Sumário
Introdução
1 Os mundos dos quais somos parte
2 Cosmovivências holísticas nutridas nas fontes ancestrais
3 Sendo e estando em relação
4 Espiritualidades relacionais cósmicas
4.1 Relacionalidade recíproca
4.2 A dualidade complementar
4.3 A criação mútua da vida
5 O desafio de seguir sendo e estando sustentados pelas espiritualidades
Referências
Introdução
O presente texto apresenta o entrelaçamento das cosmovivências e espiritualidades relacionais cosmogônicas dos povos que, nas suas raízes ancestrais, se reconhecem situados nos territórios colonizados de Abya Yala[1]. Objetiva-se, com tal abordagem, continuar estabelecendo o equilíbrio e a harmonia por meio das relações de mutualidade e correspondência com as diversas comunidades de vida, a partir do reconhecimento de sermos filhas e filhos da terra.
1 Os mundos dos quais somos parte
Na aproximação aos territórios e contextos de Abya Yala, não se pode negar o predomínio da extensão do sistema colonial. Nele prima o paradigma hegemônico de uma cultura dominante, reforçada pelo pensamento moderno, que formulou a noção universal dela. Nos nossos territórios, esse paradigma se dilatou por meio da configuração dos Estados nações, que deram continuidade às miragens do capitalismo, apresentado como “desenvolvimento”. Tudo isso supôs uma expansão das economias extrativistas, favorecendo uma elite dominante e impulsionando uma série de políticas de extermínio em relação aos povos indígenas. Tais povos eram considerados como um empecilho para o desenvolvimento que tem sua referência no mundo ocidental, sendo-lhe difícil reconhecer os outros modos de saberes e seres.
Os diversos povos vinculados a suas raízes milenares se reconhecem nos territórios que sofrem, há mais de quinhentos anos, a submissão extrativa e o extermínio sistemático por meio das políticas genocidas. São políticas vistas como ameaça aos mundos plurais ancestrais. Esses resistem a morrer, lutando para continuar sendo e estando em vínculo com seus territórios-terra e as diversas forças vitais, e com seu sentido, que é nomeado de diversos modos, segundo a cosmogonia de cada povo.
Seu reconhecimento e a livre determinação na sua organização comunal não é respeitada nas sociedades construídas sobre a base colonial do “índio”, como o propõe Bonfil:
A categoria ‘índio’ designa o setor colonizado e faz necessariamente referência à relação colonial. O índio surge com o estabelecimento da ordem colonial europeia na América; antes, não há índios, mas povos diversos com suas próprias identidades. O europeu cria o índio, porque toda situação colonial exige a definição global do colonizado como diferente e inferior (desde uma perspectiva total: racial, cultural, intelectual, religiosa etc.); com base nessa categorização de índio, o colonizador racionaliza e justifica a dominação e sua posição de privilégio (BONFIL, 1988, p. 19).
Isso supôs para algumas populações indígenas a negação de si, assumindo-se a partir do sistema que o nega, associando-se às populações consideradas mestiças que se constituem a partir de uma identidade configurada pela noção do “branco”. São privilegiados o saber e os modos de vida ocidentais, completamente desvinculados do que se considera a natureza, isto é, da relação com a terra e suas inter-relações.
Muitos povos procuraram a forma de não serem completamente aculturados e, depois de longos períodos vivendo na clandestinidade a qual foram relegados, buscaram sair dela. Ainda que o processo ocorra nos diversos territórios, é significativo o que acontece no vasto território da Amazônia. Nela encontra-se a maior parte dos povos ancestrais que conservaram seus saberes, sabedorias e espiritualidades; todas elas entrelaçadas a partir da bela polifonia de línguas milenares e da surpreendente biodiversidade que habita nos seus territórios.
Nos nossos contextos, a partir do discurso do multiculturalismo, reconhece-se o passado de muitos povos, proscritos e presentes nos museus e no folclore. Apesar disso, a promoção de políticas de assimilação – que se implementam por meio de diversos programas considerados de “inclusão social” em relação às denominadas minorias étnicas – reforçou processos de aculturação das gerações mais jovens. Essas gerações ficam nas margens das cidades e nos seus próprios territórios, por meio da educação bilíngue intercultural, que supõe, em muitos casos, a tradução do conteúdo do saber ocidental.
A consequência da dinâmica colonial é a negação ou ruptura com a ancestralidade. Entretanto, é importante reconhecer que, até os anos 1990, os povos “índios”, apoiados por essa identidade atribuída, reconhecem que, apesar dos quinhentos anos de domínio e exploração, eles resistiram. Trata-se de um tempo no qual se evoca a memória da resistência e do caminho para recriar a vida dos povos em relação com outros. Esse intercâmbio de saberes ancestrais ajuda a resistir aos sistemas extrativos que estão levando a uma devastação da vida.
Nesse contexto, o tecido das espiritualidades indígenas, que se entrelaçam com a esperança de se fortalecerem em relação com sua ancestralidade, possibilita-lhes nomear-se e reconhecer-se como povos, nacionalidades e comunidades que se reconhecem nas histórias dos fins e renascimentos dos mundos. A partir dessas histórias, buscam curar o território e os corpos, seguindo o princípio de equilíbrio e harmonia, que precisa continuar sendo cuidado a partir das relações recíprocas.
2 Cosmovivências holísticas nutridas nas fontes ancestrais
Evocamos a força da palavra zapatista, da selva Lacandona de Chiapas, que se vincula com as seivas dos diversos povos ancestrais: “queremos um mundo onde caibam muitos mundos”. São palavras que refletem não só o anseio, mas a realidade do grande pluriverso de povos milenares em Abya Yala, que rompe com a noção homogênea do “índio”. O tecido das espiritualidades que se cultivam em cada território, compartilha a noção cósmica e telúrica que abarca os diversos povos no vínculo com o território habitado. É isso o que expressa Aura Cumes: “é muito paradoxal que digamos ‘Mãe Natureza’, porque, nos nossos sentidos de mundo, não há uma dissociação entre ser humano homem e algo chamado natureza” (CUMES, 2021, p. 19). Isso porque cada povo se reconhece na terra como parte da grande rede de vida que flui nela, como fica também expressado nas palavras de Eduardo Galeano:
Tem dono a terra? Como assim? Como se há de vender? Como se há de comprar? Se ela não nos pertence: nós somos dela, seus filhos somos. Sempre assim, sempre. Terra viva. Como cria seus vermes, assim nos cria. Tem ossos e sangue. Leite tem, e nos amamenta. Cabelo tem, pasto, palha, árvores. Ela sabe parir batatas. Faz nascer casas. Gente faz nascer. Ela cuida de nós e nós cuidamos dela. Ela bebe chicha, aceita nosso convite. Filhos seus somos. Como se há de vender? Como se há de comprar? (GALEANO, 1998, p. 38).
A partir dessa conexão, entrelaçam-se as espiritualidades, como diria a sábia Maya Ernestina López, “com os fios quebrados e queimados”, pelo despojamento da religião imposta, que supôs a extirpação e a substituição como métodos usados nos processos de evangelização. “Justapôs-se uma imagem sobre a outra e se reverteram os significados da crença de participação na cosmologia de origem” (CORDERO, 2003, p. 5). Portanto, não se trata de um sincretismo como tal, pois muito do que se considera como sincrético responde a certas práticas religiosas do catolicismo popular.
Por esse motivo, as populações que tiveram pouca influência cristã, conservam muito mais o sentido da espiritualidade enraizada nas relações, apresentando-se como fontes ancestrais que convidam a fazer um caminho de retorno a elas. Isso, no contexto andino, é o Kuti: “a inversão, a volta, o regresso, restituição, retorno, revolução ou transformação” (MONTES, 1999, p. 144). Portanto, trata-se do fim de um tempo e do início de outro. Para a cosmogonia Maya, o ano 2012 foi o fim do quinto sol e o início de um novo ciclo que traz suas próprias transformações, a fim de que a comunidade humana desate os nós herdados nas relações desiguais e de dominação que se estendem até as outras comunidades de viventes, provocando o desequilíbrio no cosmos.
Trata-se de um tempo de cura que procura restabelecer o equilíbrio e a harmonia no cosmos habitado, para continuar despertando, nos diversos saberes e sabedorias, a partir da consciência cósmica. Há realidades e situações que não podem ser compreendidas apenas a partir dos sentipensamentos humanos. São também requeridas relações de mutualidade, de escuta e observação do ritmo das diversas comunidades de vida e a relação com as diversas fontes vitais que se reconhece em cada território.
São tempo e espaço a partir dos quais se leem as histórias transgressoras que buscaram, uma e outra vez, a cura dos territórios-terras e dos territórios-corpos, pois compreenderam que seus corpos violentados tinham a possibilidade de se incorporarem e resistirem diante dos sistemas extrativistas que invadem e subjugam a terra, territórios e territorialidades. Tempo no qual se busca tecer a organização comunal, a partir da livre determinação e do respeito dos territórios, que orientam o caminho das re-existências sustentadas nos seus saberes, sabedorias e espiritualidades relacionais para continuar sendo e estando como povos.
3 Sendo e estando em relação
A partir das espiritualidades entrelaçadas das sabedorias que são cultivadas, inclusive estando fora dos territórios de origem, muitas populações dos diversos povos recriam os vestuários impostos, sabores, tecidos, rituais, idiomas. Elas conservam assim o cuidado recíproco da vida a partir do vínculo com os territórios de origem, pois aí habita a ancestralidade que sustenta os sentidos de sua vida, suas famílias e suas organizações comunais. Por isso, a relação com o espaço habitado será fundamental, uma vez que se parte do princípio de que tudo tem vida, tudo vive. Desse modo, supera-se a oposição entre vida e morte, pois se concebe outros modos de vida e de relações, que prosseguem na terra, como se expressa nos povos andinos:
Nas palavras de um ancião aymara, temos três vidas e dois nascimentos. A primeira vida é o ventre materno e desemboca num primeiro nascimento; a segunda é a vida neste mundo. A morte é o segundo nascimento, que nos conduz à terceira vida. O ventre da mãe humana e o ventre da Mãe Terra são fonte de nova e maior vida nos diversos momentos deste grande ciclo vital, que é, ao mesmo tempo, pessoal, social e cósmico (ALBÓ, 2006, p. 372).
A noção de território vivente propõe outras maneiras de ser e estar no cosmos. Implica inter-relações com os diversos mundos, o que supõe a abordagem da antropologia da vida que ajuda a compreender o fluxo de energia ou força vital dentro da vida, como o expressa o sábio Guarani do Mato Grosso:
Nossos antepassados ensinavam que cada um de nós tem um cântico próprio, um canto que só a própria pessoa conhece no seu interior. Também os animais e as plantas, assim como o rio e a floresta têm um canto dentro de si. Até a terra possui seu próprio canto. Os homens dos sonhos sabem descobrir o canto da terra…” (BARROS, 1996, p. 58).
Esses outros modos de ser são reconhecidos a partir das ontologias relacionais, nas quais se assume que todos os tipos de seres viventes dependem de outros para sua existência, uma vez que não se consideram como separados, mas em constantes inter-relações. As diversas existências não são concebidas como forças solitárias, mas em contínua relação. Por isso, será importante a noção da comunidade nos territórios assumidos como espaço-tempo vitais. Nela, como o expressa Jorge Apaza, manifesta-se a existência continuada do pluriverso, que resgata o sentido das relações recíprocas, um dos princípios importantes que propicia a criação mútua da vida. No contexto andino, esse princípio é a uywaña o uyway:
O mundo andino é um mundo de criações; todos criam e se deixam criar. Por isso, essa qualidade de criação não só é atributo do homem, mas é denominador comum de todos os membros que conformam a coletividade natural. Em cada pacha local, conversa-se com tudo o que existe e de distintas formas ou maneiras; o andino é um conversador por excelência. Essa enorme capacidade de conversar com a natureza faz com que se estabeleçam relações ou simbioses estreitas e permanentes entre todos os membros que conformam o ayllu[2]. Sua única preocupação é viver melhor e da maneira mais harmoniosa possível e em equilíbrio com todos; então, a plenitude da vida se alcança criando-se mutuamente (APAZA, 1997, p. 103).
A noção de criações ou de cuidados da vida, que é partilhada nos diversos povos ancestrais, aponta para o sentido das relações em reciprocidade, uma vez que as ações afetam as relações, como se expressa na sabedoria do povo Tojolabal:
Todo vivente é, pois, irmão ou irmã dos humanos. Esperam que nos comuniquemos com eles, que os tratemos como irmãos e os visitemos. Que falemos com eles, cuidemos deles e os cumprimentemos. Isto é, que sejamos conscientes de estar entre viventes e que os tratemos como tais (LENKERSDORF, 2008, p. 128).
Trata-se de modos de ser que se distanciam das espiritualidades dualistas, que separam a vida entre matéria e espírito, e das ontologias centradas nos humanos como seres superiores. A partir delas, apresenta-se uma concepção do sagrado fora da realidade, que deriva na grave deterioração da integralidade cósmica e das inter-relações na Grande Rede da Vida. A esse respeito, prossegue Lenkersdorf, apresentando os sentipensamentos do povo Tojolabal, nos quais se aprecia de que modo, para as cosmogonias ancestrais, são compreendidos os parentescos ampliados nas outras comunidades de vida:
Não somos os que estão no topo dos viventes, mas somos irmãos de uma família muito extensa que também nos influi. Assim, nossas casas, que habitamos e edificamos, também nos formam no nosso modo de ser. Nosso milharal nos sustenta. Nosso cachorro nos cuida e nos acompanha. Vivemos, pois, em meio de um todo vivente que nos acompanha; e formamo-nos mutuamente. Como viventes, finalmente, temos que escutar esse todo, assim como nos escuta (LENKERSDORF, 2008, p. 125).
São, portanto, modos de ser entrelaçados de inter-relações, que permanecem como testemunhas da tenacidade da vida que se recria a partir das sinergias que se correspondem entre as diversas comunidades de vida.
4 Espiritualidades relacionais cósmicas
Para muitos povos, o termo espiritualidade é mais próximo de suas cosmovivências, pelas inter-relações com os diversos mundos vitais, aqueles que se veem e aqueles que não se veem, mas que estão presentes, que transcendem a noção dualista do bem e do mal. A partir da influência cristã, usa-se esse léxico. Entretanto, muitas sábias e sábios propõem que não há forças ou energias boas e más, mas que todas requerem um tratamento diferenciado. Além disso, compreende-se que as forças denominadas como más são forças ou energias que precisam de uma relação de muito mais respeito e cuidado, pois, assim como cuidam, podem gerar destruição, enfermidade, pragas, secas ou inundações.
A espiritualidade é assumida a partir do princípio do equilíbrio e da harmonia, que cada povo nomeia de maneiras diversas, pois significa uma busca constante no processo cíclico cósmico, no qual se situam os ciclos de todas as formas de vida. Trata-se de cultivar o sentido das relações recíprocas, pois qualquer ruptura gera desequilíbrios que fragmentam a vida. Por isso, nos tratamentos das doenças, são necessários ritos de harmonização com as forças vitais que habitam no território local, a fim de restabelecer a energia ou a força que acompanha o corpo, para dialogar com ela e saber do que precisa.
São espiritualidades ancestrais que se recriam para revitalizar a vida. As resistências e as articulações como povos se sustentam na espiritualidade, sendo essa parte de tempos e lugares, pois se seguem os ciclos cósmicos por meio de rituais pessoais e comunitários. Mesmo que, algumas vezes, essas espiritualidades se disfarcem sob práticas do catolicismo popular ou de outras expressões religiosas, elas “revelam sua particularidade epistêmica e uma divergência significativa em relação à religião hegemônica” (MARCOS, 2002, p. 4).
A seguir, serão expostos os princípios relacionais que procedem das sabedorias ancestrais, a partir das quais se entrelaçam as espiritualidades.
4.1 Relacionalidade recíproca
A reciprocidade é um dos princípios que orienta as relações, de modo que os rituais buscam gerar correspondências mútuas entre os/as diversos seres. Isso pode ser visto nos ritos das sementes, com as quais se fala e às quais se oferece comida, bebida, em reciprocidade pelo cuidado oferecido por meio de seus frutos. Geralmente, as encarregadas de tal rito são as mulheres, que entrelaçam seus saberes com seus fazeres: dar e receber para voltar a entregar, a fim de que os ciclos cósmicos não se interrompam e suas sabedorias continuem propagando-se.
Os diversos ritos seguem o princípio de que “tudo tem seu tempo e espaço”. Isso possibilita a noção cíclica da vida e das relações que precisam ser cuidadas, a fim de respeitar os ciclos vitais que não podem ser alterados. Essa noção engloba o sentido integrador da vida, já que, a partir do reconhecimento de que tudo tem seu espaço, integra-se aquilo que provém de algum intercâmbio de saberes e de seres. Por isso, pede-se permissão às forças vitais para incorporá-las e para que possam conviver em harmonia.
A partir dessa perspectiva holística, situa-se a relação com o cristianismo. Em muitas comunidades não se assume tudo, mas apenas alguns elementos que podem ser integrados ao território vivente. Por isso, os templos cristãos requerem respeito, assim como seus representantes; e, em algumas circunstâncias, até se terá necessidade de seus ritos, a fim de gerar a harmonização do território. Esse aspecto pode oferecer pistas para compreender as relações entre o cristianismo e as espiritualidades andinas, para além da noção pejorativa do sincretismo.
4.2 A dualidade complementar
Como uma espécie de desenvolvimento da reciprocidade, assume-se a complementariedade, uma vez que muitos povos concebem as relações duais como expressão do sentido da integralidade da vida. Isso ocorre porque não se assume que existam forças solitárias e individuais, mas outra força é requerida, a fim de que possibilite as relações de equilíbrio e harmonia. Assim, concebe-se a relação entre o céu e a terra, o tempo e espaço, água e terra, sol e lua…
Ainda que, às vezes, a linguagem as designe como forças femininas e masculinas, tendendo a sexualizar essas relações (nas que se situam as relações entre o homem e a mulher), a dualidade transcende essa categorização que tende ao binarismo e ao dualismo. A melhor expressão do sentido de dualidade é oferecida no altar Maya, que reflete as correspondências dos quatro pontos cardeais, situando no centro a U’k’ux Kaj (coração do céu) e a U’k’ux Ulew (coração da terra), o encontro do telúrico e do cósmico.
Trata-se de noções de tempo e espaço, assumidas nos povos como o princípio orientador da vida e das relações. Por isso, a associação da cruz cristã – que foi imposta – é assumida, a partir de sua própria interpretação, como a integração das forças da vida a partir dos quatro pontos cardeais.
4.3 A criação mútua da vida
A sacralidade da vida, ou respeito, é entendida a partir da força vital que atravessa todas as formas de vida. Por isso, a criação mútua de todos/as os/as seres tem a ver com o cuidado, o respeito, o amor, a ternura, a proteção, inclusive daquelas forças que podem gerar morte ou doença. Isso porque as relações com todos os seres são imprescindíveis para a convivência harmônica nos territórios.
A criação mútua implica certos códigos éticos de convivência num determinado território, associado a ritos e comportamentos “como parte de um contrato social que deve ser entendido nas suas dimensões filosóficas e no seu poder de realizar o retorno de um sistema ecológico instável a um nível melhor” (ARNOLD, 2016, p. 113). Trata-se de uma criação mútua, na qual “cada ser vive seu próprio desenvolvimento adquirindo a vitalidade de outros seres. Pois nenhuma forma de vida é permanente, mas sumamente mutável” (ARNOLD, 2016, p. 114).
Por outro lado, a criação tem a ver com as noções de equilíbrio que o ser humano deve considerar, em reciprocidade com os/as protetores/as dos animais, dos produtos agrícolas e dos outros seres aos/às quais se deve dar de comer e beber, como mostra de gratidão por proporcionar a vida desses seres e por protegê-los. Nessa relação, consegue-se estabelecer o consumo responsável e necessário. Por isso, a caça indiscriminada ou o maltrato de qualquer ser serão censurados na comunidade.
Nesse sentido, a criação mútua da vida se estende à relação: “nas comunidades humanas, animais e plantas, trata-se de intervenções no fluxo constante de energia, em diálogos, conversações, intercâmbios e pactos entre os seres do cosmos e nas negociações permanentes para restabelecer e renovar os acordos” (ARNOLD, 2016, p. 134).
5 O desafio de seguir sendo e estando sustentados pelas espiritualidades
Para os povos em Abya Yala, o estigma colonial do “não ser” e a designação de suas espiritualidades como diabólicas é um peso forte, que sustenta seu não reconhecimento como povos com direitos. Lamentavelmente, essa visão se fundamenta na noção do religioso como uma porta que possibilita a invasão e a expropriação. Em nossos tempos, a criminalização da defesa dos territórios é feita a partir da invalidação da relação com os territórios vitais habitados por diversas comunidades de vida, que são designadas como supersticiosas, panteístas, pagãs, idolátricas, folclóricas, essencialistas.
As diversas articulações ecumênicas iniciaram caminhos de diálogos que derivaram no caminhar das Teologia Índias/Indígenas e suas respectivas organizações locais. Contudo, não se pode negar o crescente fundamentalismo de diversas denominações cristãs que afetam as organizações comunais, gerando divisões nas tomadas de decisões. Elas tendem não só ao fundamentalismo religioso, mas também ao fundamentalismo político partidário.
Os povos vivem rupturas internas que esvaziam o sentido dos princípios ancestrais e suas espiritualidades, por causa de influências externas e das migrações contínuas de suas populações. Apesar de tudo, existem processos significativos de adaptação, inclusive diante da “emergência climática”, pois muitos sábios e sábias reconhecem que os tempos mudaram e procuram encontrar orientações para escutar à Mãe Terra.
Por isso, a volta à terra implica uma conexão profunda com as sabedorias e espiritualidades que sustentam a vida dos povos, para além de sua folclorização e sua exoticidade. E isso permite reconhecer o belo pluriverso, expresso em cores, rostos, linguagens, sons, sabores, festividades cíclicas, ritos relacionais, e o cuidado dos territórios habitados pela grande diversidade de comunidades de vida.
Não se trata de noções românticas e idealistas, como é criticado nos espaços dos saberes ocidentais, mas de esforços permanentes em suas práticas de não seguir a rota do colonialismo capitalista e patriarcal vigente. Esse colonialismo promove a ruptura das relações com as diversas comunidades de vida. Isso leva à caça e pesca ilimitadas, à depredação dos montes sagrados, à contaminação das águas, rios, mares, fontes, à introdução de outras espécies e sementes transgênicas, à promoção do monocultivo, e à ruptura nas relações cósmico-sociais.
Trata-se de buscar o caminho das inter-relações profundas que devolvam à pessoa seu lugar no cosmos, no qual as reciprocidades e complementariedades com os outros seres são fundamentais para possibilitar a vida. Só a volta à terra pode oferecer esse caminho, pois dela depende a alimentação, a saúde, a harmonia e as reciprocidades, que possibilitam o Bem Viver, a Terra sem males, a Loma Santa, a Vida Digna, a Plenitude da Vida, a Vida bela.
Nos processos de recriações dos sentidos profundos do seu ser e estar no cosmos, a memória se antecipa no caminho da vida, procurando o vínculo com a ancestralidade. Uma ancestralidade que não se situa num espaço etéreo, mas que se faz parte do cosmos relacionado com as diversas fontes vitais, das que procedem a compreensão da vida.
Trata-se de forças ancestrais cósmicas que despertam a memória dos povos, como se expressam nos territórios onde ainda habita a memória dos povos subjugados e destruídos. É isso que explica Perfecto Sánchez a partir das territorialidades denominadas do Caribe:
A origem taína persistiu até hoje; essa herança, junto às provas históricas da sobrevivência taína, presentes ainda hoje na nossa cultura dominicana, evidencia que o povo taíno nunca foi extinto. Ainda que os colonizadores tenham exterminado essa cultura, [o povo taíno] sobreviveu nas margens da sociedade colonial até o presente (SANCHEZ, 2017, p. 36).
É a força dos territórios habitados pela ancestralidade que narram e cantam suas histórias, como se afirma profundamente na palavra viva de Popol Vuh: “Arrancaram nossos frutos, cortaram nossos ramos, queimaram nossos troncos, mas não conseguiram matar nossas raízes”.
Sofía Chipana Quispe. Membro da comunidade de Teólogas andinas de Abya Yala. Coordena o Centro de Saberes Alternativos Thakichañani, em El Alto de La Paz, Bolívia. Texto submetido em 30/05/2022; aprovado em 30/08/2022, postado em 31/12/2023. Texto original em espanhol.
Referências
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APAZA, J. Cosmovisión andina en la crianza de la papa. In: van KESSEL, J.; LARRAIN, H. (Eds.). Manos sabias para criar la vida, tecnología. Quito: Hombre y Ambiente, 1997, p. 101-125.
ARNOLD, D. Territorios animados: los ritos al Señor de los Animales como una base ética para el desarrollo productivo en los Andes. In: ROMÁN, A.; GALARZA, H. (Eds.). Símbolos, desarrollo y espiritualidades: el papel de las subjetividades andinas en transformación social. La Paz: ISEAT, 2016, p. 111-159.
BARROS, M. La tierra y los cielos se casan en la alabanza. RIBLA, Quito, n. 21, p. 57-73, 2006.
BATALLA, G. Utopía y revolución. El pensamiento político contemporáneo de los indios de América Latina. México: Nueva imagen, 1988.
CUMES, A.; GIL, Y. La Dualidad complementaria y el Popol Vuj: patriarcado, capitalismo y despojo. Revista de la Universidad de México, 2021. Disponível em: <https://www.revistadelauniversidad.mx/articles/8c6a441d-7b8a-4db5-a62f-98c71d32ae92/entrevista-con-aura-cumes-la-dualidad-complementaria-y-el-popol-vuj>. Acesso em: 15 jan. 2022.
CORDERO, V. Vírgenes y diosas en América Latina: la resignificación de lo sagrado. Con-spirando, Santiago de Chile, n. 45, p. 3-7, 2003.
GALEANO, E. Úselo y Tírelo: el mundo del fin del milenio visto desde una ecología Latinoamericana. Buenos Aires: Planeta Bolsillo, 1998.
LENKERSDONF, C. Aprender a escuchar: enseñanzas maya-tojolabales. México: Plaza y Valdés, 2008.
MARCOS, S. Mujeres, indígenas, rebeldes, zapatistas. México: Eón, 2013.
MONTES, F. La máscara de piedra: simbolismo y personalidad aymaras en la historia. La Paz: Armonía, 1999.
SÁNCHEZ, P. En tiempos estériles, hablemos de fertilidad desde nuestras raíces taína-caribeñas. In: GALARZA, H. (Ed.). Cuidando la vida II. La Paz: ISEAT, 2017, p. 29- 37.
[1] Abya Yala provém da língua do povo Kuna ou Guna do Panamá e significa “terra em plena maturidade”, “terra fértil”, “terra florescente”. Usamos esse termo, pois a designação “América Latina” é eurocêntrica e colonial. Por isso, em 1977, depois de sua visita aos povos Kuna, Constantino Mamani (Takir Mamani) propôs esse nome.
[2] Ayllu: povo com sentido de pertencimento, que pode estar em um mesmo território ou em espaços geográficos distintos. [N.T.]