Mediações

Sumário

1 Religiões

2 Símbolo e linguagem

3 Escrituras

4 Igrejas

5 Magistério

6 Referências bibliográficas

É inconcebível ao pensamento racional humano decifrar de vez a relação entre Deus e mundo. Como suportar um suposto contato direto com Deus? O que captar? Daí ser inevitável intuir intermediários e/ou caminhos (methodos) que viabilizem a ponte entre, de um lado, o Todo, o Absoluto, o Ein-Sof, Brahman, o Supremo, o Tetragrama, e, de outro lado, tudo o que, analogicamente, pode ser chamado de “outro lado”. Outra maneira de conceber a ousadia desta reflexão é supor que seja o Mundo a ponte que medeia a desejada comunicação entre Eu e Deus.

Todas as religiões sempre souberam que tinham de dar conta dessa ponte inter-realidades. As hierarquias celestiais previstas pela angelologia são disso um exemplo conhecido pelas teologias monoteístas. O cristianismo moderno lida mal com esses temas, embora sejam clássicos na história das religiões e na teologia cristã.

Mas se não há conexão imediata nem, muito menos, identificação plena entre o Todo e tudo, entre o Criador e “toda carne” (Is 40ss), a categoria “mediação” talvez seja o principal vetor ou mesmo a “condição de possibilidade” para que haja teologia sobre qualquer tema. Então, se penso a relação entre eu e o Outro, no meio estão os outros. Segundo a tradição bíblica, no trajeto do ser humano para Deus a ponte/o atalho é acolher o pobre. O pobre faz a conexão entre o que ainda não é amor e o Amor. Em igual medida, a mente faz a ligação entre o meu corpo e Deus, ou seja entre a consciência e o que ainda não é consciente. A Palavra está no meio, entre o som e o que ainda se guarda em silêncio. A imagem, quando maturada, se faz Arte, e liga as coisas visíveis às invisíveis. A lei (torah) define o estabelecido, as regras do jogo, e assim possibilita que a criatividade invente/improvise dentro dos limites dados. O dogma outra coisa não é senão a “pontuação” (SEGUNDO, 2000) que demarca o que já sabemos e aponta a direção para mais saber. Por detrás dele, a construí-lo e protegê-lo, está a comunidade, o âmbito da comunhão que acontece no meio do caminho. E que nada alcança sem a mediação de amigos espirituais, o maior de todos sendo aquele que os cristãos chamam de Jesus, vendo nele o ponto de conexão entre o Deus intangível e a Criação em evolução.

A noção de revelação ratificada no Concílio Vaticano II (Dei Verbum) assume um pressuposto caro a teólogos católicos como Karl Rahner e outros: a revelação como autocomunicação divina, ou seja, uma comunicação interpessoal e não uma coletânea ou lista de afirmações doutrinais. Não como mero depósito de informações corretas, e sim como caminho (pedagogia divina: DV 15) em direção à verdade  final.

Entendida como educação, a concepção cristã de revelação parece soprar que, mais importante do que o conteúdo ou o resultado final da ação, interessam os caminhos que efetivamente cada ser humano trilha em sua busca de sentido para a existência. Veremos a seguir algumas categorias daí decorrentes e implicadas na convicção cristã de que o Deus mistério trino revelou-se aos que criou por amor.

1 Religiões

O conceito usual de religião traz sua dose de polêmica (PASSOS; USARSKI, 2013). Alguns, na esteira de M. Eliade, querem ver no fenômeno religioso algo sui generis, definido de uma vez por todas, bastando apenas ao estudioso seguir checando na realidade social quando e sob quais condições e circunstâncias (variáveis), o fenômeno é reencontrável. De outra parte estão os que, como Russel McCutcheon, defendem a definição do que venha a (e possa) ser religião somente após o necessário mergulho na realidade sociocultural pesquisada. Há ainda quem prefira uma terceira posição, e entenda ser religião aquilo que determinada autoridade institucional estabeleça, em dada configuração social, o que ali será o religioso – é a dimensão política do conceito.

Mesmo sem precisar tomar partido por nenhuma das três posições, é útil constatar – para nosso escopo nesta reflexão – que todas as três reconhecem ser a religião uma companhia rotineira de nossas invenções sociais. Toda religião move-se na argamassa de uma construção social (comunitária e/ou coletiva) que vai sendo modelada ao longo de vastos espaços de tempo. Como fato social, a religião subsiste porque consegue se manter presente graças a seus ritos, mitos, doutrinas e comportamentos adquiridos por seus membros.

Mais: como tomada de consciência da presença do mundo espiritual no mundo visível, o conjunto de experiências que resultam no que se costuma chamar de religião é sempre algo sentido como receptor do que nos transcende e que, bem por isso, nos explicaria quem somos e de onde viemos. Quem entra em contato com essas supostas respostas não consegue guardá-las para si e sente uma necessidade intrínseca de protegê-las e divulgá-las aos demais, gerando grupos comunitários em torno deste novo achado significativo. Esse é o berço comum das religiões.

Nenhum ser humano vem ao mundo partindo de um ponto zero cultural. Ele nasce já inserido em um contexto, em uma história e durante muitos anos não fará muito mais do que absorver qual esponja a linguagem, as estruturas de pensamento, os valores, os condicionamentos, a sensibilidade, enfim, a tradição cultural-religiosa em que foi socialmente inserido. Daí brotarão, ainda que parcialmente, suas premissas epistemológicas e ontológicas (BATESON, 1997), ou seja, os mecanismos pelos quais conseguirá compreender, julgar e interferir na realidade. Em suma: sem mediação não há autocompreensão.

Não temos aqui perfeita sinonímia com a noção de “revelação”, conceito, por sua vez, vital em tradições como o cristianismo, qualquer que seja o viés e a ênfase que ela venha a receber ao longo dos séculos e das sucessivas teologias. Mas qualquer religião pressupõe, de algum modo, o que chamamos de revelação, na medida em que considera a si mesma como obra divina e não mera criação humana (TORRES QUEIRUGA, 2010). Se toda religião vem a ser a tomada de consciência da presença do divino no mundo – ou, pelo menos, o desejo infinito de que haja tal presença –, essa experiência (religiosa) será sempre sentida como receptora do Transcendente, ou seja, a descoberta do divino que se manifesta na vida humana pela mediação da história.

Conceito correlato está no termo “tradição”, que traduz tudo o que foi sendo religiosamente vivido e guardado ao longo de milênios por determinados grupos sociais no que diz respeito à maneira como se entendia sua relação com as divindades e com o mundo espiritual em geral.

Referindo-se especialmente aos antecedentes da religião cristã, J. L. Segundo afirmava que “as mais profundas tradições espirituais da humanidade são justamente esta série de tentativas que, pouco a pouco, oferecem à existência um sentido que não possa ser desmentido pela realidade total”, a saber, são dados transcendentes que consistem “nessas novas redes jogadas sobre os acontecimentos para torná-los compatíveis com a vitória final de certos valores” (SEGUNDO, 1984, p.290-1). Semelhante compreensão das religiões implica, para a teologia cristã, numa revisão da noção tradicional de revelação, em benefício de outra que contemple a autocomunicação divina aos humanos como processo histórico, com a consequente atenção ao nascimento e definição de outra mediação decisiva: o cânon bíblico, peça-chave na configuração das chamadas religiões do Livro.

Como religião revelada que se autocompreende como histórica, o cristianismo reenvia seus fiéis a eventos que se pressupõem acontecidos no passado e, especificamente, ao ensinamento, às ações, à vida, à morte e ressurreição de Jesus. Esses dados só podem ser recebidos por fiéis de todas as épocas e lugares porque foram transmitidos por testemunhas autorizadas, ou seja, cridas como suficientemente qualificadas para servir de referência às gerações posteriores. No caso cristão, mediação decisiva teve a comunidade dos primeiros apóstolos.

2 Símbolo e linguagem

Não é estranha a noção de mediação simbólica quando o assunto é religião e/ou revelação. No entanto, a capacidade humana de simbolizar é muito mais vasta e transborda os limites do estritamente religioso. O símbolo se confunde com a invenção da linguagem e com nossa atávica necessidade de sobrevivência. Tinha razão P. Valéry ao sugerir que nada somos sem o auxílio daquilo que inexiste. Nenhuma vida social se sustenta no longo prazo se as pessoas não pressupuserem que há luz no fim do túnel e ordem detrás do caos. Qualquer instituição social básica depende desse postulado, “a despeito da renovada intrusão na experiência individual e coletiva dos fenômenos anômicos (ou, se se prefere, denomizante) do sofrimento, do mal e, sobretudo, da morte” (BERGER, 1985, p.65). Porém, mais que superadas, tais “anomalias” precisam ser explicadas de forma a serem acomodadas na ordem presumida. Qualquer esforço nessa direção pode chamar-se teodiceia (Ibidem). Uma religião que se queira realmente convincente deverá chegar às pessoas em um conduíte flexível e eficiente o bastante para cativar, motivar e direcionar. E esse é a linguagem simbólica ou icônica (BATESON, 1976).

A linguagem simbólica não substitui a observação científica nem a especulação filosófica, mas, de certa maneira, as inclui e ultrapassa, na medida em que nomeia seus postulados indemonstráveis. Daí vem sua força como ducto de teodiceias, pois se há uma área de nossas preocupações em que a explicação do problema conta mais que sua eventual resolução ou eliminação, é exatamente esta. E já que não chegamos à realidade existencial e histórica com a simples especulação, precisamos ter contato com a experiência mesma, que se expressa nos símbolos e nos mitos (e nos ritos e nos credos…). A reflexão precisa beber dessas palavras primordiais se quiser encontrar a experiência e poder pensá-la filosoficamente.

Afirmar a relevância do simbólico perante o científico pressupõe checar o primeiro com critérios de verificabilidade distintos do segundo. G. Bateson esclarece os três tipos ou níveis de verificabilidade da linguagem conotativa ao explicar que esta é primariamente composta de conotações afetivas. É este valor, e não outro, que provoca em mim sinalizações positivas (alegria, segurança, esperança…). Assim, posso ser tocado por um conto, uma música, um recanto ou uma pessoa recém-conhecida. Algo nessa pessoa ou nesses objetos/lugares me afeta. Em seguida, essa primeira experiência me levará a discernir e a comprometer-me para que tais sinalizações se repitam. Essa segunda consequência, ético-existencial, deságua numa terceira: a repetição comunitária; isto é, eu pretendo que também os demais se apercebam da razoabilidade de minha escolha. A dificuldade, nesse nível, é que não se trata de um fenômeno físico cuja hipótese, cedo ou tarde, será cientificamente confirmada ou não. Nesta sede não há uma teoria submetida à realidade; antes, é a premissa que vigora soberana, exigindo minha . Esse terceiro grau de verificabilidade apela, de um ou de outro modo, a uma experiência escatológica. E pede, da parte de meu interlocutor, o exercício muito humano da fé. Ele precisa apostar que, no futuro, ficará evidente, que eu tinha razão.

A explicação de Bateson esclarece, em primeiro lugar, que a linguagem simbólica entra em relação com a problemática existencial do ser humano. Ela alude inequivocamente, na mesma expressão da resposta, àquilo que incomoda o leitor/ouvinte/espectador e autoriza/recupera a emoção que gerou tais questionamentos. Em segundo lugar, a narração (e a arte em geral) torna críveis os postulados que dão sentido à comunidade religiosa envolvida nesses enredos e faz com que se veja a racionalidade subjacente a esta ou aquela realidade. Essa comunhão de sentimentos em torno dos valores que nos afetaram nos relatos gera, em última instância, a cultura – e haverá tantas culturas quantas forem as variações nessas criações simbólicas.

3 Escrituras

A teologia fundamental sabe que a afirmação dogmática da fé cristã é pouco incidente se não leva em conta os caminhos realmente humanos da acolhida da mensagem cristã. E uma pergunta que cedo ou tarde terá de ser respondida é aquela deparada por Kierkegaard (2007): existem, na comunidade cristã, discípulos de segunda classe? Em outros termos, não haveria um privilégio invencível dos discípulos que conheceram Jesus pessoalmente, em prejuízo daqueles que tiveram e têm de se contentar com material de segunda – ou seja, os textos escritos e os antigos costumes que são oferecidos como autêntica continuação da presença do Mestre através dos séculos?

Essa é uma das maneiras de se colocar o que há de inevitável e simultaneamente o que há de controvertido no apelo a Escrituras oficiais – isto é, reconhecidas como autênticas pelo magistério eclesial – como “prova” e caminho de acesso à experiência fundante da chamada igreja das origens. Desafio semelhante se encontra nas comunidades do Antigo Israel, onde parece haver clareza, na maior parte do tempo, da necessidade de se combinarem textos escritos com a construção de uma tradição complementar de rituais e comentários escriturísticos. A composição lenta da Torá (Pentateuco) nunca exclui sua releitura em diferentes circunstâncias, ensejando a coleção de livros atribuída a videntes deambulantes conhecidos como nebiim (profetas) e, mais tarde, em novos contextos e problemáticas, enriquecendo a coleção com obras sapienciais inovadoras para o pensamento hebraico antigo (ketuvim). Dessa forma, o judeu bíblico pode continuar sentindo-se pertencente à tradição do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, embora já não viva nem repita ao pé da letra o estilo de vida de seus ilustres antepassados.

Ainda é comum entre os cristãos atribuir a noção de “revelação” ao conjunto do material consignado nas Escrituras. Mas se nos imaginamos vivendo aqueles tempos com nossos antepassados semitas, o que as pessoas de então experimentavam era a consciência de que todos os instantes de sua vida eram tocados ou atravessados pelo mundo espiritual. Ética, culto e religiosidade eram um bloco só, embora se admitissem momentos e/ou circunstâncias em que o portal com o mundo invisível se mostrasse menos opaco. Essa consciência é tão certa e tão evidente que a Bíblia nem mesmo se preocupa em estabelecer uma palavra paradigmática para designar nosso conceito moderno de revelação. O fato/acontecimento fala por si mesmo, seja ele um episódio recontado, no qual se viu a mão do divino, seja ele técnicas mágicas, tais como sonhos, adivinhações, necromancias, oráculos, saídas do corpo (comuns entre os nebiim/profetas antigos), e assim por diante.

Há, evidentemente, nuances importantes entre os vários livros bíblicos, escritos em distintas épocas, a partir de renovadas compreensões sobre a realidade e sobre a divindade que dá sustentação a essa realidade (LATOURELLE, 1990, p.1015-21). É diferente conceber um ser divino que se manifesta visitando-o em sua tenda e comendo de sua comida (Abraão) e outro que, do alto de uma montanha, sequer se deixa ver e prescreve, no meio de raios e furacões, leis a serem obedecidas sem discussão. Não é o mesmo imaginar a divindade entrando em contato com o profeta via oráculos (ou seja, puxando o espírito do sujeito para fora do corpo e, nesse plano de realidade, comunicando-lhe ensinamentos) e, séculos depois, acolher o livro da Sabedoria ou o Eclesiástico (claramente sapienciais, produzidos pela meditação atenta, e quase filosóficos em sentido helênico) como Palavra de Deus.

O mais marcante, porém, nos exemplos bíblicos, é a experiência central da divindade do Êxodo, que permeia, qual conduíte, todas as narrativas, apontando para a relação pessoal e sua consequência ética (WIEDENHOFER, 1993, p.795-6). Vários autores notaram a progressiva passagem de uma percepção imanente das forças e mensageiros divinos para uma espécie de transcendentalização do encontro divino-humano, ainda nos textos veterotestamentários. Com isso, tais encontros vão se tornando mais raros. Esse processo tem sido chamado de “verbalização da revelação” (TORRES QUEIRUGA, 2010). Nós o vemos, por exemplo, na passagem de concepções claramente antropomórficas (o anjo de Iahweh, os rostos de Iahweh, o nome de Iahweh) para formas mais refinadas (o Espírito de Deus, a Sabedoria de Deus, a Palavra de Deus). Outra característica dessa mudança é que cada vez menos se estimula a experiência direta (as profecias ou as viagens celestiais, por exemplo), – claramente entendidas como ambíguas e perigosas – privilegiando-se, em seu lugar (principalmente após a experiência do chamado exílio babilônico), a leitura (sinagogal) dos recados que Deus já enviara no passado.

Se fôssemos usar o termo “revelação” nesses casos, diríamos que a revelação foi deixando de ser algo que costumava acontecer e passou a ser algo que, um dia, tinha acontecido. Em suma, chegou-se a uma espécie de redução da compreensão do diálogo entre Deus e a humanidade a uma ponte fixa, a saber, o texto escrito das Sagradas Escrituras. O mesmo fenômeno teria acontecido no cristianismo com o passar dos séculos. No entanto, outros especialistas nos alertam para os inúmeros episódios que evidenciam uma maneira muito realista e prudente de retocar pontualmente a mediação escriturística quando surgiam problemas ainda sem solução estabelecida. Sempre que uma situação muito real e crítica não encontrava as respostas adequadas nos seus escritos ou em suas narrativas orais paradigmáticas, os sábios israelitas não hesitavam em relê-los acrescentando, confrontando, omitindo ou interpolando.

C. Mesters insiste na necessidade de recuperar a relevância do texto bíblico “não como um texto caído do céu, mas antes como algo nascido de dentro da fé do Povo de Deus, enquanto este tomava posição em meio aos conflitos do caminho”. Portanto, “este processo de leitura e releitura está na origem da Bíblia” e continua ao longo da história da Igreja (MESTERS, 1989, p.461). Sendo assim, para a noção cristã de revelação, a mediação da Bíblia é evidentemente fundamental. Ao longo da história esse papel foi muitas vezes exagerado – como na perspectiva protestante (Lutero) sola Scriptura – ou mesmo subestimado – como na técnica escolástica pré-moderna do argumentum Scripturae (que reduzia a consulta bíblica a um mero levantamento de citações ilustrativas das teses/cânones doutrinais/dogmáticos pré-concebidos/pré-definidos). No entanto, essa experiência central de toda religião está plenamente presente na Bíblia, com pontos em comum e também diferenças significativas em relação à literatura oriental antiga na qual se banha.

4 Igrejas

 Não há texto a ser lido se não houver quem o escreva. E não adianta escrevê-lo se não houver quem, tendo-o lido, recomende sua leitura, o proteja e o divulgue. Estamos falando do papel insubstituível da comunidade de fé – ou comunidade reunida em torno dos mesmos símbolos e textos fundamentais. Na tradição cristã nos habituamos a denominá-la(s) de Igreja(s).

No panorama católico mais recente, a principal reformulação da noção cristã de Igreja ocorreu no Concílio Ecumênico Vaticano II. Os 45 parágrafos iniciais da Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS) sintetizam o que os padres conciliares entenderam ser a necessária função mediadora da Igreja. Tal função é condicionada pela seguinte exigência: “que no plano de salvação da humanidade, aqueles que conhecem o mistério do amor estejam no meio dos homens, e junto de todos, dialogando com quem, neste caminhar rumo ao Evangelho, tropeça com as exigentes interrogações do amor” (SEGUNDO, 1978, p.78). J. L. Segundo oferece um sucinto roteiro da GS que iremos comentando na medida em que o transcrevemos (SEGUNDO, 1984, p.33, n.15):

“a) O que vale para os cristãos, em ordem à salvação, vale igualmente para todos os homens e mulheres de boa vontade (GS n.22e). Ou seja, todos os homens e mulheres estão sujeitos aos mesmos critérios de julgamento em vista de sua plenitude espiritual e humana, não importando se são ou não cristãos.

b) A única diferença está em conhecer pela fé o destino global que Deus confere ao ser humano (GS22f). Então, cristão é quem ‘sabe’ que, no fundo, todos se salvam (se o querem).

c) Esta fé destina-se a ajudar a humanidade a encontrar soluções mais humanas a seus problemas históricos (GS11). Se assim é, que diferença faz ser ou não ser cristão? A fé é dada para que este se coloque a serviço do bem estar geral. Não é um privilégio nem lhe dá algum tipo de garantia salvífica acima e/ou além dos demais.

d) Têm razão as pessoas que, de boa fé, aceitam ou não a Deus e a seu evangelho, na medida em que os vejam traduzidos em soluções humanizadoras. Portanto, a Igreja compromete-se a averiguar com seriedade até onde as realizações devidas a cristãos possam levar a uma negação da fé (GS19c, 21b.f). Portanto, o caminho da revelação cristã não é imediatamente compreensível nem aceitável, mas passa pela mediação do testemunho dos já iniciados. Daí que ‘os homens devam comunicar reciprocamente, de modo amplo, lento e profundo, os seus respectivos mundos de valores e iniciar um discurso sobre a partilha ou não de uma mesma fé religiosa’ (SEGUNDO,1984, p.16).

e) O cristão deve, portanto, se unir aos demais homens e mulheres na busca da verdade, já que a verdade revelada só pode ser cumprida ao se tornar verdade humanizadora (GS16). O cristão não detém nenhum tipo de verdade estática, definitiva, que o dispense de construir, juntamente com os demais semelhantes, uma verdade de fato humanizadora. A verdade da revelação cristã é histórica e só pode ser compreensível na medida em que for continuamente reinserida na (ambivalência da) história.

Esse exemplo ajuda a compreender como o pensamento católico entende a função da comunidade eclesial, condicionada pela seguinte exigência: ‘que no plano de salvação da humanidade, aqueles que conhecem o mistério do amor estejam no meio dos homens, e junto de todos, dialogando com quem, neste caminhar rumo ao Evangelho, tropeça com as exigentes interrogações do amor’ (SEGUNDO, 1978, p.78).

f) Os leigos protagonizam esta função eclesial sem buscar soluções prontas nas autoridades da Igreja, nem mesmo em assuntos graves, uma vez que esta não é a missão delas (GS43b). Ao laicato cabe o protagonismo de mediar a presença da mensagem cristã na sociedade. As autoridades eclesiásticas não têm nenhuma prerrogativa especial que as torne infalíveis quando se trata de encontrar soluções para problemas históricos.

g) A Igreja, nesta função de oferecer elementos humanizadores procedentes de sua fé, reconhece a dívida que tem para com o desenvolvimento da humanidade e ainda para com seus históricos oponentes e perseguidores (GS 44a.c)”. O surpreendente aqui é que uma das pontes entre o Evangelho cristão e a sociedade são justamente os históricos oponentes e perseguidores da Igreja visível. Uma evidente mudança de atitude que não deixou de surtir efeito nos anos que se seguiram ao Vaticano II.

5 Magistério

Qualquer grupo religioso organizado dependerá, cedo ou tarde, de um sistema de preservação e transmissão de sua mensagem e dos desdobramentos rotineiros dela decorrentes. Exemplo disso na tradição judaica antiga é detectado de forma bem didática por J. L. Segundo (2000) ao explicar que a comunidade sinagogal que lê os textos sagrados é tão inspirada quanto seus autores humanos. Não é diferente quando se considera a função mediadora da comunidade eclesial, pois ela tem indiscutivelmente a missão de ensinar, com seu testemunho ortopráxico e doutrina ortodoxa, o caminho autenticamente evangélico a ser percorrido pelos cristãos.

O Concílio Vaticano II trouxe nesse campo contribuições importantes para a discussão do tema no catolicismo atual – de modo particular na Constituição dogmática Dei Verbum. Ao falar da origem divina, da “Sagrada Tradição e Sagrada Escritura”, a DV n.9 diz que elas “estão estreitamente unidas e comunicantes (compenetradas) entre si”. Mas acrescenta, no final do n.10, a tríade que nomeia, aparentemente em pé de igualdade, o magistério eclesiástico, a “Sagrada Tradição” e a “Sagrada Escritura”. No entanto, o contexto maior da DV não nos permite equiparar essas três dimensões. Nenhum Concílio ousaria dar o mesmo status ao magistério eclesiástico e à Bíblia. O novo, em vez, é a insistência em dizer que elas “se entrelaçam e se associam entre si de tal forma que uma não subsiste sem as outras”, pois dissolve qualquer pretensão da Tradição de se sustentar como material de fé independente da Escritura. Não sendo independente, não se vê como podem ser dogmas aqueles dados não contidos na Escritura.

A menção ao Magistério nesse trecho decisivo da Dei Verbum parece sugerir que os padres conciliares deram muita atenção à ordem histórica em que surgem e funcionam essas três dimensões. Com efeito, a escrituração do Novo Testamento foi feita a partir da coleta e seleção da mensagem transmitida pelos apóstolos, e precisou depois ser submetida à apreciação do corpo presbiteral para que pudesse seguir sendo lida/celebrada na liturgia e, com o tempo, admitida no cânon. É essa tradição apostólica que oferece os óculos com os quais será possível ver, admirar e optar pela mensagem e valores de Jesus nos séculos seguintes. Certamente outros desdobramentos suscitarão revisões na teologia da revelação e na eclesiologia cristãs. Um dos principais talvez seja a inclusão positiva no serviço magisterial da experiência oriunda do sensus fidei fidelium. Para avaliar seus frutos teremos, porém, de aguardar algumas décadas.

Afonso Maria Ligorio Soares. PUC São Paulo, Brasil

 6 Referências bibliográficas

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Para saber mais

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