Sumário
Introdução
1 Contextualização histórica do período literário sapiencial
1.1 Do surgimento ao período dos Juízes: Israel pré-estatal (1250-1000 aC)
1.2 A Monarquia (Israel estatal: 1000-587 aC)
1.3 O Exílio (587–538 aC)
1.4 O pós-exílio – época persa (538-332 aC): período de reconstrução
1.5 A época grega (333-63 aC): o helenismo
1.6 A reação ao Helenismo
2 A sabedoria em Israel
2.1 Continuidade ou inovação?
2.2 A teologia da retribuição ou da justa recompensa
2.3 Crise da sapiência e recomeço
2.4 A sapiência e Jesus
3 A literatura sapiencial israelita
3.1 A literatura
3.2 As formas ou gêneros literários sapienciais básicos
Conclusão
Referências
Introdução
A sapiência de Israel brota da cepa comum dos povos circunvizinhos.[1] Esse saber evoluiu e se fez livro, do período da tardia reconstrução pós-exílica ao início do helenismo, e com finalidades claras. Entre elas, destacam-se a educação da pessoa num ambiente em mudança (ad intra) e a tentativa de verbalizar a fé do povo da aliança numa linguagem apta ao diálogo com os vizinhos e, particularmente, com o mundo “globalizado”, ou seja, impregnado pelo helenismo, o mundo da sofia (ad extra). A sapiência bíblica terá que avaliar pressupostos teológicos como a teologia da retribuição, passará por crises, se purificará e desembocará no NT, sobretudo, no agir de Jesus e nos Evangelhos. Em termos de literatura, a sapiência israelita está condensada no seguinte conjunto de livros: Jó, Pr, Ct, Ecl, Eclo e Sb. Esses aspectos e outras particularidades serão apresentados a seguir.
1 Contextualização histórica do período literário sapiencial
Esta contextualização não pretende abordar de forma pormenorizada a história de Israel. Quer apenas lembrar suas principais etapas e, nelas, pontos relevantes que ajudem a entender em que momento da história aparece a literatura sapiencial.
1.1 Do surgimento ao período dos Juízes: Israel pré-estatal (1250-1000 aC)
Cerca de 1250 aC, emerge no Antigo Oriente Próximo uma nova grandeza que porta o nome de Israel. O evento fundante e catalizador desta nova realidade é a saída do Egito, o êxodo, sob a liderança de Moisés. Israel é, na verdade, uma confederação de tribos lideradas por juízes (Jz 2,16.18), isto é, libertadores (Ex 18,21-26; 1Sm 8,1-3; Rt 1,1), que incialmente atuavam apenas em momentos de crise, e pelos anciãos (1Sm 8,4). A unidade básica é a família (casa) inserida no seu clã e na sua tribo. A fé, simbolizada na Arca da Aliança, é nômade e histórica. O Deus, YHWH, caminha com seu povo. Israel ainda não é um Estado, não é reconhecido como nação. Não tem um governo central, como lhe caracteriza a frase referida a este período: “nesse tempo não havia rei em Israel” (Jz 17,6; 18,1; 19,1; 21,25), embora, na verdade, Javé reinasse sobre ele (Jz 8,23b; 1Sm 8,7b; 12,12b) num pacto de Aliança. Essa etapa ficará conhecida como período dos juízes ou tribalismo.
1.2 A Monarquia (Israel estatal: 1000-587 aC)
Em torno da virada para o primeiro milênio aC, Israel enfrenta alguns desgastes, como: o arrefecimento da fé que os unia, como o caso dos filhos de Eli (1Sm 2,12-17.22-25), a consulta à necromante por Saul (1Sm 28) ou a veneração de Baal (Jz 8,33-34); atritos entre as tribos, como o crime de Gabaá (Jz 19) ou a rejeição de Benjamim (Jz 21,15-25); juízes corruptos (1Sm 8,3) e tentados a serem rei, como Gedeão (Jz 8,22) e Abimelec (Jz 9,1-6). Por outro lado, aparecem as “novidades” do momento, como: a domesticação do boi, animal já presente no código da aliança (Ex 20,22–23,19) e na primeira guerra de Saul (1Sm 11), associado ao domínio do ferro (1Sm 13,19-22) e a comercialização do azeite (Ex 23,11) como fatores comerciais; não surpreende o aparecimento de endividados (1Sm 22,2). Um sistema já ineficaz para a defesa é confrontado com a ameaça externa de segurança, como o conflito com os filisteus (1Sm 4,1-11) e os amonitas (1Sm 11,1-11). Esses fatores serviram de pretexto a uma (nova) classe abastada que necessitava de um novo sistema de governo centralizado e que correspondesse a seus interesses. Israel quer ter um rei como as outras nações (1Sm 8,5.19b-20). Assim, inicia-se o sistema monárquico com Saul e Davi, chegando ao seu pleno desenvolvimento em Salomão. Trata-se de um governo central, com exército, palácio e corte, com um amplo aparato administrativo que se serve de um esquema de tributação, corveia, comércio externo e luxo (1Rs 9–10), enquanto encanta o povo com as grandes construções (1Rs 5,15–7,51). Constrói-se um templo para Javé, a Arca da Aliança será fixada no templo (2Sm 6; 1Rs 8) e a religião torna-se a-histórica, sedentária, estatizada, a serviço da ideologia monárquica. Todo um aparato litúrgico, envolvendo sacerdócio, altar e sacrifícios, corrobora para este fim. Israel agora é um Estado, mas desde Davi passa a ser um Estado imperialista (1Rs 5,1). Ora, para gerir tudo isso se pressupõe a sabedoria de Salomão (1Rs 5,9-14; 10,1-8).
A partir de Salomão, o reino é divido (1Rs 12). O reino do norte, Israel, será dominado pelos assírios com a queda de sua capital, Samaria, em 722 aC, e o reino do sul, Judá, terá seu fim com a invasão babilônica à sua capital, Jerusalém, em 587 aC. Uma avaliação da monarquia pode ser vista na fábula de Jotão (Jz 9,7-15), a propósito do rei Abimelec: os inúteis querem ser reis, mas não passam de espinheiros sobre o povo. A monarquia afundou-se na infidelidade ao Deus da aliança, expressa na idolatria e nas injustiças sociais.
Destaca-se, neste contexto, a figura dos profetas. Poucos comem à mesa dos reis. A maioria deles, fiéis à aliança e à fé dos pais, criticam sem descanso os desmandos dos reis e da sociedade, tentando corrigir a rota sociopolítica e conclamando à fidelidade à aliança. Tentavam, em vão, levar à interiorização dos valores da fé e recuperar sua força histórica. Apesar do esforço, não puderam evitar o exílio.
1.3 O Exílio (587–538 aC)
Nabucodonosor, rei da Babilônia, e seu exército sitiam Jerusalém, saqueiam o templo e o palácio do rei e levam cativos a família real, a elite da cidade e os profissionais de seu interesse (2Rs 24,10–25,24; Jr 52). Deixam para trás cerca de 50 a 100 mil pessoas, sobretudo, os pobres (2Rs 25,12; 24,14; Jr 39,10; 40,7b; 52,16). Alguns conseguiram fugir (2Rs 25,22-25; Jr 40,7-12; 42,11-15; 43,7; Is 11,11). A ruína que os babilônicos deixam atrás de si, bem como a sorte dos que ficaram, podem ser percebidas a partir do Livro das Lamentações. Israel está agora sem terra, sem templo, sem altar, sem sacrifícios e sem Jerusalém. Suas instituições fracassaram. Daniel, escrito tardio, mas contextualizado no exílio (Dn 1,1-2), descreve este quadro: “Não há mais, nestas circunstâncias, nem chefe, nem profeta, nem príncipe, nem holocaustos, nem sacrifício, nem oblação, nem incenso, nem lugar onde oferecermos as primícias diante de ti para encontrarmos misericórdia” (Dn 3,38-39a, adição grega). Onde foram parar as promessas divinas? Aquelas a Abraão (Gn 12,1-3.7), a Davi (2Sm 7,4-17)? Que sorte teve a estabilidade do templo (altar, sacerdócio, sacrifícios) assegurada a Salomão? Deus ainda se lembra de seu povo? Onde estava que não evitou a catástrofe? O que fazer quando as instituições fracassam? Abre-se aí uma grande crise de fé, uma grande “noite escura” para o povo. O exílio cria um grande problema teológico para Israel. Por conseguinte, depois do exílio, ele não será mais o mesmo. Israel precisará reencontrar sua identidade, refazer sua visão de Deus, refazer seu caminho. A catástrofe, porém, longe de destruir a fé, a purifica e se reverte em chance. O exílio passa a ser visto como juízo e não passividade de Deus, não como punição, mas ocasião de avaliação e recomeço. Era o desafio de ver, na desgraça, a graça.
1.4 O pós-exílio – época persa (538-332 aC): período de reconstrução
Após 50 anos, Ciro, rei da Pérsia, libera o retorno dos exilados. Nem todos os dispersos voltaram e, dos que voltaram, alguns não foram para Jerusalém, mas, certamente, todos mudaram o modo de pensar. Inicia-se a fase da reconstrução (538-332 aC). Ela será marcada, de um lado, por um Israel repatriado (Golá), que acaba de viver uma experiência de internacionalidade e animado por uma mentalidade aberta de ser servo, luz das nações (Is 42,6; 49,6), retomando a perspectiva universalista iniciada em Abraão. Por outro lado, o retorno para Israel não foi só físico-geográfico, voltar implicava a preocupação de reconstruir sua identidade e a pureza da fé.
Tudo mudou: política sem monarquia, religião sem templo e seu aparato, sociedade sem rei e sem instituições. Israel precisa se reinventar, reconstruir sua ideia de Deus, encontrar uma nova forma de se organizar, celebrar, conceber a vida, enfim, a experiência gera uma reflexão nova, descobre outros critérios para perceber a presença de Deus na trama da vida. Algumas mudanças de foco serão notáveis como: passa-se do rei/sacerdotes à família; do palácio à casa; do templo à criação e ao cotidiano; de Israel ao universo; do israelita ao ser humano; do profeta ao sábio; da teofania à experiência da vida. Era preciso encontrar nova forma de pensar a relação com o divino, com a vida e com o outro.
Pré-exílio | Pós-exílio | |
Instituição | Palácio/templo | Casa |
Protagonista | Rei/sacerdote | Família |
Motivadores | Profetas | Sábio |
Manifestação de Deus | Teofania/revelação | Experiência da vida |
Foco | Governo: Israel | Homem: universo |
Pouco mais tarde (ca. 445 aC), não desvinculado da preocupação com a identidade, o governador Neemias reconstrói os muros de Jerusalém (Ne 3) e resgata a ideia do Levítico (Lv 20,24-26) de que povo eleito é povo separado (Ne 9,2; 10,29.31; 13,3.23-27.30). Na mesma linha, o governador e sacerdote Esdras, preocupado em oferecer uma base normativa para o povo, repropõe a observância da Lei (Esd 7,25-26; Ne 8), restabelece o templo com seu aparato (Esd 3; 6) e radicaliza o pensamento de Neemias: quem se casou com mulher estrangeira deve mandá-la embora com seus filhos (Esd 9,1-2; 10,2-3.11.18-19.44; 6,21). Na sua visão, era preciso purificar a etnia. Com estes três elementos, a lei, o templo e a raça, Esdras coloca as bases daquilo que, mais tarde, vai se chamar Judaísmo.
Portanto, a abertura inicial dará lugar a um fechamento, uma espécie de “nacionalização da fé”. É o muro físico se tornando um muro ideológico. A intenção de ambos era sadia, restaurar a identidade do povo, mas a leitura estreita do pensamento de ambos contribuirá, mais tarde, para a fragmentação do povo, sobretudo, a partir do período dos Macabeus (167-134 aC). O contraponto a esse pensamento será oferecido respectivamente nos livros de Jonas e Rute.
Ora, entre 500-322 aC, na Grécia, atuavam figuras como Heródoto, Fídias, Eurípedes, Sófocles, Sócrates, Platão e Aristóteles. Está em ebulição um fenômeno chamado filosofia.
1.5 A época grega (333-63 aC): o helenismo
Em 332 aC, emerge Alexandre, o Macedônio (1Mc 1,1), na história conhecido como Alexandre Magno, e apanha o mundo de surpresa. Ele sonha com um domínio mundial, quer ocupar a oikumene, isto é, o mundo habitado de então. “Empreendeu, então, numerosas guerras, apoderou-se de fortalezas e eliminou os reis da terra. Avançou até as extremidades do mundo e tomou os despojos de uma multidão de povos, e a terra silenciou diante dele (1Mc 1,2-3)”.
A mentalidade helênica começa a dominar o mundo. É a cultura urbana “globalizante”, a cultura da polis. Ela porta consigo elementos novos: filosofia, economia, cultura, humanismo, administração, esportes (2Mc 4,9.12.18), enfim, todo um sistema educacional voltado, sobretudo, para os jovens (ephēbos). Era, em termos bíblicos, aquilo que, na nossa linguagem moderna, seria a primeira “globalização”.
Jasão, um judeu pró-helenismo, adquire junto ao rei Antíoco IV Epífanes (175-164 aC), mediante suborno (2Mc 4,7-9), o cargo de sumo sacerdote. “Tão logo assumiu o poder, começou a fazer passar seus irmãos de raça para o estilo de vida dos gregos” (2Mc 4,10). Na sequência, o texto classifica os novos costumes como contrários à Lei de Israel (v. 11b), estrangeiros (v. 13) e idólatras (vv. 19-20). Na verdade, encontram-se duas visões da vida e do mundo, duas mentalidades, dois paradigmas, que o autor de Macabeus chama de “estilos de vida”. Trata-se, de um lado, de um Israel rural agarrado à Lei, segundo a visão de Esdras e Neemias e, de outro, a visão externa pagã helenista, abraçada, sobretudo, pela elite urbana de Jerusalém e por muitos dentre o povo (1Mc 1,11-15.52). Este quadro culminará na rebelião macabeia mais tarde. O helenismo é visto por grande parte como ameaça à fé israelita (2Mc 4,13-17a).
1.6 A reação ao helenismo
Jerusalém ou Atenas? Israel se encontra diante de dois paradigmas. Três opções despontam no horizonte: refutar radicalmente o helenismo, deixar-se “engolir” por ele ou dialogar criticamente, uma vez que o helenismo oferecia também elementos positivos? Os sábios de Israel preferem dialogar com a mentalidade grega. É possível abrirem-se à influência grega sem, no entanto, trair a originalidade da fé. Afinal, a abertura para o mundo é compatível com a fé de Abraão. Para isso, era preciso codificar os valores de sua fé numa linguagem apta a dialogar com a cultura grega. Os sábios israelitas verbalizarão seu patrimônio teológico e cultural numa linguagem que os vizinhos pudessem entender. Ora, a este propósito emerge uma parte significativa da literatura sapiencial ou a redação final de algumas destas obras e, mais tarde, a própria tradução da Bíblia (LXX). Cada autor bíblico (como Ecl, Eclo e Sb) reagirá, de forma crítica, com maior ou menor aderência ao helenismo. É a fé dialogando com a razão, a sapiência (ḥoḵmāh) dialogando com a sofia!
2 A sabedoria em Israel
2.1 Continuidade ou inovação?
A sabedoria bíblica parte do ambiente e patrimônio sapiencial comum do, assim chamado, Crescente Fértil. Todavia, alcançou grandes proporções e não foi mera cópia, mas releitura criativa à luz da fé no Senhor. Os sábios bíblicos deram continuidade com originalidade. A superioridade da sabedoria israelita pode ser vista já no elogio ufanista ao seu patrono: “A sabedoria de Salomão foi maior que a de todos os orientais, maior que toda a sabedoria do Egito. Foi mais sábio que qualquer pessoa…” (1Rs 5,10-14; 10,4-8). E ao povo: “Só existe um povo sábio e inteligente: é essa grande nação!” (Dt 4,6b). Apresentar-se-ão a seguir alguns aspectos dessa sabedoria a título de exemplo.
Também para o israelita bíblico existe uma ordem cósmica, criada e mantida por Deus, e o ser humano é convidado a espelhar essa ordem da natureza no seu modo de viver. Tudo está interligado e, numa trama de relações, a harmonia da criação interpela e instiga o ser humano a se organizar e a viver harmonicamente consigo mesmo, com os demais e com o mundo ao seu redor. Portanto, a visão de um cosmo criado, e nele, a nossa existência, que recebem de Deus-criador consistência e assistência, não é secundário para o sábio de Israel.
Todavia, para o israelita bíblico, esta ordem cósmica não é uma divindade imutável e cíclica na qual o ser humano é apenas uma peça passiva. Ele também cria, discerne, escolhe, decide, corrige-se, ajusta-se a situações imprevistas, é livre e atua com habilidade, tem consciência, responsabilidade e prudência, é protagonista, faz história, contempla e busca sentido. Enfim, ele se torna artesão da própria vida, faz um caminho, tem as rédeas da vida na mão, dá razões à sua existência e procura ser feliz. O sábio bíblico não delega a responsabilidade de modelar a própria vida a terceiros, não se conforma em confiar em “horóscopo”. Por isso, Alonso Schökel prefere definir a sabedoria bíblica como oferta de sensatez, que entra na esfera valorativa (SCHÖKEL, 1984, p. 20). De certa forma, a sabedoria de Israel, mais que “bom senso”, é uma opção de vida, um modus vivendi. Para Scaiola, “a sapiência é a arte de dirigir a própria vida com êxito” (SCAIOLA, 1997, p. 36). Para Lorenzin, “a sapiência é a arte de saber pilotar a própria existência, observando os acontecimentos do mundo, perscrutando a própria experiência e aquela dos outros” (LORENZIN, 2013, p. 9). Portanto, a sabedoria bíblica não é apenas saber viver para sobreviver, defender a vida. Lutar pela sobrevivência o animal também o faz e não é sábio. A sapiência desafia a olhar mais longe, a viver de modo tão sensato e prudente que a pessoa se torne feliz. Nas palavras do livro de Provérbios: “Feliz o homem que encontrou a sabedoria” (Pr 3,13a; ainda Eclo 14,20).[2] É a religião prática que se traduz numa conduta ética diferenciada. Por isso, ser inteligente, saber muito ou tudo ainda não significa ser sábio.
A sensatez humana esbarra em Deus como sua fronteira (Ecl 1,8; Pr 21,30; Jó 11,6-7). Neste aspecto, o saber humano é limitado. Isso implica um respeito reverencial a Ele como fonte do saber (Br 3,12). É o que a literatura sapiencial chama de yir’aṯ YHWH (= temor do Senhor), princípio do saber (Jó 28,28; Pr 1,7; 9,10; 15,33; Sl 111,10; Eclo 1,14.16.18.20). Assim, o sábio israelita descobre que a sabedoria, que adquire como tarefa na experiência da vida, é, de fato, um dom de Deus (Ecl 2,26; Eclo 1,1.10a; 11,15; 24,3; Pr 2,6; Sl 51,8b; Gn 41,39; Ex 28,3; 31,1-5; 36,2; 1Rs 5,9.26; 10,24; 2Cr 1,12; Jr 10,12; 51,15) e vem, também, pela oração (Sb 8,21–9,18; Eclo 24,2; 1Rs 3,6-14; 2Cr 1,10-11). A sabedoria é um atributo divino. Ora, que Deus era sábio e dava a sabedoria ao rei, já era conhecido no Crescente Fértil. Todavia, ganha agora em Israel proporções e clareza até então não vistas.
Algumas obras sapienciais tentam vincular a sapiência escrita com a corte e, particularmente, com Salomão (Pr 1,1; 10,1; 25,1; Ecl 1,1; Sb 7,7-9; 9,7-8; Ct 1,1), o grande sábio (1Rs 5,9-14). De certa forma, seria algo um tanto anacrônico, uma vez que o período de Salomão não é compatível com a data desses escritos. Por outro lado, hoje se sabe que só a partir do séc. VIII-VII aC Israel alcança as condições econômicas necessárias para investir na escrita e, por conseguinte, na produção literária. Além disso, a literatura sapiencial seria redigida no pós-exílio quando a corte já era coisa do passado. Logo, a atribuição a Salomão se deve ao notório fenômeno da pseudonímia ou pseudoepigrafia.
Quanto às escolas, exceto a atuação de Qohélet, que ensinava o saber ao povo, examinava e corrigia provérbios (Ecl 12,9), e o convite de Sirácida (séc. II aC) “entrem na minha escola” (Eclo 51,23), usando a expressão bet midrash = casa da instrução, isto é, escola, não se sabe praticamente nada a respeito de escolas em Israel. Elas virão a partir desse período, portanto, algo bastante tardio. Assim, corte e escola não são relevantes para a sapiência israelita. O foco será, sobretudo, a vida cotidiana e, nela, a casa, ou seja, a família (Tb 4,3-21). Certamente, também por isso o Decálogo focaliza o pai e a mãe (Ex 20,12; Dt 5,16). Juntamente com os genitores e, particularmente, com o pai, aparece imediatamente o mestre, o sábio e o ancião. O mestre ganha tamanha estima que é chamado de pai e o discípulo de filho. Já entre os sumérios, o mestre era o “pai da escola” (ummia), diferenciando-se do “pai da casa”, e o discípulo ou aluno era o “filho da escola” (CIMOSA, 1997, p. 402). No livro dos Provérbios, por exemplo, em muitas passagens, é difícil saber se se fala do pai “biológico” ou do pai-mestre. Ora, aí na atuação do pai, mestre e ancião emerge outra fonte da sabedoria, a tradição (Eclo 24,30-34). Outra fonte de sapiência em Israel era o intercâmbio com os vizinhos, que não era reduzido ao comércio.[3] Tudo isso nos permite falar de uma sapiência a partir de baixo. Para um povo majoritariamente analfabeto, ela circulava de boca em boca. A literatura sapiencial é um ato segundo. A corte e a escola, certamente, tiveram um papel em sua coleta, redação, sistematização, divulgação e promoção.
No pós-exílio:
A sabedoria como dom de Deus. Esse pensamento já era conhecido no Oriente Antigo. Para os cananeus, por exemplo, a sabedoria era um atributo de El, deus supremo, que a concedia ao rei. Agora, porém, sobretudo no pós-exílio, essa dimensão teológica passa a ser central na teologia judaica. A fé israelita começa a ser traduzida ou verbalizada em linguagem sapiencial. O saber, a partir do temor, é sistematizado teologicamente.
A sabedoria não está vinculada à formação de gente da corte ou elites, mas a todo ser humano. Então emerge aos poucos o oficio de mestre e sua respectiva classe.
Ela é personificada. Fala e age como pessoa (Pr 1–9; 31,10-31; Jó 28; Eclo 24) e, mais precisamente, como mulher. É da família: mãe (Sb 7,12) e irmã (Pr 7,4). Dela alguém pode se enamorar (Sb 8,2) e com ela se casar (Eclo 7,19). Ela convida para um banquete em sua casa (Pr 9,1-6). Está presente em Deus e atua com ele desde a criação (Pr 3,19; 8,22-31; Sb 7,21-22). É distinta dele, embora proceda da sua boca (Eclo 24,3), mas ele sabe onde ela se esconde (Jó 28,13.20.21.23). Ela manifesta a glória e a luz divina (Sb 7,25-26). Entretanto, a insensatez ou tolice também se personifica e seduz (Pr 9,13-18).
Sábio e justo. À medida em que vai se configurando a figura do sábio como alguém sensato, prudente e responsável, passa-se a ser visto como alguém moralmente bom. Entra-se já na esfera moral. Sábio passa a ser sinônimo de justo. O ímpio, por sua vez, é o insensato. Àquele são reservadas a felicidade e a prosperidade e a este a ruína. Isso é claro no Sl 1, por exemplo, um salmo sapiencial. Quando, em determinadas circunstâncias ou contexto, não é possível praticar a justiça, sobretudo, com ações mais comunitárias, se pode ser justo.
Sapiência e lei. Para o deuteronomista, Israel será um povo sábio e inteligente aos olhos dos povos à medida em que observa a lei (Dt 4,5-8). O Sirácida identificará a sabedoria com a lei (Eclo 24,22-25; 19,20), que passa a ser vista como dom da sabedoria de Deus. Sábio torna-se aquele que perscruta a lei divina (Eclo 6,37; 15,1; 39,1). O salmista transforma isso num ideal de vida: é feliz quem faz da lei o centro da vida (Sl 1,1-2). Ambas são como os rios que fertilizam a terra e produzem colheitas (Eclo 24,25-27; Sl 1,3).
Em se tratando de sapiência, o foco não é Israel, mas o universo, não é o israelita, mas o ser humano, não é a história, mas o cotidiano, não é Deus, mas o semelhante, não é a revelação, mas a experiência, não é o mandamento, mas o conselho, não são as alturas, mas a vida.
Muitas vezes é necessário dizer o óbvio, ou seja, essa literatura sapiencial, que verbaliza a sabedoria que brota da experiência da vida, é palavra de Deus, canônica. Isso significa que Deus também fala através da sabedoria popular.
2.2 A teologia da retribuição ou da justa recompensa
A teologia da retribuição ou da recompensa. No discurso aos sábios, Eliú defende Deus, dizendo: “Ele retribui ao homem segundo suas obras, e dá a cada um conforme a sua conduta” (Jó 34,11). Eis aí o princípio da teologia da retribuição ou da justa recompensa divina. Deus, sendo justo, paga a cada um segundo o que merece, ou seja, segundo suas obras (Sl 62,13b). A base, portanto, é a justiça divina. Desse modo, o mal se paga com o mal, e o bem com o bem, e nesse mundo, uma vez que a vida futura só será clara no Livro da Sabedoria e Dn 12,2-3. Nessa perspectiva, a felicidade, a riqueza, o bem-estar são recompensas pela observância da lei divina, pela fidelidade a Deus. São sinais de bênção! A graça é o prêmio dos fiéis, dos bons. A enfermidade, o infortúnio, a opressão e a pobreza são castigos pela infidelidade e desobediência. A desgraça é o castigo dos ímpios, dos maus.
Na verdade, isso já era claro em Dt 30,15-20. Embora essa retribuição visasse o coletivo e não o indivíduo, de qualquer forma, Deus se apresenta como aquele que assegura a justa recompensa. Para que a lei e os preceitos divinos se a observância e a negligência teriam o mesmo resultado? Que valor teria a práxis da justiça (Sl 73,13-14)? Portanto, chega-se à seguinte equação: acolher e praticar a lei = vida próspera; rejeitá-la = ruína, desgraça. Consequentemente, essa equação se desdobra numa outra: rico = abençoado; pobre, sofredor = preguiçoso, pecador. Esquematizando de outro modo: rico = fiel à lei = Deus ajuda; pobre = infiel = Deus castiga. Assim, quem cai na desgraça é porque pecou e ela é o castigo merecido. Esse esquema dava segurança. Os sábios abraçaram ingenuamente esta sabedoria (Pr 10,3; 13,25; 14,11; 15,6). O Sl 1, tipicamente sapiencial, faz uma bela síntese desse esquema polarizado.
Nota-se aí uma propensão da sapiência em definir (ou possibilitar ler) o modo de atuar de Deus a partir da nossa conduta, como se a graça estivesse condicionada ao mérito humano. Ora, a teologia da retribuição ou da justa recompensa continua atuante disfarçada sob o título de Teologia da Prosperidade.
Com o passar do tempo, essa equação tornou-se engessada numa fórmula matemática, mecânica, fria. Transformará o pobre, o excluído e o vulnerável, em responsável por sua própria desgraça, sua própria pobreza e vulnerabilidade, enquanto a sociedade rica podia lavar as mãos, eximir-se de qualquer compromisso com os fracos. Já não se questionava o sistema econômico excludente e empobrecedor, nem a procedência da riqueza (se vem de exploração, corrupção e rapina). A teologia da retribuição será utilizada para legitimar a indiferença social e as injustiças, enquanto cala o grito do excluído. Resta-lhe acolher com paciência o “castigo” de Deus. O oprimido torna-se um pecador público e, consequentemente, abandonado por parentes e amigos, seu círculo imediato de convívio. Perverso, porém, é colocar tudo isso num esquema religioso, teológico, difícil de romper. É pobre ou enfermo porque pecou e recebe a merecida paga. Ora, essa leitura da teologia da retribuição, que foi se cristalizando ao longo do tempo, corresponde à realidade da vida? O que está por trás dessa leitura?
O profeta Jeremias chama a atenção contra essa leitura ingênua (ou perversa?): “Por que prosperam os ímpios e vivem em paz os traidores?” (Jr 12,1). O profeta deixa perceber que essa visão teológica não corresponde à realidade. Há pessoas justas e trabalhadoras que se dão mal na vida, não têm êxito, e há ímpios públicos que prosperam e seu êxito é tentador para o justo (Sl 73). O sistema econômico que vivemos jamais permitirá que uma doméstica e um operário honestos melhorem seu nível de vida. A perspectiva de Jeremias será desenvolvida com toda clareza em Jó. Veja, por exemplo, Jó 21,7-34. O adversário reconhece que Jó parte da experiência ao colocar na boca dele as seguintes palavras: “Eu sou justo e Deus me nega o direito. Apesar do meu direito, passo por mentiroso, uma flecha me feriu sem que eu tenha pecado” (Jó 34,5-6). Ora, Jó é ferido e passa por um sofrimento atroz (Jó 2,7.13), mas o texto insiste que ele era “um homem íntegro e reto, que temia a Deus e se afastava do mal” (Jó 1,1.8; 2,3). Portanto, Jó coloca em xeque a sapiência: ela não sabe explicar porque o justo e o inocente sofrem. Isso tira o alicerce da leitura feita em base à teologia da retribuição.
Também nessa linha, Qohélet, partindo de suas observações da realidade, afirma: “Já vi de tudo em minha vida sem sentido: gente honrada que perece em sua honradez e gente malvada que vive longamente em sua maldade” (Ecl 7,15). Ele questiona seriamente as riquezas (Ecl 2,1-11; 5,9–6,8), valor apreciado também pelo sábio como sinal de bênção. Elas não duram e nem bastam para dar segurança, sentido e plenitude à vida. Essa visão é retomada pelo Sl 49. Qohélet questiona a visão mecânica da providência divina bem como a mentalidade de que justo é sinônimo de feliz e de prosperidade sem percalços.
Enfim, haveria nesse esquema espaço para a ação livre, salvífica e gratuita de Deus? Teria lugar para o perdão e a misericórdia divina? A pessoa, sendo justa e reta, é automaticamente salva? Seria ela autora da própria salvação? Na perspectiva do NT, o patrão da parábola teria pagado igualmente a todos (Mt 20,1-16)? Jesus teria feito alguma cura, se as enfermidades e as deficiências fossem a justa paga de Deus? Fica claro que atrás da equação cristalizada da teologia da retribuição, de sua visão mecânica, se esconde, na verdade, uma falsa ideia de Deus e da relação com ele. Jó é categórico ao mostrar que a visão de Deus não pode ser terceirizada, nem reduzida à mera tradição: “Eu te conhecia só de ouvir [tradição], mas agora meus olhos te veem [experiência]” (Jó 42,5).
2.3 Crise da sapiência e recomeço
O confronto da teologia com a realidade da vida e uma nova experiência de Deus (espiritualidade) permitiram a Jó e a Qohélet colocarem em xeque a teologia em voga e abrirem os olhos dos sábios. Percebem que a sapiência tem limites, que o sábio não sabe tudo, que os enigmas da vida (como o sofrimento, a morte, o mal gratuito) não se resolvem com abstrações do nível da teologia da retribuição. A base da relação com Deus não pode ser o mérito, o desempenho pessoal, mas a gratuidade. O agir humano não condiciona a graça divina, mas decorre dela que sempre o precede. Nesse nível, Jó e Qohélet não levam a sapiência israelita à ruína, mas lhe possibilitam um recomeço. Ajudam-na a perceber o mistério insondável, sua fonte. O sábio percebe, então, que sapiência é também dom divino. Quando a razão cansa, o dom continua! Ela se abre para a fé e o temor divino e renasce vigorosa.
2.4 A sapiência e Jesus
A sabedoria personificada (Eclo 24) se autoelogia (v. 1) e diz: “Armei a minha tenda (kata-skēnēō) nas alturas… […] e Aquele que me criou armou a minha tenda (skēnē) e disse-me: ‘acampa (kata-skēnēō) em Jacó, em Israel recebe a tua herança” (Eclo 24,4a.8).
O evangelista recorre a essa linguagem para falar da encarnação do verbo: “O verbo se fez carne e armou sua tenda (skēnēō) entre nós” (Jo 1,14). É a sabedoria criada (Pr 8,22; Eclo 1,4.9; 24,8.9), encontrando no Verbo incriado o seu ápice. Para ele converge toda a tradição sapiencial, tudo que é bom e verdadeiro na sabedoria humana. Simultaneamente, a sabedoria, enquanto eterna, está presente junto de Deus e distinta dele, presente na criação. Com ela, Deus cria o mundo. Ela, como mestre-de-obras ou artífice da criação, personificada como pessoa, que desceu entre os homens e os convida ao banquete, servirá para verbalizar a fé no Cristo como Verbo pré-existente, primogênito, sabedoria personificada que desce do céu, se faz carne, arma sua tenda entre nós, fala em primeira pessoa, como mediador da criação, é Lógos junto de Deus e distinto dele (Jo 1,1-3), que revela o Pai (Jo 1,18), assumindo dimensão humano-divina. Portanto, a sapiência prestará um serviço decisivo à cristologia.
Jesus tem postura inequivocamente profética, mas ensina como um sábio. A sua pedagogia é sapiencial. Ele ensina, sobretudo, através de ditos e parábolas e seus interlocutores se maravilham e se interrogam: “de onde lhe vêm essa sapiência…?” (Mt 13,54). Algo mais que Salomão (Mt 12,42; Lc 11,31).
Para Paulo, Jesus é a “sabedoria de Deus” (1Cor 1,24.30). Nele “se acham escondidos todos os tesouros da sabedoria e conhecimento” (Cl 2,3). Todavia, não se limita às categorias gregas ou judaicas, antes apresenta a sabedoria da cruz, a aparente loucura que extrapola tudo que é sensato (1Cor 1,22-30). Assim, o apóstolo evidencia que o sofredor, longe de ser um castigado por Deus, é um lugar teológico.
3 A literatura sapiencial israelita
3.1 A literatura
Na opinião de alguns autores, a literatura sapiencial bíblica constitui-se numa espécie de “pentateuco”: Pr, Jó, Ecl, Eclo e Sb. Não são narrativas, como o Pentateuco e Históricos, nem leis, como o Pentateuco, não acusam nem denunciam, como os proféticos (ALONSO SCHÖKEL, 1984, p. 17). Também não são orações, como os salmos, embora encontremos alguns hinos (ex.: Pr 8; Eclo 24; 42-43), bem como salmos ou parte deles que são sapienciais. Enfim, eles apresentam conteúdo e forma próprios, que se diferenciam dos demais blocos do Antigo Testamento.
A Bíblia hebraica (TM) inclui esses livros no bloco dos, assim chamados, Escritos, excetuando Eclo e Sb por serem gregos. A tradução grega (LXX) os classifica como Livros Poéticos e inclui Ct e Sl. A tradição latina (Vulgata) chama-os de Livros Didáticos e faz o mesmo que a versão grega. A tradição católica chama-os de Livros Sapienciais, mantendo o número de livros das versões grega e latina, incluindo os, assim chamados, deuterocanônicos, Eclo e Sb, isto é, do 2º cânon, o grego. A tradição protestante, por sua vez, exclui Eclo e Sb, considerando-os apócrifos, seguindo a Bíblia hebraica.
Por um lado, os três livros sapienciais hebraicos (Jó, Pr, Ecl) fazem parte dos Escritos, mas nada, em nível formal, os une, exceto o fato de serem, na sua maior parte, poéticos. Aliás, a autocrítica sapiencial de Jó e Ecl, de certa forma, questiona a sapiência otimista de Pr (LORENZIN, 2013, p. 16). Por outro lado, o Cântico dos Cânticos, assim como Salmos, aparece junto ao “pentateuco sapiencial” em todas as tradições acima apresentadas (TM, LXX, Vg, Católicos).
Na verdade, a sapiência do Antigo Oriente Próximo e, particularmente, aquela israelita parte da experiência da vida, como já se insistiu. Ora, as duas experiências fundamentais da vida são o sofrimento e o amor. O sofrimento dá consistência e purifica o amor. Este, por sua vez, ilumina e dá sentido ao sofrimento. São como dois lados da mesma moeda. Em termos de literatura sapiencial bíblica, o sofrimento é apresentado de modo mais explícito no livro de Jó e o amor, no livro dos Cânticos. Jesus une as duas perspectivas. Uma síntese pode ser vista no verso joanino: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1b). Não por acaso, nossa língua apresenta um termo de síntese para ambas as realidades: paixão!
Em termos de gênero literário, os livros de Tb e Est se enquadram entre os relatos, mas impregnados do modo sapiencial de pensar. Particularmente Tb 4,3-21; 14,8-11. Muitos autores reconhecem também uma clara tônica sapiencial em Gn 2–3; 37–50; 2Sm 9–20; 1Rs 1–2 e o poema de Br 3,9–4,4.
Enfim, máximas sapienciais estão espalhadas por toda a Bíblia. Portanto, a ideia de um “pentateuco sapiencial” é só parcialmente correta, como conclui Lorenzin (2013, p. 16).
3.2 As formas ou gêneros literários sapienciais básicos
Mashal. É uma forma ou gênero literário exclusivamente sapiencial. Originariamente aplicado ao dito popular ou refrão. Trata-se, normalmente, de construções breves, de fácil memorização, que compactam ou “zipam” uma sabedoria, resultante de observações e experiências, de valor universal e que circula de boca em boca, isto é, se transmitem oralmente, daí o nome ditos. A tradução mais próxima para mashal seria provérbio, cujo plural corresponde ao nome da obra intitulada Livro dos Provérbios. Mais tarde, o dito passa a ser escrito. O mashal é a célula basilar da sapiência e está para a parábola assim como a semente para a planta. Procura-se chegar à compreensão de algo mediante comparação ou analogia. Enfim, o mashal faz pensar!
Sentenças e conselhos. No decorrer do tempo, um dito popular pode evoluir para a sentença ou o conselho ou mesmo ditos mais cultos. A sentença e o conselho se distinguem, sobretudo, pela forma verbal: a sentença recorre ao indicativo e o conselho, ao imperativo.
Existem outras formas sapienciais, mas não exclusivas da sapiência como, por exemplo: ditos numéricos, enigmas, adivinhação, diálogos e debates, discursos, listas (onomástico), narrações autobiográficas (confissões) ou didáticas, poemas (didáticos), fábulas, alegorias, orações (hinos, ações de graças e salmos), perguntas. Existem ainda os recursos estilísticos, também conhecidos como formas ornamentais ou artísticas, e também não exclusivos da literatura sapiencial como, por exemplo: o paralelismo, os recursos sonoros (paranomasia: assonância, aliteração, jogo de sons e palavras); as repetições (anáfora ou repetição inicial, repetição final, poemas acrósticos ou alfabéticos, enumerações, uso de sinônimos e as antíteses); as descrições ilustradas com exemplos, comparações, imagens, metáforas; hipérbole, paradoxo; aforismos (marcados pela brevidade e concisão); a pergunta retórica, as questões impossíveis e assim por diante (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1984, p. 70-71).
Conclusão
O profeta parte da revelação divina, exorta, emite oráculos e está preocupado com a comunidade da aliança, com o povo eleito. Ele se escuda na autoridade divina (expressa na Palavra), em um Deus que se revela do alto e na história.
O sábio, por sua vez, parte da experiência da vida, aconselha, emite sentenças. Sua autoridade vem da vivência cotidiana e dos anos. Observa a ordem da criação e a trama das relações humanas e descobre o mundo e o cotidiano como espaço da manifestação de Deus. Sua preocupação extrapola as fronteiras de Israel, ele quer formar o ser humano, confronta-o com seus dramas e ajuda-o a perscrutar os enigmas da vida.
A sabedoria bíblica apresenta-se como sensatez que ajuda a pessoa ser feliz. Prepara o ser humano para viver, conviver e pensar. Todavia, a sabedoria que o sábio exercita como tarefa descobre também nela o dom, que culminará em “Cristo, sabedoria de Deus” (I Cor 1,24.30).
Como cada sábio apresentou os resultados de suas observações em cada livro sapiencial bíblico que compõe esta parte das Escrituras, para cada um desses livros será elaborado um verbete nesta enciclopédia.
Fr. Rivaldave Paz Torquato, O. Carm. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Texto original em português. Enviado: 12/09/2022. Aprovado: 15/11/2022. Postado: 30/12/2022.
Referências
ALONSO SCHÖKEL, L. Uma oferta de sensatez. Ensayo sobre la literatura sapiencial. In: ALONSO SCHÖKEL, L.; VILCHEZ LÍNDEZ, J. Proverbios. Madrid: Cristiandad, 1984, p. 17-37.
CIMOSA, M. Educazione e insegnamento nei libri Sapienziali. In: BONORA, A.; PRIOTTI, M. et al. Libri Sapienziali e altri scritti. Turim: Elle Di Ci, 1997 (Logos CSB 4), p. 399-411.
LORENZIN, T. Esperti in umanità. Introduzione ai libri sapienziali e poetici (Graphé 4). Turim: Elledici, 2013.
NICACCI, A. A casa da sabedoria. Vozes e rostos da sabedoria bíblica. São Paulo: Paulinas,1997.
SCAIOLA, D. La Sapienza in Israele e nel Vicino Oriente Antico. In: BONORA, A.; PRIOTTI, M. et al. Libri Sapienziali e altri scritti. Turim: Elle Di Ci, 1997 (Logos CSB 4), 29-42.
VILCHEZ LÍNDEZ, J. Historia de la investigacion sobre la literatura sapiencial. In: ALONSO SCHÖKEL, L.; VILCHEZ LÍNDEZ, J. Proverbios. Madrid: Cristiandad, 1984, p. 39-82.
VILCHEZ LÍNDEZ, J. Sabedoria e sábios em Israel (BL – 25). São Paulo: Loyola, 1999.
[1] Como pode ser visto no verbete: A sapiência no Antigo Oriente Próximo e cuja leitura recomenda-se.
[2] A bem-aventurança é uma forma literária comum na sapiência. Ela condensa um ideal de vida caracterizado pelo termo feliz. Para outros exemplos: Jó 5,17; Pr 8,32b.34; 28,14; Eclo 14,1.2; 28,8.9; 26,1.26b; 31,8; 48,11; 50,28; Sb 3,13.14. Nos Salmos, aparece cerca de 26 vezes.
[3] Certamente é isso que tenta mostrar o livro de Jó, ao apresentá-lo como homem da terra de Hus (Jó 1,1); as palavras de Agur e Lamuel, rei de Massa (Pr 30,1; 31,1), sábios da Arábia; a coleção dos sábios (Pr 22,17–24,22), notável pelo seu paralelo com o egípcio Ensinamento de Amen-em-ope. Segundo Niccacci, “o movimento da sabedoria é o que Israel produziu de mais aberto para o exterior” (NICCACCI,1997, p. 49).