Sumário
Introdução
1 Quem são os Padres Capadócios?
2 Por que são tão importantes?
3 Principais contribuições teológicas
3.1 O fim da controvérsia ariana
3.2 Contribuições para a Cristologia
3.3 A contribuição à mística
3.4 Exegese
4 Homens de Igreja
5 O monaquismo
Conclusões
Referências
Introdução
O presente texto propõe uma iniciação geral aos Padres Capadócios. Começa com uma breve apresentação biográfica sobre cada um, indica, em seguida, por que eles são importantes no conjunto da Igreja e da teologia cristã, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Num terceiro momento, são apresentadas as contribuições teológicas de cada um, tanto na controvérsia que se seguiu à solução de Niceia ao problema do arianismo, quanto na elucidação de questões cristológicas, na reflexão sobre a mística cristã e no desenvolvimento da exegese. Num quarto momento, é indicada a contribuição dos três Capadócios na organização da Igreja e, no quinto, ao monaquismo.
1 Quem são os Padres Capadócios?
Com o termo “Padres Capadócios” indicam-se três bispos do séc. IV: Basílio de Cesareia (da Capadócia) (†379), também conhecido como Basílio Magno; seu amigo Gregório de Nazianzo (†389), conhecido no Oriente cristão pelo apodo de “o Teólogo”; e o irmão de Basílio, Gregório de Nissa († depois 394). O termo “capadócios” se refere à região de onde eram originários, a Capadócia, região oriental da península da Anatólia, a atual Turquia. O costume de mencioná-los juntos testemunha a percepção que a Igreja sempre teve de sua união e unidade de ação, seja no campo teológico, seja no da ação política eclesiástica de enfrentamento das fases finais da controvérsia ariana. Depois da reforma conciliar, a liturgia latina celebra Basílio e Gregório Nazianzeno num único dia, 2 de janeiro, enquanto o nome de Gregório de Nissa se encontra no Martirológio Romano no dia 10 de janeiro, onde, aliás, se encontrava também no Martirológio antes da Reforma. É a mesma data do calendário bizantino. Note-se que no calendário bizantino (gregoriano) Basílio e Gregório Nazianzeno, além de sua festa específica (respectivamente 1º de janeiro e 25 de janeiro) são celebrados também na festa dos Três Santos Doutores, dia 30 de janeiro, juntamente com João Crisóstomo. O culto litúrgico do Nisseno aparece mais tarde em relação ao de seu irmão e do Nazianzeno: a menção mais antiga que conhecemos está na versão georgiana do Lecionário de Jerusalém (séc. VII), no dia 23 de agosto. Provavelmente não se podem excluir como causa algumas posições teológicas de Gregório de Nissa, que pareciam demasiado origenianas (mesmo que se discuta sobre qual a real ideia nissena a respeito da apocatástase). Também a condenação de Orígenes, em 553, provavelmente terá influenciado no tardio surgimento do culto litúrgico do Nisseno.
2 Por que são tão importantes?
A importância dessas três figuras para a história da Igreja e da teologia dificilmente pode ser subvalorizada. Assim escreve M. Simonetti:
Com Basílio, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa a fusão entre profundo sentir cristão e paideia grega fica completa e se realiza no nível mais alto, seja da espiritualidade cristã, seja da formação clássica. De alta extração social, educados do modo mais tradicionalmente refinado e completo e, ao mesmo tempo, crescidos em ambientes profundamente cristãos, eles realizaram o ideal de um cristianismo culto, que soube aceitar tudo o que havia de válido no helenismo, sem desfigurar as linhas mestras da mensagem cristã, numa síntese que haveria de permanecer paradigmática para a cristandade oriental. (SIMONETTI, 1990, p. 89)
A família de Basílio e de Gregório Nisseno é efetivamente um dos primeiros exemplos de famílias já cristãs desde algumas gerações, de grande cabedal econômico e cultural e que participaram da história da evangelização da própria região, dando inclusive testemunho pessoal no decorrer das perseguições. Sua teologia, portanto, reveste-se de particular interesse, entre outras razões, porque se trata de um dos primeiros produtos de pessoas educadas na mais clássica paideia grega, mas, ao mesmo tempo, formadas já em ambiente que havia tempo era cristão. Basílio e Gregório de Nazianzo estudaram juntos em Atenas, que ainda era a capital da cultura dessa época. Basílio se mudou depois para Constantinopla, onde, segundo o testemunho do Nisseno, foi discípulo do famoso rétor Libânio. Basílio nos deixará uma obra importante, conhecida sob vários nomes, sendo o mais comum Discurso aos jovens, em que mostra como o estudo dos clássicos, feito cum grano salis certamente, não só não é perigoso para a fé, mas se torna até mesmo propedêutico para o subsequente estudo da Sagrada Escritura e da teologia. Gregório de Nazianzo é um finíssimo literato e um rétor muito capaz, e suas obras, tanto teológicas como literárias, mostram sua cultura e seu apurado gosto literário clássico.
Além de ser ligada à evangelização da Capadócia, a família de Basílio e do Nisseno é também uma família que deu à Igreja um número impressionante de santos. A avó de Basílio, Macrina Senior, foi discípula de Gregório Taumaturgo (mártir, celebrado a 2 de março) que fora, por sua vez, discípulo de Orígenes e se conta entre os evangelizadores da Capadócia. No Martirológio romano antes da Reforma, Macrina Senior era recordada dia 14 janeiro (na reforma litúrgica seu nome foi omitido). Os pais de Basílio são igualmente mencionados no Martirológio (seja no antigo como no reformado) no dia 30 de maio. Além da avó e dos pais de Basílio e Gregório Nisseno, essa família inclui ainda dois santos: um outro irmão de Basílio e Gregório, Pedro, bispo de Sebaste (que era celebrado no dia 9 de janeiro, mas hoje é mencionado no dia 26 de março) e a irmã Macrina Júnior (cuja memória litúrgica, em ambos os calendários, permanece no dia 19 de julho). Macrina terá uma influência muito digna de nota sobre Gregório de Nissa, que a recordará com acentos comoventes em uma carta (Ep. 19) e à qual dedicará uma obra importante, o De Anima et resurrectione, definido por alguns como o Fédon cristão, em que o diálogo sobre a morte e a ressurreição se desenrola entre Gregório e sua irmã no leito de morte, desempenhando a irmã o papel “socrático”. Não se pode não notar quão importante tenha sido a presença feminina na transmissão e na vivência pessoal de Basílio e do Nisseno (PAMPALONI, 2003; SUNBERG, 2017). As perseguições enfrentadas pela família foram, sem dúvida, uma das fontes que deram a Basílio aquela peculiar energia com que soube opor-se a tudo que impedisse a liberdade da Igreja. Também a família de origem de Gregório de Nazianzo se localizava mais ou menos nas mesmas coordenadas. Era uma família aristocrática e abastada, seu pai (conhecido como Gregório, o Velho), depois da conversão do paganismo, tornou-se bispo de Nazianzo e sua mãe, chamada Nona, também recordada no Martirológio romano (5 de agosto), exerceu um papel importante seja na conversão do marido como na educação do filho, que dedicou à mãe uma comovente lembrança num de seus discursos (Orat. 18).
Basílio e os dois Gregórios representam um caso praticamente único na história da teologia. Antes de tudo pela amizade entre eles, especialmente entre Basílio e o Nazianzeno, embora nos últimos anos a amizade entre Gregório e Basílio provavelmente tenha sido submetida a dura prova e talvez tenha, de algum modo, experimentado certo arrefecimento. Em segundo lugar, pela colaboração que souberam manter, embora não sem dificuldades, devido aos diferentes temperamentos dos três e uma certa “exuberância” na liderança por parte de Basílio em relação ao irmão e ao amigo durante a luta contra o imperador Valente. Mas foi, sobretudo, uma união peculiar no esforço comum no campo da teologia, em que cada um fez frutificar as próprias capacidades de um modo sinergético. A profundidade teológica e a visão geral dos problemas da Igreja de Basílio, a sensibilidade teológica e literária do Nazianzeno, unida à sua habilidade de rétor, os dons de especulação filosófica e a experiência mística do Nisseno imprimiram uma marca indelével na história do desenvolvimento da teologia. Verificar a possibilidade de explicitar seu método de fazer teologia “juntos” seria um tema que mereceria aprofundamento. Depois da morte de Basílio, que, segundo a maior parte dos pesquisadores, ocorreu em 379, o amigo e o irmão recolheram sua herança. Os tumultuosos acontecimentos que implicaram Gregório de Nazianzo em Constantinopla e depois no concílio que Teodósio quis fosse realizado na capital em 381, não impediram que esse concílio e o papel que nele desempenharam os dois Gregórios representassem a vitória decisiva da teologia dos três Capadócios sobre o perigo ariano.
3 Principais contribuições teológicas
3.1 O fim da controvérsia ariana
A contribuição teológica dos Capadócios se situa na fase final da controvérsia ariana e, sem dúvida alguma, foi de impacto decisivo para sua cessação. O concílio de Niceia, com a afirmação do termo homoousios, tinha certamente cortado pela raiz toda possibilidade de existência da posição de Ário, mas, já que o termo ousia não era percebido como claramente distinto de hypostasis, os bispos orientais, que desde sempre tinham sustentado uma teologia trinitária tripostática (ou seja: que sublinhava a distinção das três hipóstases divinas) viam no termo homoousios o perigo de negar uma distinção real entre o Pai e Filho, já que afirmar a mesma substância teria podido entender-se também como afirmar a mesma hipóstase. O temor não era infundado, pois em Niceia, entre os apoiadores de Atanásio e do homoousios, estava também Marcelo de Ancira, cuja posição monarquiana radical era conhecida e por ela haveria de ser condenado pouco depois. Marcelo negava a distinção das hipóstases na Trindade, pois, para ele, isso significaria afirmar três deuses distintos, e propunha uma modalidade puramente econômica da distinção entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que seriam, em última análise, uma só “pessoa”. A aceitação das conclusões do concílio da parte dos bispos orientais foi obtida sob inegável pressão de Constantino, que desejava encerrar rapidamente a questão por motivos de natureza política e estratégica, depois da ainda recente derrota de Licínio (324) e de ter-se tornado assim o único imperador. Mas uma convergência teológica não foi de fato alcançada, e esse fato causará a tensão interna que deflagrou imediatamente depois, levando a um vintênio de tumultuoso suceder-se de sínodos e propostas de fórmulas de fé, já a partir do importante sínodo de Antioquia de 341 (para essas fórmulas, em KELLY, 1989).
A fase seguinte, que podemos fazer iniciar com a morte de Constantino e a divisão do império entre seus filhos, viu o imperador Constâncio impor, para a paz religiosa do império – do qual, depois da morte de seu irmão Constante (350) e da derrota do usurpador Magnêncio (353), ele se tinha tornado o único imperador –, uma fórmula de fé que pudesse satisfazer a todas as partes, mas que na realidade resultava inaceitável tanto para os bispos orientais, como, naturalmente, para os mais fiéis a Atanásio, pois acolhia expressões de claro sentido ariano. Os adeptos da nova fórmula são chamados homeusianos, do termo homoiousios, “semelhante” ao Pai, proposta para dizer o que teriam pretendido Atanásio e os outros nicenos, sem usar, no entanto, o termo discutido. Por esse motivo, o termo “semiariano” para essa posição é hoje inaceitável. Constâncio conseguiu, contudo, obter, pela força e coerção, a assinatura de quase todos os bispos, quer do Oriente quer do Ocidente. Isso foi obtido através da celebração simultânea de dois concílios distintos, um em Selêucia Isáurica, outro em Rimini, nos quais o imperador tinha separado os orientais, mais divididos entre si, dos ocidentais, muito mais unidos na fidelidade nicena. Mas a aclamação a imperador de Flavio Claudio Juliano (conhecido como O Apóstata), por parte das legiões estacionadas na Gália, em 360, e a morte de Constâncio no ano seguinte, frearam a consolidação da pax religiosa sonhada por ele. Depois da morte de Juliano na luta contra os Sassânidas, em 363, coube a Valente subir ao trono da parte oriental do império. Sendo ele simpático aos arianos, o projeto foi retomado com vigor. Ficou, porém, dessa vez limitado só ao Oriente, uma vez que seu irmão Valentiniano, imperador no Ocidente que o tinha nomeado para governar a parte oriental do império, era niceno.
Este é o momento mais importante em que se encontram em ação os Capadócios, sobretudo Basílio. Ele teve o mérito de ter compreendido que, contrariamente ao que tinha pensado a corrente homeusiana, na qual se reconhecia o imperador Constâncio, uma solução política a um problema teológico não pode funcionar (e o mesmo se verificará também um século depois com a recepção do concílio de Calcedônia e o fracasso do Henotikon). Então, além da cuidadosa política eclesiástica de defesa da Igreja em face da hostilidade de Valente, Basílio elaborou uma solução que resultaria definitiva ao problema da distinção entre ousia e hypostasis, baseando-se numa distinção aristotélica entre “ousia primeira” e “ousia segunda”, uma que indica a substância em geral e a outra a substância individual, ou a hipóstase (para o caminho que levou Basílio a tal resultado, em SIMONETTI, 2006). Assim, consagrou-se a fórmula trinitária uma só ousia e três hipóstases. A outra contribuição decisiva, sempre decorrente da polêmica com os arianos, foi a respeito da divindade do Espírito Santo, tema que se tornou central nas discussões teológicas a partir, sobretudo, de 370, e sobre a qual Basílio escreveu uma obra famosa (De Spiritu Sancto), de grande interesse também porque Basílio aí apela à lex orandi como fonte da teologia.
Uma das evoluções do pensamento ariano, muito além das próprias posições de Ário, foi a que se tornou conhecida como anomea, para a qual a diferença entre o Pai e o Verbo era absolutamente radical. Um dos representantes teológicos mais famosos dessa corrente foi sem dúvida Eunômio, bastante ativo na segunda fase da controvérsia ariana. Seu racionalismo teológico radical foi refutado em duas obras, uma de Basílio e outra de seu irmão Gregório, talvez a mais célebre. Contra a teologia anomea são também os célebres cinco discursos teológicos de Gregório de Nazianzo, pronunciados em 380, em Constantinopla.
3.2 Contribuições para a cristologia
A subdivisão clássica da manualística caracteriza o séc. IV como o século das controvérsias trinitárias e o séc. V como o das controvérsias cristológicas. Na realidade, em nossa opinião, não é de fato incorreto considerar também a questão ariana como, no fundo, cristológica, enquanto se interrogava sobre a natureza divina do Verbo. E a questão sobre sua encarnação, embora, com efeito, tematizada plenamente no séc. V, não estava ausente nos séculos precedentes. Sem voltar ao séc. III com o que se poderia chamar, em jargão cinematográfico, um trailer das controvérsias do séc. V, ou seja, a famosa disputa que implicou, em Antioquia, Paulo de Samosata e o sacerdote Malquião (NAVASCUÉS 2004), sem dúvida também a segunda metade do séc. IV reconheceu a plena atualidade da questão, graças à figura de Apolinário de Laodiceia, contra o qual se movimentaram as mentes teológicas mais atentas do tempo, entre as quais os Capadócios (BELLINI, 1978). Num primeiro momento, Basílio tinha Apolinário em boa consideração, não o conhecendo pessoalmente, mas só de fama, como sendo, entre outras coisas, um férvido apoiador de Atanásio e do concílio de Niceia (LIENHARD, 2006). Chegou mesmo a consultá-lo sobre algumas questões (o epistolário basiliano). Durante seu magistério em Antioquia, no fim do séc. IV, Apolinário teve entre seus alunos também Jerônimo. Mas, quando sua cristologia começou a ser mais bem conhecida, imediatamente não só os Capadócios tomaram distância, mas formou-se outra linha de frente teológica a favor dos dois Gregórios (nesse meio tempo, Basílio já tinha falecido). Segundo Apolinário, na encarnação, o Verbo teria assumido o lugar (e, portanto, exercido as funções) do nous humano (no modelo tripartido clássico, nous, psychē e sōma) ou da alma (no modelo bipartido anima/corpus), ambos os modelos se encontram nos seus escritos ário. Se deste modo, na intenção de Apolinário, que queria assim refutar arianos e sabelianos (MCCARTHY SPOERL, 1993; MCCARTHY SPOERL, 1994), a realidade da encarnação ficava claramente afirmada, o resultado que derivava daí era, porém, inaceitável, uma vez que, se o nous, a parte que no homem especifica a humanidade, em Cristo não era humano mas era o mesmo Logos, resultavam pelo menos duas consequências absurdas: que Cristo não teria sido plenamente humano e que na prática se negava a transcendência divina, reduzida a uma das “funções” humanas. Gregório de Nazianzo salientou isso com força, fazendo seu o famoso adágio “o que não foi assumido pelo Verbo não foi salvo”. Também Gregório de Nissa escreverá uma obra inteira contra Apolinário. Em polêmica, enfim, muito provavelmente com teólogos antioquenos (BEELEY, 2011), Gregório de Nazianzo usará uma célebre expressão que esclarece sua visão: em Cristo, as duas naturezas não são allos/allos, mas allo/allo, utilizando uma distinção permitida pela língua grega e que na prática significa que em Cristo não há dois sujeitos, mas duas naturezas distintas. Na resposta a Apolinário, aparece um aspecto peculiar da cristologia de Gregório de Nissa, (chamada também “cristologia de transformação” DALEY, 2002), que se encontra profundamente relacionada com o conceito, peculiarmente nisseno, de epektasis e com uma concepção positiva da mudança (tropē) (DANIÉLOU, 1970).
3.3 A contribuição à mística
Entre os pesquisadores modernos, Jean Daniélou foi um dos primeiros que intuíram a importância da dimensão mística de Gregório de Nissa. Por muitos aspectos, Gregório foi considerado, aliás, o “pai” da mística cristã, sobretudo a partir da Vida de Moisés e de suas Homilias sobre o Cântico dos Cânticos, que retomam a herança origeniana com especificidades próprias, como precisamente a ideia de progresso infinito (PAMPALONI, 2010) e a que foi chamada a mística das trevas (PONTE, 2013). O pensamento de Gregório influenciou os místicos tanto do Oriente como do Ocidente. No Oriente, para além do âmbito de língua grega, deve-se mencionar a figura do místico siríaco João de Dalyatha (PUGLIESE, 2020), enquanto, no Ocidente, certamente se deve citar o nome de Guilherme de Saint-Thierry e sua influência sobre a mística cisterciense do séc. XII.
3.4 Exegese
Não se pode deixar de acenar à exegese desses Padres. De Basílio temos o primeiro Hexaemeron de que temos conhecimento, e representará um gênero literário de enorme sucesso, sobretudo na Idade Média. A exegese do Nazianzeno e do Nisseno em geral tem muita influência de Orígenes, mas sem se prestar às acusações de alegorismo radical. Um magnífico exemplo de resposta às acusações de alegorismo é dado exatamente por Gregório de Nissa, que, para responder às críticas de que negava um real conteúdo cognoscitivo à exegese alegórica, escreveu sua Vida de Moisés em duas partes. Na primeira, apresenta a vida de Moisés mediante uma exegese literal e, na segunda, o faz por meio da exegese espiritual, ou seja, alegórica, mostrando assim que uma não exclui a outra.
4 Homens de Igreja
De quanto dissemos por ocasião da descrição do quadro em que se desenvolveu a contribuição teológica dos Capadócios emerge a dimensão de Basílio como homem de ação capaz e decisivo na luta em favor da liberdade da Igreja, em oposição às manobras do imperador Valente. Nessa luta, atuam também os dois Gregórios como protagonistas – poderíamos dizer – apesar deles. Quando Valente dividiu a Capadócia em duas províncias (Capadócia I, com a capital em Cesareia, e Capadócia II, com a capital em Tiana) – segundo alguns pesquisadores para redimensionar o poder de Basílio, então bispo de Cesareia e metropolita da Capadócia; segundo outros simplesmente por motivos fiscais – Basílio reagiu pronta e decididamente. Para neutralizar tal plano e a ambição do bispo (ariano) Ântimo de Tiana, que teria querido ter de volta os direitos de metropolita da Capadócia II, Basílio defende a tese de que não devia haver coincidência entre circunscrições eclesiásticas e circunscrições civis. Um concílio realizado em 372 decidiu nesse sentido (DI BERARDINO, 2006) e Basílio aproveitou para criar novas dioceses na Capadócia II, nomeando bispos amigos, entre os quais o amigo Gregório, na pequena localidade de Sásima. Gregório recusou-se a ir para lá, provocando uma reação bastante dura do amigo, o que parece ter estremecido a relação entre eles. Enquanto seus pais viveram, Gregório permaneceu em Nazianzo, para depois dedicar-se, de 374 até a morte de Basílio, a uma vida retirada, como sempre tinha querido fazer. Basílio, com o mesmo método, nomeou também seu irmão Gregório para a sé de Nissa, mas as capacidades administrativas do Nisseno não eram equiparáveis às filosóficas, e foi logo facilmente contestado e, por fim, deposto por um concílio ariano, em 376. Também algumas de suas decisões foram fortemente criticadas por Basílio, que não poupou críticas ao irmão em algumas de suas cartas a outros bispos. Mais acertada foi a escolha de Anfilóquio, primo do Nazianzeno, para a sé de Icônio, e a relação com ele permanecerá sempre de grande amizade, cordialidade e respeito, diferentemente da relação com seu irmão e o amigo Gregório, e a Anfilóquio dedicará o já citato tratado sobre o Espírito Santo.
Outro campo em que Basílio se empenhou com paixão foi o apoio a Melécio, nos acontecimentos que se seguiram ao cisma de Antioquia. Procurou de todos os modos, como mostra sua correspondência com o papa Dâmaso, convencer o Ocidente da necessidade de unir os esforços para derrotar Valente, e que, para esse fim, era preciso o apoio dos “ocidentais” (inclusive de Atanásio). Parte desse esforço consistiu em convencer os nicenos radicais, por meio de sua intensa atividade epistolar e de contatos, que as posições homeusianas de Melécio, e a sua própria, eram perfeitamente ortodoxas com a fé de Niceia.
Morto Basílio em 379, os dois Gregórios adquiriram luz própria. Com a trágica derrota de Adrianópolis contra os Godos e a morte de Valente em batalha, o imperador Graciano nomeia para o Oriente um de seus generais, Teodósio, de comprovada fé nicena. O clima político e religioso sofre, então, uma profunda mudança e Gregório de Nazianzo, graças à posição eminente da irmã de Anfilóquio de Icônio, Teodósia, é chamado em 379 a Constantinopla para reavivar a exígua minoria ortodoxa. Aceita deixar seu amado retiro em Isáuria e se lança de novo à missão. Em Constantinopla, nenhuma igreja era concedida aos não arianos, e Teodósia põe à disposição uma parte do seu palácio para uma capela, que tomará o nome de Anástasis, capela da Ressurreição, sobre a qual Gregório escreverá alguns versos tocantes. Sua missão não resultou fácil e, na noite de Páscoa de 379, houve até uma incursão de arianos na capela, decididos a impedir que se celebrassem aí os batismos e se pronunciasse o símbolo não ariano. Os acontecimentos em Constantinopla se complicaram. Tendo a sede ficado vacante e considerando que Gregório não tendo jamais tomado posse de Sásima era um bispo “livre”, foi ele escolhido para a sucessão na prestigiosa sé da cidade imperial. Um usurpador chamado Máximo, com o apoio de Pedro, bispo de Alexandria, contestou sua eleição, conseguindo cooptar para seu lado até mesmo Ambrósio de Milão e o papa Dâmaso, provocando assim uma grande amargura em Gregório. Empossado em Constantinopla, Teodósio expulsou os arianos da cidade. Abriu-se então o concílio em 381. Com a morte inesperada de Melécio de Antioquia, que presidia o concílio, a presidência foi oferecida a Gregório, que, porém, teve que sofrer os ataques dos bispos egípcios, de Máximo e dos delegados romanos, que o acusaram de não poder ser bispo de Constantinopla por já ser titular de Sásima. Gregório, em plena consonância com seu caráter bastante sensível, não escolhe o caminho da resistência, mas deixa tudo e vai embora, e em seu lugar é consagrado Nectário. Esse triste epílogo deixará traços indeléveis em Gregório, como se pode verificar em muitos de seus escritos subsequentes. Os últimos anos vê-lo-ão finalmente bispo de Nazianzo, embora relutante, empenhado nos estudos, na polêmica antiapolinarista, na pregação. Morre em 390.
O Nisseno, depois a morte de Basílio, começou uma fecunda atividade na composição de obras, que só terminará com sua morte, que aconteceu depois de 394. Ele também participou no concílio de Constantinopla e, depois que se retirou de cena seu amigo, tornou-se o mais autorizado representante da ortodoxia nicena, sendo enviado a algumas missões que manifestam a grande autoridade, intelectual e eclesial que tinha alcançado neste momento, embora não todas essas missões tenham sido concluídas de modo positivo.
5 O monaquismo
Os três Capadócios deixaram uma marca importante também para o desenvolvimento do monaquismo, particularmente Basílio e sua experiência antes da ordenação episcopal. Tal experiência, embora não caiba nos cânones do monaquismo assim como o entendemos hoje, deixou, no entanto, vestígios indeléveis, sobretudo no monaquismo oriental. Basílio, voltando dos estudos no exterior, em 355, se encaminhou para uma vida cristã mais consciente, graças à influência de sua irmã Macrina, que sempre tinha manifestado grande inclinação para a vida ascética. A influência da irmã nos é relatada pelo Nisseno: alguns pesquisadores modernos sugerem a influência de um asceta famoso naquele tempo, Eustácio de Sebaste, figura de qualquer forma importante para Basílio durante muito tempo, como detectamos por seu epistolário. Empreendeu diversas viagens por regiões conhecidas pela presença de figuras que viviam certa vida que hoje chamaríamos monástica, embora ainda carente das estruturas que atualmente associamos ao termo. Pelo fim de 357, recebeu o batismo (também com uma profunda formação cristã, o batismo naquele tempo ainda se recebia frequentemente quando adulto, como vemos no caso mais conhecido de Agostinho) e se retirou para a solidão numa propriedade da família em Anési. De lá enviou muitas cartas a Gregório para que se unisse a ele naquela vida. Por um certo tempo, o amigo foi a seu encontro em Anési. Essa experiência de busca da solidão para estar em paz, estudar e meditar foi vivida no âmbito do círculo familiar, nas suas propriedades (houve quem sugerisse um paralelo com o retiro de Cassiciacum, de Agostinho antes de seu batismo). Mais tarde, tendo passado também um tempo com Eustácio de Sebaste, embora seu ascetismo fosse demasiado radical para Basílio, este, no curso do tempo, desenvolverá uma forma de vida comum original em relação ao modelo anacorético, cuja origem se conecta com Antão do deserto, e ao cenobítico, segundo o modelo de Pacômio. Quando era ainda presbítero, cria uma verdadeira e singular pequena cidade para acolher os peregrinos, os estrangeiros e os doentes, conhecida como Basileide. Seus ensinamentos ascéticos são evidentes, sobretudo, nas suas Regras (seja a coleção chamada “breve” como a “longa”). Embora Basílio pensasse neste modo de vida para todos os cristãos, suas Regras e seus escritos constituirão a base, ainda hoje sólida, do monaquismo oriental, que, com exceção do de origem estudita, pode chamar-se com razão “basiliano”.
Conclusão
A partir desses poucos acenos, é possível compreender que o estudo dos Padres Capadócios nos transporta ao coração do séc. IV, com suas dificuldades e seus esplendores. Não é por acaso que o séc. IV é chamado de “século áureo” da patrística. É o tempo da formação da liturgia (a Igreja oriental conhece várias anáforas atribuídas a Basílio), do desenvolvimento da consciência da linguagem dogmática, dos primeiros concílios ecumênicos. Em todo este período fecundíssimo estão presentes os Capadócios. Ocupar-se com eles, portanto, se por um lado requer um esforço em grande escala porque se deve entrar na filosofia, na história, na teologia, na retórica clássica e em muitos outros âmbitos, por outro, representa uma porta magnífica para conhecer um dos períodos mais fascinantes da Antiguidade Tardia, quando o perfume do mundo clássico ainda não se havia desvanecido de todo, e a ação cultural da Igreja, em seu empenho simultâneo de inculturação e de fecundação, estava em um de seus períodos de maior esplendor. Os estudos sobre Basílio e sobre o Nazianzeno continuam sempre vivos, mas não se pode não reconhecer que dos três o que mais goza de interesse contínuo por parte dos pesquisadores, e não só limitado ao círculo dos especialistas em Antiguidade, é Gregório de Nissa, graças também ao fato de que é um dos poucos Padres de quem temos à disposição a quase totalidade das obras em edição crítica, Gregorii Nysseni Opera (GNO), empreendimento monumental iniciado por W. Jaeger. Outro sinal de interesse é que dispomos de um dicionário dedicado a Gregório de Nissa, o que facilita bastante a pesquisa de temas específicos na obra do Nisseno. Por fim, contribui muito para este atual “sucesso” de Gregório, também por parte de autores não diretamente interessados no aspecto teológico de seus escritos, o lado filosófico e místico, que parece responder bem a uma pesquisa/interesse que parece sempre atual na presente conjuntura histórica.
Massimo Pampaloni SJ (professor visitante da FAJE). Texto original italiano. Enviado: 30/09/2022; Aprovado: 30/11/2022; Publicado: 30/12/2022. Tradução: Francisco Taborda SJ
Referências
No volume de Moreschini, que, na minha opinião, continua ainda hoje a melhor introdução aos Padres Capadócios (onde é tratado também Evágrio), encontra-se uma excelente bibliografia para cada um deles; por isso remetemos a ela. Aqui indicamos somente algumas obras que citamos no verbete e alguns textos em língua portuguesa.
Principais traduções em português
BASILIO DE CESARÉIA. Homilia sobre Lucas 12; Homilias sobre a origem do homem; Tratado sobre o Espírito Santo. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2005.
GREGORIO DE NISSA. A criação do homem; A alma e a ressurreição; A grande catequese. São Paulo: Paulus, 2011.
GREGÓRIO DE NISSA. Vida de Moisés. Campinas (SP): CEDET, 2018. (Nota: esta edição usa uma tradução que há muito tempo existe na internet. Não tem indicação de quem traduziu e se a tradução foi feita do grego ou de uma tradução em outra língua).
GREGÓRIO DE NAZIANZO. Discursos teológicos. Petrópolis: Vozes, 1984.
Sugestões de leitura
BEELEY, C. A. The Early Christological Controversy: Apollinarius, Diodore, and Gregory of Nazianzen. Vigiliae Christianae, v. 65, p. 376-407, 2011.
BELLINI, E. (Ed.). Su Cristo. Il grande dibattito nel Quarto secolo. Milano: Jaca Book, 1978.
CADERNOS PATRÍSTICOS, v. 5 n. 9 (2013). (Número monográfico sobre os Capadócios)
DALEY, B. “Heavenly Man” and “Eternal Christ”: Apollinarius and Gregory of Nyssa on the Personal Identity of the Savior. The Journal of Early Christian Studies, v. 10, p. 469-488, 2002.
DANIÉLOU, J. L’être et le temps chez Grégoire de Nysse. Lieden: Brill, 1970.
DI BERARDINO, A. Cappadocia-II. Concilio. In: Nuovo Dizionario di Patristica e di Antichità cristiane. Roma: Marietti 1820, 2006.
GREGORII NYSSENI OPERA (GNO). Edição on-line. Disponível em: https://scholarlyeditions.brill.com/gnoo/ Acesso em: 12 set 2022.
KELLY, J. N. D. Early christian doctrines. 5.ed. London: A&C Black, 1989.
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