Sociedade da informação ou sociedade do controle?

Sumário

Introdução

1 Uma nova era

2 Uma inédita interpretação da realidade

3 Novas potencialidades

4 Informação ou controle?

5 Sustentabilidade digital

6 O pontificado de Francisco

Conclusão

Introdução

Não é fácil passar em revista as novidades do mundo digital e os desafios que ele representa para a consciência e a liberdade. A transformação, cuja omnipresença e poder transformador todos nós percebemos hoje, especialmente depois da pandemia, ainda não revelou completamente seu alcance. Entretanto, a fim de esclarecer a magnitude destes processos, proporemos um itinerário dividido em vários momentos. Começaremos descrevendo o que aconteceu (Uma nova era) e depois tentaremos trazer à tona as principais características da Era Digital (Uma inédita interpretação da realidade). As perspectivas de nossa análise nos levarão então a delinear as potencialidades (Novas potencialidades) e limites (Informação ou controle?) dessas transformações. Indicaremos em seguida o que poderia ser um remédio para tornar o sistema mais sustentável (Sustentabilidade Digital), além de apontar as pistas dadas pelo magistério de Francisco (O pontificado de Francisco).

1 Uma nova era

A evolução do computador influenciou profundamente todas as tecnologias de comunicação, ao mesmo tempo em que abraçou todo o seu potencial. No início, o computador parecia ser uma ferramenta reservada às grandes organizações e administrações, à pesquisa científica e aos comandos militares. A partir dos anos 1970, a tecnologia de microprocessadores, o constante desenvolvimento de software de fácil utilização e, nos anos 1990, a rápida expansão da rede, transformaram-na em uma máquina acessível a todos, como qualquer outro eletrodoméstico. Para entender essa mudança, precisamos nos concentrar na principal característica desta nova forma de comunicação: a digital.

Em informática e eletrônica, digital refere-se ao fato de que toda informação é representada por números ou que é manipulada por números (o termo é derivado do inglês digit, que significa cifra). Um determinado conjunto de informações é representado em formato digital, ou seja, como uma sequência de números tomados de um conjunto de valores discretos, ou seja, pertencentes ao mesmo conjunto bem definido e circunscrito. Atualmente, digital pode ser considerado como sinônimo de numérico e se opõe à forma de representação da informação chamada de analógica. O que é digital se opõe ao que é analógico, ou seja, não numerável.

Digital, portanto, refere-se à matemática do discreto, que trabalha com um conjunto finito de elementos, enquanto o analógico é modelado com a matemática do contínuo, que lida com um infinito (numerável ou não numerável) de elementos. Um objeto é digitalizado, ou seja, tornado digital, se seu estado original (analógico) for traduzido e representado por meio de um conjunto numérico de elementos. Por exemplo, uma foto, normalmente composta por um número infinito de pontos, cada um dos quais é composto por uma gama infinita de cores, é digitalizada, e assim traduzida em uma foto digital, quando sua superfície é representada como sendo subdividida em um número discreto de pontos (geralmente pequenos quadrados ou retângulos chamados pixels), cada um dos quais é composto por uma cor representada, por sua vez, por um número.

Hoje, a comunicação eletrônica, por um lado, contribui para o enfraquecimento da instituição do livro como fonte e ferramenta de informação e cultura; por outro lado, de novas maneiras, ela continua e expande seu serviço (como, por exemplo, acontece com o ebook). Além disso, se a impressora permitiu um uso diferente da memória, o computador hoje em dia aumenta ainda mais esta mudança, dotado como está de uma vasta capacidade de gerenciamento de dados.

Justamente porque processa a linguagem de todos os outros meios em formato digital, o computador tornou-se o meio por excelência do século XXI. Em particular, é uma ferramenta de escritura para todos: jornalistas, escritores, cientistas, engenheiros, poetas e artistas. Ela modificou em grande parte as técnicas tradicionais de escrita, como fez para a edição, a fotocomposição e a própria impressão.

No início do século XX, a comunidade humana estava ligada pelo telégrafo e depois pelo telefone. Hoje, as conexões globais são feitas pelo computador: a troca de dinheiro e mercadoria na bolsa de valores, o tráfego aéreo e ferroviário etc. são controlados de maneira informática. A mesma maneira permite que milhões de pessoas troquem mensagens sem limites de tempo ou de espaço.

2 Uma inédita interpretação da realidade

A revolução na ciência e na tecnologia trazida pelos computadores e pela tecnologia da informação foi habilmente descrita por Naief Yehya: “Com um computador podemos transformar quase qualquer problema humano em estatísticas, gráficos, equações. O realmente perturbador, porém, é que, ao fazê-lo, criamos a ilusão de que estes problemas sejam resolvíveis com os computadores” (YEHYA, 2005, p. 15).

Chris Anderson, o editor-chefe da Wired[1], resume o que a revolução digital[2] significa para o mundo científico:

Os cientistas sempre se basearam em hipóteses e experimentos. […] Diante da disponibilidade de enormes quantidades de dados, esta abordagem – hipótese, modelo teórico e teste – torna-se obsoleta. […] Agora há uma maneira melhor. Os petabytes nos permitem dizer: “a correlação é suficiente”. Podemos deixar de procurar modelos teóricos. Podemos analisar os dados sem nenhuma suposição sobre o que os dados poderiam mostrar. Podemos enviar os números para o maior conjunto de computadores [clusters] que o mundo já viu e deixar que os algoritmos estatísticos encontrem modelos [estatísticos] onde a ciência não pode. […] Aprender a usar um computador desta escala pode ser um desafio. Mas a oportunidade é grande: a nova disponibilidade de uma enorme quantidade de dados, combinada com as ferramentas estatísticas para processá-los, oferece uma maneira totalmente nova de entender o mundo. A correlação substitui a causalidade, e as ciências podem avançar mesmo sem modelos teóricos coerentes, teorias unificadas ou algum tipo de explicação mecanicista. (ANDERSON, 2008, p. 106-107)[3]

O advento da pesquisa digital, onde tudo se transforma em dados numéricos, leva à capacidade de estudar o mundo de acordo com novos paradigmas gnoseológicos: o que conta é apenas a correlação entre duas quantidades de dados e não mais uma teoria coerente que explica esta correlação[4]. Praticamente hoje estamos assistindo a desenvolvimentos tecnológicos (capacidade de fazer) que não correspondem a nenhum desenvolvimento científico (capacidade de conhecer e explicar): hoje a correlação é usada para prever com precisão suficiente, ainda que não exista uma teoria científica que a sustente, o risco de impacto de asteroides, mesmo desconhecidos, em vários lugares da Terra, os locais institucionais sujeitos a ataques terroristas, o voto de cidadãos individuais nas eleições presidenciais americanas, a tendência de curto prazo do mercado de ações.

O uso de computadores e da tecnologia da informação no desenvolvimento tecnológico destacou um desafio linguístico que ocorre na fronteira entre homem e máquina: no processo de questionamento mútuo entre homem e máquina, surgem projeções e trocas até então inimagináveis, e a máquina se torna não menos humana do que o homem se torna máquina (BENANTI, 2012).

3 Novas potencialidades

O efeito da digitalização exponencial da comunicação e da sociedade está levando, de acordo com Marc Prensky (PRENSKY, 2001a, p. 1-6; PRENSKY, 2001b, p. 1-6), a uma verdadeira transformação antropológica: o advento dos nativos digitais. Nativo digital (em inglês digital native) é uma expressão aplicada a uma pessoa que cresceu com tecnologias digitais como computadores, internet, telefones celulares e MP3. A expressão é usada para se referir a um grupo novo e inédito de alunos que estão entrando no sistema educacional. Os nativos digitais surgiram em paralelo com a difusão em massa dos computadores com interface gráfica em 1985 e dos sistemas operacionais por janelas em 1996. O nativo digital cresce em uma sociedade de múltiplas telas e considera as tecnologias como um elemento natural sem sentir nenhum desconforto em manipulá-las e interagir com elas.

Em contraste, Prensky cunhou a expressão imigrante digital (digital immigrant) para indicar uma pessoa que cresceu antes das tecnologias digitais e as adotou mais tarde. Uma das diferenças entre estes indivíduos é a diferente abordagem mental que eles têm em relação às novas tecnologias: por exemplo, um nativo digital falará sobre sua nova câmera (sem definir seu tipo tecnológico) enquanto um imigrante digital falará sobre sua nova câmera digital, ao contrário da câmera de filme químico que ele usava antes. Um nativo digital, de acordo com Prensky, é moldado pela dieta de mídia a que é submetido: em cinco anos, por exemplo, ele ou ela passa 10.000 horas jogando videogames, troca pelo menos 200.000 e-mails, passa 10.000 horas no telefone celular, passa 20.000 horas em frente à televisão assistindo pelo menos 500.000 comerciais, mas dedica apenas 5.000 horas à leitura. Esta dieta de mídia produz, segundo Prensky, uma nova linguagem, uma nova maneira de organizar o pensamento que mudará a estrutura cerebral dos nativos digitais.

Multitarefa, hipertextualidade e interatividade são, para Prensky, apenas algumas características do que parece ser uma etapa nova e sem precedentes na evolução humana. Além disso, segundo o autor, embora erraticamente e à nossa própria velocidade, estamos todos caminhando para um aprimoramento digital que inclui atividades cognitivas. De fato, diz ele, as ferramentas digitais já ampliam e enriquecem nossas capacidades cognitivas de muitas maneiras. A tecnologia digital melhora a memória, por exemplo, através de ferramentas de aquisição, armazenamento e recuperação de dados. A coleta de dados digitais e as ferramentas de apoio à decisão melhoram a escolha, permitindo-nos coletar mais dados e verificar todas as implicações daquela questão. A melhoria cognitiva digital, possibilitada por laptops, bancos de dados on-line, simulações virtuais tridimensionais, ferramentas colaborativas on-line, portáteis e uma série de outras ferramentas específicas do contexto, é agora uma realidade para em muitas profissões, mesmo em campos não técnicos, como o direito e as humanidades. Por isso, ao invés de “capacitação tecnológica”, Presky prefere falar de “capacitação digital”, por três razões: 1. Porque hoje quase toda a tecnologia é digital ou suportada por ferramentas digitais; 2. A tecnologia digital difere de outras tecnologias por ser programável, ou seja, é capaz de ser induzida a fazer, em níveis cada vez mais precisos, exatamente o que se quer (esta capacidade de personalização está no coração da revolução digital); 3. A tecnologia digital investe cada vez mais energia em versões cada vez menores de microprocessadores, que, por sua vez, constituem o núcleo de grande parte da tecnologia capaz de melhorar a cognição. Esta miniaturização, juntamente com custos cada vez menores, é a que tornará a tecnologia digital disponível para todos, embora a taxas diferentes e em locais diferentes (PRENSKY, 2009)[5].

4 Informação ou controle?

Vivemos em uma sociedade e tempo digitais, a Era Digital, um período complexo por causa das profundas mudanças que essas tecnologias estão produzindo. A pandemia de Covid-19 acelerou uma série de processos que há algum tempo vinham mudando radicalmente a sociedade porque era possível dissociar conteúdo, conhecimento, de seu suporte[6]. A mudança de época que estamos atravessando é produzida pela tecnologia digital e seu impacto em nosso modo de entender a nós mesmos e a realidade ao nosso redor.

Para compreender este desafio, precisamos voltar ao início desta transformação. Em um documentário granulado filmado em 1952, nos Laboratórios Bell, o matemático e pesquisador dos Laboratórios Bell, Claude Shannon, está ao lado de uma máquina que ele construiu. Construído em 1950, foi um dos primeiros exemplos de aprendizagem automática do mundo: um rato robótico que resolve labirintos, conhecido como Theseus. O Teseu da mitologia grega antiga navegou no labirinto de um minotauro e escapou seguindo um fio que ele usava para marcar seu caminho. Mas o brinquedo eletromecânico de Shannon foi capaz de “lembrar” a rota com a ajuda de interruptores de relé telefônico.

Em 1948, Shannon introduzira o conceito de teoria da informação em A Mathematical Theory of Communication (Teoria Matemática da Comunicação), um documento que fornece a prova matemática de que toda comunicação pode ser expressa digitalmente. Claude Shannon mostrou que as mensagens podiam ser tratadas puramente como uma questão de engenharia. A teoria matemática e não semântica da comunicação de Shannon abstrai o significado de uma mensagem e a presença de um remetente ou destinatário humano; uma mensagem, deste esse ponto de vista, é uma série de fenômenos transmissíveis aos quais uma determinada métrica pode ser aplicada (POLT, 2015, p. 181).

Estas intuições deram origem a uma nova visão transdisciplinar da realidade: a cibernética de Norbert Wiener. Para Wiener, a teoria da informação é uma forma poderosa de conceber a própria natureza. Enquanto o universo está ganhando entropia, de acordo com a segunda lei da termodinâmica – ou seja, sua distribuição de energia está se tornando menos diferenciada e mais uniforme –, existem sistemas locais contraentrópicos. Esses sistemas são os organismos vivos e as máquinas de processamento de informações que construímos. Esses sistemas se diferenciam e se organizam: eles geram informações (POLT, 2015, p. 181). O privilégio desta abordagem é o de permitir à cibernética exercer um controle seguro sobre o campo interdisciplinar que ela gera e trata: “a cibernética já pode ter certeza de sua ‘coisa’, ou seja, de calcular tudo em termos de um processo controlado” (HEIDEGGER; FABRIS, 1988, p. 34-35).

Começando na década anterior à Segunda Grande Guerra, e acelerando durante e depois da guerra, os cientistas projetaram sistemas mecânicos e elétricos cada vez mais sofisticados que permitiam que suas máquinas agissem como se tivessem um propósito. Este trabalho se cruzou com outros trabalhos sobre cognição em animais e trabalhos precoces em computação. O que surgiu foi uma nova maneira de ver os sistemas, não apenas mecânicos e elétricos, mas também biológicos e sociais: uma teoria unificadora dos sistemas e sua relação com o meio ambiente. Esse movimento em direção a “sistemas inteiros” e “pensamento de sistema” ficou conhecido como cibernética. A cibernética enquadra o mundo em termos de sistemas e seus objetivos.

Segundo a cibernética, os sistemas atingem seus objetivos através de processos iterativos ou ciclos de “feedback”. De repente, os principais cientistas do pós-guerra estavam falando seriamente sobre a causalidade circular (A causa B, B causa C e, finalmente, C causa A). Olhando mais de perto, os cientistas viram a dificuldade de separar o observador do sistema. Na verdade, o sistema parecia ser uma construção do observador. O papel do observador é fornecer uma descrição do sistema, que é dada a outro observador. A descrição requer um idioma. E o processo de observar, criar linguagem e compartilhar descrições cria uma sociedade. Desde o final dos anos 40, o mundo da pesquisa mais avançada começou a olhar para a subjetividade – da linguagem, da conversação e da ética – e para a sua relação com sistemas e design. Diferentes disciplinas estavam colaborando para estudar a “colaboração” como uma categoria de controle.

Até então, os físicos haviam descrito o mundo em termos de matéria e energia. A comunidade cibernética propôs uma nova visão do mundo através da lente da informação, dos canais de comunicação e de sua organização. Desta forma, a cibernética nasceu no alvorecer da era da informação, nas comunicações pré-digitais e nos meios de comunicação, fazendo a ponte entre a forma como os humanos interagem com máquinas, sistemas e uns com os outros. A cibernética se concentra no uso do feedback para corrigir erros e atingir objetivos: a cibernética faz da máquina e do ser humano uma espécie de mouse da Shannon.

É neste nível que precisamos olhar mais de perto os efeitos que isto pode ter sobre a compreensão – de si e dos outros – do ser humano e sobre a liberdade. Na medida que as discussões amadureceram, os objetivos da comunidade cibernética se expandiram. Em 1968, Margaret Mead estava contemplando a aplicação da cibernética aos problemas sociais:

À medida que o cenário mundial se amplia, existe a possibilidade contínua de usar a cibernética como forma de comunicação em um mundo de crescente especialização científica. […] deveríamos olhar muito seriamente para a situação atual da sociedade americana, dentro da qual esperamos desenvolver estas formas muito sofisticadas de lidar com sistemas que precisam desesperadamente de atenção. Problemas das áreas metropolitanas, […]. As interrelações entre diferentes níveis de governo, a redistribuição da renda, […] as ligações necessárias entre partes de grandes complexos industriais… (MEAD, 1968, p. 45)[7]

A abordagem cibernética, como destacaria Martin Heidegger em sua releitura de Wiener e o trabalho dos cibernéticos, “reduz” a própria atividade humana, na pluralidade de suas configurações, a algo funcional e controlável pela máquina: “o próprio homem torna-se ‘algo planejado, isto é, controlável’ e, se tal redução não for possível, ele é colocado entre parênteses como ‘fator perturbador’ no cálculo cibernético” (HEIDEGGER; FABRIS, 1988, p. 10). De fato, Fabris observa que:

Em sua análise do fenômeno cibernético, Heidegger mantém constantemente em mente a matriz grega da palavra e privilegia este aspecto, em vez de – por exemplo – a noção central de feedback, como um fio condutor para entender e explicar as características de tal “disciplina não disciplina”. Na leitura Heideggeriana, a cibernética indica o advento de um processo de controle e informação dentro das diferentes esferas temáticas das diversas ciências. Do ponto de vista hermenêutico, comando e controle (la Steuerung) são entendidos antes de tudo, do ponto de vista hermenêutico, como a perspectiva dentro da qual as relações do homem com o mundo são reguladas. (FABRIS, 1988, p. 11)

Fabris observa que

a cibernética é vista por Heidegger como o momento mais avançado, o resultado mais evidente daquele domínio da técnica para o qual toda a metafísica ocidental flui. A história do ser – como emerge dos cursos universitários sobre Nietzsche nos anos 30 – tem de fato seu ponto de chegada no evento da técnica, no qual a vontade de poder (vontade de vontade) que determina a ação humana e se estende a todas as esferas da realidade, encontra plena manifestação. Dentro desse processo de autorreferência da vontade, o projeto cibernético recebe sua própria justificação e define suas relações com a filosofia, assumindo algumas de suas tarefas e assumindo suas prerrogativas tradicionais. (FABRIS, 1988, p. 11)

No coração dos cibernéticos, ou seja, daqueles estudiosos que são os pais da sociedade informática, das inteligências artificiais e de todos esses impressionantes desenvolvimentos que o digital está realizando em nossas vidas, entretanto, pode ter havido a promessa de um propósito ainda maior.

Gregory Bateson, o primeiro marido de Margaret Mead, disse em uma famosa entrevista que o que o excitava nas discussões sobre cibernética era isto: “Foi uma solução para o problema do escopo. A partir de Aristóteles, a causa final sempre foi o mistério. Isso veio à tona então. Não percebíamos então (pelo menos eu não percebi, embora McCulloch possa ter percebido) que toda a lógica teria que ser reconstruída para a recursividade” (BRAND, 1976, p. 32-34)[8].

5 Sustentabilidade digital

Se a sociedade da informação pode de fato, por meio de ações de feedback digital, colocar o homem em uma condição de controle pela máquina (seja eletrônica ou algorítmica), e se a relação cibernética em sua forma mais radical de realização da simbiose homem-máquina pode, de fato, negar a necessidade de se colocar a hipótese de causas finais para a ação, um horizonte distópico aparece no horizonte em que a sociedade da informação inevitavelmente colapsa em uma sociedade de controle. A análise da sociedade digital nos permite refletir sobre a ligação entre causas, necessidade e liberdade, que o digital realiza em sua forma de implementação política: ela põe em questão a própria existência de um destino do homem que dependa de seu livre arbítrio.

Esta forma de digitalização cibernética, que eu definiria aqui como “forte”, a fim de sublinhar como esta é uma forma possível de sociedade se não forem criadas formas de sustentabilidade digital (BENANTI; MAFFETTONE, 2021), corre o risco de eliminar a própria possibilidade de uma liberdade positiva. Em linguagem política, esse termo, como diz Bobbio, significa

a situação em que uma pessoa tem a possibilidade de dirigir sua vontade em direção a um objetivo, de tomar decisões, sem ser determinado pela vontade de outros”. Esta forma de liberdade também é chamada “autodeterminação” ou, ainda mais apropriadamente, “autonomia”. […] A definição clássica de liberdade positiva foi dada por Rousseau, para quem a liberdade no estado civil consiste no fato de que ali o homem, como parte do todo social, como membro do “eu comum”, não obedece a ninguém além de si mesmo, ou seja, é autônomo no sentido preciso da palavra, no sentido de que dá leis para si mesmo e não obedece a nenhuma outra lei além daquelas que ele mesmo se deu: “A obediência à lei que prescrevemos para nós mesmos é liberdade” (Contrato social, I, 8). Este conceito de liberdade foi assumido, sob a influência direta de Rousseau, por Kant, […] na Metafísica dos Costumes, onde a liberdade legal é definida como “a faculdade de não obedecer a nenhuma lei que não aquela à qual os cidadãos deram seu consentimento” (II, 46). […] As liberdades civis, o protótipo das liberdades negativas, são liberdades individuais, ou seja, inerentes ao indivíduo singular: historicamente, de fato, são produto das lutas para defender o indivíduo considerado ou como pessoa moral e, portanto, tendo um valor em si mesmo, ou como sujeito de relações econômicas, contra a intrusão de entidades coletivas como a Igreja e o Estado […]. A liberdade como autodeterminação, por outro lado, é geralmente referida, na teoria política, a uma vontade coletiva, seja essa vontade aquela do povo ou da comunidade ou da nação ou do grupo étnico ou da pátria. (BOBBIO, 1978)

À luz destas breves reflexões, parece-nos que podemos enfatizar que a matriz epistemológica do controle inerente ao desenvolvimento do digital como cultura de informação cibernética ainda reside implícita e irrefletidamente dentro das aplicações técnicas da sociedade da informação. Cabe à sociedade civil criar um debate para que os processos de inovação tecnológica digital sejam desafiados.  Entretanto, o mundo da tecnologia é hoje descrito pela categoria de inovação.

Se continuarmos a olhar a tecnologia apenas como uma inovação, corremos o risco de não perceber seu escopo de transformação social e, portanto, de ser incapazes de direcionar seus efeitos para o bem.

Para poder falar de inovação como um bem, e para poder orientá-la para o bem comum, precisamos de uma qualificação capaz de descrever como e quais características do progresso contribuem para o bem dos indivíduos e da sociedade. É por isso que, com Sebastiano Maffettone, decidimos adotar a categoria de sustentabilidade digital.

A ideia de sustentabilidade digital chama a atenção para um conceito amplo, incluindo a expansão duradoura das possibilidades de escolha dos indivíduos e a melhoria equitativa de suas perspectivas de bem-estar. Falar de sustentabilidade digital significa não colocar a capacidade técnica no centro das atenções, mas manter o ser humano no centro do pensamento e como o fim que qualifica o progresso.

Usar a tecnologia digital eticamente hoje, respeitar a ecologia humana, significa tentar transformar a inovação em um mundo digital sustentável. Significa direcionar a tecnologia rumo e para o desenvolvimento humano, e não simplesmente buscar o progresso como um fim em si mesmo. Embora não seja possível pensar e implementar tecnologia sem formas específicas de racionalidade (o pensamento técnico e científico), colocar a sustentabilidade digital no centro do interesse significa dizer que o pensamento técnico e científico não é suficiente[9].

Para que haja liberdade, precisamos que a consciência e as consciências questionem a técnica, direcionando seu desenvolvimento para o bem comum.

6 O pontificado de Francisco

Gostaríamos, nesta última parte do texto, de apresentar a grande sensibilidade que o pontífice demonstra em relação ao tema tecnológico e à presença inovadora do digital como forma dominante de tecnologia.

Ao ler a encíclica Laudato Si’ encontramos vinte referências explícitas à tecnologia. A palavra tecnologia volta primeiro na parte inicial do texto, onde nos debruçamos sobre a análise do problema ecológico para entender o que está acontecendo com nossa casa (n. 16, 20, 34 – 2 vezes, 54 – 2 vezes); em seguida, no terceiro capítulo, onde se busca a raiz humana do problema ecológico (n. 102 – 3 vezes, 104 – 2 vezes, 105, 106 – 2 vezes, 109, 110, 113, 114 e 132); e apenas uma vez no capítulo que trata de oferecer algumas linhas de orientação e ação (n. 165). Duas vezes (n. 103 e 107) prefere-se usar o termo tecnociência em vez de tecnologia. Entretanto, nossa investigação não estaria completa se não mencionássemos como o pontífice, conectando agir humano, tecnologia e problema ecológico, justapõe ao substantivo tecnologia o adjetivo tecnocrático, que ocorre sete vezes – todas no terceiro capítulo –, que descreve uma certa atitude interior do ser humano e sua intencionalidade no relacionar-se com a tecnologia em tons escuros e negativos.

A análise que a Laudato Si’ oferece da tecnologia reflete a ambiguidade da ferramenta técnica que surgiu na interseção da ecologia e da tecnologia. Devemos reconhecer que

A humanidade entrou numa nova era, em que o poder da tecnologia nos põe diante duma encruzilhada. Somos herdeiros de dois séculos de ondas enormes de mudanças […]. É justo que nos alegremos com esses progressos e nos entusiasmemos à vista das amplas possibilidades que nos abrem essas novidades incessantes, porque “a ciência e a tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana que Deus nos deu”. A transformação da natureza para fins úteis é uma característica do gênero humano, desde os seus primórdios; e assim a técnica “exprime a tensão do ânimo humano para uma gradual superação de certos condicionamentos materiais”. A tecnologia deu remédio a inúmeros males, que afligiam e limitavam o ser humano […]. (LS n. 102)

No entanto, não podemos ignorar o fato de que as habilidades que adquirimos

nos dão um poder tremendo. Ou melhor: dão, àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder econômico para o desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do gênero humano e do mundo inteiro. Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer. (LS n. 104)

O problema da tecnologia é um problema dos fins a serem escolhidos para orientar o uso dos meios técnicos. Somente se a tecnologia for orientada para a realização de valores humanamente qualificados e humanizadores seu uso será respeitoso com o homem e o meio ambiente. Os fins servidos pelos meios tecnológicos são os únicos capazes de justificar eticamente os meios técnicos e sua utilização (LS n. 103). No entanto, não é raro testemunharmos uma busca pelo poder técnico que parece ser assimilado ao próprio poder: quando o progresso técnico não é animado pela busca do bem comum e pela realização de valores moralmente qualificados, ele dificilmente se torna desenvolvimento, expondo a humanidade à arbitrariedade cega (LS n. 105).

Neste nível, traçar o desenvolvimento da Laudato Si’ revela a verdadeira natureza do problema tecnológico:

O problema fundamental é outro e ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogêneo e unidimensional. Neste paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente, no processo lógico-racional, compreende e assim se apropria do objeto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao estabelecer o método científico com a sua experimentação, que já é explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. É como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia de um crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a “espremê-lo” até ao limite e para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que “existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos. (LS n. 106)

O problema, continua o documento, é a mentalidade tecnocrática dominante, que concebe toda a realidade como um objeto que pode ser manipulado sem limites. Este é um reducionismo que envolve todas as dimensões da vida. A tecnologia não é neutra: ela faz “opções sobre o tipo de vida social que se pretende desenvolver” (LS n. 107). O paradigma tecnocrático também domina a economia e a política; em particular, “A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro. […] Mas o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social” (LS n. 109). Confiar unicamente na tecnologia para resolver cada problema significa “esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial” (LS n. 111), dado que “o progresso da ciência e da técnica não equivale ao progresso da humanidade e da história” (LS n. 113).

Assim, parece haver a necessidade de uma “corajosa revolução cultural” (LS n. 114) para recuperar os valores e a percepção do que é importante no processo de transformação tecnológica. Quando a tecnologia se torna um instrumento para a implementação do pensamento único, do que o pontífice define como pensamento tecnocrático, então sua natureza se perverte e se torna um instrumento de desumanização e destruição do lar comum, pilhando-o, danificando-o irremediavelmente e tornando-se uma implementação altamente eficiente dos danos ecológicos.

Desta leitura da Laudato Si’ emerge como o texto magisterial faz sua a tensão interna do mundo da tecnologia. A resposta que o pontífice oferece aos cristãos e aos homens de boa vontade para se encarregarem da gestão e do uso da tecnologia é sob a forma de discernimento e diálogo. O magistério de Francisco não pretende resolver essas tensões dando linhas ou diretrizes a serem seguidas em virtude do papel ou princípio de autoridade, mas assume a complexidade do problema indicando a necessidade de uma comunhão de intenções e diálogo para encontrar soluções compartilhadas e capazes de orientar a tecnologia e seu progresso em direção ao bem comum em formas de autêntico desenvolvimento humano.

Além destas linhas, vale ressaltar que foi a Pontifícia Academia para a Vida que trouxe a fronteira da reflexão para o mundo digital. Em um palco dominado pela palavra renAIssance (um jogo de palavras entre renascimento e inteligência artificial – AI –), a Roma Call for na AI Ethics (Apelo de Roma para uma Ética da IA) foi assinada em 28 de fevereiro de 2020. Uma chamada aberta que parte da Pontifícia Academia da Vida e que, envolvendo indústrias, sociedade civil e instituições políticas, visa apoiar uma abordagem ética e humanista da Inteligência Artificial. A ideia deste “chamado” para proteger a dignidade da pessoa humana e do lar comum decorre dos diálogos que ocorreram nos últimos dois anos entre a Academia e alguns de seus membros e parte do mundo tecnológico e industrial. A ideia de não elaborar um texto unilateral ou diretamente normativo está ligada ao profundo desejo de promover, entre organizações, governos e instituições, um senso de responsabilidade compartilhada com o objetivo de garantir um futuro no qual a inovação digital e o progresso tecnológico estejam a serviço do gênio e da criatividade humana e não de sua substituição gradual.

O documento foi assinado pelas seguintes instituições: a Pontifícia Academia pela Vida e seu presidente, Mons. Vincenzo Paglia, a Microsoft e seu presidente Brad Smith, a IBM e seu vice-presidente John E. Kelly III, a FAO e seu diretor geral, QU Dongyu, e o governo italiano e sua ministra da Inovação Tecnológica e da Digitalização, Paola Pisano.

O texto do Apelo está dividido em três partes: ética, educação e direitos, e está disponível na internet em um site específico.

No que diz respeito à ética, o Apelo parte da consideração de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Eles são dotados de razão e consciência e devem agir uns para com os outros num espírito de fraternidade”, como diz o Artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Partindo desta pedra angular, que hoje pode ser considerada como uma espécie de gramática universal, um elemento limiar, em uma comunidade global e plural, as primeiras condições fundamentais que a pessoa deve usufruir, liberdade e dignidade, devem ser protegidas e garantidas na produção e utilização de sistemas de inteligência artificial (a partir de agora IA).

Portanto, os sistemas de IA devem ser concebidos, projetados e implementados para servir e proteger o ser humano e o meio ambiente em que ele vive. Isto é para permitir que o progresso tecnológico seja uma ferramenta para o desenvolvimento da família humana, ao mesmo tempo em que permite o respeito pelo planeta, o lar comum. Para que isso aconteça, seguindo o Apelo, três requisitos devem ser atendidos, a IA deve incluir todo ser humano, não discriminando ninguém; deve ter o bem da humanidade e o bem de todo ser humano em seu núcleo; deve ser desenvolvida de forma consciente da complexa realidade de nosso ecossistema e ser caracterizada pela forma como cuida e protege o planeta com uma abordagem altamente sustentável, que inclui também o uso de inteligência artificial para garantir sistemas alimentares sustentáveis no futuro.

Com relação à experiência do usuário ao interagir com a máquina, o Apelo enfatiza a primazia do ser humano: cada pessoa deve estar ciente de que está interagindo com uma máquina e não pode ser enganada por interfaces que disfarçam a máquina, dando-lhe aparências humanas. A tecnologia de inteligência artificial nunca deve ser usada para explorar pessoas de qualquer forma, especialmente as mais vulneráveis (particularmente as crianças e os idosos). Em vez disso, deve ser usada para ajudar as pessoas a desenvolver suas capacidades e para sustentar nosso planeta.

Os desafios éticos tornam-se então desafios educacionais. Transformar o mundo através da inovação da IA significa comprometer-se a construir um futuro para e com a geração mais jovem. Este compromisso deve se traduzir em um engajamento com a educação, desenvolvendo currículos específicos que aprofundem as diferentes disciplinas, desde as humanidades à ciência e à tecnologia, para educar a geração mais jovem.

A educação das gerações mais jovens, portanto, precisa de um compromisso renovado e de uma qualidade cada vez maior: ela deve ser oferecida com métodos acessíveis a todos, que não discriminem e que possam oferecer igualdade de oportunidades e de tratamento. O acesso à aprendizagem também deve ser garantido aos idosos, aos quais deve ser oferecida a possibilidade de acesso a serviços inovadores, de forma compatível com a estação de suas vidas.

Com base nestas considerações, o Apelo observa que essas tecnologias podem ser extremamente úteis para ajudar as pessoas com deficiências a aprender e se tornar mais independentes, oferecendo ajuda e oportunidades de participação social (por exemplo, trabalho à distância para aqueles com mobilidade limitada, apoio tecnológico para aqueles com deficiências cognitivas etc.).

Para garantir que as exigências éticas e a urgência educativa não permaneçam uma mera voz, o Apelo delineia alguns elementos que poderiam gerar uma nova época do direito.

O desenvolvimento da IA a serviço da humanidade e do planeta requer regulamentações e princípios que protejam as pessoas – especialmente os fracos e os menos afortunados – e os meios ambientes naturais. A proteção dos direitos humanos na era digital deve ser colocada no centro do debate público para que a IA possa atuar como uma ferramenta para o bem da humanidade e do planeta.

Também será essencial considerar um método para tornar compreensíveis não apenas os critérios de decisão dos agentes algorítmicos baseados na IA, mas também seu propósito e objetivos. Isto aumentará a transparência, a rastreabilidade e a responsabilidade, tornando mais válidas as tomadas de decisão assistidas pelo computador.

Projetar e planejar sistemas de inteligência artificial que possam ser confiáveis implica promover a implementação de métodos éticos que saibam chegar ao coração dos algoritmos, o motor desses sistemas digitais. Para isso, o Apelo fala de “algorética”, ou seja, de princípios, uma espécie de barreira de proteção ética, que, expressos por aqueles que desenvolvem esses sistemas, tornem-se operativos na execução do software. O Apelo enumera assim os primeiros princípios algoréticos que são reconhecidos como fundamentais para o desenvolvimento correto da IA.

O uso de IA deve, portanto, seguir os seguintes princípios:

Transparência: em princípio, os sistemas de IA devem ser compreensíveis;

Inclusão: as necessidades de todos os seres humanos devem ser levadas em consideração para que todos possam se beneficiar e todos os indivíduos possam receber as melhores condições possíveis para se expressarem e se desenvolverem;

Responsabilidade: quem projeta e implementa soluções de Inteligência Artificial deve proceder com responsabilidade e transparência;

Imparcialidade: não criar ou agir de acordo com preconceitos, salvaguardando assim a justiça e a dignidade humana;

Confiabilidade: os sistemas de Inteligência Artificial devem ser capazes de funcionar de forma confiável;

Segurança e privacidade: os sistemas de inteligência artificial devem funcionar com segurança e respeitar a privacidade dos usuários.

Ludwig Wittgenstein, no Tractatus Logico-Philosophicus, escreveu: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Parafraseando o filósofo do século passado, então, podemos dizer que, para não sermos excluídos do mundo das máquinas, a fim de não criarmos um mundo algorítmico desprovido de significado humano, devemos expandir nossa linguagem ética para que ela contamine e determine o funcionamento desses sistemas chamados “inteligentes”. A inovação, nunca mais do que hoje, precisa de um rico entendimento antropológico para se tornar uma autêntica fonte de desenvolvimento humano. Em seu discurso na Assembleia Plenária da mesma Academia, o papa Francisco respondeu a estas instâncias quando falou das tecnologias digitais: “Elas podem dar frutos de bem”, mas “uma ação educacional mais ampla” é necessária. E os perigos “não devem esconder de nós o grande potencial dessas ferramentas” (FRANCISCO, 2020, p. 2).

No final de nosso percurso, gostaríamos de nos concentrar nos desafios enfrentados pelas primeiras gerações desta nova era.

Nos próximos vinte anos, a geração de crianças nascidas no terceiro milênio enfrentará três questões fundamentais decorrentes da realidade digital e de sua onipresença. A resolução destas questões descreverá, para o melhor ou para o pior, um mundo tão profundamente diferente de tudo o que a humanidade experimentou que podemos realmente imaginar o fim de uma era e o nascimento de um novo mundo, um universo digital.

Diante disso, os rótulos sociológicos tradicionais usados para classificar os jovens, como Geração X, Y ou Z, não são suficientes. Parece-me que, devido à qualidade e às características da realidade sintética que estamos produzindo, devemos entender esta geração como uma Geração Ômega. Se considerarmos os desafios filosóficos, éticos e práticos que a realidade sintética apresenta, penso que podemos concordar que esta geração poderia ser a última geração humana como temos entendido este termo até agora – estou ciente de que a expressão é forte e provocativa, mas espero nas páginas seguintes poder fazer justiça a esta provocação. O tema central é se esta geração conseguirá colonizar e urbanizar este novo continente de realidade sintética, desejos míticos e potencial tecnológico quase ilimitado. O poder fazer desta geração poderia transformá-la em algo muito diferente do que entendemos atualmente como humano.

O que sabemos é que a figura do homem que habitará nosso futuro é a de um ser errante, que busca. Se ele for capaz de aceitar um chamado espiritual, ele voltará a ser um viator (viajante, n.d.t.), caso contrário se condenará a ser vagabundo e sem rumo.

De fato, a Geração Ômega tem que responder, de uma forma que não pode mais ser atrasada, a algumas perguntas fundamentais sobre nossa natureza humana. Estas questões dizem respeito: à relação da humanidade com seu meio ambiente; à relação da humanidade com a tecnologia; e à relação da humanidade consigo mesma.

A Igreja, especialista em humanidade, como Paulo VI a definiu, percebeu estas transformações e está se tornando a companheira do homem nesta novidade do mundo digital, oferecendo não soluções abstratas e teóricas, mas se permitindo ser questionada pelo que está acontecendo e se tornando a companheira do homem no caminho da história.

Conclusões

Transformar a inovação em desenvolvimento

A constatação que emerge do percurso aqui proposto é que o grande poder da tecnologia pode ser uma ferramenta formidável para ajudar a humanidade a fazer o bem cada vez mais efetivamente ou pode se tornar o instrumento mais eficaz de desumanização. O que permite a distinção entre estes dois resultados?

A mudança de época que estamos atravessando é o produto da tecnologia e de seu impacto na forma como nos entendemos e compreendemos a realidade. Entretanto, o mundo da tecnologia é hoje descrito pela categoria de inovação. Entretanto, se continuarmos a olhar a tecnologia apenas como inovação, corremos o risco de não perceber seu escopo de transformação social e de direcionar seus efeitos para o bem.

Inovação significa um avanço ou transformação gradual, marcado por um aumento cada vez maior da capacidade e do potencial.

Uma bomba atômica comparada a uma clava é um enorme avanço (na capacidade de ofender). Mas podemos chamar este aumento de capacidade de uma coisa boa?

Além do exemplo específico, a resposta correta, em geral, é “depende”. Nem todo progresso é para o bem ou envolve apenas o bem.

Para poder falar de inovação como um bem e poder orientá-la para o bem comum, precisamos de uma qualificação capaz de descrever como e quais características do progresso contribuem para o bem dos indivíduos e da sociedade. Para isso, utilizamos a categoria de desenvolvimento. A ideia de desenvolvimento humano chama a atenção para um conceito abrangente que se concentra nos processos que expandem as escolhas dos indivíduos e melhoram suas perspectivas de bem-estar, e que permitem que indivíduos e grupos se movam o mais rapidamente possível em direção a seu empoderamento.

O desenvolvimento humano deve, portanto, ser entendido como um fim e não como um meio que caracteriza o progresso através da definição de prioridades e critérios. Falar de desenvolvimento significa, portanto, não colocar a capacidade técnica no centro das atenções, mas manter o homem no centro da reflexão e como fim que qualifica o progresso.

Usar tecnologia eticamente hoje significa tentar transformar inovação em desenvolvimento. Significa direcionar a tecnologia rumo e para o desenvolvimento e não simplesmente buscar o progresso como um fim em si mesmo. Embora não seja possível pensar e implementar a tecnologia sem formas específicas de racionalidade (o pensamento técnico e científico), colocar o desenvolvimento no centro do interesse significa dizer que o pensamento técnico-científico não é suficiente por si só. São necessárias diferentes abordagens, incluindo a abordagem humanista e a contribuição da fé.

O desenvolvimento necessário para enfrentar os desafios da era da mudança terá que ser:

Global, ou seja, para todas as mulheres e homens e não apenas para algumas pessoas ou alguns grupos privilegiados (distinguidos por gênero, língua ou etnia).

Integral, ou seja, de toda a mulher e de todo o homem.

Plural, ou seja, atentos ao contexto social em que vivemos, respeitosos da pluralidade humana e das diferentes culturas.

Fecundo, ou seja, capaz de lançar as bases para as gerações futuras, em vez de ser míope e orientado para a utilização dos recursos de hoje sem nunca olhar para o futuro.

Gentil, ou seja, respeitador da terra que nos acolhe (a casa comum), dos recursos e de todas as espécies vivas.

Para a tecnologia e para nosso futuro, precisamos de um desenvolvimento que eu descreveria brevemente como gentil. Isso é a ética, e as escolhas éticas são aquelas que vão na direção de um desenvolvimento gentil.

Paolo Benanti. Pontificia Universidade Gregoriana. Texto original, Italiano. Enviado em 12/02/2022. Aprovado em 30/06/2022. Publicado em 30/12/2022. Tradução Paolo Brivio.

Referências

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[1] Wired é uma revista mensal americana fundada em 1993 e sediada em São Francisco. Conhecida no setor como A Bíblia de Internet, foi fundada pelo ítalo-americano Louis Rossetto, um dos principais especialistas em tecnologia e na assim chamada revolução digital, juntamente com Nicholas Negroponte, um cientista informático americano famoso por seus estudos inovadores no campo das interfaces homem-computador. Atualmente é dirigida por Chris Anderson, que trabalhou anteriormente para The Economist, Nature e Science. Wired (que literalmente significa conectado) trata de questões tecnológicas e como elas influenciam a cultura, a economia e a política. Desde fevereiro de 2009, ela é também publicada na Itália. No que diz respeito aos ciborgues, Wired é uma das mais ricas fontes de material e reflexões.

[2] Com revolução digital refere-se à série de enormes mudanças no mundo da comunicação e na sociedade contemporânea como um todo, causadas pela possibilidade de reduzir todo tipo de informação a cadeias de bits e bytes.

[3] O original está em inglês, a tradução é nossa. Os petabytes são uma medida da capacidade de memória de um computador. Um petabyte è igual a 250, ou seja 1.125.899.906.842.624, bytes – um byte é a unidade de medida para o cálculo do armazenamento de massa. Retornaremos a este assunto em profundidade nos próximos tópicos.

[4] Para se ter uma ideia de quão grande é a quantidade de dados que somos capazes de processar hoje, basta dizer que os primeiros computadores dos anos sessenta como o ENIAC foram capazes de armazenar cerca de dez bytes, enquanto hoje, em média, um usuário doméstico tem uma capacidade de 1 terabyte (a milésima parte de um petabyte) em seu computador, 460 terabytes são todos os dados climáticos digitais da Terra, 530 terabytes são todos os vídeos contidos no sistema de transmissão internet YouTube, e 1 petabyte de dados é processado a cada 72 minutos pelos server do Google, o popular mecanismo de busca da Internet (ANDERSON , 2008, p. 106).

[5] O assunto é vasto e complexo para ser discutido em detalhe nesse texto. Para mais detalhes, ver BENANTI, 2020.

[6] Pense em fenômenos como fake news, o surgimento do sharp power, os eventos no Capitólio ou o Brexit, na esfera pública, ou como o digital está moldando as expectativas e os modos de relações românticas com plataformas e modalidades nunca antes vistos, para citar apenas alguns exemplos.

[7] A tradução é minha.

[8] A tradução é nossa. Aristóteles introduziu a teoria sobre as causas em Física II 3-7, Metafísica Δ 2, Metafísica A 3-10 e Analítica Posterior II 111. Ela tem sido objeto de muito debate desde o início. A importância da teoria de Aristóteles sobre as causas se deve principalmente ao fato de que, a partir dela, podemos falar de conhecimento quando podemos dar conta dos princípios e causas que desempenharam um papel na ocorrência de um determinado evento.

[9] Com Sebastiano Maffettone escrevemos um artigo sobre sustentabilidade digital, publicado em Il Mulino, v. 2, 2021.