Paradigmas da Ética Teológica

Sumário

Introdução

1Paradigma ético do cristianismo nascente

2 Paradigma apontado pelo Concílio Vaticano II

3 Paradigma da intersubjetividade

4 Paradigma para uma nova mudança epocal

Considerações finais

Referências

Introdução

Falar de paradigmas é referir-se a princípios que norteiam pensamentos e ações ou a modelos ou padrões que são estabelecidos para indicar um possível conjunto de respostas ou soluções concretas a perguntas ou problemas que surgem em determinado momento histórico.

O conceito de paradigma está, na verdade, muito associado ao mundo da ciência e aos nomes de Thomas Kuhn e Karl Popper, e suas tentativas de compreensão do modo como funciona o conhecimento científico. Kuhn indicou que paradigmas são “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 1991, p.13). Assim, os paradigmas surgem da concordância sobre determinados pontos de vista e se configuram como um marco conceitual que possibilita a formulação de uma determinada teoria que responda a perguntas que são feitas.

A ética, reconhecida como ciência que investiga atos, atitudes, costumes e valores do ser humano, aqui pensada à luz da teologia, também se deixou guiar por paradigmas ou modelos de pensamento que se firmaram ao longo da história do Ocidente cristão.

A proposta aqui assumida é apontar os paradigmas que nortearam e norteiam a construção teórica e prática da ética teológica no passado e no presente, e verificar a crise contemporânea desses paradigmas que, de alguma forma, apontam para caminhos ainda não desvendados. Por essa razão, uma breve passagem pela história da ética teológica se fará necessária, mesmo sabendo que contar essa história não é a motivação principal desse texto e que um outro verbete poderá fazê-lo mais adequadamente.

Assim, apontaremos os paradigmas que marcaram alguns tempos específicos da história da humanidade no Ocidente cristão, recordando que cada paradigma é um modelo de pensamento que, por sua vez, suscita diferentes modos, métodos e sistemas de se fazer teologia moral em cada contexto, gerando atitudes e perspectivas que marcaram a ética teológica e a vida dos cristãos.

1 Paradigma ético do cristianismo nascente

O primeiro paradigma a ser recordado é o paradigma ético do cristianismo primitivo, que nasce com a encarnação de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus feito Homem. No entanto, é preciso lembrar que Jesus, sendo judeu, nasceu em um tempo e em uma cultura determinada, já constituída, com valores, normas e costumes consagrados. Temos, nas Sagradas Escrituras, o Antigo ou Primeiro Testamento, com textos que narram o início da História da Salvação que coincide com a história do povo judeu. O que nos interessa aqui é afirmar, a partir desse texto revelado, que o ethos judeu se ancorava em uma ética fundada no “paradigma da Lei”: a lei do Sinai, recebida por Moisés, os assim chamados dez mandamentos, que foram ampliados para inúmeras outras leis, postas com a intenção de interpretar e detalhar o que precisava ser observado e cumprido pelo povo da Aliança. Jesus, como bom judeu, não nega a lei de Moisés, mas a atualiza e a amplia, paradoxalmente simplificando-a. Reduz os dez mandamentos e as 613 leis descritas no Pentateuco a duas, que no final se resumem em uma só: a lei do amor. Assim, do judaísmo para Jesus pode-se pensar em uma primeira mudança de paradigma ético. Essa mudança, do paradigma da Lei para o “paradigma do Amor”, é muito importante para que se possa compreender o que se passou depois.

Bem no início do cristianismo, quando ainda não existiam formulações teóricas consistentes e o agir humano era orientado pela tradição oral, que traduzia e interpretava os ensinamentos de Jesus, a ética que regia as primeiras comunidades cristãs contemplava as atitudes que mais se aproximavam das palavras e ações do Mestre Jesus. O paradigma do Amor fundamentava o ethos cristão.

No entanto, já no século I, começaram a surgir escritos, que mais tarde foram denominados de Novo ou Segundo Testamento, na composição das Sagradas Escrituras. Esses escritos, que trazem os quatro Evangelhos, os Atos dos apóstolos e as Cartas, enviadas às comunidades cristãs por Paulo e outros apóstolos, são considerados como Revelação e, por essa razão, fontais e paradigmáticos para toda a ética que se diz cristã. Bernhard Häring fala de um “Paradigma da Fidelidade Criativa” na Igreja apostólica, exemplificando-o por fatos descritos sobretudo nos Atos dos Apóstolos, quando os discípulos de Jesus foram chamados a solucionar conflitos surgidos em razão das diferenças culturais entre aqueles que aderiram à fé cristã. Alguns rompimentos criativos que desafiavam a Igreja estabelecida, naquele momento, colocava os apóstolos na fidelidade a Jesus e à sua proposta evangélica (HÄERING, 1979, p. 36).

Surgiram, no entanto, outros textos entre os séculos I e IV. Entre eles se destacam a Didaqué, os evangelhos chamados apócrifos e as homilias e escritos dos Padres da Igreja. Todos esses escritos continham ensinamentos práticos que indicavam como os cristãos deviam ser e agir. Pode-se dizer que o paradigma, o modelo ou fundamento, nesse contexto, era também o da fidelidade criativa a Jesus e aos valores do Reino por ele anunciado, embora já começasse a aparecer aqui, uma certa influência do mundo helênico na elaboração dos textos dedicados à exortação dos cristãos.

Filósofos como Platão e Aristóteles foram fundamentais para uma síntese entre cristianismo e filosofia grega e para a introdução de um novo paradigma que sustentou a ética teológica. Santo Agostinho, do século IV, considerado o maior pensador da antiguidade cristã latina, tem seus escritos fortemente marcados pela síntese feita a partir do encontro do cristianismo com o platonismo. Santo Tomás de Aquino, já no século XIII, utiliza as categorias aristotélicas na explicitação de sua teologia.

O teólogo José Roque Junges (2004) propõe uma reflexão sobre os paradigmas do pensamento que podem ajudar a pensar seu impacto na formulação de paradigmas éticos. Segundo ele, a história do pensamento ocidental pode ser vista e estudada a partir de três paradigmas: o “paradigma do ser”, o “paradigma da consciência” e o “paradigma da linguagem”. Cada um desses paradigmas se apresenta como um quadro referencial, uma lógica que rege a reflexão e a vida, correspondendo a um discurso ético.

Seguindo sua reflexão, pode-se compreender que o “Paradigma do Ser”, também considerado como o “paradigma da natureza”, é aquele que se fez presente na Antiguidade e na Idade Média, e que tem como ciência de fundo a metafísica. Seu “objetivo básico é a explicitação do ser de todas as coisas” e, para isso, busca uma aproximação com a natureza das coisas. Esse paradigma tem a pretensão, na verdade, de “captar o que é permanente na aparência passageira da realidade e tornar claro qual o princípio explicativo ou a essência que serve de suporte à existência das coisas” (JUNGES, 2004, p. 11).

A antiguidade cristã, como sabido, sofreu uma forte influência do paradigma platônico, que pode ser considerado idealista ou essencialista, pois aposta em um mundo onde as ideias existem em si e por si e são consideradas realidades universais, eternas e imutáveis. São essas ideias que sustentam, como modelo, a existência das coisas no mundo sensível, do qual o ser humano participa. A ética cristã, que se delineia sob esse paradigma, sobretudo a partir dos escritos de Santo Agostinho, sabidamente platônico, é uma ética idealista, que despreza o mundo real, é dualista, pois considera o ser humano fraturado sob a ótica da oposição/exclusão entre corpo e alma, e pessimista em relação a esse ser humano e sua história, pois na participação do mundo sensível ele é apenas uma cópia imperfeita do que deveria ser e por isso não consegue realizar o bem que almeja.

No mundo medieval, sobretudo no contexto escolástico, a influência é de Aristóteles. O paradigma aristotélico é empirista e realista, pois tem como base a realidade do mundo habitado. Tomás de Aquino retoma o aristotelismo, que apresenta a lei natural como aquela que define o ser humano, o qual, em sua essência, é um ser racional. Assim, a reta razão se dedica a descobrir e a explicitar as inclinações da natureza humana, que tende a buscar a felicidade. Essa felicidade só pode ser encontrada na prática do bem agir, que só acontece se o agir for virtuoso. Assim, “a moral, neste paradigma, é essencialmente uma moral de conteúdos que conduzem à felicidade e são descobertos pela reta razão, explicitados no ethos e interiorizados pela virtude” (JUNGES, 2004, p. 11).

Marciano Vidal, em seu intento de reconstituir e classificar os modelos da ética teológica, fala de quatro épocas, pensadas a partir de alguns pontos nevrálgicos que, segundo ele, oferecem base para a construção dos modelos morais. São elas: a patrística, a medieval, configurada, sobretudo, pela práxis penitencial, a do renascimento tomista e a da casuística, etapa essa que já estava presente nos tempos modernos, começando no Concílio de Trento e terminando no Concílio Vaticano II (VIDAL, 1986, p. 99).

Com Junges é possível afirmar que o paradigma tradicional, aqui apresentado como o “Paradigma do Ser”, não responde aos novos desafios trazidos pelo sujeito moderno, marcado pela perspectiva histórica, e que seus pressupostos obedeciam a um modo de pensar superado e incompreensível aos homens e mulheres da época em que surgiu.

Na mesma direção, Marciano Vidal fala de “fundamentações insuficientes da ética cristã”, que geraram “formas incorretas de vivência moral” (VIDAL, 1986, p. 179). Ele apresenta em dois grupos os modelos que denomina incorretos ou insuficientes, com os quais se formulou e se viveu a ética cristã: os modelos baseados na heteronomia e os modelos baseados na natureza humana normativa.

Vidal descreve da seguinte maneira os modelos éticos baseados na heteronomia: são modelos morais baseados na “proibição”, no tabu (fundamentação mágico-tabu); no mito (com uma fundamentação mítico-ritualista); na “obrigação extrínseca” (de caráter voluntarista, que destaca duas formas mediadoras da moral: o voluntarismo nominalista e o casuísmo); no “estabelecido” (fundamentação no positivismo sociológico) e na “utilidade” (fundamentação utilitarista).

Ainda segundo Vidal, os modelos éticos baseados na “natureza humana normativa” são os de caráter ontológico-abstrato, baseados na ideia de “lei natural”, e os de inspiração físico-biológica, baseados na ideia de “ordem natural” (VIDAL, 1986, p. 180-197).

Bernhard Häring também aponta a insuficiência desse paradigma “tradicional”. Segundo ele, uma teologia moral desse tipo (de tendência legalista e orientada para a solução de casos no confessionário), que acabou produzindo sistemas morais como o tuciorismo, o rigorismo, o probabiliorismo, o probabilismo e o laxismo, “não mais podia favorecer os exemplos de discipulado, daquela justiça que provém da ação justificadora de Deus e da resposta de amor ao seu chamado, para que a pessoa se torne cada vez mais a imagem e semelhança de sua própria misericórdia” (HÄERING, 1979, p. 50-51).

Pode-se dizer então, que há um certo consenso entre os teólogos moralistas de que o paradigma metafísico não mais respondia às questões trazidas pela modernidade e que um novo paradigma que sustentasse a ética cristã precisaria ser encontrado.

2 Paradigma apontado pelo Concílio Vaticano II

Voltando a Junges, vamos verificar o segundo paradigma do pensamento moral proposto por sua leitura o da “Consciência ou do sujeito”. Esse paradigma se firma em função da mudança epocal que acaba por separar o tempo anterior de um novo tempo, denominado pelos autores de Modernidade. Nesse tempo deu-se a virada antropocêntrica que trouxe o sujeito para o centro de todas as reflexões e da elaboração da compreensão do mundo e dos valores. Não mais Deus, nem o cosmos, mas o ser humano, é agora considerado o principal figurante de um mundo a ser ordenado, manipulado e construído.

Assim, “a crítica do conhecimento ocupa o lugar da metafísica como ciência mestra. O único conhecimento verdadeiro aceitável pela crítica é o adquirido pelo método da ciência”, que, não por acaso, é feita pelo sujeito pensante (JUNGES, 2004, p. 12).

A modernidade, portanto, significou a superação do paradigma da heteronomia e da determinação da natureza e trouxe a introdução do contrato social, baseado não mais numa lei universal, mas na “lei constituída pela vontade geral”. A lei, assim, não é mais resultante de uma imposição heterônoma, mas da aceitação autônoma das consciências que pensam e decidem por sua própria conta. A ação moral considerada boa é aquela que corresponde à avaliação positiva das consciências autônomas que assim a decidiram. Segundo Junges, estamos diante de uma “ética da consciência autônoma como base para a obrigatoriedade da lei” (JUNGES, 2004, p. 12).

No âmbito católico, o Concílio Vaticano II foi o principal responsável pela introdução desse modo de ser e pensar na reflexão ética. Ele compreende a mudança epocal que desemboca na modernidade e coloca a escuta dos “sinais dos tempos” como método imprescindível para se fazer teologia e viver a fé. Desse modo, a partir da observação de novos tempos e costumes, a ética teológica precisou ser repensada, longe dos pressupostos metafísicos, do legalismo, do juridicismo, do rigorismo e da casuística.

É importante lembrar que, mesmo antes do Concílio, as intuições que nele foram expressas já se faziam presentes e foram afirmadas por grandes teólogos. Como exemplo podemos citar os teólogos jesuítas que, segundo Häring, “percebiam, com grande perspicácia, que um número demasiado grande de leis e de sanções sufocava a liberdade e a criatividade do fiel”. Também Santo Afonso de Ligório, continua o grande teólogo moralista da época do Concílio, ao trazer o equiprobabilismo como alternativa aos sistemas morais anteriores, apontava para o seguinte:

quando uma consciência reta tem uma quantidade igual ou quase igual de boas razões para o uso criativo da liberdade, visando a necessidades presentes, ela não está obrigada pela lei que, em si mesma ou em sua aplicação concreta, é duvidosa (HÄERING, 1979, p. 53).

Essas e outras intuições, apresentadas no século XIX e início do século XX, associadas às mudanças civilizatórias, deram ao Concílio a base para suas reflexões e propostas. Nesse sentido, a recomendação conciliar de “volta às fontes”, era um apelo a que a ética teológica tivesse como fundamento principal a Sagrada Escritura e não mais o Direito. Isso para que os cristãos pudessem revelar ao mundo e no mundo sua adesão a Jesus Cristo e à sua proposta de implantação do Reino de amor. No Decreto Optatam Totius, do Concílio, pode ser encontrada essa recomendação:

Ponha-se especial cuidado em aperfeiçoar a teologia moral, cuja exposição científica, mais alimentada pela Sagrada Escritura, deve revelar a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de dar frutos na caridade para vida do mundo (OT 16, grifo nosso).

A importância da ciência e a força da autonomia do sujeito pensante também foram reconhecidas, fazendo com que a ética cristã assumisse, como lugar teológico, a consciência individual e a reciprocidade das consciências. A Constituição pastoral Gaudium et Spes, também do Concílio, traz um parágrafo fundamental para a compreensão desse paradigma. Na retomada de um pequeno trecho pode-se perceber sua importância e alcance:

[…] A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social […] (GS 16).

O Concílio provoca, então, um exame autocrítico dos princípios norteadores da ética teológica e faz alguns deslocamentos: da perspectiva “estática para a dinâmica, da teoria para a prática, da lei para a consciência” (ORDUÑA; ASPITARTE; BASTERRA, 1980, p. 91). Segundo esses autores, o que se verifica é uma “reconversão a Cristo, como princípio entitativo, à Sagrada Escritura, como princípio primordial de conhecimento, e à Caridade, como princípio operativo da conduta moral”.

Bernhard Häring, padre conciliar, teve uma grande influência nas reflexões que aconteceram em torno do Vaticano II e propõe, nesse contexto, para a ética teológica, o “paradigma personalista Bíblico-Cristão”. Esse paradigma tem a característica de trazer para o centro da reflexão ética a pessoa de Jesus Cristo, Deus e homem. Como bem expressa Häring, retomando Bonhoeffer, “o ponto de partida para a ética cristã não é a realidade de nosso próprio ser, nem é a realidade dos padrões e dos valores. É a realidade de Deus, como ele se revelou em Jesus Cristo” (HÄERING, 1979, p. 62). Jesus é o protótipo do que devemos ser, da resposta que devemos dar a Deus que nos chama à vida. Suas palavras e ações devem guiar o agir de cada pessoa no espaço que habita e no tempo em que vive. Assim, para esse paradigma, o antropocentrismo gira em torno de Jesus de Nazaré, o homem exemplar, a revelação da humanidade em plenitude.

É importante também lembrar que o paradigma personalista do século XX teve sua inspiração em Tomás de Aquino, que tem uma importante reflexão sobre a noção de pessoa. Como ele concebe a natureza humana como racional e afirma que cada indivíduo é uma pessoa, seu pensamento permite considerar o ser humano como um ser criado à imagem e semelhança de Deus, ético e livre, que pode distinguir entre o bem e o mal e decidir o rumo de sua vida.

Assim, o personalismo proposto por Häring traz à tona quatro palavras indispensáveis: liberdade, fidelidade, responsabilidade e criatividade.

A partir dessas palavras, o autor propõe algumas passagens importantes que aconteceram nessa mudança de paradigma, como por exemplo: da eleição como prestígio ao chamado para ser sinal; da idolatria à fidelidade à verdade; da escravidão das normas à liberdade da Lei do amor; da obediência cega à responsabilidade criativa; do casuísmo legalista à moralidade da Aliança e das Bem-aventuranças (MILLEN, 2005, p. 135-188).

Muitas teses de doutoramento foram feitas e muitas obras foram escritas a partir do pensamento de Häring, que trabalhou exaustivamente para que esse novo paradigma ético, atento às necessidades dos novos tempos e, ao mesmo tempo, atento às raízes cristãs mais originárias, pudesse ser implementado.

Apesar de trazer uma mudança necessária e frutífera, o paradigma personalista, que deu ensejo à chamada Moral Renovada, foi considerado, por alguns teólogos, como insuficiente (VIDAL, 1986, p. 200). Roque Junges prefere falar em lacunas e não em insuficiências. Segundo ele, a Moral Renovada, fundada em uma ética personalista,

apresenta uma visão ingênua e simplista da sociedade moderna, não dando atenção ao conflito e à injustiça, não levando em consideração a complexidade da realidade atual. Caracteriza-se, igualmente, por uma concepção otimista do mundo, olvidando a realidade do mal e do pecado e desconhecendo as dinâmicas culturais que movem os processos sociais e políticos […] não consegue captar a complexidade da ação humana contextualizada. […] Parte de um ser humano fora do seu contexto sociocultural. Não tem uma perspectiva social que pensa com base nas maiorias marginalizadas. Os ouvidos não estão abertos ao grito dos pobres que se torna sempre mais ensurdecedor. Por isso não consegue captar a complexidade da ação humana contextualizada (JUNGES, 2005, p. 21).

Em razão dessas críticas e do apontamento das lacunas e insuficiências, surgiram, em alguns contextos, sobretudo onde as desigualdades e injustiças produziram pobrezas e sofrimentos eticamente inaceitáveis, outros modos de se fazer teologia, outras correntes teológicas, como por exemplo a Teologia do Povo e a Teologia da Libertação, geradas na América Latina, a Teologia Feminista e as questões de gênero, a Ecoteologia, entre outras. Esses modelos teológicos trazem uma metodologia baseada no ver, julgar e agir, que muito ajuda na compreensão do ethos dos povos e da dinâmica da vida que sustenta projetos sociais e políticos. Assim sendo, influenciaram na reflexão ética e na moral a ser vivida, mas, por razões a serem revisitadas, não foram bem compreendidos por alguns e em certos contextos até rejeitados. É possível dizer que eles também são frutos da reflexão conciliar, mais subliminar, menos publicizada e vivida, e que se inserem no terceiro paradigma da ética teológica no mundo católico, denominado por Roque Junges como o da Linguagem ou da Intersubjetividade.

3 Paradigma da intersubjetividade

Esse paradigma introduz a perspectiva intersubjetiva e por isso rompe com a tendência antropocêntrica e individualista do paradigma anterior. A linguagem, como meio de expressão de nossas vivências, se torna um mecanismo básico para o estabelecimento de relações interpessoais. Assim, a comunicação pela linguagem, fundamentada entre sujeitos que refletem, passa a ser o eixo sobre o qual se constrói o pensamento. Jürgen Habermas é um dos autores que corroboram esse paradigma. Ele traz uma Ética do Discurso, cujo eixo é a Teoria da Ação Comunicativa. Essa teoria propõe que se escolha valores e se busque a verdade a partir de uma lógica racional intersubjetiva que trabalha com a suposição de que existem normas racionalmente validáveis (HABERMAS, 2012). “A verdade passa a ser, então, fruto de um consenso construído pela comunidade de comunicação onde todos têm a priori acesso à palavra” (JUNGES, 2005, p. 13). Nesse contexto, consensos, que podem ser mínimos ou até provisórios, são buscados e aceitos e se apresentam como necessários à vida.

Não se pode esquecer aqui também a contribuição de Lévinas, que traz para a reflexão a questão da alteridade. Seu pensamento está organizado em torno de uma ética dialógica, que se contrapõe ao paradigma puramente personalista, que é monológico, autocentrado. Para Lévinas, quando o outro é percebido como Alteridade, se torna fonte das grandes experiências de vida e base genuína da ética. Assim, a ética, no horizonte da alteridade, já não é mais pensada em função do protagonismo do sujeito pensante, mas da sua relação com um outro, com um rosto que convoca, que pede uma resposta (LEVINAS, 2008).

Apesar da importância e da atualidade desse paradigma, que traz para o centro a intersubjetividade, o que se pode perceber é que a contemporaneidade vive um momento ímpar, marcado por uma crise de sentido que está a suscitar uma outra mudança epocal.  Essa mudança se encontra em plena realização, ainda não concluída e provisoriamente nomeada por alguns de pós-modernidade ou modernidade tardia. Estamos em plena crise civilizatória. As transformações observadas nos últimos sessenta anos correspondem a uma verdadeira revolução do conhecimento e de sua aplicabilidade, com perspectivas inéditas ainda a serem implementadas.

Vive-se hoje, entre outras, uma crise da razão que atinge a ciência, a concepção de conhecimento e de mundo. A constatação da complexidade de todas as coisas exigiu que se trabalhasse a partir de especializações que, pela redução, separaram para conhecer melhor e, por isso, trouxeram uma visão simplificadora da realidade e uma diluição do todo. A visão de conjunto ficou rarefeita e as relações que intercorrem entre os diferentes elementos que compõem a realidade ficaram obscurecidas. Assim, a fragilidade do pensamento fragmentado, a desconfiança com relação aos sistemas instituídos, o cansaço, a apatia, a desilusão e a sensação de não pertença e de impotência diante da vida são sentimentos generalizados que passam a moldar um novo ethos, que reclama uma nova ética.

A contemporaneidade tem sido descrita por muitos autores através de metáforas e expressões que retratam o vivido. Entre outras temos a de “mundo líquido” (BAUMAN, 2001), “sociedade do cansaço” (HAN, 2017), “mundo da pós-verdade”, do “pós-humano”. Essas metáforas e expressões sugerem a necessidade de novos paradigmas para se pensar a vida e o agir. Talvez o que possa fazer jus a esse tempo ainda incompreendido, seja o “Paradigma da Complexidade”, trazido por Edgard Morin. Os desafios desse modelo de pensamento estão bem explicitados em seu livro Ciência com consciência (MORIN, 2005) e sintetizados por Roque Junges (JUNGES, 2005, p. 22-23).

Esse paradigma coloca o ser humano diante de um mundo plural, não compreensível através de um único eixo de pensamento. Coloca-o diante do imprevisível, do caminho que deve ser feito ao caminhar e não daquele dado antecipadamente; coloca-o diante de si mesmo e de sua impotência e vulnerabilidade; coloca-o diante da constatação de um mundo interligado, interconectado e, por isso, talvez seja esse o paradigma que a Ética Teológica tenha que assumir.

4 Paradigma para uma nova mudança epocal

Propor um novo paradigma ético em um tempo tão complexo, não é tarefa fácil, mas alguns aportes podem ser úteis para que aos poucos se possa sair dessa situação caótica para um tempo em que o complicado possa ser harmonizado e a vida se apresente mais venturosa.

Seguindo Junges,

A atual complexidade do contexto sociocultural e do agir dos indivíduos exige um novo paradigma de compreensão da própria ética teológica, se a mensagem cristã quiser continuar a ter alguma incidência no cotidiano das pessoas e na realidade social. O paradigma da complexidade organiza o conhecimento em novos moldes mais adequados para entender situações complexas, frutos de multivariadas inter/retrorelações. Ele ajuda a superar uma visão maniqueísta que não sabe levar em consideração essa variedade de elementos e dimensões, englobando a própria desordem na ordem, o desequilíbrio no equilíbrio. A ética teológica necessita de um choque epistemológico (JUNGES, 2005, p. 27).

Esse choque epistemológico pode ajudar na revisitação da novidade do próprio cristianismo que, deturpado por interpretações equivocadas e por acréscimos indevidos, serviu e ainda serve para justificar modelos éticos que não conseguem mais responder às perguntas de hoje.

Desse modo, propor um paradigma ético para esse tempo complexo e mutante se faz necessário e o “Paradigma do Cuidado” pode ser uma aposta plausível. Esse paradigma, explicitado por Leonardo Boff no livro Saber cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra, permite a apreensão da complexidade do ser humano, como ser vivo em relação com todos os outros seres criados. Permite também o reconhecimento da complexidade do agir humano, levando em conta as circunstâncias existenciais e a conexão entre tudo o que existe, e permite ainda a construção de um caminho ético que contemple a volta à Lei do amor, proposta lá no início por Jesus de Nazaré. O paradigma do cuidado traz como eixo a corresponsabilidade terna e cuidadosa pela vida de todos e todas e por toda a vida que existe, na dinâmica da paraclese, que se funda no Espírito que cuida, consola, sustenta, inspira e nos leva a esperançar.

Em um mundo desagregado e desorientado por inúmeras guerras e polarizações, pela indiferença que fere, pela competição que exclui o outro, pela depredação da casa que é comum a todos e que constitui a única possibilidade de sobrevivência para a espécie humana e para toda a criação, mais que nunca a corresponsabilidade solidária e a fraternidade universais são urgentes. Assim, a ética cristã não se configura mais como aquela que deve garantir determinadas condutas ditadas por regras fixadas desde sempre, mas como aquela capaz de buscar a experiência do amor, reinventado e recriando de novo, a cada vez. É o amor que possibilita o sentimento de irmandade universal, proposto por Francisco de Assis e por Francisco de Roma.

O Papa Francisco diz assim:

Fratelli tutti: escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, “o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si”. Com poucas e simples palavras, explicou o essencial de uma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita (FT 1).

O amor é cuidadoso, não aceita a violência e é caminho seguro para a cura e a paz. Esse é, portanto, um paradigma terapêutico, tão necessário a um mundo adoecido e fraco na esperança, a um mundo que passa por turbulências e gera pessoas enfermas e desoladas. Boff diz que a categoria “cuidado” é um modo de ser que mostra como funciona bem o ser humano enquanto tal, diferentemente das máquinas. E esse modo não vem da razão, das estruturas de compreensão, mas do sentimento, da capacidade de ternura, de compaixão, de empatia, de dedicação, de comunhão com o diferente (BOFF, 1999, 2010).

Talvez não fosse importante pensar agora em paradigmas do pensamento, embora eles tenham seu lugar e tenham sido extremamente úteis para nortear o que se viveu até aqui, mas pensar e assumir os paradigmas do coração, paradigmas que tenham como eixo não o logos, mas pathos, o sentimento cordial que nos constitui humanos.

O “paradigma do cuidado” nos possibilita olhar para várias situações do tempo presente que clamam por soluções mais justas. Uma delas é a urgente necessidade da retomada de uma ética ecológica que resgate os valores necessários à reabilitação da casa comum, da mãe terra, tão desgastada e depredada pelo consumismo e pela ganância sem limites. O planeta terra está esgotado e dando mostras de que não suporta mais ser espoliado. A consciência de que seus recursos não são infinitos ainda não é uma aquisição de todos, por isso a educação ambiental precisa ser assumida para ajudar no crescimento da consciência do bem comum, da solidariedade, da responsabilidade de cada um e de todos por tudo aquilo que diz respeito à preservação da vida na terra. O Papa Francisco vai além. Ele nos propõe uma ecologia integral, aquela que assume o cuidado para com tudo o que é frágil, aquela que olha para as necessidades da terra, mas também para as de todos que a habitam. Ele nos conclama a encontrar soluções não só técnicas, racionais, mas aquelas que contemplem as mudanças que precisam acontecer no ser humano, mudanças de mentalidade, mudanças de hábitos, mudanças na lógica do viver. Há necessidade de um processo educativo que nos leve a isso. Um pequeno trecho de sua Encíclica Laudato si nos ajuda:

A educação ambiental tem vindo ampliar os seus objetivos. Se, no começo, estava muito centrada na informação científica e na conscientização e prevenção dos riscos ambientais, agora tende a incluir uma crítica dos “mitos” da modernidade baseados na razão instrumental (individualismo, progresso ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem regras) e tende também a recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus. A educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo. Além disso, há educadores capazes de reordenar os itinerários pedagógicos duma ética ecológica, de modo que ajudem efetivamente a crescer na solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na compaixão (LS 210)

Assim pode-se dizer que o paradigma do cuidado aponta para essa nova lógica, para uma ética ampliada, que contempla outros sujeitos e permite um modo novo de estar no mundo diante dos outros humanos, diante da natureza e diante de Deus, sonhando com um mundo modificado, mais acolhedor e mais saudável.

Uma outra situação do nosso tempo, que não pode ser olvidada, é a passagem da era analógica para a digital, uma passagem ainda não assimilada nas suas consequências tanto positivas quanto negativas. A tecnologia digital nos moveu para um outro universo do conhecimento, que traz a máquina “inteligente” para o centro da reflexão. Isso exige um repensamento do lugar do ser humano no mundo atual. Paolo Benanti nos diz que o ser humano não está se transformando, mas o que está mudando é o modo como o ser humano se vê e se descreve e que ainda é preciso estabelecer uma diferença entre a máquina, que funciona e o ser humano, que existe. Isso não é pouco. Diz ele:

Somos chamados a nos perguntar sobre como nos valer da máquina para que o humano seja cada vez mais humano, para que o cuidado do próximo, sobretudo do último, do frágil e do fraco, ocorra da melhor maneira possível e para que o bem, buscado com livre determinação, seja verdadeiro (BENANTI, 2000).

Diante desse horizonte, somos chamados a recuperar o sentido profundo de existirmos como sujeitos éticos, seres humanos conscientes do bem e do mal e capazes de escolher o bem. As palavras que aparecem quando se junta ética e mundo digital são: dignidade humana, justiça equitativa, responsabilidade, transparência, inclusão, segurança e solidariedade. O Paradigma do Cuidado consegue dar conta dessa tarefa. O cuidado com o que existe em um mundo onde o que vale é o que funciona se torna cada vez mais necessário.

Considerações finais

Diante do exposto, não é possível elaborar uma conclusão. Tudo está em aberto, tudo pode ser repensado, a partir de uma ‘cultura do encontro’, do diálogo entre humanos que se tratem não como sócios, mas como irmãos, respeitando as diferenças e renunciando a compreender de modo fixista e monolítico a realidade dada. O convite que fica é que a reflexão continue, sem deixar que se perca o fundamento da proposta inicial feita por Jesus de Nazaré e que a crise atual possa ser momento propício para crescimento e maturação na busca de caminhos que apontem saídas promissoras e, talvez, outros paradigmas éticos que deem conta de novas realidades ainda não compreendidas e integradas. A esperança não pode esmorecer e deixar que o pessimismo domine esse momento. Ela precisa ser a mola mestra a nos sustentar para que a ética cristã não permita que o cuidado, que nasce do amor, definhe ou fique em segundo plano em um mundo que privilegia a funcionalidade e a eficácia.

Maria Inês de Castro Millen (Centro de Estudos Superiores, Juiz de Fora). Texto submetido no dia 25/08/2022; aprovado no dia 30/10/2022; postado dia 30/12/2022. Original em português

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