congregações religiosas etc. O Vaticano II, como um todo, logo se tornou um símbolo de renovação. Algumas análises assumiram a imagem de um novo Pentecostes para caracterizar a importância deste evento. Muitas das expressões mais típicas do catolicismo latino-americano pós-Concílio, como as comunidades eclesiais de base (CEBs), a leitura popular da Bíblia, a valorização da religiosidade popular, a inserção da vida religiosa em ambientes pobres, inclusive a teologia da libertação, se reconhecidas como realidades teológico-pastorais devedoras e agradecidas do evento conciliar. Essas realidades eclesiais, entre outras, são as que possibilitam afirmar que a recepção nessas terras tem sido “seletiva, criativa e fiel” (GALILEA, 1987).

Outro aspecto geral caracteriza a recepção: os mesmos textos do Vaticano II não foram trabalhados diretamente na mesma proporção do que foi feito em outras línguas e regiões. A análise da recepção conciliar ainda deve ser feita onde sua ligação com o Vaticano II não é explícita. É possível falar de um vínculo mediado, mas de forma alguma superficial. Dois fatos podem ser verificados em grande parte da literatura teológica de nosso continente, ao contrário da pesquisa em outras latitudes. O Vaticano II é normalmente considerado em conjunto com a Conferência de Medellín como um único grande evento de celebração e recepção. Provavelmente a natureza ainda muito europeia do Concílio, visível em seus temas atuais e também nos ausentes, contribuiu para essa dinâmica. Assim, no final do 50º ano, falou-se de uma “memória dupla”, o Concílio e a Conferência de Medellín (LIBANIO, 2013, p. 164). G. Gutierrez caracterizou bem esse aspecto.

Considero que, da América Latina e do Caribe, é legítimo entender por evento conciliar o conjunto de três elementos: João XXIII e suas intervenções nos dois anos que antecederam a abertura do Concílio, onde expressou intuições, que não foram totalmente reconhecidas no Concílio. (…) Em segundo lugar, os documentos conciliatórios elaborados, após longas discussões, incluindo o clima em que foram discutidos e aprovados. Finalmente, a Conferência Episcopal de Medellín, convocada para considerar a situação da Igreja e da América Latina à luz do Concílio, foi a primeira e criativa recepção de três anos após o ápice do Vaticano II. (…) Medellín foi, ao mesmo tempo, uma leitura do Vaticano II da América Latina e do Caribe. (GUTIÉRREZ, 2013, p. 116-117)

Com o início da “latinoamericanização” do Vaticano II (GALLI, 2018, p. 14) surge um novo fenômeno. O nascimento da consciência de ser uma igreja regional com traços próprios, com realidades diversas a de outros continentes, especialmente o europeu, tem seu ponto de partida, precisamente, no evento do Concílio e sua recepção imediata na Segunda Conferência Episcopal Latino-Americana realizada em Medellín (1968). Este evento é caracterizado “em certo sentido”, como “a certidão de nascimento da Igreja latino-americana e caribenha” (BEOZZO, 2008).

A recepção da herança conciliadora, por outro lado, está em grande parte ligada a alguns grandes textos magisteriais subsequentes. Um caso emblemático é representado pela exortação Evangelii Nuntiandi (1975), decisiva para a perspectiva da Conferência Geral realizada em Puebla (1979); essa exortação é o documento pós-Concílio mais relevante no parecer de Francisco (FRANCISCO, 2014a). A encíclica Populorum Progressio (1967), que apresenta uma reflexão não suficientemente discutida no Vaticano II, teve uma importante influência na Conferência de Medellín; foi até classificada como “algo como a Gaudium et spes do Terceiro Mundo” (GUTIÉRREZ, 2018, p. 86).

 1 Sinais dos tempos – Método Ver-Julgar-Agir

A perspectiva metodológica utilizada na linguagem magistral, na programação da ação pastoral da Igreja e na elaboração teológica nessas décadas revela uma das principais linhas de acolhimento do Concílio no continente. O teólogo chileno Juan Noemi caracterizou justamente a nova situação: “Antes do Vaticano II, prevalece um exercício teológico para o qual o contexto espacial e temporal constitui uma exterioridade, um acidente que não é considerado em si como determinante da teologização” (NOEMI, 1996, p. 31). Com essa perspectiva histórica e de metodologia teológica, fica mais evidente o que aconteceu na Conferência de 1968:

a coisa mais decisiva em Medellín não é ter colocado sobre a mesa a questão da libertação como tal, mas sim que pela primeira vez de maneira explícita e consciente, a situação da América Latina é considerada, não mais como um acidente dispensável, mas como pano de fundo para o que o exercício teológico é confrontado. (…) Incentiva um trabalho teológico localizado e responsável pela realidade concreta e não além dela. (NOEMI, 1996, p. 46)

Nesta perspectiva se percebe, então, o sucesso de uma descoberta de Víctor Codina: Gaudium et spes é “o texto que teve maior impacto na América Latina por seu convite a ouvir e discernir os sinais dos tempos” (CODINA, 2013, p. 84). Como é sabido, o Vaticano II deu um passo inicial e muito debatido durante a elaboração da Constituição pastoral. Entre as novidades propostas pela última versão do chamado Esquema XIII na quarta sessão do Concílio estava a estrutura hermenêutica do documento que, como afirma C. Theobald, “estava fundada sobre o método indutivo ‘ver-julgar-agir’ da Ação Católica, introduzido como um esquema estruturante na primavera de 1965” (THEOBALD, 2015, p. 228). A partir desse momento, a interpretação dos sinais dos tempos, expressão bíblica e pastoral que simboliza esse método, foi adquirida como princípio teológico do qual toda a futura Constituição se organiza. Além disso, essa metodologia indutiva, com uma trilogia dialeticamente articulada, criada por Joseph Cardijn, fundador da Juventude Operária Cristã (JOC), já era utilizada antes do Concílio em múltiplas instâncias da vida das igrejas na América Latina e do Caribe (BRIGHENTI, 2015, p. 608-615).

É possível verificar nos diálogos e na bibliografia internacionais que a constituição Gaudium et spes e, em particular, essa metodologia, foram realmente assumidas nos diversos continentes, ainda que de uma maneira diferenciada (SANDER, 2005, p. 835-859). Assim, as teologias da libertação em suas diferentes formas ‒ norte-americanas, sul-americanas, asiáticas e africanas ‒ tiveram, nesse modo de proceder, um “padrão comum”, um “fio condutor”, ainda que, sua diversidade de gênero, de origem econômica, nacional e étnica, cultural e/ou religiosa, que não deva ser subestimada (PHAN, 2000, p. 62).

Mas é preciso reconhecer que, a partir dessa perspectiva metodológica, a América Latina percorreu um caminho peculiar no pós-Concílio: essa abordagem teve uma repercussão e desenvolvimento maiores sobre ela do que em outras regiões. A Conferência de Medellín (1968) assumiu criativamente o método de reflexão teológica da Constituição pastoral. Sua principal característica é que, ao contrário do Concílio, o método não só influenciou um documento, mas a “mecânica de trabalho”, como era chamada, de toda a Conferência, que se moldou aos documentos elaborados. Graças a Medellín, aliás, o impacto do método para moldar a identidade eclesial latino-americana nos anos seguintes é inegável. Como Brighenti afirmou, ele está na base de práticas eclesiais populares que desembocaram na opção pelos pobres, na formação das comunidades eclesiais de base, na prática da leitura popular da Bíblia, no desenvolvimento da assistência pastoral social, na militância cidadã e na própria teologia da libertação (BRIGHENTI, 2015, p. 608). Todas essas expressões eclesiais, com suas riquezas e limitações, representam uma certa novidade teológico-pastoral qualitativa na história da Igreja e, em grande parte, identificam por sua “originalidade” a caminhada e o peculiar rosto latino-americano. Nesse sentido, a declaração de José Legorreta, que muitos autores compartilhariam, é significativa: “o método ver-julgar-agir tornou-se emblemático da nova forma de ser igreja e fazer teologia na América Latina” (LEGORRETA, 2015, p. 255).

Um fato marcou particularmente o desenvolvimento posterior a Medellín: os questionamentos ao método ver-julgar-agir nas diversas Conferências Generais do Episcopado Latino-americano ou por ocasião deles. Admitido sem discussões na época de Medellín (1968), o método tem sofrido repetidos ataques em conferências subsequentes, até Aparecida (2007), sem exceção. Em especial, a Conferência de Santo Domingo (1992), pois essa representa o caso mais relevante desse revés. Que essa forma teológica, indutiva e histórica de prosseguir, que tem caracterizado particularmente a maneira de ser e fazer a Igreja deste continente, tenha encontrado importantes oposições, particularmente no centro romano da Igreja, é mais um sinal de sua importância e quanto estava em jogo nela.

 2 A irrupção dos pobres e neles a manifestação de Deus

 Devido à sua riqueza e complexidade, não é fácil caracterizar em poucas palavras o núcleo do processo eclesial e a originalidade teológica dessas décadas no continente gerada a partir de Medellín. Vários autores sugeriram uma formulação nestes termos: a novidade está na irrupção dos pobres e neles a manifestação de Deus (SOBRINO, 2016, p. 208).

O que foi uma convicção embrionária na década de 1960, em 50 anos, acabou inspirando toda uma forma de entender a Igreja na América Latina e no Caribe e ativando o desenvolvimento da primeira teologia contextual propriamente dita, não europeia: a teologia da libertação. Os pobres continuarão a ser uma temática determinante no continente, como um “lugar teológico” pelo qual se busque entender o Evangelho[1]. A expressão “perto dos pobres, próximos a Deus” condensa um critério chave e decisivo do discernimento evangélico (GUTIÉRREZ, 2010).

Ao adotar o método Gaudium et spes de observar a história para examinar nela a presença e a vontade de Deus, os latino-americanos descobriram que, além do que o Concílio havia alertado (PLANELLAS, 2014), o sinal dos tempos correspondentes ao seu contexto constituía as grandes transformações que afetavam todos os aspectos da vida das pessoas, particularmente a vida dos mais pobres e oprimidos, o surgimento deles como sujeitos históricos e o alarme sobre a espiral da violência. Na segunda metade do século XX, houve uma verdadeira irrupção dos pobres na história, seja como novos sujeitos capazes de organizar e lutar no campo social e político, ou como massas cuja miséria era considerada uma injustiça estrutural e não uma mera fatalidade.

O Magistério Episcopal Latino-Americano pós-Concílio e a teologia da Libertação, entrelaçados no início, refletiram sobre essa realidade de forma original. Em Medellín (1968), em particular, é afirmado de forma rudimentar, mas com muita força, a origem teológica estrita da qual, posteriormente, a Conferência de Puebla (1979) chamará de “opção pelos pobres” ou “opção preferencial pelos pobres” (DPb n.733-735, 1134-1165). “A frase opção preferencial é nova, o conteúdo é muito antigo, basta abrir a Bíblia para encontrá-lo” (GUTIERREZ, 2010, p. 14).

A pobreza a que a Igreja Latino-Americana dos anos 1960 e 70 aludiu era principalmente a dos camponeses no ambiente rural, a dos imigrantes camponeses nas grandes cidades e dos trabalhadores industriais. De qualquer forma, foi reconhecida em pessoas socioeconomicamente pobres, ou seja, latino-americanos/as carentes de alimentos, saúde, habitação, educação; pessoas exploradas ou multidões desocupadas. À medida que vários dos países perderam suas democracias e tiveram que suportar ditaduras militares, igrejas latino-americanas veriam novos tipos de pobres nas vítimas de violações dos direitos humanos (perseguidos, torturados e desaparecidos) e em seus parentes que exigiam justiça. Somadas às deficiências acima, estavam a insegurança, a falta de liberdade, a humilhação e a falta de moradia (DPb n.49, 314, 347).

Naqueles anos, a América Latina também foi marcada pelo cenário da Guerra Fria travada entre as grandes potências dos Estados Unidos e da União Soviética. Os países latino-americanos, pertencentes ao chamado Terceiro Mundo, se alinharam ou foram forçados a fazê-lo ‒ com o capitalismo ou o marxismo. A Revolução Cubana (1959) foi um marco que influenciou toda a década de 1960 até que o acesso democrático ao poder do presidente Salvador Allende no Chile (1970) ofereceu outro paradigma de socialismo possível. O golpe militar que derrubou Allende incluiu o país na longa lista de nações latino-americanas que naqueles anos tiveram ditaduras militares (Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Paraguai, Peru, Uruguai). A ditadura de Pinochet no Chile (1973-1990) foi pioneira em ensaiar o neoliberalismo que, mais tarde, na década de 1990, dominou parte do continente. A queda do Muro de Berlim (1989), uma espécie de triunfo da sociedade capitalista ocidental, teve um forte impacto nos movimentos sociais e políticos latino-americanos de esquerda, bem como na teologia da libertação.

Na tentativa de entender a pobreza e suas causas, na década de 1960, os teólogos da libertação fizeram seu próprio caminho aplicado nas ciências sociais, que consistia em abandonar a “teoria do desenvolvimento” ‒ que entendia que os países subdesenvolvidos seguiriam naturalmente o curso dos países desenvolvidos ‒ e adotar as “teorias da dependência”, que postulavam a necessidade de “libertar” os países pobres dos ricos, pois o elo entre eles foi precisamente o fator que criou a riqueza de uns e a pobreza de outros (OLIVEROS, 1977, p. 38-46; GUTIÉRREZ, 1990, p. 127-137). É verdade que, “apesar dos limites”, essa “teoria fez avançar qualitativamente” o estudo da realidade social do continente, lembra Gutiérrez. “Talvez sua principal contribuição tenha sido fazer ver a necessidade de uma análise estrutural, ou seja, não se limitando a uma simples descrição da situação” (GUTIÉRREZ, 2018, p. 88).

O conceito dos pobres só adquiriu uma densidade teológica maior quando Medellín, Puebla e a Teologia da libertação distinguiram, graças às Escrituras, entre a pobreza “material” ‒  a pobreza socioeconômica ‒  e a pobreza “espiritual” ‒  o compromisso de solidariedade com os pobres.  Gutiérrez usou a expressão: “com os pobres contra a pobreza”. Dessa forma, os pobres passaram a ser considerados como um tema teológico, seja porque têm um privilégio epistemológico para entender o Evangelho, seja porque sua reflexão teológica sapiencial é valorizada. A reflexão magisterial e teológica valorizou a luta agonizante dos pobres simplesmente pela sua vivência, e pela sua capacidade de evangelizar e revelar Deus como o Deus dos pobres.

Nas décadas sucessivas, a persistência do fenômeno da pobreza e da crescente complexidade de sua realidade deram origem, por um lado, a um grande número de conceituações e terminologias que buscam entender e explicar esse mundo e, por outro lado, estratégias e propostas de soluções para seus problemas estruturais. A pobreza é dita cada vez mais de várias maneiras.

Em relação à atualização da visão teológica sobre o problema, o argumento central reside na aquisição de uma melhor compreensão da complexidade da pobreza. De particular importância foi o desenvolvimento do aumento da conscientização sobre a questão racial, a “aparição pública” das culturas aborígenes e a “emergência” das questões específicas das mulheres. Por outro lado, um vislumbre da ecologia surgiu com os olhos dos pobres (BOFF, 2011). O Magistério continental, em especial nas Conferências Gerais posteriores as de Medellín e Puebla, ou seja, as de Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007), ratificaram a opção pelos pobres e evidenciaram sua índole cristológica (DSD n.2033-2035; 2130; DAp n.128, 397-399). Se Puebla pediu para descobrir no rosto de vários tipos de pobres o rosto de Cristo (DPb n.31-39), Santo Domingo expandiu esses rostos (DSD n.178) e Aparecida simplesmente os multiplicou (DAp n.65).

Francisco, o primeiro papa latino-americano da história, representa hoje a escolha dos pobres no mais alto nível da Igreja: a sede de Roma. Sua frase “o quanto queria uma Igreja pobre e para os pobres”, no início de seu pontificado, caracteriza seu programa de governo expresso na sua Exortação Evangelii Gaudium. Com razão foi dito que este texto, sem ser uma carta pertencente à doutrina social da Igreja – tema importante para sua interpretação ‒, é o documento mais elaborado e detalhado sobre o tema da Igreja e dos pobres em toda a história do magistério do bispo de Roma.

3 Transformações em algumas formas de vida no Povo de Deus

É perigoso idealizar romanticamente a Igreja latino-americana, alertou V. Codina (CODINA, 1990, p. 107). Muitos dos que vêm ao continente pela primeira vez pensam que em cada paróquia encontrarão comunidades de base, que em cada diocese há bispos como o monsenhor Romero, que em cada Igreja há leigas e leigos exemplares que proclamam a palavra até o martírio, que em cada comunidade religiosa as pessoas estão inseridas entre os pobres e são verdadeiramente proféticas. A realidade é muito diferente e às vezes até decepcionante. Pelo contrário, a grande maioria dos cristãos vive em estruturas eclesiais tradicionais, inclusive pré-Concílio. O machismo, em geral, e o clericalismo, em particular, permeiam fortemente as mentalidades e práticas de inúmeros agentes pastorais, bispos e presbíteros. Estruturas paroquiais não renovadas não são exceção. Os órgãos diocesanos, como conselhos sacerdotais ou conselhos pastorais, têm uma existência mais formal do que operacional. O déficit nos processos sinodais em todos os níveis é uma característica muito arraigada e generalizada. São todas formas de vida pessoais e práticas institucionais de difícil transformação. Em particular, as iniquidades de gênero, tão visíveis em estruturas eclesiais, encontram um importante apoio nos costumes culturais marcadamente patriarcais de nossos países, que se manifestam, sem exceção, em todas as classes sociais e nas áreas mais diversas: família, políticos, negócios, sindicatos, universidades etc. Assim, quando falamos de novas formas eclesiológicas, como as CEBs, ou a opção pelos pobres, refere-se a realidades minoritárias, mas significativas.

Uma avaliação geral da recepção do Concílio do ponto de vista eclesiológico poderia destacar, entre os principais aspectos relevantes, a colegialidade episcopal materializada no CELAM (FELICIANI, 1974; ESCALANTE, 2002), o surgimento e desenvolvimento das mesmas comunidades eclesiais de base (MARINS, 2018), também o importante significado que teve o conceito teológico de Povo de Deus ter sido assumido pela Lumen Gentium como categoria arquitetônica da renovada visão da Igreja (GALLI, 2015, p. 413). Outro ponto de vista é igualmente interessante para revisar: as profundas transformações vivenciadas pelos vários membros e vocações no Povo de Deus; transformações teóricas e também em seus modos concretos de vida. Alguns aspectos de dois deles são brevemente destacados: presbíteros e vida religiosa ou consagrada.

3.1 O serviço presbiterial

Algumas das ideias fundamentais do decreto Presbyterorum ordinis, que buscava promover uma renovação na imagem do sacerdócio existente antes do Vaticano II, foram recentemente definidas. Elas representam um passo em uma certa direção: a) da óptica da consagração até a perspectiva da missão eclesial. Trento havia partido de uma perspectiva sacramental, da eucaristia à ordem, o Vaticano II coloca a doutrina em um contexto mais amplo, como uma modalidade de realização da missão eclesial; b) a partir da singularidade do ministério da cultual à integração de ministérios proféticos e pastorais; c) de uma visão sacerdotal individualista a uma visão sacerdotal comunitária, na qual esse ministério também se caracteriza como participação no ministério episcopal. A escolha pelo vocabulário presbiteral em relação ao sacerdotal devido à sua maior proximidade com a língua do Novo Testamento e por destacar mais sua especificidade não pode ser subestimada; d) do presbítero alter Christus e mediador ‒ expressões deliberadamente excluídas ‒ ao presbítero que atua na pessoa ou em nome de Cristo; e) da santidade como alimento do ministério para o ministério como elemento da mesma santidade com uma categoria unificadora de todos os aspectos do ministério e da vida sacerdotal, caridade pastoral (CASTELLUCCI, 2017, p. 317-326). Nesse sentido, parece correta a avaliação de que o ensinamento conciliador expresso em Presbyterorum ordinis representa “uma renovação e aprofundamento substancial da teologia do serviço presbiteral”, não um mero “amálgama inconsistente de concepções distintas”, mas uma visão “concisa e conclusiva deste ministério (FUCHS, 2005, p. 543). Portanto, sem ignorar as limitações, o verdadeiro desenvolvimento e progresso histórico-dogmático devem ser reconhecidos nesta questão conciliadora. A história da recepção neste âmbito não se resume a este documento-chave, mas está intimamente ligada à visão geral da Lumen Gentium, às importantes perspectivas abertas pela Gaudium et spes, particularmente na leitura dos sinais dos tempos e em suas reflexões sobre a relação entre fé e história e, não menos importante, a renovação litúrgica ‒ Sacrosanctum Concilium ‒ que rapidamente mudou a vida concreta dos sacerdotes nas práticas tão importantes como cotidianas. Mas como mostra a análise dos diversos processos históricos no continente, a influência do Concílio não deve ser superestimada; é um elemento decisivo, mas junto a outros não menos relevantes que nos permitem entender o que aconteceu nessas décadas.

Pode-se reconhecer que este é, de fato, um dos âmbitos fracos da renovação conciliadora no continente. Certos aspectos de Medellín, contrários aos novos tons de Presbyterorum ordinis, parecem um sintoma inicial disso. Isso é indicado, por exemplo, no vocabulário utilizado, no mesmo título “Sacerdotes”, na constituição de um ministério independente de uma comunidade concreta, com um esquema descendente. O julgamento de F. Taborda é significativo: não obstante a perspectiva da opção pelos pobres, típica de todos os textos de Medellín, “é decepcionante a teologia do presbiterado descrito” no respectivo documento (TABORDA, 2017, p. 211). A questão aqui é se, à luz do processo vivenciado nessas décadas, nessa área não estamos enfrentando um fenômeno mais global, que não é específico para o catolicismo latino-americano.

O decreto Optatam totius, por sua vez, recebeu uma recepção favorável de forma semelhante aos outros documentos conciliares. É praticamente impossível fazer uma avaliação dos processos vivenciados nessas décadas nos seminários de formação de candidatos ao presbiterado dada a diversidade dos países e a complexidade das questões. Ainda que seja verdade que eles mantêm uma estrutura relativamente uniforme baseada nas normas e orientações da Santa Sé. Não se pode negar processos de mudança, entre os quais é possível destacar uma maior relevância dada à formação humana, com a crescente contribuição da psicologia à formação pastoral. É verdade que, ainda hoje, poderiam ser subscritos muitos dos aspectos positivos já reconhecidos pelo documento de Medellín:

Nota-se maior integração na equipe de formadores; atualizando isso através de cursos e encontros de reflexão; esforço para uma formação mais pessoal dos seminaristas dentro de um ambiente familiar; integração do seminário na comunidade eclesial e na comunidade humana; mais contato do bispo e dos padres paroquiais com o seminário; maior abertura para as realidades do mundo de hoje e da família; renovação de métodos pedagógicos; aplicação de uma psicologia saudável no discernimento e orientação dos candidatos. (DMed n.13, 6)

Alguns aspectos negativos, já indicados à época de Medellín, parecem conservar toda sua atualidade, ainda que em um novo contexto cultural, tais como a existência de “formadores insuficientemente preparados” ou as “falhas na formação em direção à maturidade humana plena” (DMed n.13, 5). A participação de leigas e leigos na formação ainda é limitada. Um ponto central parece não ter sido conquistado: não obstante as transformaçõess realizadas, a mentalidade clerical, expresa em formas de liderança e práticas institucionais, não apresenta uma melhora substantiva. Isso coloca em questão a eclesiologia que, de pronto, não na declaração de intenções, está na base dos projetos de formação. A questão surge até que ponto a própria estrutura dos seminários não contribui para a imobilidade nesse aspecto tão importante para a realização de uma eclesiologia do Povo de Deus. Os profundos desafios colocados pela chamada cultura pós-moderna, que destaca Aparecida (DAp n.318), não podem ser desconhecidos. De qualquer forma, as limitações vistas nas estruturas de formação, em grande parte, também não parecem ser uma característica especificamente latino-americana de acolhimento conciliador, mas uma questão comum a outras regiões geográficas da Igreja.

3.2 Transformações na vida religiosa ou consagrada

A redescoberta de seus fundadores e seus carismas iniciais, estimulados pelo decreto conciliador Perfectae caritatis, por um lado, e o declínio de novas vocações e os inúmeros abandonos, por outro, marcaram a vida das mais diversas congregações e institutos religiosos nessas décadas, como uma tendência global. As questões de renovação e de identidade representam um dos desafios e das tarefas mais relevantes do pós-Concílio em referência à vida consagrada. Uma frase de Medellín resume bem o clima da época: “Nestes tempos de revisão, muitos se perguntam qual é a posição do religioso na Igreja e qual é sua vocação especial dentro do Povo de Deus” (DMed n.12,2). Assim como no resto das vocações na Igreja, a reconfiguração da identidade da vida consagrada tem sido marcada, predominantemente, por responsabilidades diante dos processos históricos: “ela deve ser incorporada no mundo real e hoje com maior audácia do que em outros tempos” (DMed n.12,2). O chamado geral da Gaudium et spes teve um impacto peculiar neste modo de vida: “somos testemunhas que um novo humanismo está nascendo, no qual o ser humano é definido principalmente pela responsabilidade com seus irmãos e irmãs e pela história” (GS n.55).

Nesse contexto mais geral se situa a que é, talvez, a principal novidade ou originalidade dessas décadas nas formas de vida consagrada, já estabelecida por Puebla (1979): a mudança de lugar social, ou seja, comunidades inseridas em meio popular. “Surgem ‘pequenas comunidades’, geralmente nascidas do desejo de se inserir em bairros modestos ou no campo, ou de uma missão evangelizadora particular” (DPb n.731). Trata-se de uma nova forma ou figura eclesial em consonância com a nova consciência da pobreza: “colocou em uma luz mais clara sua relação com a pobreza dos marginalizados, o que não implica mais não apenas o desprendimento interno e a austeridade da comunidade, mas também a solidariedade, o compartilhamento e em ‒ alguns casos ‒  convívio com os pobres” (DPb n.734) (MESTERS, 1997). Esse processo incluiu a revisão das obras tradicionais e foi vivido com muitas tensões (BARROS, 2018). É também fruto da redescoberta da vocação original dos fundadores, que quase sempre responderam a uma necessidade específica dos pobres e marginalizados. Nesse sentido, Ronaldo Muñoz declarou em 1987: “vivemos um tempo de refundação de todas as congregações religiosas” (MUOZ, 2002, p. 76). Este é um passo muito significativo, particularmente por congregações femininas. Por outro lado, não se pode ignorar a importante inércia institucional típica de uma “pastoral de conservação” (DMed n.6,19). Em suma, à luz de uma recepção conciliar complexa, mas substancialmente positiva, uma variedade de questões e desafios são agora vislumbrados para dar a esses carismas eclesiais uma forma apropriada em uma situação cultural profundamente transformada (VITÓRIO, 2017).

4 A leitura popular da Bíblia e a animação bíblica de toda a pastoral

As várias iniciativas em torno da Palavra de Deus desenvolvidas nas décadas na América Latina e no Caribe se reconhecem explicitamente como devedores da renovação produzida pelo movimento bíblico do século XX e, particularmente, pela Constituição Dei Verbum. O documento de 1993, “A Interpretação da Bíblia na Igreja”, da Pontifícia Comissão Bíblica, também teve efeitos importantes. Se a Constituição conciliar desencadeou o movimento bíblico no continente, este texto confirmou várias das intuições da caminhada bíblica latino-americana: interdisciplinaridade na interpretação da Bíblia, o valor do contexto do leitor, leituras liberacionistas e feministas, críticas à leitura fundamentalista, a avaliação de lectio divina etc (SALAZAR, 2009, p. 18, 23). Não há dúvida, também, de que o uso da língua vernacular em celebrações litúrgicas favoreceu os processos de apropriação da Bíblia pelo Povo de Deus.

Entre todas as realizações dessas décadas, uma delas merece ser particularmente destacada.

A herança do Concílio encontrou sua expressão mais significativa e criativa na leitura popular da Bíblia, uma ampla apropriação comunitária da Palavra de Deus que alimentou o caminho das comunidades eclesiais de base e das pastorais sociais ao longo desses anos, com grande protagonismo dos leigos, e de modo especial das mulheres. (BEOZZO, 2012, p. 442)

Esta declaração de J. O. Beozzo encontraria um consenso significativo de muitos autores/as. Nas palavras de um dos principais propulsores, Paul Richard:

O movimento bíblico na América Latina consiste justamente em devolver a Bíblia ao Povo de Deus: colocar a Bíblia em suas mãos, seu coração e suas mentes. O Povo de Deus, como o autêntico “proprietário” da Bíblia e intérprete dela, recupera seu direito divino de ler e interpretar as Sagradas Escrituras. (RICHARD, 2007, p. 11)

A seu serviço estão a ciência bíblica e o magistério eclesial. Na opinião do principal expoente dessa iniciativa, Carlos Mesters, as novidades dessa experiência, não obstante as diferenças em suas conquistas nos países e regiões, estão no objetivo, no tema da interpretação e no lugar social. O objetivo não é buscar informações sobre o passado, mas iluminar o presente com a luz da presença de Deus conosco e interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. O sujeito não é o especialista; interpretar as escrituras é uma atividade comunitária na qual todos participam, incluindo o exegeta que desempenha um papel especial nela. Se o lugar dos pobres também é central aqui, a contribuição dos povos indígenas e, em particular, das mulheres é um fato crescente e notável. O lugar social onde se faz a interpretação é a partir dos pobres e marginalizados. Isso muda a forma de olhar, principalmente, por sua consciência social crítica (MESTERS, 1991, p. 153). É uma leitura de natureza ecumênica, não por causa de seus debates teóricos, mas pelo compromisso de todos os crentes com a defesa da vida ameaçada e da busca pela libertação.

Em particular, o uso do método ver-julgar-agir ajudou a desenvolver o que seus autores descrevem como uma “nova visão de revelação: Deus fala hoje” (MESTERS, 2015, p. 534). A Bíblia é considerada “o segundo livro de Deus que nos permite discernir no Livro da Vida onde Deus está, como Deus é, e qual é sua Palavra para nós”. Nesse sentido, afirma-se,

A Bíblia nos revela a Palavra de Deus, mas também nos revela quando e onde Deus se revela em nossa realidade. (…) Devemos ouvir a Palavra de Deus com um olho na Bíblia e o outro na realidade em que vivemos. Ao descobrir a prioridade do Livro da Vida como o primeiro Livro de Deus, agora podemos sair do texto da Bíblia para o texto da Vida. Em sua leitura pastoral, eles utilizam sempre a distinção entre o Livro da Vida e o Livro da Bíblia; dando prioridade ao Livro da Vida como o primeiro Livro de Deus. (RICHARD, 2010, p. 249)

Como se observa claramente, a chamada leitura popular da Bíblia está intimamente ligada a outras experiências típicas do pós-Concílio latino-americano: a escolha pelos pobres, as comunidades de base e a metodologia indutiva herdada da Ação Católica especializada.

Outro aspecto de relevo em relação à Palavra de Deus na vida da Igreja é a mudança de paradigma produzida na pastoral bíblica, isto é, uma nova forma de conceber a dimensão bíblica da ação pastoral das igrejas no continente: desde uma pastoral especializada com outras (pastorais educativos, pastoral da saúde, etc.) a uma animação bíblica de toda a pastoral. Nesse sentido, e parafraseando a expressão conciliadora sobre a Bíblia “como a alma da teologia sagrada” (DV n.24), as Escrituras têm sido afirmadas como a “alma da pastoral”. A expressão significativa, “animação bíblica de toda a pastoral”, foi assumida no magistério latino-americano (DAp n.248) e, posteriormente, na exortação pós-sinodal de Bento XVI, Verbum Domini (2010) (ULLOA, 2015, p. 298).

Vale ressaltar as diversas iniciativas desenvolvidas pela CELAM, por exemplo, a criação de um instituto especializado, o Cebitepal, dedicado especialmente à formação de pastorais e à disseminação da pastoral bíblica. Igualmente a existência de revistas bíblicas especializadas e algumas associações de biblistas de vários países (México, Chile, Argentina, Paraguai, Brasil etc.).

Não se pode subestimar a importância das várias traduções, como nunca antes feitas na história da Igreja no continente. Elas incluem a chamada Bíblia latino-americana e um projeto editorial em andamento, a Bíblia da América. Além do que aconteceu no âmbito litúrgico ‒ a introdução da língua vernácula ‒, destacam-se também os trabalhos interconfessionais com as Sociedades Bíblicas Unidas. O campo bíblico tem sido um dos espaços privilegiados de iniciativas ecumênicas conjuntas.

Em síntese, a análise do biblista chileno P. Uribe parece correta. A recepção do movimento bíblico, em geral, e dos ensinamentos da constituição conciliar Dei Verbum têm sido verificada mais em experiências práticas e pastorais do que em obras teóricas.

Não se trata de uma recepção que não adere de forma ortodoxia ao sensus fidei, mas que sua adesão se realiza na práxis e a partir dessa práxis se pode se refletir teoricamente, elaborando certos níveis de apropriação dos ensinamentos contidos na Constituição. (ULLOA, 2015, p. 298)

5 A reforma litúrgica e a religiosidade popular

A reforma litúrgica do Concílio provavelmente foi a mudança mais imediata e impactante na vida concreta de inúmeras comunidades eclesiais em todo o continente. Em particular, o uso da língua vernácula visibilizou o Vaticano II, suas intenções pastorais e seu processo de aggiornamento sem romper com a tradição anterior. Nesse sentido, o ponto central da reforma litúrgica, isto é, a participação ativa e frutífera dos fiéis, recebeu um importante impulso. Embora não tenham faltado abusos devido à falta de observância das regras litúrgicas, por um lado, ou resistência à renovação, por outro lado, ambos os aspectos encontrados em Puebla (DPb 1n.01, 903), parece que, historicamente, não são notas decisivas para caracterizar o acolhimento conciliar da reforma litúrgica no continente. O motu proprio Summorum pontificum (2007), de Bento XVI, que liberalizou o uso da liturgia romana que precede a reforma conciliar e teve efeitos significativos na medida em que fortaleceu o espaço existente do tradicionalismo litúrgico legitimando teologicamente posições eclesiais e litúrgicas pré-conciliares, parece não ter tido impacto significativo nas igrejas na América Latina e no Caribe, ao contrário dos países de língua inglesa (FAGGIOLI, 2018, p. 28).

Notam-se importantes fragilidades da recepção conciliar, por um lado, em um processo de inculturação apenas recentemente iniciado, e por outro, em uma distância ou relação tênue da reforma litúrgica com religiosidade popular, chave na experiência crente de milhões de pessoas e na vida das igrejas no continente; é, além disso, uma questão pouco relevante no mesmo Sacrosanctum concilium. Sobre o primeiro aspecto, a Conferência de São Domingos diz:

Ainda não é abordado o processo de inculturação saudável da liturgia; isso faz com que as celebrações sejam ainda, para muitos, até mesmo algo ritualístico e privado que não os torna conscientes da presença transformadora de Cristo e de seu Espírito, nem se traduz em um compromisso solidário para a transformação do mundo. (DSD n.43)

A opinião autorizada de Roberto Russo é clara sobre isso. Parece que a determinação com que o diálogo entre a liturgia romana e as diversas culturas diminuiu, argumenta o liturgista uruguaio. “O problema da língua foi resolvido, e substancialmente bem. Mas fica pendente a questão da linguagem, que é mais difícil e ainda precisa ser realizada, nos textos, nos símbolos e na música” (RUSSO, 2013, p. 245).

Sobre o vínculo com a piedade popular ou o catolicismo popular, uma proposta pastoral de Puebla ilumina bem o problema:

Favorecer a fecundação mútua entre a Liturgia e a piedade popular que canalizem com lucidez e prudência os anseios de oração e vitalidade carismática que hoje se comprova em nossos países. Por outro lado, a religião do povo, com sua grande riqueza simbólica e expressiva, pode proporcionar à liturgia um dinamismo criativo. Isso, devidamente discernido, pode servir para incorporar cada vez mais e melhor a oração universal da Igreja em nossa cultura. (DPb n.465) (SANCHEZ ESPINOSA, 2013)

O tema da piedade popular, “uma expressão privilegiada da inculturação da fé católica” (DSD n.36), esteve presente em todas as Conferências, desde Medellín  ‒ de forma relevante em Puebla (DPb n.444-469) ‒ a Aparecida. Nessa última, com duas novas expressões  ‒ uma verdadeira “mística do popular” ou “espiritualidade popular” (DAp n.262, 263) ‒ adquiriu definitivamente um lugar muito proeminente. Se destaca a importância de santuários, peregrinações, festas, canto, vestidos, danças etc. (BIANCHI, 2009). Uma ligação mais próxima e não confusa entre a liturgia e a piedade popular parece uma tarefa pendente, compreensível no contexto da deficiência apontada sobre a inculturação do rito romano. Essa deficiência é muito importante quando você leva em conta, em particular, o significado da piedade mariana, expressa particularmente na importância dos santuários marianos no continente (Guadalupe, Aparecida, Luján etc.) que congregam anualmente milhões de crentes.

A fraqueza das propostas acadêmicas de teologia litúrgica nas faculdades e casas de formação aos presbíteros e, em geral, o pequeno número de teólogos/as e agentes pastorais formados nesta disciplina dá o que pensar. Além disso, o reconhecimento expresso em Puebla de que à pastoral litúrgica não foi dada “a prioridade que lhe corresponde dentro da pastoral conjunto” (DPb n.901) parece conservar toda a sua atualidade. Ambos os fenômenos indicariam que a renovação litúrgica, embora sua importância objetiva, representa uma área negligenciada da recepção conciliar.

Um desafio de longa data e muito significativo em algumas regiões do continente é a falta de celebração eucarística dominical. Embora o problema seja claramente levantado em Aparecida, não parece que uma resposta satisfatória tenha sido formulada lá (ALMEIDA, 2018). Reconhece-se a existência de “milhares de comunidades com seus milhões de membros que não têm a oportunidade de participar da Eucaristia dominical”; eles são encorajados a participar das celebrações da Palavra e “a rezar por vocações sacerdotais” (DAp n.253). Neste ponto, o sínodo da Amazônia de outubro de 2019 indicaria um caminho a seguir.

Em suma, se a reforma litúrgica é valorizada como uma renovação positiva e muito significativa, as limitações vistas na vida das igrejas desta região nos permitem entender o julgamento severo de R. Russo: “no continente latino-americano, as grandes linhas que vão além da pura reforma dos ritos ou dos textos desejados pelo Sacrosanctum Concilium não foram desenvolvidas e não foram totalmente aceitas”. (RUSSO, 2013, p. 245). Os princípios inspiradores da reforma litúrgica não desenvolveram totalmente seu potencial.

6 Reflexões finais

Uma avaliação da recepção conciliar deve, naturalmente, incluir muitos outros aspectos relevantes. O tema da catequese, por exemplo, tem representado uma área pastoral muito dinâmica e criativa, com espírito conciliar e uma grande difusão e impacto nas comunidades cristãs. Em grande parte, este tema esteva ausente do Concílio, mas é uma questão decisiva, já desde Medellín, que adquiriu, não só na América Latina, um desenvolvimento vigoroso no dinamismo do pós-Concílio. O campo educacional, por sua vez, também seguiu seu próprio itinerário, inclusive diferenciando-se da proposta geral expressa na Declaração Gravissimum educationis do Vaticano II. O conceito de Medellín de educação libertadora mostra uma recepção com um relevo diversificado. O desenvolvimento do diálogo ecumênico teve, acima de tudo, iniciativas comuns diante dos problemas dos direitos humanos. A paisagem religiosa do continente passa por uma transformação considerável nessas décadas com a perda da verdadeira ou suposta hegemonia católica anterior. Os desenvolvimentos teológicos têm sido relevantes, especialmente ligados aos contextos históricos e culturais. A mera declaração de algumas de suas várias correntes revela a riqueza do processo que ocorreu: teologias da libertação, teologias feministas latino-americanas, teologia indígena ou ameríndia e teologias afro-americanas, teologia do povo etc.

Victor Codina oferece uma formulação que sintetiza bem os processos vivenciados nessas décadas:

No caso da América Latina e do Caribe, a recepção do Vaticano II não foi uma mera assimilação vital, muito menos uma simples aplicação do Vaticano II para a América Latina: tem sido uma recriação original, uma fidelidade criativa, uma releitura do Concílio de um continente ao mesmo tempo cristão e marcado pela pobreza e injustiça. Essa recepção fez avançar a doutrina conciliar, desenvolveu suas intuições implícitas, dando ao aggiornamento conciliar uma tradução geográfica e histórica muito concreta. Por essa razão, essa recepção, apesar de ter sido feita em plena comunhão com a Igreja universal, tem sido frequentemente conflitante para setores da sociedade civil e também da Igreja, incapazes de entender o dinamismo e a novidade do Espírito. Tem sido uma recepção de martírio no sentido forte da palavra: fielmente recebida por testemunhas do evangelho que, em muitos casos, viveram sua fidelidade ao Senhor até o derramamento de sangue. É por isso que a recepção do Vaticano II pelo continente latino-americano merece respeito: devemos nos descalçar, estamos em solo sagrado. Ninguém poderia imaginar os impulsos da vida que surgiram. Foi um momento de graça, um kairós, um verdadeiro Pentecostes, assim como o Vaticano II. (CODINA, 2013, p. 82)

Carlos Schickendantz. Centro Manuel Larraín (Universidade Alberto Hurtado), Santiago, Chile. Texto original espanhol. Postado em dezembro de 2020.

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[1] Agradeço a J. Costadoat por escrever as ideias desse ponto.