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Pentateuco

Sumário

Introdução

1 O Livro do Gênesis

2 O Livro do Êxodo

3 O Livro do Levítico

4 O Livro dos Números

5 O Livro do Deuteronômio

6 Considerações finais

7 Referências bibliográficas

 Introdução

O Pentateuco, contendo os primeiros cinco livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), funciona como uma “locomotiva” que, ao invés de puxar, empurra e faz avançar todo o Antigo Testamento. Nesses livros se encontram os fundamentos normativos e pedagógicos da trajetória histórica do antigo Israel, sob a condução de um grande líder e protagonista humano ao lado de Deus: Moisés. Os cristãos, além de herdar o Pentateuco, também herdaram a ideia de “locomotiva” que está presente na dinâmica normativa e pedagógica dos cinco primeiros livros (Mateus, Marcos, Lucas, João e Atos) que empurram e fazem avançar o Novo Testamento sob a condução do verdadeiro Deus e verdadeiro Homem protagonista de toda a História da Salvação: Jesus Cristo.

Os livros do Pentateuco constituem um conjunto que reuniu várias tradições e são tidos, por judeus e cristãos, como a herança que Moisés deixou para todo o povo eleito. Na tradição judaica, os cinco primeiros livros são chamados de Torá (“lei-instrução-ensinamento”). As versões latinas, em particular a Vetus Latina e a Vulgata, adotaram a nomenclatura grega (Pentáteuchos = “cinco rolos” ou “cinco invólucros/estojos”) que passou para as versões modernas das Bíblias em línguas vernáculas. Por isso, esses livros são chamados de Pentateuco na tradição cristã.

A divisão atual em cinco livros, no dizer dos judeus: “cinco quintos da Torá” (hamišā humšê hatōrâ), de onde deriva a tradução grega Pentateuco, é uma divisão muito prática. Os judeus, ao invés de um único rolo de pergaminho, preferiram cinco rolos menores, mais fáceis de serem manuseados, transportados, conservados e reescritos quando se fazia necessário.

Em hebraico, cada uma das cinco partes, ou “rolos”, do primeiro corpus literário da Bíblia, é designada pela primeira palavra importante do seu texto: berēšît (“no princípio”); shemôt (“nomes”); wayyiqrā’ (“e chamou”); bemidbar (“no deserto”); haddebārîm (“as palavras”). Já os judeus, residentes em Alexandria e responsáveis pela tradução grega das Escrituras, designaram esses livros com nomes que, de algum modo, fossem capazes de ajudar a lembrar o conteúdo de cada livro: Génesis (Gênesis), porque trata das origens do mundo, das criaturas, do ser humano e dos antepassados do antigo Israel; Éxodos (Êxodo), porque trata da saída do Egito; Leuitikón (Levítico), porque trata da legislação relativa a tudo que envolve o culto; Arithmoi (Números), porque trata do recenseamento dos filhos de Israel no deserto; Deuteronómion (Deuteronômio), porque trata da “segunda lei” ou da “cópia da lei” (cf. Dt 17,18), que Moisés deu aos filhos de Israel nas planícies de Moab, antes de entrarem na terra prometida, e que completariam as prescrições recebidas no Sinai.

A divisão em cinco quintos não foi casual, mas foi realizada criando pontos de ruptura e de sutura entre o final e o início de cada livro. O gráfico abaixo permite uma visualização mais clara dessa afirmação. Início e final de cada livro se correspondem. A dupla promessa, a da descendência numerosa e a da terra boa e fértil, é um fio condutor importante. As citações não são exaustivas, mas apenas exemplos.

Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio
Gn 1,1

Gn 3,15 sinal de esperança

Ex 1,8

Inicia com José

Lv 1,1

Inicia com a Tenda

Nm 1,1

Inicia com a Tenda

Dt 1,1-5

Inicia com Moab

Promessa da prole numerosa

Gn 1,26-28

Gn 9,1.6-7

Gn 15,5

Gn 16,10

Gn 17,2.20

Gn 22,17

Gn 47,27

Gn 48,4

Promessa da prole numerosa

Ex 1,7.10.12.20

Ex 32,13

Promessa da prole numerosa

Lv 26,9

Promessa da prole numerosa

Nm 26,54

Nm 33,54

Nm 35,8

Promessa da prole numerosa

Dt 1,10

Dt 6,3

Dt 7,13

Dt 8,1.13

Dt 11,21

Dt 13,18

Dt 28,63

Dt 30,5.16

Terra prometida

Gn 12,7

Gn 15,7.18

Gn 24,7

Gn 26,3

Gn 48,4

Gn 50,24

Terra prometida

Ex 3,8.17

Ex 6,4

Ex 13,5.11

Ex 32,13

Ex 33,1.3

Terra prometida

Lv 14,34

Lv 18,3

Lv 20,24

Lv 25,24.38

Terra prometida

Nm 13,2.17.32

Nm 14,8.23

Nm 15,2

Nm 16,14

Nm 32,11

Nm 34,2

Terra prometida

Dt 1,35

Dt 3,18

Dt 9,4

Dt 10,11

Dt 26,9

Dt 34,4

Temas centrais:

Origens (criação, queda, restauração)

Patriarcas:

(Abraão, Isaac e Jacó)

Temas centrais:

Servidão

Libertação

Êxodo

Marcha

Sinai

Temas centrais:

Sacrifícios

Rituais

Funções sacerdotais

Temas centrais:

Recenseamento

Marcha pelo deserto: de Cades Barnea às estepes de Moab

Temas centrais:

No dia da morte de Moisés: discursos e instruções;

Bênçãos e Maldições

Gn 50,26

termina com José

Ex 40,34-35 termina com a Tenda Lv 27,34

termina com a Tenda

Nm 36,13

termina com Moab

Dt 34,1-12

termina com Moab

A principal questão disputada e que empenha grande número de estudiosos do Pentateuco se concentra na compreensão do seu difícil processo de formação. Para uma visão mais ampla e aprofundada da problemática (RÖMER – MACCHI – NIHAN: 2010, p.85-143). Resulta útil uma comparação do tópico “Composição literária” na introdução ao Pentateuco da antiga (1973) e da nova (2002) edição da Bíblia de Jerusalém.

Segue-se, apenas, uma breve síntese do problema sobre o processo de formação:

Ponto de partida: 1) hipótese dos Documentos: na base do Pentateuco se percebem duas, três ou mais tramas narrativas contínuas (“fontes” ou “documentos”) que foram redigidas em épocas diferentes e com ideologias diferentes. No final, teriam sido justapostas ou imbricadas umas às outras por redatores sucessivos. 2) hipótese dos Fragmentos: é uma reação à hipótese anterior; supõe que tenha existido, originalmente, um número indeterminado de relatos esparsos e de textos isolados sem alguma continuidade narrativa. Estes teriam sido reunidos ulteriormente por um ou vários redatores-compositores. 3) hipótese dos Complementos: tentativa de conciliar os dois precedentes, admitindo que, inicialmente, houve uma trama narrativa básica e contínua que, ao longo dos séculos, recebeu acréscimos e complementos.

Por quase um século, prevaleceu o modelo dos Documentos-Fontes (J. Wellhausen; G. Von Rad; M. Noth; H. Gunkel). Este explicava a origem do Pentateuco pela fusão de quatro documentos que tiveram origem independente: Javista (“J”) do século X aC, oriundo no reino do sul; Elohista (“E”) do século VIII aC, oriundo no reino do norte; Deuteronomista (“D”) do século VII aC, oriundo no reino do sul; Sacerdotal (“P”) dos séculos VI-V aC, iniciado com exilados na Babilônia e concluído em Jerusalém.

Desde os primórdios, este modelo interpretativo recebeu muitas críticas, e a partir de 1970 foi fortemente abalado, sendo retomado, em grande parte, o modelo dos Fragmentos com uma nova configuração (R. Rendtorff; E. Blum). Segundo esse modelo, a primeira coisa a fazer é abandonar, peremptoriamente, o modelo dos Documentos-Fontes, e retomar os estudos partindo das grandes unidades literárias (Gn 1–11; 12–50; Ex 1–15; 19–24; 16–18 + Nm 11–20; Nm 21–36). O Pentateuco, então, resultaria de trabalho redacional, mas principalmente de duas composições: uma sacerdotal (KP) e uma deuteronomista (KD), ambas pós-exílicas.

Diante do conturbado momento e dos impasses das pesquisas, outros estudiosos (P. Weimar; E. Zenger) têm se voltado para o que restou do modelo dos Documentos-Fontes e do que resultou das novas pesquisas do modelo dos Fragmentos. De certa forma, é uma retomada do modelo dos Complementos, pelo qual se tenta formular uma compreensão do processo de formação do Pentateuco, considerando que é possível admitir uma historiografia pré-exílica no início do século VII aC. (“Obra Jerusalimitana de História”), que foi ampliada por mãos leigas, durante o exílio na Babilônia (“Obra Exílica de História”) e reinterpretada por mãos sacerdotais (“Obra Sacerdotal de História”), imediatamente após o exílio, pelos que regressaram em 520 aC para restaurar o templo de Jerusalém. Finalmente, essas duas obras (ampliadas e reinterpretadas) foram fundidas na segunda metade do século V aC (“Grande Obra pós-exílica de História), resultando numa obra muito ampla e abrangente: de Gênesis a Reis (Eneateuco). Dessa obra, o escriba e sacerdote Esdras separou os cinco primeiros livros e os promulgou como Torá, marcando o surgimento da nova forma religiosa, judaísmo, no momento em que se criava a Província persa de Judá. Com a separação, surgiu um novo bloco de livros: Josué – Reis que recebeu mais tarde a denominação de Profetas anteriores.

No momento, não há um consenso entre os estudiosos e não surgiu um novo modelo capaz de se impor como aconteceu com o modelo dos Documentos-Fontes. O Javista e o Elohista, por exemplo, que eram considerados “fontes” são denominados de tradições. Ultimamente, prefere-se trabalhar apenas com a leitura sincrônica e explicar os textos a partir da sua forma final e canônica. É uma operação válida, mas existem muitas questões diacrônicas que não podem ser ignoradas e exigem a combinação de ambos os procedimentos metodológicos.

1 O livro do Gênesis

Este livro aborda temas universais: trata das origens do mundo, do surgimento do ser humano, do seu pecado e desventuras. Este contexto serviu para introduzir a história dos antepassados de Israel, segundo uma dinâmica familiar, falando da história que se desenvolve com Abraão, Isaac, Jacó e José. Este é o elo entre o final do Gênesis e o início do Êxodo. As “histórias” dos antepassados são ciclos narrativos que, inicialmente, tiveram origem independente e só mais tarde foram unificados, servindo de fundamento para se falar das origens do antigo Israel.

O livro pode ser dividido em dois grandes blocos: Gn 1–11 e Gn 12–50.

Gn 1–11 é, comumente, chamado de “História Primeva”, porque seu conteúdo é universal e retrata os primórdios da humanidade. Estes onze capítulos são narrações amalgamadas, inspiradas nas mitologias mesopotâmicas, nas quais se objetiva fazer uma reflexão e dar uma explicação teológica sobre as origens do ser humano, apoiada em dois pilares: a) Quem é Deus e o seu agir: justo e fiel à sua criação, em particular ao ser humano; b) Quem é o ser humano e o seu agir: infiel na sua relação com Deus e com o seu semelhante. Ao lado disso, figuram as principais instituições humanas (o matrimônio, as línguas, as divisões étnicas, as culturas de subsistência, a elaboração dos metais, o confronto entre o campo e o urbano), e o seu caminho rumo à concretização do seu destino.

A perspectiva universalista presente em toda a narrativa serve de fundamentação para a história do antigo Israel, que, a partir da vocação de Abraão, encontra-se inserida no contexto da história humana universal. Esta, por sua vez, está inserida no relato da criação do mundo, qual ambiente favorável para o surgimento e desenvolvimento da raça humana. O tema principal e dominante de Gn 1–11 é o da origem de todas as coisas pelas mãos de um Deus único que fez, dispôs e mantém a sua criação como previdente e providente. Ao lado do tema principal, a narrativa quer mostrar como o ser humano, pelo pecado dos seus progenitores (cf. Gn 3,1-24), está cada vez mais se distanciando de Deus criador e de seu plano de amor.

O relato do dilúvio (cf. Gn 6,5–9,17), por exemplo, serve para avolumar a condição humana após o pecado, mas segundo dimensões cósmicas que, desde o início, demonstram que apenas Deus pode criar e destruir o mundo. É um modo para denotar o domínio divino e para dizer que o ser humano não tem a última palavra sobre a realidade. A destruição da humanidade no caos de um dilúvio com proporções universais tem a ver com as proporções universais que foram desencadeadas pela desobediência dos progenitores da humanidade. De algum modo, o dilúvio fez a criação voltar à precedente situação das origens, mas permitiu que tudo tivesse um novo início com Noé, a sua família e os animais salvos na arca. Com isso, chega-se à intenção principal: a vocação e a missão de Abraão, pelas quais o antigo Israel surge e se torna um povo.

Gn 11,27–50,26 descreve as origens do antigo Israel, mostrando como Deus criou e elegeu este povo através da realização do seu favor aos antepassados, dando-lhes um novo destino humano com a promessa da descendência numerosa e da terra boa e fértil. Abraão, Isaac, Jacó e José representam quatro gerações que vêm de um novo e justo cepo humano, pois são os descendentes de Set (cf. Gn 4,25-26), o filho que Eva deu à luz para não apenas ocupar o lugar de Abel, mas denotar que o mal não terá a última palavra sobre o bem.

Na segunda parte do livro do Gênesis, encontram-se três ciclos de tradições familiares: Abraão e Sara (cf. Gn 11,27–25,18); Jacó e seus filhos (cf. Gn 25,19–36,43); José e os seus irmãos (cf. Gn 37,1–50,26). A narrativa sobre Isaac não constitui um ciclo em si, mas é o elo forte entre Abraão e Jacó, respectivamente o elo entre as tradições patriarcais de Judá (Abraão) e de Israel (Jacó). Isaac é este elo pelo qual se garantiu da posse da terra, visto que o segundo patriarca nunca deixou a terra de Canaã para morar em uma terra estrangeira.

A reconstrução das etapas que deram origem aos textos autográficos é algo impossível de ser alcançada, devido à ausência de fontes extrabíblicas que coadunem com os relatos bíblicos. É preciso admitir que o livro do Gênesis tenha passado por um longo processo de redação e que grande parte do seu conteúdo situa-se melhor durante o exílio vivido na Babilônia ou, até mesmo, no pós-exílio, durante a dominação persa, quando muitas tradições do antigo Israel alcançaram a sua redação final.

As tradições javista e eloísta, alvo de grandes questionamentos nos últimos trinta anos, podem ser admitidas como reelaborações de poemas épicos, originalmente orais, numa forma de prosa escrita. O redator final, provavelmente sacerdotal, organizou o material em amplos blocos, usando uma fórmula: “estas são as gerações de…” (tôledôt). Essa fórmula introduz o material tradicional e ocorre cinco vezes na história das origens (cf. Gn 2,4; 5,1; 6,9; 10,1; 11,10) e cinco vezes na história dos antepassados do antigo Israel (cf. Gn 11,27; 25,12; 25,19; 36,1.11; 37,2), servindo de pontos de ligação e guia geral das narrativas que compõem os dois blocos que formam o livro do Gênesis.

2 O livro do Êxodo

Este livro tem o seu foco principal na saída dos filhos de Israel da terra do Egito e na sua marcha pelo deserto até chegar ao monte Sinai, no qual Deus selou uma aliança com o povo liberto, tornando-o a sua propriedade peculiar (cf. Ex 19,5).

Estes três momentos centrais do livro do Êxodo constituem a base em torno da qual os outros livros do Pentateuco se relacionam. Assim, as histórias primitiva (Gn 1–11) e patriarcal (Gn 12–50) servem de premissas para justificar: a entrada e a saída do Egito dos filhos de Israel (Ex 1,1–15,21), a marcha deles pelo deserto (Ex 15,22–18,27), a chegada e a permanência deles no Sinai (Ex 19,1–Nm 10,10); também servem para mostrar que os libertos, recebendo as leis e os preceitos divinos, se tornaram a propriedade particular de Deus (Levítico). Livres e com uma legislação justa, os filhos de Israel retomam a marcha pelo deserto para, chegando às estepes de Moab e após conquistar os territórios da Transjordânia, entrar e conquistar a terra de Canaã (Nm 10,11–Dt 34). Com isso, mostra-se a continuidade entre os temas da promessa e da realização da descendência numerosa com o tema do dom da terra.

O livro do Êxodo, como o livro do Gênesis, também pode ser dividido em dois blocos, que giram em torno de dois eixos: narrativo e legislativo. 1) Ex 1,1–15,21: opressão dos filhos de Israel, vocação, missão de Moisés e libertação do Egito; 2) Ex 15,22–40,38: marcha pelo deserto, chegada e permanência no monte Sinai, e diversas prescrições sobre a tenda-santuário e os ministros do culto.

A saída do Egito é o marco inicial e constitutivo do antigo Israel como povo da aliança. A libertação do Egito é o fundamento da fé desse povo, porque por ela experimentou e passou a conhecer Deus como libertador e forte aliado frente a todas as formas de opressão. A libertação foi narrada como maravilhosa, evidenciando que o Deus que liberta é o mesmo que domina toda a criação.

A experiência da libertação lançou as bases para a religião de Israel. Essa é fruto da ação de Deus e nasce do evento narrado como êxodo do Egito. Assim, a aliança que acontece no sopé do Sinai adquire forma institucional. Nela se baseia a ética dos libertos, tanto na esfera social como cultual. Israel, experimentando e se reconhecendo como povo resgatado, passou a ter as condições necessárias para colocar em prática a promessa feita a Abrão (cf. Gn 12,1-3).

O livro do Êxodo, pelo exemplo e testemunho salvífico que contém, se torna um critério capaz de compreender a salvação não como um conceito, mas como uma proposta de vida do ser humano com Deus. A aliança do Sinai expressa um novo sentido para as relações de comunhão que devem existir entre Deus e a comunidade dos libertos.

A experiência de fé que, segundo Gn-Ex, aconteceu com os antepassados (Adão, Noé, Abraão, Isaac, Jacó e José) e com Moisés, motivou a nova experiência libertadora e lançou as bases para as subsequentes experiências narradas nos livros posteriores, em torno de Josué, Samuel, Davi, Ezequias, Josué e o novo Israel, que renasceu do exílio na Babilônia e assumiu uma nova configuração religiosa com o judaísmo.

O segundo livro do Pentateuco é fruto tanto da composição a partir de diversas tradições sobre a saída do Egito e o tempo do deserto, como, em particular, da reflexão sobre a experiência vivida no exílio na Babilônia. Por isso, a redação final pode ser colocada entre os séculos VI-V aC.

 3 O livro do Levítico

Este livro refere-se ao culto a ser realizado pela tribo de Levi, escolhida para os serviços da tenda-santuário que foi armada por ordem de Deus, que dela tomou posse (cf. Ex 40,34-38) passando a habitar no meio do seu povo. A posição literária no corpus do Pentateuco pode ser considerada estratégica, pois está exatamente no centro, que, por sua vez, tem o seu epicentro na Lei da Santidade. Esta posição insere-se na dinâmica do povo que de Ex 19,1 a Nm 10,10 permaneceu no Sinai, recebendo as condições necessárias de uma vida com Deus, antes de retomar a marcha pelo deserto, a fim de entrar e conquistar a terra prometida.

O livro contém basicamente material de índole legislativa, com algumas partes narrativas (cf. Lv 8–9; 10,1-5; 24,10-14.23). A vida cotidiana é o berço das leis que regulamentam a vida social, política, religiosa e cultural do antigo Israel em formação para tomar posse da terra de Canaã. Neste sentido, ao entrar e tomar posse da terra, o antigo Israel já se encontraria orientado por normas, estatutos, decretos e leis que dele fariam um povo particular dentre os demais povos (cf. Dt 4,35-40). Uma formação normativa advinda no deserto servia para garantir a permanência do povo na terra após a sua conquista e instalação.

O livro pode ser dividido em cinco partes, considerando a natureza dos textos: 1) Prescrições sobre os sacrifícios (Lv 1−7): elenco dos diversos tipos de sacrifícios que agradam a Deus e são executados pelos ministros autorizados; 2) Investidura dos sacerdotes (Lv 8−10): normas sobre o ofício dos que descendem de Levi a partir de Aarão e de seus filhos. Esses são os que tornam possível o acesso de todo o povo a Deus através do culto; 3) Prescrições sobre o puro e o impuro (Lv 11−16): elenco de animais, pessoas e situações que podem comprometer a pureza da comunidade de fé. Se essa é comprometida, a solução é um ritual de expiação que acontece uma vez por ano e concede a todo o povo o perdão e a reconciliação com Deus; 4) “Código” da Santidade (Lv 17−26): sublinha o aspecto positivo das coisas e das pessoas ligadas ao culto. Tudo deve ser santo como Deus é santo; 5) Apêndice ao “Código” da Santidade (Lv 27): tudo que pode ser oferecido, pessoas e bens, pode ser consagrado por um voto, mas só pode ser retomado, quando possível, pelo valor estipulado. Apenas o que fora votado ao anátema não podia ser resgatado. A dinâmica que anima estas cinco partes é bem clara: o Deus Santo só pode ser devidamente cultuado por um povo que lhe corresponda em santidade (cf. Lv 19,2).

Do ponto de vista da formação do livro, nota-se que nele estão contidas muitas leis antigas e recentes. As leis mais antigas podem derivar de um período no qual o antigo Israel ainda não possuía um culto e um templo únicos. Elas foram se consolidando e recebendo atualizações nos santuários locais, até que as mais recentes fossem incluídas pelo grupo proveniente da diáspora, que regressou para Judá durante o período persa com a finalidade de reconstruir a cidade de Jerusalém e nela retomar o culto sacrifical.

Assim, o material que no livro aparece como derivado da ação mediadora de Moisés faz parte, essencialmente, da tradição Sacerdotal que remonta ao seu fundador. A grande pretensão desse livro é predispor o povo para receber a presença de seu Deus em um ambiente de certa forma caracterizado pela sua ausência (Jerusalém destruída pelos babilônios). Como um manual, o livro do Levítico autentica a existência e regulamenta a prática do ofício sacerdotal. Responsáveis pela santidade do culto ao Deus único e Santo, os sacerdotes protagonizam os atos que realizam a santidade do povo.

 4 O livro dos Números

Este livro completa algumas leis que não entraram nos dois livros precedentes e descreve alguns fatos que se deram na segunda etapa da peregrinação do povo pelo deserto. Dessa forma, o período do Sinai e o período do deserto se tornaram os momentos singulares para a recepção da legislação do antigo Israel. Apesar disso, não se encontra no livro dos Números uma lógica coerente e clara como nos livros do Gênesis e do Êxodo.

Moisés, que já havia mediado a aliança e feito erguer a tenda-santuário, recebeu a ordem de contar os homens aptos para a guerra, para, então, fazer o povo deixar o monte Sinai, retomar a caminhada e prosseguir na direção da terra prometida. Assim foi feito, mas pela falta de confiança em Deus a geração que deixou o Egito não entrou na terra e, ao longo de quase quarenta anos, o povo teve que vaguear e enfrentou diversos tipos de dificuldades antes de começar a conquistar os territórios da Transjordânia, tomando posse da terra de Seon, rei dos amorreus, e de Og, rei de Basã (cf. Nm 21,33-35; 32).

Nota-se que o livro dos Números contém elementos narrativos e legislativos. O conteúdo pode ser apresentado em duas partes: 1) Israel se prepara para deixar o Sinai e seguir na direção da terra prometida (cf. Nm 1,1–10,10); 2) A marcha do Sinai até o Jordão (cf. Nm 10,11–36,13). Esta segunda parte, porém, pode ser subdivida em duas etapas. Na primeira, Israel chega diante da terra prometida, explora o território, mas não toma posse. Por isso, deve vaguear pelo deserto (cf. Nm 10,11–21,20). Na segunda, Israel começa a conquista dos territórios da Transjordânia na terra de Moab (cf. Nm 22,21–36,13).

No conjunto deste livro há muitas revoltas mencionadas, o que deu ocasião para qualificar Moisés ainda mais, que aparece no seu importante papel de mediador e é apresentado como o mais humilde dos homens (cf. Nm 12,3). Devido às grandes resistências que sofreu, foi reconhecido como profeta e homem de Deus (cf. Nm 12,6-8), servo íntegro na sua fé em Deus (cf. Nm 10,29-32) e no seu amor para com o povo (cf. Nm 11,2.10-15; 21,7). Sobressai, então, o seu papel como intercessor em favor do povo, apesar dos seus pecados (cf. Nm 11,27-29; 12). Apesar disso, o livro não oculta as fraquezas de Moisés: recusa-se a interceder diante de uma rebelião de um grupo de levitas (cf. Nm 16,15); titubeia na hora de executar uma ordem de Deus (cf. Nm 20,10-12) e fica abatido pelo peso da missão (cf. Nm 11,11-15).

Um elemento central no livro dos Números é o fator transição: a antiga geração, que deixou o Egito, morreu no deserto (Nm 1,1–21,9) para que desse lugar à nova geração que tomou posse da terra prometida (Nm 26,1–36,13). Apenas Josué e Caleb, com suas famílias, foram preservados pela fidelidade à ordem dada para conquistar a terra (cf. Nm 14,6-9). Entre essas duas gerações encontra-se o curioso ciclo de Balaão, que serviu para mostrar a total e livre disposição de Deus ao eleger e abençoar Israel (cf. Nm 22,2–24,25). Outra transição importante é a geográfica: do Sinai, pelo deserto, às estepes de Moab. As primeiras conquistas lançaram as bases para os futuros acontecimentos, depois da travessia do  Jordão.

O livro dos Números não é homogêneo quanto ao material usado na sua elaboração. As “fontes históricas” que serviram de base para a formação deste livro possuem por certo um desenvolvimento longo e complexo. É plausível que o livro tenha adquirido a sua forma final entre os séculos VI-V aC, respectivamente durante ou após o exílio babilônico. É possível pensar que “a mão final do livro” percebeu que a vida do povo durante a diáspora-exílio na Babilônia possuía uma analogia estreita com o período em que o povo eleito vagou pelo deserto. Assim, as antigas tradições sobre o tempo em que o povo viveu no deserto foram reinterpretadas segundo uma nova ótica e um novo contexto literário. Parte do material é de tradição sacerdotal, facilmente identificável pelo estilo, vocabulário e interesses (legislativo). Parte do material não provém de círculos sacerdotais, principalmente as partes narrativas (Nm 11–25; 33). Disso resultam as tensões presentes no livro. Muito provavelmente, porém, a versão final ficou nas mãos dos círculos sacerdotais e teria sido o último livro do Pentateuco a chegar à sua forma final e canônica, durante o período persa, no final do século V aC.

 6 O livro do Deuteronômio

O último livro do Pentateuco inicia com a voz do narrador que, por sua vez, já está do outro lado do Jordão, isto é, do lado da terra prometida (Cisjordânia). Por conseguinte, o que narra olha para o outro lado do Jordão (Transjordânia), onde esteve o povo e seu líder, nas planícies de Moab, diante de Jericó (Dt 1,1.5; Dt 34,1). A totalidade do livro, porém, aparece como sendo um longo discurso de Moisés que se dá, inclusive, no mesmo dia da sua morte na terra de Moab, após ter contemplado toda a terra que Deus dispôs dar para o seu povo (cf. Dt 34,1-12). Assim, o livro foi concebido como o testamento que Moisés, antes de morrer, deixou ao seu povo que estava prestes a entrar e tomar posse da terra prometida. Neste testamento está a exigência da fidelidade, sem a qual o povo não permanecerá na terra. Tudo o que Moisés fez e ensinou deve ser colocado em prática, para que se prolongue a vida na terra prometida.

O livro pode ser dividido em introdução, três discursos de Moisés, a bênção dele sobre o povo e a conclusão, na qual se narra a morte de Moisés e se anuncia Josué como seu sucessor na condução do povo. A introdução, que se liga ao final do livro dos Números pelo fato dos filhos de Israel estarem acampados nas estepes de Moab, orienta todo o conteúdo ao dizer: “estas são as palavras que Moisés dirigiu a todo o Israel” (Dt 1,1-5). Os três discursos são iniciados por uma fórmula que lembra a usada na introdução: “estas são as palavras”, abrindo o primeiro discurso (Dt 1,6–4,40); “esta é a Torá”, abrindo o segundo discurso (Dt 4,41-49; 5,1–28,68); “estas são as palavras da aliança”, abrindo o terceiro discurso (Dt 28,69–32,52). Segue-se a bênção, introduzida pela frase “esta é a bênção” (Dt 33) e o livro termina com a narrativa da morte de Moisés (Dt 34). O livro, aberto com as palavras de Moisés a todo o Israel, termina com todo o povo pranteando a morte do seu incomparável líder.

No livro do Deuteronômio, importantes temas teológicos se destacam: a saída do Egito, a aliança de Deus com o povo e a gratuita eleição deste; o dom da terra; o dom da lei; a centralidade do lugar único de culto. Transparece que o livro, no seu conjunto, é uma síntese teológica dos principais fatos que foram assumidos das tradições e se encontram narrados de Gênesis a Números. As várias referências aos patriarcas e à saída do Egito permitem que o tecido da narrativa prossiga na direção do grande objetivo: entrar e tomar posse da terra prometida. O conteúdo dos discursos de Moisés visa alertar os filhos de Israel sobre as seduções que encontrarão diante de si depois que entrar e tomar posse da terra. Por isso, o tom dos discursos é exortativo. É dito o que se deve fazer e o que se deve evitar. A lei-instrução de Moisés é o parâmetro.

Um marco formal característico no livro encontra-se na alternância entre os destinatários das exortações de Moisés, ora apresentados pela segunda pessoa do singular “tu”, ora na segunda pessoa do plural “vós”. Apesar de Moisés protagonizar a fala na primeira pessoa, há, também, interrupções que falam de Moisés na terceira pessoa (cf. Dt 4,41–5,1a; 27,1a; 28,69; 29,1). O forte fundo mosaico está presente tanto nos discursos como no “Código Deuteronômico” (cf. Dt 12–26*). Entretanto, a origem do livro não remonta à época de Moisés e a sua forma final precisa ser colocada em um período mais tardio, pelo século V aC. Admite-se que o livro tenha passado, provavelmente, por três etapas: pré-exílica, exílica e pós-exílica. Nessas três etapas, contribuíram diferentes mãos: profética, sacerdotal e sábios da corte.

 7 Considerações finais

O Pentateuco é considerado a constituição do antigo Israel em forma de história da salvação. O que aconteceu em relação ao antigo Israel, do ponto de vista da narrativa, é obra divina. A criação do mundo é o seu ponto de partida e a conquista da terra prometida é o seu ponto de chegada. Este itinerário é um percurso modelar da fé que vai da expulsão do paraíso à entrada no fértil Egito (Gênesis), e da saída deste, sob a condução de Moisés pelo deserto, até entrar na terra boa e fértil, terra em que correm leite e mel (Êxodo–Deuteronômio). Em meio à trama narrativa, uma extensa e diversificada legislação aparece distribuída em longos trechos dos livros do Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

Os livros que formam o Pentateuco evidenciam e traçam, para o ouvinte-leitor, uma história continuada, que vai das origens do mundo e dos antepassados de Israel – Abraão, Isaac, Jacó e José – até a morte de Moisés diante da terra prometida. Esta trajetória pode ser memorizada através das principais etapas: história das origens do mundo, do homem, do pecado; história dos patriarcas (Gênesis); escravidão e êxodo do Egito; marcha pelo deserto até o Sinai; aliança no Sinai; pecado de idolatria na confecção do bezerro de ouro; renovação da Aliança; determinação e normas para erguer a tenda-santuário; legislação sobre a conduta do povo e regras sobre o puro e o impuro; recenseamento do povo; retomada da marcha pelo deserto; bênção ao povo pela boca de Balaão; conquista dos territórios da Transjordânia (Êxodo–Números); recapitulação da história para firmar o povo na liberdade que recebeu como dom de Deus; diante de si, o povo tem a possibilidade de receber as bênçãos, pela obediência, e as maldições, pela desobediência (Deuteronômio).

Estas etapas se encontram em forma de sínteses em Js 24,1-10 e bem completa em Ne 9,5-23. Também em diversos Salmos de índole histórica as etapas são lembradas. Tudo isso para que o povo sempre se recordasse de cantar as maravilhas que Deus operou em seu favor (Sl 78 [77]; 105 [104]; 106 [105]; 135 [134]; 136 [135]).

Portanto, o Pentateuco atesta o dom gratuito de Deus, pela forma como conduz os eventos salvíficos a favor do seu povo, principalmente pela sua ação libertadora do Egito, pela celebração da aliança do Sinai, pela manifestação da sua misericórdia ao perdoar a grave falta do povo que elegeu um bezerro de ouro como seu Deus (cf. Ex 34,1-9) e, finalmente, por introduzir o povo na terra prometida. Nessa dinâmica histórica, o Pentateuco mostra que Deus, após eleger Abraão e ter permitido que Jacó se transferisse para o Egito, não esqueceu e muito menos deixou os descendentes dos patriarcas em terra estrangeira. A razão aparece nas alusões às promessas feitas. A libertação foi forçada porque houve opressão desmedida e cruel, ao lado da intransigente resistência do faraó que levou o seu povo e o seu país ao caos. Com isso, evidencia-se a grande característica de Deus: é fiel à sua palavra. Este é o fundamento da fé e o critério da verdade salvífica que o Pentateuco quer transmitir. O ser humano não só pode como deve confiar a sua vida nas mãos do Deus que cria, liberta e mantém a vida no deserto, onde ela não poderia existir e muito menos prosperar. É o que o Pentateuco testemunha e transmite em forma de lei e instrução.

Leonardo Agostini, PUC Rio – Original português

 7 Referências Bibliográficas

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Os leigos na missão da Igreja

Sumário

1 Questões introdutórias

2 Os leigos: sua identidade eclesial

3 Os leigos: sua vocação e missão

4 Conclusão

5 Referências bibliográficas

1 Questões introdutórias

O Concílio Vaticano II definiu toda a Igreja como missionária. Nesta dimensão do todo, evidencia-se de maneira mais forte e com um tom totalmente novo aqueles e aquelas que são denominados leigos, e que agora, de modo mais expressivo e fundamentado, assumem um papel preponderante na missão de toda a Igreja. Vale destacar que essa é uma visão que se renova, pois a tradição eclesial que chega até o Concílio arrasta para o termo leigo uma conotação amplamente negativa, construída social e culturamente, mas também eclesiologicamente, já que a visão de leigo que se tinha antes era marcadamente passiva e submissa, sem autonomia e sem qualquer independência no seu modo de ser e fazer Igreja. Culturamente, o leigo era visto como aquele que não sabe, que não compreende, que não é preparado para exercício de uma função na missão de toda a Igreja. Eclesiologicamente, o leigo era visto de maneira passiva e submissa à hierarquia eclesiástica, sendo tratado, muitas vezes, de modo inferior (KUZMA, 2015, p.528-31). Essa definição se apoia na nova compreensão eclesiológica que se firma com o Concílio Vaticano II, que apresenta a Igreja como Povo de Deus, na qual todos os batizados têm parte importante e constitutiva na sua missão, garantidos por algo que é comum a todos e que vem de uma experiência fundante: o batismo – que une cada fiel a Cristo e o torna membro ativo do corpo eclesial. Pelo batismo, todos são Igreja, o que garante aos leigos uma nova identidade e uma nova percepção da sua vocação e missão.

A Igreja do Vaticano II se compreende como communio, reproduzindo em seu estado visível e histórico um reflexo da comunhão trinitária (KASPER, 2012, p. 256-7). Ninguém e/ou nenhuma vocação ocupam o centro da Igreja, pois apenas Cristo é o centro. Ele é o fundamento de onde a Igreja nasce e vive na força do seu Espírito, e assim caminha, de modo peregrino, rumo à consumação do plano do Pai (LG 48). Ao redor de Cristo e do mistério que o envolve circulam os diversos ministérios, enriquecidos com dons e carismas, fazendo-se tocar e definir pelo mesmo mistério, e que colaboram e cooperam entre si para a edificação do corpo e para o serviço desta Igreja no mundo: o anúncio e a vivência do Reino de Deus.

Dessa forma e nessa nova concepção, os leigos são compreendidos (e inseridos) na missão de toda a Igreja com uma especificidade que lhes é própria e que lhes permite atuar em questões internas da Igreja (ad intra) e/ou em questões externas (ad extra), no mundo e nas realidades que se encontram, sem exclusivismos. Sobre isso, afirma Bruno Forte: “Todos são corresponsáveis, tanto no âmago da vida eclesial, quanto na relação com o mundo; empenhados em pôr os próprios dons a serviço, onde quer que o Espírito suscite a ação de cada um, em uma relação articulada e dinâmica entre os vários ministérios e carismas” (FORTE, 2005, p.43). Cabe a toda a Igreja, portanto, na responsabilidade que lhe é conferida, despertar a vocação e missão dos leigos, alimentando-a e fortalecendo-a em todo o seu agir, respeitando a sua autonomia e especificidade, promovendo sempre a comunhão.

2 Os leigos: sua identidade eclesial

A identidade eclesial dos leigos é garantida pelo batismo. Eis aí o ponto primário que une os leigos a todos os fiéis, garantindo a eles e a todos a mesma dignidade, o que também os habilita em missão e os distingue em vocação, naquilo que é específico no seu modo de ser e de manifestar/vivenciar a sua fé. O batismo oferece a todos um novo modo de existir: “o existir cristão” (BINGEMER, 1998, p.32). Este sacramento – fundante e único para a vida cristã – confere a eles e a todo o povo de Deus a marca do ser cristão e incorpora todos os fiéis a Cristo, despertando, em graça, a vocação e a missão de cada um. Afirmamos: 1) pelo batismo todos são unidos a Cristo; 2) pelo batismo todos são chamados à missão; 3) pelo batismo todos são Igreja; e, por essa razão, oferecem ao mundo um testemunho autêntico do que e em quem creem, e por aquilo e por aquele em quem creem estão dispostos a servir o mundo, a fim de transformá-lo na ótica do Reino de Deus, fazendo da vida concreta um verdadeiro caminho de santidade e de encontro com Deus. Temos aí o fundamento de toda a eclesiologia que queira tratar sobre os leigos, sua vocação e sua missão.

O batizado – seja qual for o carisma recebido e o ministério exercitado – é, sobretudo, o homo christianus, aquele que, mediante o batismo, foi incorporado a Cristo (cristão, de Cristo), ungido pelo Espírito (Cristo, de chrìs = ungido), por isso constituído povo de Deus. Isso significa que todos os batizados são Igreja, partícipes das riquezas e das responsabilidades que a consagração batismal implica. Todos são inequivocamente chamados a se oferecer como “hóstia viva, santa e agradável a Deus (cf. Rm 12,1). Por toda parte, deem testemunho de Cristo. E aos que pedirem deem as razões da sua esperança da vida eterna (cf. 1Pd 3,15)” (LG 10). (FORTE, 2005, p.31).

Podemos afirmar que com o batismo nada falta à vida do cristão, pois através dele o fiel se envolve e é envolvido pelo mistério de Cristo, sendo com ele e a partir dele nova criatura (cf. 2Cor 5,17). Coloca-se no caminho e na prática do seu Reino, vivendo, em esperança, a antecipação do Reino que é chamado a construir enquanto Igreja, pois também a ele, pela sua condição e posição na Igreja e no mundo, é destinado o convite do Senhor: “Ide, também vós para a minha vinha” (Mt 20,4). Esse chamado se tornou mais forte com o Vaticano II, que valorizou a essência desta vocação e abriu perspectivas novas, mais coerentes com o próprio Evangelho inaugurado por Cristo, firmando que esse chamado e esse envio foram e são realizados pelo próprio Cristo (AA 33). Isso foi confirmado pelo papa João Paulo II, na Exortação Christifideles Laici, ao afirmar que estes leigos – fiéis leigos – são chamados para trabalhar na vinha do Senhor, que é todo o mundo, e ali oferecem a sua vida e o seu testemunho, o que obriga toda a Igreja e suas estruturas à valorização e tomada de consciência desta importante vocação (JOÃO PAULO II, 1989, n.1-2). Sendo, pois, o batismo a experiência fundante, vai acontecer que na sequência da vida cristã surgirão a vivência eclesial e a comunidade, a prática cotidiana, o serviço ao mundo, o exercício da solidariedade e os demais sacramentos, que juntamente com outras realidades servirão de alimento e de busca daquilo que se fortalece na fé e na esperança.

Pelo batismo, os leigos estão inseridos na missão de toda a Igreja (internamente e externamente), pois eles passam a ser e a ter parte com ela; e mesmo num espírito de comunhão com todos os demais batizados, vivem a fé de maneira autônoma e livre, com um jeito único e próprio de ser e de se fazer enquanto Igreja (KUZMA, 2009, p.85). Os leigos são aqueles e aquelas que estão em maior número dentro do corpo eclesial e que, por isso, devem ser valorizados no que compete e compromete a sua vocação e a sua missão, sem prejuízo a ninguém, mas em vista da comunhão de toda a Igreja que caminha em missão no horizonte do Reino de Deus; missão a que todos os cristãos são chamados – como ekklesía (Igreja) – a colaborar, cada qual a seu modo e naquilo que lhe é específico. Estes cristãos, tradicionalmente denominados de leigos, possuem uma dignidade conferida por Cristo e não podem mais ser tratados como o povo conquistado, como objetos de evangelização, ou como alguém que sempre recebe e que apenas ouve, que aceita tudo de maneira passiva, sem entender, e que não questiona, criticamente, a sua situação e a sua fé. Estes leigos, que são parte constitutiva e importante do corpo eclesial, querem contribuir à sua maneira e em comunhão para a construção do Reino de Deus, missão que lhes é de direito, pois faz parte da vocação a que foram chamados.

Mas, quem são esses leigos? Será que temos clareza desta resposta? Será que nos percebemos da sua vocação e missão, da sua identidade? Vejamos. Os documentos da Igreja trazem importantes definições sobre quem são eles na Igreja, bem como a sua função específica adquirida pelo batismo, que mencionamos antes. Contudo, conforme já apontamos, não se pode negar que a palavra leigo, em si mesma, tem uma carga negativa, adquirida historicamente, também no seio eclesial (CONGAR, 1966, p.14-41), o que faz passar para esses fiéis um pouco desta intenção negativa, deixando pequena e sem valor a sua posição. Por muito tempo, se definiu o leigo pela sua negatividade, por aquilo que ele não era: não clérigo ou alguém sem votos religiosos. Esta intenção ainda era mais grave, pois tirava desses fiéis a prática ativa do exercício da fé, limitando-os a apenas ouvir e receber. Quando tinha uma ação, essa era a partir de um ordenado, restando ao leigo um serviço de colaboração, sem autonomia. A história da Igreja nos mostra os avanços e retrocessos desta vocação, bem como as percepções, interpretações e novos e/ou velhos entendimentos (ALMEIDA, 2006).

O Concílio Vaticano II, pela Constituição dogmática Lumen Gentium (LG), sobre a Igreja, não anulou esta condição de não clérigo e de não religioso, pois é fato, mas ofereceu a todos os fiéis um caráter fundante, inicial, destacando que todos os batizados compõem e são a Igreja de Cristo e formam o novo Povo de Deus, no qual existem diferenças de funções e serviços, mas igual dignidade e importância (LG 32). Nenhuma vocação está acima ou no centro, todos estão em comunhão, cada qual com seu dom e carisma, assumidos e colocados para o serviço de todos (cf. 1Cor 12,7). Cristo – fonte e destino de toda a fé – está no centro, o que garante à Igreja seu sentido de mistério, de onde ela nasce (LG 3) e o destino escatológico (LG 48) ao qual está destinada (FORTE, 2005, p.63-4). O Vaticano II resgata o sentido primeiro da palavra leigo, que é laikós (em grego e um termo ausente da tradição bíblica), isto é, aquele(a) que pertence ao Povo de Deus, Laós (em grego e um termo presente na tradição bíblica).

Assim, do Vaticano II tiramos esta nova e importante definição que aponta para a identidade dos leigos na missão de toda a Igreja:

Estes fiéis pelo batismo foram incorporados a Cristo, constituídos no povo de Deus e a seu modo feitos partícipes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, pelo que exercem sua parte na missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo (LG 31a).

A partir desta definição, os leigos passaram a ganhar importância e sua condição passa a ter uma nova abordagem. Agora se justifica uma eclesiologia a seu respeito, como tentaram argumentar no pré-Concílio teólogos como Y. Congar, E. Schillebeeckx, G. Philips, K. Rahner, e outros (ALMEIDA, 2012, p.13-33), cuja influência e urgência do tema se fez valer no Concílio. Essa definição e os seus desdobramentos – mesmo que ainda insuficientes, merecendo hoje nova ousadia! – foram uma grande conquista (SCHILLEBEECKX, 1965, p.981-90). Contudo, o que se discute, hoje, é se o termo leigo é suficiente para designar a vocação e missão estabelecidas, uma vez que a carga negativa sobre o termo foi grande e durou séculos. Em contrapartida, apenas substituir o termo por outro, ou especificando a sua atividade pastoral, nem sempre pode garantir uma valorização da sua condição e posição eclesial. O correto seria avançarmos em um entendimento de ser cristão a partir do que o batismo nos oferece e do caminho de seguimento que decidimos percorrer, em busca de maturidade da fé (BINGEMER, 2013). Isso, porém, ainda é algo a ser buscado, precisando hoje uma ressignificação do conteúdo de ser um cristão leigo e um reconhecimento e valorização de sua identidade eclesial.

3 Os leigos: sua vocação e missão

Tendo definido a identidade dos leigos, não mais pelo seu aspecto negativo, como outrora, mas por aquilo que os garante eclesialmente – o batismo – e pela sua missão com toda a Igreja, o Vaticano II tratou por definir o exercício desta vocação e missão, chamando para esses – preferencialmente – a responsabilidade no mundo secular, local em que eles já se encontram e onde são chamados para o exercício de sua fé e busca de sua santidade, como leigos. Deste modo, valemo-nos aqui do que foi apontado pelo Concílio ao descrever a índole secular como característica particular (mas não exclusiva) de sua condição, texto que vem na sequência do que já utilizamos anteriormente. Aqui, para discernir melhor quem são esses leigos, o documento conciliar os define pela sua ação, por aquilo que são chamados a exercer e a cooperar, de modo próprio e autônomo:

A índole secular caracteriza especialmente os leigos.

[…] É porém específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o Reino de Deus exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no século, isto é, em todos e em cada um dos ofícios e trabalhos no mundo. Vivem nas condições ordinárias da vida familiar e social, pelas quais sua existência é como que tecida. Lá são chamados por Deus para que, exercendo seu próprio ofício guiados pelo espírito evangélico, a modo de fermento, de dentro, contribuam para a santificação do mundo. E assim manifestam Cristo aos outros, especialmente pelo testemunho de sua vida resplandecente em fé, esperança e caridade. A eles, portanto, cabe de maneira especial iluminar e ordenar de tal modo todas as coisas temporais, às quais estão intimamente unidos, que elas continuamente se façam e cresçam segundo Cristo, para louvor do Criador e Redentor (LG 31b).

Esse texto afirma que é específico dos leigos iluminar e organizar as coisas temporais, isto é, a realidade do mundo onde se encontram e vivem e onde devem viver como fermento na massa, a partir de dentro, tornando-se luz para as pessoas, uma luz que vem de Cristo e que resplandece em suas ações (LG 1). Assim, os leigos – homens e mulheres inseridos na sociedade – apresentam-se como testemunhas autênticas do Evangelho e se comprometem com a causa do Reino, iluminando e organizando tudo ao seu redor, “exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus” (LG 31b).  Contudo, para se compreender a amplitude desta definição em sua matriz teológica fundamental, faz-se necessário assimilar o projeto de Deus, que é o que faz o Vaticano II em suas definições (LG 1-5; DV 1-6; AG 1-5), e com ele o princípio maior da nossa fé, que está pautada em um Deus que se tornou humano e que como humano assumiu toda a nossa condição (GS 22), envolvendo-se na trama da nossa existência, fazendo com que as nossas esperanças humanas se convertessem na grande esperança anunciada por ele, que era o Reino de Deus, boa nova para todos. Olhemos, então, para Jesus de Nazaré.

Jesus de Nazaré, se ocupando das coisas de seu tempo, abriu-nos uma nova perspectiva de vida e por essa apresentou-nos um novo rosto de Deus, mais próximo e mais livre, mais presente na nossa própria realidade, que se mostrou importante para ele, já que a assumiu integralmente dando a vida por amor a nós. Logo, a atenção do texto conciliar que aqui reproduzimos para apontar a vocação e missão dos leigos é para fazer valer a presença da Igreja no mundo, de maneira concreta, disposta a apresentar ao mundo a proposta que a garante e que a fundamenta, que é Cristo e seu Reino. Com base no texto conciliar da LG 31b percebemos que a Igreja pretende fazer isso de forma concreta pelos seus fiéis, por todos, mas aqui destaca este papel de modo especial aos leigos, que estão inseridos na sociedade de maneira direta e ali oferecem um testemunho firme e verdadeiro.

Isso não significa que a vivência de fé no mundo será de modo invasivo, mas na prática do serviço, no fazer o bem, na autenticidade e na coerência com o que diz crer e professar, como foi destacado pelo documento de Aparecida, em 2007 (DAp n.210). Também o Decreto Apostolicam actuositatem (AA), que trata do apostolado dos leigos, diz: “Tantas e tão urgentes necessidades são sinal evidente da ação do Espírito, que torna hoje os leigos cada vez mais ciosos de suas próprias responsabilidades e os incita a se colocarem a serviço de Cristo e da Igreja” (AA n.1c). Numa releitura e frente ao atual contexto, também em sua Exortação Apostólica Christifideles Laici, o papa João Paulo II diz: “por meio deles a Igreja de Cristo torna-se presente nos mais diversos setores do mundo, como sinal e fonte de esperança e de amor” (JOÃO PAULO II, 1989, n.7). E diz ainda: “Não é lícito a ninguém ficar inativo” (JOÃO PAULO II. 1989, n. 3 – grifos do autor). Se trouxermos ainda para um tempo mais presente, as acusações e apontamentos pastorais que o papa Francisco coloca em sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium são ainda mais firmes, o que reclama o papel de uma Igreja – em especial aqui os leigos – em saída e em rompimento com tudo o que possa atrapalhar a sua missão e verdadeira vocação: o anúncio do Evangelho nos dias de hoje! (FRANCISCO, 2013, n.110-121). E sempre de modo dialogal, na coerência entre fé e vida, um verdadeiro e autêntico testemunho. Ainda nessa linha, vale destacar também que, na atualidade, o papa Francisco tem chamado muito a presença dos leigos, a sua valorização e uma presença mais forte dos jovens e das mulheres na Igreja. Por certo, também acusa a passividade, adquirida historicamente – por vezes sem culpa –, mas chama a atenção também para uma nova ousadia, para um avançar para rumos novos e novas descobertas eclesiais. Frisamos, aqui, a criação do novo Dicastério sobre os Leigos, a Família e a Vida, anunciado durante do Sínodo dos Bispos em outubro de 2015.

Outro ponto importante é que os leigos são chamados à vocação e missão como leigos. Eles não precisam ser outra coisa! Eles são leigos! Fazem parte do Laós (povo) de Deus e onde vivem oferecem o seu testemunho e as razões da sua esperança. Isso é fundamental, ainda mais quando se vê na atualidade avanços de clericalismos (FRANCISCO, 2013, n.102), já assinalados em várias ocasiões e que não permitem que a Igreja possa dar uma resposta eficaz aos problemas atuais (cf. Conferência de Santo Domingo n. 96), pois tentam restaurar uma imagem de Igreja que se sustent por si só e que se feche em si mesma, quase como uma fuga (KUZMA, 2009, p. 43-7) ou alienação da realidade. “Deus não muda a sua condição, mas plenifica o seu estado, torna-os cheios de vida e graça no Espírito. Assim, eles são verdadeiros adoradores e santificam o mundo com a própria vida” (KUZMA e SANTINON, 2014, p.137). E mais: “Os leigos não são chamados a ser o que não são e a viverem onde não estão, mas são chamados a viver plenamente o que são e a estar efetivamente onde já estão, e dentro de sua vida, encontrar Deus e anunciá-lo aos outros” (KUZMA e SANTINON, 2014, p.137). No percurso de suas vidas, eles “preparam o campo do mundo para melhor receber a semente da palavra divina e abrem as portas à Igreja, para que atue como anunciadora da paz” (LG 36c).

Com toda a Igreja, os leigos são chamados para servir, e servem com a própria vida, onde a experiência com Cristo faz brotar um autêntico testemunho. Eis a sua vocação e a sua missão!

4 Conclusão

Daquilo que o Concílio Vaticano II definiu sobre os leigos na missão da Igreja, podemos extrair aqui pontos importantes: 1) o batismo os incorpora a Cristo e os constitui como membros do Povo de Deus, o que acentua um ponto importante na definição de Igreja do Vaticano II (na Lumen Gentium); 2) eles se tornam partícipes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, de onde recebem o mandato – de Cristo – para o testemunho no mundo e na Igreja daquilo que é a razão de sua esperança. Ao modo de Cristo, um sujeito comum – leigo – de seu tempo, eles passam a oferecer a sua vida a Deus e aos irmãos pela prática do Reino; eles são no mundo e na Igreja anunciadores da verdade e procuram governar, administrar e transformar tudo pela ótica do Reino de Deus; 3) assumem sua parte na missão: é quando os leigos, homens e mulheres de fé, passam a servir no local onde se encontram, e a base que sustenta o seu serviço é a experiência concreta e vivificante com Jesus de Nazaré. É onde se encontra o trabalho no mundo secular, vivido especialmente, mas não exclusivamente, pois a Igreja é missionária em sua totalidade e não em parte.

O Concílio deu passos importantes. É importante, hoje, abrir-se ao Espírito que o concebeu e dispor-se aos novos desafios que o mesmo Espírito nos faz ver, sempre de modo aberto, sensível e dialogal, na acolhida e na construção de um Reino que necessita de todos nós, pois todos nós somos chamados à Vinha do Senhor!

Cesar Kuzma, PUC Rio. Texto original Português.

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SCHILLEBEECKX, E. A definição tipológica do leigo cristão conforme o Vaticano II. In: BARAÚNA, G. (dir.). A Igreja do Vaticano II. Petrópolis, RJ: Vozes, 1965.

Ordem (Sacramento da)

Sumário

1 O nome do sacramento

2 Da lex orandi à lex credendi

2.1 Uma ordenação episcopal no séc. III

2.2 A comunidade e o ministério ordenado

3 A tríade bispo-presbítero-diácono

4 A espiritualidade ministerial

4.1 Cristo, o Servo do Senhor

4.2 Cristo, o Pastor exemplar

4.3 Cristo, o único sacerdote

5 Referências bibliográficas

1 O nome do sacramento (TABORDA, 2016, 21-26)

O nome deste sacramento não consta no Novo Testamento. Pode trazer consigo um mal-entendido, já que a palavra “ordem” normalmente significa “cada coisa no seu lugar”. Mas não é este o sentido da palavra. Ela se refere a um grupo de pessoas de determinada categoria, como, por exemplo, a “Ordem dos Advogados do Brasil” (OAB), que congrega os bacharéis em direito a quem é permitido advogar no país.

Não deve causar estranheza que a designação deste sacramento não tenha conotação sacral nem tenha sido tomada de empréstimo à linguagem religiosa, já que, para designar as funções eclesiais, o Novo Testamento nunca usa termos tomados das religiões. “Sacerdote”, por exemplo, não designa nenhum ministro da Igreja, mas somente os sacerdotes judeus (cf. Lc 10,31) e pagãos (cf. At 14,13), os cristãos em seu conjunto (cf. Ap 1,6; 5,10) e o próprio Cristo (uso exclusivo da Carta aos Hebreus).

O termo “ordem” tem a vantagem de trazer à luz o caráter colegial ou corporativo do ministério eclesial (cf. os Doze Mc 3,14; os Sete At 6,3; o presbitério At 15,6). À ordenação não compete transmitir um poder possuído como indivíduo, mas incorporar num grupo do mesmo grau, cuja tarefa consiste em contribuir para o bem da comunidade num coletivo posto a serviço de unidade da Igreja. Não se pode, pois, conceber o ministro da Igreja pensando e agindo por si no isolamento de sua individualidade, mas articulado com a comunidade e os demais ministros do mesmo e dos demais graus.

Mas o termo apresenta também uma desvantagem. Embora sua adoção seja anterior à era constantiniana, teve consequências nefastas quando o cristianismo foi reconhecido oficialmente no Império. Ao designar-se desta maneira o ministério eclesial, transpôs-se aos bispos, presbíteros e diáconos a mentalidade rigorosamente hierarquizada da burocracia imperial romana. Como consequência, passou a conceber-se o ministério em termos de “carreira das honras” (em linguagem moderna: “plano de carreira”).

A Igreja Bizantina conserva para este sacramento o nome de “imposição das mãos” (quirotonia). Tem a vantagem de ser um termo bíblico, mas traz consigo o perigo de esquecer-se a dimensão colegiada própria ao ministério eclesial, levando a uma concepção privatizante, como honra possuída pessoalmente.

2 Da lex orandi à lex credendi (TABORDA, 2015, p.23-47)

A melhor maneira de apresentar um sacramento é partir da prática litúrgica da Igreja, tal como foi “em toda a parte, sempre e por todos” celebrada (Vicente de Lérins, † cerca de 450). Verificando a forma como a Igreja ora (lex orandi), conclui-se sobre o que devemos crer (lex credendi).

2.1 Uma ordenação episcopal no século III (BRADSHA; JOHNSON e PHILLIPS, 2002)

A chamada “Tradição Apostólica”, outrora atribuída a Hipólito de Roma, é o mais antigo testemunho pormenorizado de uma ordenação episcopal. Eis o texto:

“Ordene-se bispo aquele que, [sendo] irrepreensível, tiver sido escolhido por todo o povo. Quando tiver sido chamado pelo nome e tiver agradado, o povo se reunirá com o presbitério e os bispos presentes, no dia do Senhor. Com o consentimento de todos, [os bispos] imponham-lhe as mãos e o presbitério permaneça sossegado. Todos guardem silêncio, orando em seus corações pela descida do Espírito. E um dos bispos presentes, instado por todos, impondo a mão ao que é ordenado bispo, reze dizendo:” (Tradição Apostólica, nº 2)

[Segue-se a prece de ordenação]

“Quando tiver sido feito bispo, todos lhe deem o ósculo da paz, saudando-o, porque se tornou digno. Os diáconos apresentem-lhe a oblação e ele, impondo as mãos sobre ela com todo o presbitério, diga, dando graças: ’O Senhor esteja convosco‘. E todos respondam: ’E com teu espírito‘. ’Corações ao alto‘. ’Nós [os] temos no Senhor‘. ’Demos graças ao Senhor‘. “É digno e justo”. E então prossiga assim:” (Tradição Apostólica, nº 4)

[Segue-se a oração eucarística]

 Esse texto apresenta a celebração como um movimento contínuo em três momentos: 1) a eleição pelo povo (incluindo o clero); 2) a imposição das mãos pelos bispos com a prece de ordenação dita por um deles; 3) o reconhecimento da comunidade, expresso no abraço da paz e na subsequente presidência da eucaristia.

Em cada um desses momentos atuam quatro atores: 1) os cristãos da Igreja local; 2) os bispos das Igrejas vizinhas; 3) o ordinando; 4) o Espírito Santo, ator principal (LEGRAND, 1988, 194-201; TABORDA, 2016, 230-240).

 2.2 A comunidade e o ministério ordenado (TABORDA, 2016, 157-170)

 A estrutura da liturgia de ordenação mostra a íntima conexão entre o ministério eclesial e a Igreja presente na comunidade local. Não é o ministro ordenado que cria a comunidade, mas é a comunidade de fé que recebe de Deus o ministro que a conserve na unidade e estabeleça o vínculo entre ela e a Igreja espalhada pelo mundo. Discernindo no Espírito Santo, o ator principal em toda a liturgia de ordenação, a comunidade escolhe a pessoa que parece indicada em sua situação concreta. Mas o escolhido não se torna bispo por essa eleição. É imprescindível o aval dos bispos vizinhos que julgarão da ortodoxia do eleito e, pela imposição das mãos e oração, o constituirão bispo pela graça de Deus. Também neste momento a comunidade está ativa, orando em seus corações pela descida do Espírito. Uma vez constituído bispo, novamente a comunidade o reconhece ao acolhê-lo pelo abraço da paz e ao participar na eucaristia por ele presidida.

A estrutura da ordenação episcopal mostra a relação entre ministério ordenado e comunidade: o ministro vem da comunidade e nela permanece, mas, ao mesmo tempo, se põe diante da comunidade. O bispo Agostinho de Hipona († 430) expressou-o lapidarmente: “Convosco sou cristão, para vós sou bispo; aquele é o título de minha dignidade, este o título de minha responsabilidade; aquele é título de honra, este título de perigo”. Mais fundamental que ser bispo é ser cristão; essa é a verdadeira dignidade. Como bispo, o cristão assume uma responsabilidade que se torna um perigo, caso não seja exercida como serviço à comunidade.

Estando diante da comunidade eclesial, o ministro representa para ela a Cristo, pela força do Espírito Santo recebido na ordenação. Essa relação costuma ser expressa na fórmula latina: o ministro age in persona Christi (na pessoa de Cristo, como seu representante), mas só representa Cristo representando também a Igreja, inserido em sua fé e comunhão (in persona Ecclesiae). Os dois aspectos devem ser articulados entre si. Cristo tem uma dupla relação com a Igreja: por um lado, ela é seu Corpo (cf. 1Cor 12,12; At 9,4); por outro, Cristo é a Cabeça e, como tal, anima o Corpo (cf. 1Cor 11,3). Assim, o ministro, enquanto representa Cristo, está face a face com a comunidade; enquanto representa a Igreja é um membro entre outros, apenas com uma função específica de presidência em nome do Cristo-Cabeça.

A relação entre o regente e a orquestra pode ilustrar essa relação. O regente, diante da orquestra, tem a função de conduzi-la na unidade. Enquanto regente, não toca nenhum instrumento, mas sua atuação permite que todos os instrumentos toquem harmonicamente, na hora devida, com a intensidade devida. Ele não é a orquestra, mas a orquestra se reconhece nele. Sem a orquestra ele não é nada; precisa da orquestra para ser regente. Não é ele que manda na orquestra, mas tampouco a orquestra manda nele. Ambos obedecem à partitura. A execução da partitura dependerá da interpretação do regente, mas também da capacidade dos músicos de aderirem a essa interpretação. Deste modo, o regente representa a orquestra diante da orquestra, mas representa também o compositor. Tal é, analogamente, a articulação entre o ministro ordenado e a comunidade eclesial.

3 A tríade bispo-presbítero-diácono (TABORDA, 2016, 190-209; BORRAS e POTTIER, 2010)

O ministério na Igreja é uno: a função de conduzir a Igreja na unidade da fé, do amor, da celebração. Esse ministério uno da Igreja é exercido em diversos graus por aqueles que “já desde antigamente são chamados bispos, presbíteros e diáconos” (LG n.28; DH 4153).

Todos eles são ministros da unidade da Igreja, mas se distinguem pelo âmbito que lhes é próprio. O ministério fundamental é o episcopado. Sua função é animar a comunidade em fidelidade ao testemunho apostólico. Ao interno da comunidade cabe-lhe presidir a comunidade na adesão à fé apostólica (querigma), na prática da fraternidade (diaconia) e na celebração da fé (liturgia). Com relação às demais Igrejas locais, é de sua competência representar a Igreja por ele presidida na comunhão da Igreja universal (responsabilidade colegial por todas as Igrejas) e na comunhão com a Igreja de Roma “que preside a caridade” (Inácio de Antioquia).

O bispo não está só na presidência de uma Igreja local; é auxiliado por seu presbitério e pelos diáconos. O bispo é bispo por presidir uma Igreja num âmbito maior, ligada por vínculos históricos, geográficos, culturais. Por isso cabe-lhe ordenar presbíteros que constituem com ele uma personalidade corporativa no governo da Igreja local e, assim, presidem, em nome do bispo, as pequenas parcelas dessa Igreja local (paróquias).

Os presbíteros são, em primeiro lugar, membros do “senado” do bispo para o governo da Igreja local, isto é, para sua unidade. A partir daí, pode caber-lhes presidir parcelas dessa Igreja local (comunidades eucarísticas) como representantes do bispo. A prece de ordenação da liturgia romana define o presbítero como “cooperador da ordem episcopal”.

A diferença básica entre bispo e presbítero reside no grau de responsabilidade que cada um tem por uma Igreja local e na relação mútua. O bispo exerce seu ministério da unidade sobre o todo da Igreja local e, a partir dela, é, com os outros bispos, responsável pela Igreja universal, diante da qual testemunha a forma específica de cada Igreja local inculturar a fé.

O diácono é o ministro encarregado dos pobres, marginalizados e enfermos, serviço vital para a Igreja encontrar sua identidade ao modo do Servo do Senhor, descrito nos quatro cânticos do Deuteroisaías (cf. Is 42,1-4; 49,1-6; 50,4-11; 52,13 – 53,12). Sua função fundamental é animar, reavivar, organizar a comunidade em vista do serviço aos pobres. A partir desse serviço aos pobres compete ao diácono o ministério da Palavra e a atuação na liturgia; a Palavra dá dimensão cristã ao serviço aos pobres, que é um dever moral de toda humanidade, creia ou não no Cristo. Cabe a ele levar a Palavra ao concreto da prática solidária, testemunhar a caridade cristã, encorajar os cristãos a tomar a sério o Evangelho.

O diácono tem sua forma própria de ser ministro da unidade. Não preside, mas contribui à unidade da Igreja a partir dos menos favorecidos. É um ministério “partidário”. Expressa o partidarismo da Igreja em favor do pobre. Indica que a unidade da Igreja não se constrói a partir dos poderosos. Procura imprimir na Igreja a marca evangélica de uma unidade desde os pobres. Por isso mesmo, vale, na Igreja antiga, como a mão direita do bispo. Ele está, pois, relacionado ao bispo e não ao presbítero.

O diácono não é um substituto do presbítero em locais onde não existem presbíteros em número suficiente. Seu ministério não é congregar a Igreja (presidência), mas levá-la para fora, para as periferias do mundo, de forma que ela possa celebrar em verdade a eucaristia, pois “não há eucaristia sem lava-pés” (E. van Waelderen).

Fazer presente o amor de Cristo para com os pobres e todos os que sofrem, são perseguidos, excluídos, é um dever do bispo, não menor que o de presidir a vida e a celebração da comunidade. Nesta tarefa é coadjuvado pelo presbitério, naquela pelos diáconos. A ordem diaconal existe a serviço da Igreja local, junto com o bispo e seu presbitério, para abrir a comunidade ao mundo.

O presbítero não é um diácono com mais algum “poder”, como o bispo não é um presbítero com mais algum “poder”. Não são degraus de uma escada. A relação entre a tríade deveria ser vista não numa linha vertical (superior-inferior; alto-baixo), mas numa bifurcação. O episcopado é o ministério fundamental com dois tipos de auxiliares diferentes e complementares como são diferentes e complementares homem e mulher, mão direita e mão esquerda. O homem não é superior à mulher, nem vice-versa; a mão direita não é melhor que a esquerda, nem vice-versa.

4 A espiritualidade ministerial

A pergunta subjacente a esta temática da espiritualidade é a pergunta sobre que figuras inspiram a vida e a missão do ministro ordenado.

4.1 Cristo, o Servo do Senhor (TABORDA, 2016, 46-52; SANTANER, 1986; MESTERS, 1981)

 A figura fundamental nos é dada pelo próprio Jesus em Mc 10,42-45: “Sabeis que os que são considerados chefes das nações as dominam, e os seus grandes fazem sentir seu poder. Entre vós não deve ser assim. Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro entre vós seja o escravo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos”. Nestas palavras Jesus alude aos poemas do Servo do Senhor (Deuteroisaías) e equaciona assim a questão do poder na Igreja.

Os quatro cânticos inspiram quatro aspectos do exercício do poder na comunidade cristã. O primeiro aspecto é o esvaziar-se, não afirmar o seu poder dominando os demais, mas despertando o poder que neles existe (cf. Is 42,1-4: o Servo não grita, não levanta a voz; não apaga a mecha que ainda fumega). O “poder” do ministro ordenado não é dele, mas da Igreja, cujo poder se concentra nele. Por isso não lhe cabe nem açambarcar o poder nem dividi-lo, como se o poder fosse dele. Cabe-lhe, sim, suscitar o poder que há em cada um, incentivar o exercício do poder de cada um e cuidar que seja exercido no respeito aos demais e no cuidado pela unidade do todo.

O segundo aspecto mostra que o esvaziamento deve ir ao extremo de dar a vida pela multidão (cf. Is 52,13 – 53,12). A identidade do ministro com a comunidade já é, por si, um “morrer” cada dia, para que a comunidade se desenvolva com autonomia. Em determinadas circunstâncias, o dar a vida terá que ser levado às últimas consequências, o martírio.

O terceiro aspecto é ouvir o Senhor e confiar nele (cf. Is 50,4-11). Basear sua vida na escuta da Palavra de Deus assimilada na oração, celebrada na eucaristia, vivida a cada momento. Elemento constitutivo do serviço ministerial é a intercessão “em favor do povo a ele confiado e em favor de todo o mundo” (prece de ordenação presbiteral da liturgia romana).

O quarto aspecto é levar a sério que sua missão não vem de si mesmo, mas lhe foi confiada pelo Senhor (cf. Is 49,1-6) através da comunidade que o reconheceu apto. Seu ministério não lhe advém por ser um privilegiado, mas por se esperar dele que viva os aspectos antes especificados.

Em resumo: o “poder” do ministro é o poder gerado na fraqueza, que, confiando em Deus, deixa espaço aos demais e suscita o poder dos demais.

 4.2 Cristo, o Pastor exemplar (TABORDA, 2016, 70-74)

 No capítulo 10 do Evangelho de João, Cristo se apresenta como “o Pastor exemplar” (KONINGS, 2005, 204). A figura do pastor é arquetípica e apresenta quatro características (BOSETTI, 1986a, 21-51): o pastor, guia, conduz, caminha à frente das ovelhas; provê para que o rebanho cresça e se multiplique (procura água, pastagem, conduz ao aprisco ou a outro lugar seguro…); está atento às ovelhas: de dia guia, de noite guarda, especialmente se as ovelhas tem que pernoitar ao relento…; é solidário, tem com o rebanho uma ligação afetiva, conhecimento, solidariedade. É “o pastor com cheiro de ovelha” (Papa Francisco).

Mas a designação de pastor tem sua ambiguidade, porque o pastor é superior às ovelhas; ele é um ser racional, as ovelhas animais irracionais. Por isso é preciso lembrar que o “o Pastor exemplar” (“o bom Pastor”) se tornou o “Cordeiro imolado” para a vida do rebanho. E, principalmente, é necessário iluminar a figura do pastor com a do Servo que dá a vida pela multidão, como o fez Jesus: “O pastor exemplar dá a vida por suas ovelhas” (Jo 10,11).

O ministro ordenado, enquanto pastor, deveria caracterizar-se por um amor entranhado a Cristo, não apenas um amor superficial. Dada, porém, a fraqueza do homem pecador, para início de caminhada basta o amor de simpatia (cf. Jo 21,15-17). Enquanto não se atinge aquele grau de amor profundo por Cristo, vale a sinceridade de uma resposta ao chamado, cuidando de não cair nas tentações que o rodeiam: não ser pastor por coação, mas de boa vontade, espontaneamente, livremente; não por torpe ganância, mas de coração generoso; não como dominadores, mas como modelos do rebanho (cf. 1Pd 5,2-3) (BOSETTI, 1986b, 101-12).

4.3 Cristo, o único sacerdote (TABORDA, 2016, 32-46)

A designação mais comum para o ministro ordenado é sacerdote e, no entanto, é a menos adequada. Provém de uma releitura veterotestamentária do Novo Testamento, que não usa para os ministros da Igreja termos tomados das religiões. Episkopos (termo do qual deriva a palavra bispo) significa supervisor; presbítero quer dizer ancião; diácono é o servidor da mesa. Tampouco Jesus foi sacerdote, pois não pertencia à tribo de Levi, condição indispensável para o sacerdócio no judaísmo.

O único escrito do Novo Testamento que qualifica Jesus como sacerdote é a Carta aos Hebreus. E o faz para negar que Jesus seja sacerdote no sentido do sacerdócio ritual, aarônico. O autor da Carta aos Hebreus quer mostrar como, depois de Cristo, não há mais necessidade de sacerdotes. Ele o faz no estilo próprio da reflexão teológica judaica, comparando a vida de Cristo com a ação do Sumo Sacerdote judeu no Dia do Perdão (Yom Kippur), o único dia do ano em que ele atravessava o véu do Templo e entrava no Santo dos Santos. Jesus, por sua morte, atravessou o véu e entrou no verdadeiro Santuário do céu, onde vive eternamente a interceder por nós (cf. Hb 7,25). Jesus exerce seu sacerdócio através de sua vida, morte e ressurreição (cf. Hb 9–10). Seu sacerdócio não é ritual, mas existencial (cf. Hb 10,4-10); seu sacrifício não se realiza num lugar sagrado, mas no profano, fora dos muros da Cidade Santa de Jerusalém (cf. Hb 13,11-13); não precisa ser repetido, pois adquiriu para nós uma redenção eterna (cf. Hb 9,12).

Desta forma, se deve dizer que Cristo é o fim do sacerdócio (cf. a expressão de Paulo: Cristo é o “fim da Lei”, Rm 10,4). Fim significa ao mesmo tempo “término”, desaparecimento do fenômeno em questão, e “culminação            “, “meta”, aquilo a que algo tende. Cristo é fim e realização de todo sacerdócio. A finalidade dos sacerdotes nas religiões era mediar Deus e a humanidade. Ora, a distância entre Deus e a humanidade foi abolida em Cristo. Primeiramente, porque, como homem e Deus (cf. DH 301-302), une definitiva e escatologicamente os dois polos entre os quais os sacerdotes deviam fazer a mediação. Ele é, em sua pessoa, o mediador único e perene (cf. 1Tm 2,5). Mas, além disso, tendo nos dado o Espírito Santo, pelo qual o ser humano pode viver na imediatidade com Deus, dispensa ulteriores sacerdotes. Pelo Espírito constituímos um povo sacerdotal (cf. 1Pd 2,5; Ap 1,6; 5,10), temos constantemente acesso ao Pai (cf. Hb 4,16), clamamos Abba (cf. Gl 4,6; Rm 8,15), somos ensinados por Deus (cf. Jo 6,45). Nossa imediatidade a Deus no Espírito torna o sacerdócio dispensável (fim do sacerdócio) e Cristo é assim o único sacerdote (realização do sacerdócio), pois nos possibilitou, de uma vez para sempre, o acesso constante e definitivo a Deus. Tal acesso só existe no Espírito de Cristo (e não pela natureza humana). Por isso, a Igreja é o povo sacerdotal por sua atividade missionária que continua a missão de Cristo (cf. Jo 20,21; 1Pd 2,9).

Francisco Taborda, SJ. FAJE (Brasil). Texto original em português.

5 Referências bibliográficas

BORRAS, A.; POTTIER, B. A graça do diaconato: questões atuais relativas ao diaconato latino. São Paulo: Loyola, 2010.

BOSETTI, E. A regra pastoral de 1Pd 5,1-5. In: BOSETTI, E.; PANIMOLLE, S. A. Deus-Pastor na Bíblia: solidariedade de Deus com seu povo. São Paulo: Paulinas, 1986. p.7-60.

______. O Deus-Pastor. In: ______. Deus-Pastor na Bíblia: solidariedade de Deus com seu povo. São Paulo: Paulinas, 1986. p.81-122.

BRADSHAW, P. F.; JOHNSON, M. E.; PHILLIPS, L. E. The Apostolic Tradition: a Commentary. Minneapolis: Fortress Press, 2002.

GRESHAKE, G. Ser sacerdote hoy: teología, práxis pastoral y espiritualidad. 2.ed. Salamanca: Sígueme, 2006.

KONINGS, J. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005.

LEGRAND, H. La réalisation de l’Église en un lieu. In: LAURET, B.; REFOULÉ, F. (dir.). Initiation à la pratique de la théologie. Tome III: Dogmatique 2. Paris: Cerf, 1983p. 143-345.

MESTERS, C. A missão do povo que sofre: os cânticos do Servo de Deus no livro do profeta Isaías. Petrópolis e Angra dos Reis: Vozes e CEBI, 1981.

SANTANER, M.-A. Homem e poder: Igreja e ministérios. São Paulo: Loyola, 1986.

TABORDA, F. O memorial da Páscoa do Senhor: ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. 2.ed. revista e ampliada. São Paulo: Loyola, 2015.

______. A Igreja e seus ministros: uma teologia do ministério ordenado. 2ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2016.

Livros Proféticos

Sumário

1 O profeta

1.1 Conceito de “profeta”

1.2 Verdadeira e falsa profecia

2 A profecia escrita na Bíblia Hebraica

2.1 Da palavra oral à palavra escrita

2.2 Os livros proféticos

2.2.1 Os profetas “maiores”

2.2.2 Os profetas “menores”

2.3 A doutrina dos livros proféticos

2.4 Significado dos livros proféticos

3 Livros associados à profecia

3.1 Daniel

3.2 Lamentações

3.3. Baruc

4 Referências bibliográficas

1 O profeta

1.1 Conceito de “profeta”

O termo “profeta” provém do grego (prophétes) e deriva do verbo phemí, que significa “dizer, anunciar, proclamar”. Segundo o sentido do prefixo pró-, o termo pode significar: aquele que transmite uma mensagem a ele confiada (pró– em sentido substitutivo: em lugar de, em nome de); aquele que fala diante de alguém (pró– em sentido espacial); aquele que prediz acontecimentos futuros (pró– em sentido temporal: antes de). A acepção que mais convém ao “profeta” é a primeira: ele é antes de tudo mensageiro, que transmite a palavra a ele confiada por Deus ou pelos deuses (no caso de povos politeístas), uma palavra que não tem nele mesmo sua origem. O profeta pode também falar do futuro, mas suas palavras dirigem-se primeiramente ao presente e, mesmo quando dizem respeito a acontecimentos ainda por vir, visam seus ouvintes imediatos.

Uma pessoa é caracterizada como profeta, portanto, quando se apresenta como portador de uma palavra divina (“oráculo”), recebida por revelação. Nisso, o profeta se distingue das outras formas de se obter respostas divinas para questões humanas (adivinhação pela observação de astros, animais, por interpretação de objetos, a necromancia, êxtases, dentre outras), pois sua mensagem não deriva de técnicas para obter o conhecimento, mas unicamente da comunicação de Deus.

A Bíblia hebraica usou nomenclatura variada para se referir a figuras proféticas, sendo mais comuns termos ligados às raízes Hzh (ter visões, receber uma revelação) e r’h (ver, ter visões) bem como a expressão ’îš [hä]’élöhîmi (“homem de Deus”). A terminologia mais utilizada é ligada à raiz nB´, da qual provém o termo näbî´, traduzido na Setenta preferencialmente por prophétes.

1.2 Verdadeira e falsa profecia

O controle se a palavra que o profeta transmite provém realmente de Deus ou é imaginação ou invenção sua não é uma questão de fácil solução. Como muitas personagens bíblicas que aparecem como “profetas” reivindicam falar em nome do Senhor, houve a necessidade de serem estabelecidos critérios para discernir as características daqueles que realmente transmitem a mensagem divina:

  • julgam a realidade a partir da vontade divina (cf. Mq 2,11);
  • são obedientes à palavra recebida (cf. Jr 23,28-29; 28,1-17);
  • não usam a profecia como meio de vida (cf. Mq 3,5; Am 7,12-14);
  • sua vida está de acordo com o que anunciam (cf. Jr 23,14; Os 3,1-4);
  • são enviados por Deus para esta missão, muitas vezes contra a sua própria vontade (cf. Jr 1,4-10; 20,7-18).

O profeta enviado por Deus, no AT, é, assim, seu porta-voz fiel. A palavra que Deus lhe comunica o envolve pessoalmente. Não é somente uma informação que recebe, mas toca sua própria vida; ele a assimila e se identifica com ela antes de transmiti-la. Isso aparece em diversas narrativas simbólicas que ocorrem nos livros proféticos. Ezequiel come o rolo da Palavra (Ez 3,1-4); Isaías tem seus lábios purificados para poder anunciar (Is 6,6-7); Jeremias recebe em sua boca a palavra de Deus (Jr 1,9-10); Oseias passa por uma experiência matrimonial para expressar o amor do Senhor (Os 1,2; 3,1).

2 A profecia escrita na Bíblia hebraica

2.1 Da palavra oral à palavra escrita

O profeta é sobretudo aquele que “fala”. Por isso, normalmente há uma diferença temporal entre o profeta como personagem que anuncia a Palavra de Deus e o escrito que leva o seu nome. Embora haja alguns testemunhos de palavras escritas na época mesma do profeta (Jr 36; Is 8,16-17; 30,8), via de regra o profeta não escreve sua mensagem. O texto do livro profético deixa perceber que a colocação por escrito foi feita posteriormente, por aqueles que receberam essa palavra como palavra de Deus e perceberam seu valor. Essas palavras escritas são conservadas e transmitidas pelos cultores das tradições religiosas israelitas. Ao serem percebidas como permanentemente válidas, são reinterpretadas e aplicadas para outras épocas e situações, sofrendo transformações e acréscimos. Neste processo de “releitura”, feito à luz das tradições religiosas israelitas e guiado por Deus, não há um desvirtuamento da palavra inicial, mas sim um desdobramento de suas possibilidades de significado.

Desse modo, o livro profético é formado pouco a pouco, a partir da seleção e agrupamento de textos que passam por um processo de reelaboração e reorganização, até chegar a uma forma considerada concluída. Assim sendo, os profetas, enquanto personagens, estão ligados a um determinado período; o livro a eles referido, porém, não provém necessariamente de sua época, pode ter sido concluído num tempo muito posterior.

2.2 Os livros proféticos

Na Bíblia Hebraica, os profetas são a segunda parte da Escritura e compreendem:

  • os profetas anteriores: Josué, Juízes, Samuel e Reis;
  • os profetas posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze Profetas (Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias).

A Bíblia Grega (Setenta) chama de livros proféticos somente os “profetas posteriores” da Bíblia Hebraica e inclui ainda outros textos: o livro de Baruc, o livro das Lamentações, a Carta de Jeremias, Daniel, com os trechos deuterocanônicos (Dn 13–14; 3,24-90). No uso atual, em geral por “livro profético” se entende o conjunto que compreende Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze profetas.

2.2.1 Os profetas “maiores”

Três livros proféticos são conhecidos como “maiores”, devido à sua dimensão: Isaías, Jeremias e Ezequiel.

a. Isaías

O livro de Isaías remonta ao profeta que, no século VIII aC, em Judá, exerceu seu ministério. Recolhe oráculos e narrações que provêm desta época, além de outros que, sob influência de seu ensinamento, foram redigidos séculos após. Desde o final do século XIX dC é grandemente aceita a distinção do  livro em três partes: o Primeiro (Proto) Isaías (que compreende os capítulos 1 a 39); o Segundo (Dêutero) Isaías (c. 40 a 55); e o Terceiro (Trito) Isaías (c. 56 a 66). A distinção é percebida por diferenças de época histórica e de cunho literário e teológico. Embora haja muitas passagens acrescentadas em épocas posteriores, no Primeiro Isaías boa parte dos textos provém do século VIII aC. O Segundo Isaías é da época do exílio babilônico adiantado (por volta de 550 aC) e anuncia para um tempo próximo o fim do cativeiro. O Terceiro Isaías é, no conjunto, situado no período pós-exílico, embora contenha textos que possam provir de épocas anteriores. O Terceiro Isaías é responsável não só pela terceira parte do escrito mas também pela forma final do livro como um todo e, por esse seu trabalho, o livro, apesar das diferentes partes, apresenta unidade.

b. Jeremias

O livro de Jeremias recolhe oráculos e ações do profeta homônimo, que exerceu seu ministério nas últimas décadas antes da queda de Jerusalém, até o início do exílio babilônico (Jr 1,1-3). Anunciando numa das épocas mais conturbadas da história de Israel, Jeremias entra em grave confronto com os reis e regentes. Prega que os pecados de Judá levarão inevitavelmente à deportação e ao exílio em Babilônia, a grande dominadora de então. Por esse motivo, muitas vezes é exposto a graves sofrimentos. Do seu livro, com isso, pode-se depreender com nitidez o que é o profeta segundo Deus e como ele experimenta em sua vida a rejeição à palavra do Senhor.

Mesmo se numerosos textos do livro podem provir da época do profeta, o escrito foi retrabalhado em épocas posteriores e tem particular relação com a teologia deuteronomista.

c. Ezequiel

O profeta Ezequiel exerceu seu ministério em Babilônia, entre os anos 593 e 571 aC (Ez 1,1-3; 29,17). Sacerdote, foi levado para Babilônia na primeira deportação (598) e anunciou para breve o fim do Reino de Judá. Após a queda de Jerusalém nas mãos do exército babilônico (587/6), o profeta procura velar pela vida religiosa do povo, a fim de que mantenha a fidelidade ao Senhor. A origem sacerdotal do profeta evidencia-se por sua preocupação com o templo e o culto e com sua concepção de Deus particularmente sob a ideia da “glória” (Ez 1).

Embora haja acréscimos aos textos do livro, atualmente aceita-se que ele, em seu núcleo, pode ser referido ao Ezequiel dos séculos VII-VI, sem ser necessário recorrer a uma ficção.

2.2.2 Os profetas “menores”

São assim denominados por serem de menor extensão, se comparados aos outros três livros proféticos. Atualmente, discute-se se os profetas menores são independentes ou estão unidos em um só livro, o “Livro dos Doze”. Se de um lado há elementos que unem alguns desses escritos, há também características próprias a cada um. Não é claro, portanto, se eles formam uma unidade e, caso isso ocorra, em que sentido e em que medida estariam unidos.

a. Oseias

Oseias é o único profeta dos Doze oriundo do Reino do Norte. Seu ministério é datado de meados do século VIII até os últimos anos antes da queda de Samaria (por volta de 722/721 aC). Com a imagem do matrimônio e dos filhos, Oseias aponta para a grave infidelidade de Israel para com Deus. Através da punição, Deus purifica seu povo e então lhe oferece a salvação (Os 2,16-25; 3,1-5; 14,2-9)

b. Joel

O livro traz muitas referências a Jerusalém. Jerusalém possui muros (Jl 2,7-9) e o culto parece estar organizado no Templo (Jl 2,12-17). A partir daí, supõe-se que o livro tenha sido composto após Esdras e Neemias (entre os séculos V e IV aC). Mas há muita controvérsia quanto à sua datação. Sua temática está centrada na vinda do Dia do Senhor, que, no final do livro, se tornará juízo para os pagãos e salvação para Judá (Jl 4,15-17.18-21).

c. Amós

Amós é o mais antigo profeta que tem seus oráculos recolhidos num livro. Oriundo do Reino de Judá (Am 7,10-17), anunciou a Palavra de Deus no Reino de Israel, no século VIII aC, provavelmente pouco antes de 750 (Am 1,1). Ponto central de sua mensagem é a forte crítica ao povo e a seus dirigentes, em virtude do desprezo do direito e da justiça (Am 2,6; 6,1-7; 5,7-27; 8,4-8).

d. Abdias

O profeta é desconhecido. O livro, de apenas um capítulo, apresenta poucos indícios para uma datação exata. Como traz o julgamento contra Edom, parece dever ser colocado após a queda de Jerusalém (587/6 aC). Edom aproveitou-se da ruína de Judá para ocupar alguns territórios e saquear a região (Ab 10-14), o que teria dado ensejo ao livro.

e. Jonas

O livro de Jonas não é um livro profético. Foi acrescentado aos “pequenos profetas” provavelmente para completar o número de doze, considerado perfeito. É uma narração fictícia, de autor desconhecido, entre os séculos IV e III aC. Seu tema central é a reflexão sobre o sentido do profetismo e o desígnio salvífico de Deus, que ultrapassa as fronteiras de Israel. O profeta Jonas referido em 2Rs 14,25 não é o mesmo Jonas do livro.

f. Miqueias

Miqueias exerce seu ministério sob os reis Joatão (740-736 aC), Acaz (736-716 aC) e Ezequias (716-686 aC) (Mq 1,1). Embora profetize em Judá, refere-se também ao Reino do Norte (Mq 1,5-6). Condena fortemente os desmandos sociais e políticos de sua época (Mq 1,2-16). Os pecados do povo acarretarão o juízo de Deus, concretizado na invasão e no domínio assírio. Mas Deus prepara um futuro de salvação (Mq 4,1–5,8; 7,8-20).

g. Naum

O livro versa sobre a ruína de Nínive, capital da Assíria (Na 2,4–3,19). Deus é justo e punirá os opressores (Na 1,11-13; 2,1). Com esse tema, o livro se situa provavelmente entre a tomada de Tebas pelos assírios (entre 668 e 663 aC; a cidade é citada em Na 3,8) e a queda de Nínive (612).

h. Habacuc

Como Hab 1,5-11 fala da ameaça dos babilônios, a época de seu anúncio é possivelmente anterior às deportações para a Babilônia (598/7 e 587/6 aC). O problema central do livro é a questão do mal: por que Deus permite que um povo estrangeiro, pecador, avance e ameace Judá? A resposta é que Deus governa a história e, através do que ocorre, prepara a salvação final para o povo eleito. Para isso é exigida a fidelidade a Deus (Hab 2,4).

i. Sofonias

Segundo o título do livro (Sf 1,1), o profeta exerceu sua atividade no Reino do Sul, nos dias de Josias (640-609 aC), no tempo dos assírios (Sf 2,13-15). Sofonias aponta os desvios do povo: a injustiça e a idolatria (Sf 1,4-6.8-13; 3,1-8). Mas acentua que no meio de Jerusalém/Judá está a presença de Deus (Sf 3,5), que, em última instância, vencerá: Deus eliminará todo o pecado (Sf 3,14-18). O profeta anuncia o Dia do Senhor, quando tanto Jerusalém como os pagãos serão punidos (Sf 1,14-18).

j. Ageu

Profetizou no pós-exílio imediato, na época de Dario I, por volta do ano 520 aC (Ag 1,1; 2,1.10.20). Incentiva o povo a reconstruir o templo. Dessa empresa derivará a prosperidade no país (Ag 1,6-10) e a bênção (Ag 2,19). Ageu anuncia a esperança de, na pessoa de Zorobabel, ser restaurada a dinastia davídica (Ag 2,23).

l. Zacarias

O livro apresenta duas partes distintas. O Proto-Zacarias (c. 1 a 8) contém visões e oráculos; o Dêutero-Zacarias (c. 9 a 14), oráculos escatológicos (ð escatologia).

O Proto-Zacarias remonta ao final do século VI, a partir de 520 aC (Zc 1,7), embora algumas partes possam ser posteriores (Zc 3,1-10, entre outros). O profeta anuncia a proximidade da era salvífica para Jerusalém (Zc 1,14-17; 8,1-8).

O Dêutero-Zacarias anuncia a realização da salvação, com a vinda de um rei messiânico (Zc 9,1-17), e os grandes acontecimentos que então terão lugar (Zc 12,1-14). O povo será purificado da idolatria e dos profetas que anunciam falsamente (Zc 13,1-6). A datação desta parte é muito discutida; pode ser do final do século III aC.

m. Malaquias

A época de anúncio é provavelmente posterior à dedicação do templo (515 aC), antes da reforma de Esdras e Neemias: a metade do século V. Critica, sobretudo, o culto e os sacerdotes, chamando a atenção para o louvor que se deve dar a Deus (Ml 1,6-14) e a fiel observância das normas rituais (Ml 2,6; 3,9). Os pecadores podem progredir na vida cotidiana, mas Deus fará justiça ao fiel (Ml 2,17; 3,14.18). Após a purificação, o povo será reunido e participará da salvação (Ml 3,3-4.17.20). O profeta anuncia o Dia do Senhor, antes do qual enviará seu mensageiro (Ml 3,1).

2.3. A doutrina dos livros proféticos

Os profetas desempenham uma função de grande importância na fé do AT. São intérpretes da Torá, que confrontam com o agir de indivíduos e comunidades, desfazendo falsas esperanças, apontando desvios, exortando a um comportamento adequado às exigências divinas e anunciando o juízo devido ao fechamento do povo às interpelações divinas. Parte essencial de sua mensagem, contudo, diz respeito à expectativa por uma salvação futura, tematizada de diversas formas conforme as épocas e as perspectivas de cada escrito. No centro da mensagem profética está sempre a pessoa de Deus. A partir da imagem de Deus são tematizados os outros pontos de seu anúncio.

a. Deus

Os livros proféticos apresentam uma imagem viva de Deus. É o Deus santo (Is), que demonstra sua glória (Ez), o Deus de amor e misericórdia (Os, Jr), pronto a perdoar (Am, Jl). Mas também um Deus que exige fidelidade e que não aceita os desmandos, seja do povo eleito seja dos outros povos (Na, Hab, os oráculos contra as nações estrangeiras, em diversos livros), desmandos que são tanto a infidelidade para com o próprio Deus (culto) como as transgressões na convivência social.

Durante o exílio babilônico, aprofundou-se a concepção de Deus como Criador de todas as coisas, do que derivou o monoteísmo absoluto e a universalidade de salvação: se Deus criou tudo, então só pode ser único e, assim, todos são chamados a participar de sua salvação (Segundo e Terceiro Isaías).

b. O pecado

Diante deste Deus, que se demonstrou como Santo que acompanha, cheio de amor, a vida de Israel, sobressai, por contraste, o pecado do povo. O pecado é tematizado de diversas formas: é o contrário da santidade de Deus, é desobediência e falta de fé (Is), traição do amor (Os), oposição ao Deus justo (Am); é abominação aos olhos de Deus (Ez) e mentira (Jr). Israel é não só pecador, mas fechado à conversão e é essa atitude que o expõe ao juízo de Deus. Na vida concreta, o pecado se manifesta em três âmbitos: político, social e cultual.

c. A política

Os profetas falam contra a condução de uma política desvinculada da vontade de Deus. São criticadas as classes dirigentes, que conduzem a nação sem respeitar as exigências divinas ou que, ao procurar alianças estrangeiras, o fazem em detrimento da confiança em Deus. No Reino do Norte, Oseias acusa a sucessão monárquica através de intrigas e assassinatos. Em Judá, a questão diz respeito sobretudo à confiança nos meios bélicos e em articulações políticas, sem a fé em Deus, único que realmente pode salvar (Is).

d. Justiça social

A justiça nas relações sociais ocupa parte significativa da mensagem de numerosos livros (Am, Is, Mq, Sf, dentre outros). À honra de Deus devem corresponder as justas relações na comunidade. É apontada, sobretudo, a injustiça para com os mais desprotegidos. Recrimina-se a riqueza que convive com a penúria dos mais pobres, bem como a corrupção dos magistrados e governantes, a falta de compaixão dos credores, as fraudes no comércio e o falso testemunho no tribunal, tudo isso fruto da transgressão da Lei.

e. Crítica ao culto

No aspecto cultual, a mensagem profética segue duas grandes linhas: (a) a crítica à idolatria ou ao sincretismo; (b) a crítica ao culto israelita. Nesta última perspectiva, recrimina-se o culto ao Senhor realizado em proveito dos próprios sacerdotes e das classes dirigentes em geral (Os) ou como meio para “apaziguar” Deus em vez de se realizar uma real conversão (Os; Am). Critica-se ainda, particularmente, a prática cultual desvinculada da observância dos mandamentos, sobretudo em relação à justiça (Is; Am; Mq). Malaquias levanta-se contra o desrespeito e a falta de temor de Deus, manifestada na apresentação de animais defeituosos e ofertas ritualmente impuras (Ml 1).

f. Esperança escatológica (ð escatologia)

Relevante na mensagem profética é também a esperança de um futuro promissor. Essa se baseia no fato que Deus domina a história e quer conduzi-la à sua plena realização. Deus restaurará seu povo, fará com que habite em paz na sua terra própria. Jerusalém será purificada (Is, Ez, Zc), novamente habitada por Deus e, assim, se tornará o centro do mundo (Is 2; Mq 4). Os que dominaram o povo eleito serão eliminados (Na, Hab, Ab, Jl) e com isso Israel viverá para sempre em segurança, em completa felicidade (Sf, Mq).

g. O rei ungido (Messias)

Sobre a promessa feita a Davi de que sua dinastia permaneceria para sempre (2Sm 7), desenvolveu-se, em alguns livros proféticos, a expectativa de um rei justo e sábio, que inauguraria uma época de completo bem-estar para Israel (Is, Jr, Mq 5). Endereçada primeiramente a futuro iminente, esta expectativa será deslocada sempre para um futuro mais distante (ð escatologia), preparando, dessa forma, a vinda definitiva de um rei Messias da parte do Senhor.

2.4. Significado dos livros proféticos

Os profetas gozavam de grande prestígio nas sociedades antigas. Eram respeitados e, quando ligados ao palácio, faziam parte das classes dirigentes, acompanhando as decisões dos governantes pela consulta a Deus. A Palavra da qual o profeta é portador julga o povo e as classes dominantes. Isto lhe confere grande autoridade: é crítico da sociedade e do indivíduo.

Em Israel, o profetismo teve particular importância. No contexto de todo o Antigo Oriente Próximo, somente nesse povo foram conservados livros proféticos. Isto significa que a palavra profética, embora proferida num determinado momento, em vista de circunstâncias precisas, foi considerada válida também para outras situações. A mensagem profética é perene, pois a Palavra do Deus de Israel não volta atrás; tem valor permanente (Is 40,8; 55,10-11).

3 Livros associados à profecia

A Septuaginta e as Bíblias cristãs associaram à profecia os livros de Daniel, Lamentações e Baruc.

3.1 Daniel

Colocado na Setenta e na Vulgata entre os livros proféticos, Daniel encontra-se, na Bíblia Hebraica, entre os “escritos”. Por seu conteúdo, de fato, o livro não se enquadra como profecia. Em sua primeira parte (c. 1–6), são narradas histórias edificantes. A segunda parte (c. 7–12) é composta por visões apocalípticas (ð apocalíptica). Da Setenta constam ainda dois capítulos que trazem narrações didáticas (c. 13–14).

Daniel aparece no livro como um personagem do tempo do exílio babilônico (século VI aC). O conteúdo do livro, porém, indica que ele foi composto em época helenista. A alusão à morte de Antíoco IV (175-164 aC), em 11,45, leva a finalização do livro para os anos em torno de 164.

O livro encontra-se redigido em três línguas: aramaico (2,4–7,28), hebraico (1,1–2,3; 8,1–12,13) e grego (3,24-90; 13,1–14,42). Esta diversidade é de difícil explicação. Supõe-se que foi composto, em parte, a partir de materiais vindos por tradição.

A finalidade do livro é sustentar a fé e a esperança diante de perseguições e adversidades (2,36-45; 3,33; 4,31; 7,14). É possível ao judeu viver sua fé com fidelidade. Deus intervém em favor dos justos e mesmo os estrangeiros reconhecerão o Deus de Israel (c. 1–6). Deus é o senhor da história e conhece seu sentido (2,28). Toda a história caminha para sua consumação, na qual os reinos da terra darão lugar ao reino de Deus (2,18.19.37.44; 4,34; 5,23; 7,9-14). Os c. 7–12, seguindo a mentalidade apocalíptica, ensinam que o inimigo será aniquilado no tempo do fim (8,17-19; 11,36-45). No reino de Deus, o poder caberá ao “Filho do Homem” (7,13-14).

A ressurreição dos mortos é testemunhada em 12,1-3.13. Trata-se da ressurreição de justos e ímpios, com sortes diferentes.

Na parte final do escrito, a história de Susana (c. 13) mostra que Deus julga e faz justiça ao injustiçado; a narração de Bel e da serpente (c. 14) critica as imagens idolátricas e defende o monoteísmo.

3.2 Lamentações

O título hebraico (“Como…!”: 1,1) caracteriza um canto fúnebre. O Talmud dá ao livro o título de “Lamentação”, assim como a Setenta e a Vulgata. O “como” inicial resume o tom de todo o texto, o sentimento que perpassa toda a obra. O livro compõe-se de cinco cantos sobre a queda de Jerusalém, cada um ocupando um capítulo: os quatro primeiros são acrósticos; o quinto tem 22 versos (número de letras do alfabeto hebraico). Apresentam a destruição da cidade, a situação de seus habitantes e mostram a infidelidade do povo, especialmente de profetas e sacerdotes, como a causa da catástrofe (1,8.14-15; 2,14; 3,42; 4,5.13; 5,7.16). O Senhor é justo, mas a medida dos pecados transbordou e pôs em xeque a proteção divina (1,18; 4,12). Há, porém, esperança, em virtude da misericórdia de Deus. Importante é a fé e a conversão para que Deus intervenha e salve (3,24-26.31-33.40-42; 5,19-22).

O livro, obra compósita, pode datar da época do exílio ou pouco após. Embora atribuída a Jeremias a partir da notícia de 2Cr 35,25, não remonta ao profeta.

3.3 Baruc

Consiste numa coletânea de textos de natureza variada, sendo uma parte em prosa (1,1–3,8) e outra em poesia (3,9–5,9). Na tradução da Setenta está colocado entre Jeremias e Lamentações; na Vulgata, após Lamentações. Br 1,1-14 traz uma introdução e situa o texto penitencial que vem a seguir. Nesse (1,15–3,8), explica-se o exílio como resultado do pecado do povo (1,21-22; 3,5). O texto que segue (3,9–4,4) é um hino de louvor à sabedoria. Finalmente, tem lugar uma pregação profética (4,5–5,9) que retoma temas do Segundo Isaías e de Jeremias.

O livro usa a pseudonímia de Baruc, secretário de Jeremias (cf. Jr 36,4). É conhecido somente em grego, embora o original possa ter sido hebraico. Os muitos contatos de 1,15–3,8 com Dn 9,4-19 e de 4,5–5,9 com os Salmos de Salomão (apócrifo do século II aC) indicam para a redação final do livro o século II aC. A situação histórica pressuposta é a da crise helenista que teve lugar neste século.

O livro ensina que o caminho para o povo superar as dificuldades é confessar a culpa (1,15-20) e suplicar o perdão de Deus (2,11-18; 3,1-8). Br 3,9–4,4 trata da excelência da sabedoria, que reside em Israel (3,22-28) e é identificada com a revelação divina (3,37–4,1; cf. Sir 24,23). A última parte do escrito (4,5–5,9) abre a perspectiva da futura restauração (4,30–5,9). Deus é fiel, mesmo diante da infidelidade de Israel. Jerusalém terá de volta a alegria, a paz, a glória (5,1-4).

A Vulgata acrescentou ao livro um sexto capítulo, contendo a chamada “Carta de Jeremias”, que na Setenta figura como um livro à parte. Baseia sua pseudonímia provavelmente em Jr 29. É um tratado que condena a idolatria (6,3-5) e ironiza os ídolos (6,7-14.15-72). Sua datação deve ser do tempo helenista (final do século IV ou no século III aC).

Maria de Lourdes Corra Lima, PUC Rio

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A modernidade e a Igreja católica

Sumário

1 A modernidade

1.1 Mudanças da modernidade

1.2 O processo de secularização

2 A modernidade e a Igreja Católica

2.1 O início das “guerras culturais” na Europa

2.2 A crise modernista

2.3 Compromisso social do catolicismo conservador

3 A modernidade e a Igreja Católica na América Latina

3.1 Consolidação dos Estados e das Igrejas

3.2 Catolicismo social na América Latina

4 Complexa relação da Igreja com a modernidade

4.1 As tentativas de reconciliação da Igreja com a modernidade

4.2 Concílio Vaticano II e Conferências do Episcopado Latino-Americano

4.3 O diálogo necessário com os tempos históricos

5 Referências bibliográficas

1 A modernidade

1.1 Mudanças da modernidade

O mundo ocidental passou por profundas mudanças a partir da segunda metade do século XVIII. Por um lado, a revolução industrial provocou mudanças econômicas e sociais irreversíveis, com consequências muito significativas para a América Latina, que ingressou no comércio atlântico com um novo protagonismo. Por outro lado, no campo político, o regime das liberdades civis e religiosas simbolizado pela “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” levou a um período de turbulência que muitos temiam. Parecia haver “uma relação direta entre o início de 1789 e a destruição dos valores tradicionais na ordem moral, social e religiosa” (AUBERT, 1977, p.44). O mundo ocidental entrou na “era das revoluções”, segundo a expressão clássica de Jacques Godechot – que se estenderia por várias décadas. A revolução das colônias inglesas, a Revolução Francesa, a revolução da América espanhola e as revoluções liberais de 1830 e 1848 suscitaram diversas realidades políticas e sociais. Novos atores coletivos – movimentos ideológicos, partidos, exércitos, estados, repúblicas, nações –  se tornariam os novos protagonistas da história. O liberalismo, a democracia e a cidadania entraram em jogo, tanto na Europa quanto na América.

Estes processos envolveram mudanças de ideias, nas crenças, nos imaginários, nos valores, nos comportamentos. Foi gerado, segundo François-Xavier Guerra, “um novo sistema de referências: a vitória do indivíduo, considerado como o valor supremo e critério de referência com o qual devem ser medidas as instituições e os comportamentos”. Guerra assinala que esta vitória do indivíduo teve consequências significativas no campo da sociabilidade. A nova sociabilidade moderna foi caracterizada pela associação de indivíduos de origem diversa, que se reuniram para discutir em comum e tirar suas próprias conclusões. Salões, clubes, reuniões sociais e associações eram sociedades igualitárias, onde surgiu a “opinião pública moderna, produto da discussão pública e consenso dos seus membros” (GUERRA, 2009, p.40) .

Não se deve, porém, considerar que a modernidade surgiu contra a Igreja Católica. Por um lado, isso envolveria identificar, na íntegra, as origens da modernidade com alguns princípios do Iluminismo do século XVIII. E houve, certamente, iluministas católicos. Por outro lado, não pode ser ignorado, como salienta Christopher Clark, o caráter seletivo e ideológico, no século XIX, do uso dos termos “moderno” ou “antimoderno” (CLARK, 2003, p.46). Em suma,  deve ser matizada a imagem antitética da Igreja e dos católicos que rejeitam em bloco a modernidade.

1.2 O processo de secularização

No contexto da modernização industrial e de mudança nas referências e costumes, foram desenvolvidos processos de secularização, através dos quais algumas  esferas da vida social começaram a ganhar autonomia do âmbito religioso. Não devemos simplificar o conceito de secularização, certamente muito complexo; também não se pode limitar seu desenvolvimento a determinados períodos da história. É preferível conceber a secularização como “desenvolvimento contínuo, como um trabalho permanente da religião que nas nossas sociedades modernas é recomposta, realocada e adquire modalidades múltiplas, fragmentadas, subjetivas, talvez esquivas”. A secularização é – declara Di Stefano – “(…) por um lado, a transição dos regimes da cristandade para os da modernidade religiosa; por outro, a permanente recriação das identidades religiosas que essa passagem colocou em movimento” (DI STEFANO, 2011, p.4).

Este processo se desenvolveu em diferentes níveis e com diversas consequências. De acordo com a proposta de Karel Dobbelaere, podem-se distinguir três níveis de secularização. A “secularização da sociedade” refere-se à relação entre sociedade e religião e à dessacralização progressiva da vida social, estando ligada à laicização promovida pela política. No nível médio, a “secularização organizacional” implica a progressiva autonomia das organizações, a maioria de origem eclesiástica, que se afastam das suas referências morais e religiosas e, gradualmente, se adaptam ao ambiente profano. Finalmente, a “secularização individual” está ligada à menor influência eclesiástica nas crenças e comportamentos das pessoas, o que não implica necessariamente uma diminuição da crença em Deus ou do espírito religioso. (DOBBELAERE, 2002, p.29-43).

Na América Latina, este intrincado processo é mais evidente a partir da segunda metade do século XIX e impactou mais os setores intelectuais – influenciados por correntes de pensamento racionalistas  e positivistas – e nas sociedades de cristianização tardia. A secularização seria sentida especialmente nos grupos de elite que, embora pequenos, desempenharam um papel de liderança na vida política, cultural e social. De qualquer forma, a Igreja Católica continuou a exercer ampla e profunda influência sobre vastos setores sociais e culturais.

Além disso, na maioria das repúblicas latino-americanas, o processo de secularização coincidiu com dois outros processos importantes, o que multiplicou debates e conflitos. Na verdade, a construção dos estados nacionais e a configuração  das Igrejas católicas locais e romanizadas convergiram como  processos não isentos de tensões. Além disso, estes processos também foram agentes e consequências do processo de secularização, que obrigava a estabelecer limites, determinar espaços específicos e redefinir a relação entre o religioso e o político (DI STEFANO, 2012, p.220-222).

2 A modernidade e a Igreja Católica

2.1 O início das “guerras culturais” na Europa

A reafirmação católica, que começou na Europa a partir de 1815, foi consolidada com a Restauração, que revitalizou a aliança entre o trono e o altar. Embora as revoluções liberais fossem acompanhadas por novas ondas anticlericais, ao mesmo tempo em que acontecia o nascimento da sociedade industrial, a vida cristã vivia um período de fortalecimento que durou até 1880. Por um lado, consolidava-se a revitalização e criação das ordens e congregações religiosas. Por outro lado, a ação pastoral se desenvolvia de acordo com um novo espírito, que conferia especial valor à religiosidade popular. Eram tempos de festas dos padroeiros e procissões, obras de juventude e livros religiosos populares, de devoção ao Sagrado Coração, de adoração eucarística e piedade mariana, de construção de  igrejas e grande impulso às peregrinações coletivas.

Em meados de 1846, Giovanni Mastai Ferretti, que percorrera as capitais do Cone Sul na década de 1820, tornou-se o papa Pio IX. Seu pontificado, que durou mais de 30 anos, coincidiu com esse renascimento religioso e com o processo de centralização romana, que parecia estar baseado em alguma apreensão sobre a multiplicidade de igrejas locais e apoiava a subordinação dos bispos às diretrizes de Roma. O papa e seus assessores estavam convencidos que esse era o modo de garantir  a restauração da vida católica e de reagrupar as forças da Igreja para enfrentar os desafios do liberalismo anticristão. Com o apoio das nunciaturas e das congregações religiosas, entre as quais se destacou a Companhia de Jesus, a romanização marcou por décadas a vida da Igreja e teve a entusiasta adesão das massas católicas, atraídas pela integridade e carisma de Pio IX.

Na defesa dos valores cristãos, os católicos romanos e os romanizados adotaram todos os meios modernos de organização, mobilização e comunicação. Eles fundaram jornais e revistas que criticavam o liberalismo político e a cultura secularizada, e apoiaram a criação de partidos políticos para manter a solidariedade e moral dos católicos, criando uma verdadeira rede na Europa e, um pouco mais tarde, na América Latina.

2.2 A crise modernista

Desde meados do século XIX, a afirmação da Igreja de Roma como uma referência para a Igreja universal, bem como as progressivas condenações das ideias liberais e dos avanços do racionalismo levaram à crescente rejeição dos grupos dominantes e daqueles que interpretavam a posição do Vaticano como um anúncio de ruptura com a modernidade. Além disso, entre 1861 e 1870, a “questão romana”, sobre o papel de Roma como a capital dos Estados Pontifícios ou como capital do Reino da Itália em formação, motivou o alinhamento da sociedade católica europeia com o papa, cuja plena liberdade foi reivindicada.

Na Constituição Apostólica Ineffabilis Deus, de 1854,  Pio IX definiu o dogma da Imaculada Conceição de Maria. Em 8 de dezembro do mesmo ano, festa da Imaculada Conceição, foi promulgado o decreto correspondente. Maria, chamada a ser a Mãe de Deus, foi preservada do pecado original, a partir do qual veio a fraqueza inicial da razão humana. Exatamente dez anos depois, em 8 de dezembro de 1864, Pio IX publicou a encíclica Quanta Cura, acompanhada por um catálogo de oitenta proposições que foram consideradas inaceitáveis, conhecido como Syllabus errorum. Neste documento, Pio IX condenou erros rejeitados por todas as escolas teológicas e incluiu advertências contra o totalitarismo do Estado e contra os excessos do liberalismo econômico. Ele também se opôs abertamente à concepção liberal da religião e da sociedade – o monopólio estatal da educação, à secularização das instituições, à separação de Igreja e Estado, à liberdade de culto e de imprensa. O último dos erros condenados era o seguinte: “O Romano Pontífice pode e deve se reconciliar com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna”. O Syllabus foi um texto controverso e provocou reações complexas dentro e fora da Igreja Católica, especialmente entre os católicos liberais da França e da Bélgica (AUBERT, 1977, p.49-50). O avanço das tropas italianas, a desconfiança diante da Prússia protestante, a pressão exercida pela burguesia anticlerical prevalecente em repúblicas liberais e os impulsos do socialismo, consolidado com a reunião da Primeira Internacional em Londres, em 1864, a propagação do positivismo cientificista e o evolucionismo de Charles Darwin, além do desenvolvimento da propaganda secularista tinham provocado um forte alarme, levando à exasperação dos ânimos e  a condenações contundentes.

A invasão dos Estados Pontifícios e a queda de Roma, em setembro de 1870, agravariam a “questão romana”. No Concílio Vaticano I, aberto em 8 de dezembro de 1869 e suspenso pela entrada das tropas italianas em Roma, foram aprovados, após tensos debates, dois documentos importantes: a constituição dogmática Dei Filius – que reafirmou os fundamentos do cristianismo diante dos erros modernos: o racionalismo, o materialismo e o ateísmo – e a constituição Pastor Aeternus – que determinou o primado do bispo de Roma e a infalibilidade papal.

Entre 1870 e 1914, a “crise modernista” atingiu seu ápice e afetou as principais nações da Europa ocidental: o Império Austro-Húngaro, a Alemanha, a Inglaterra, a França, a Bélgica e a Itália. A exegese bíblica de origem protestante e a publicação das primeiras obras evolucionistas de Charles Darwin influenciaram esse processo. O papado e as sociedades católicas resistiram, de vários modos, aos avanços da secularização e ao anticlericalismo. No entanto, em 1878 começara o pontificado do Papa Leão XIII, marcado pela prudência e o estilo pedagógico. Embora o novo pontífice mantivesse a condenação ao liberalismo – a liberdade de religião, imprensa, educação e de consciência – ao indiferentismo e ao secularismo, suas propostas foram renovadoras no campo social e mesmo no político, com as encíclicas Catholicae Ecclesiae (1890), Rerum Novarum (1891) e  Graves de Communi Re (1901).

No início do século XX, a revitalização do denominado modernismo teológico, influenciado pela teologia protestante, especialmente a Escola de Tübingen, causou novos atritos. Nesta nova fase, destacaram-se o teólogo francês Alfred Loisy (1857-1940) e o jesuíta irlandês George Tyrrell (1861-1909), ambos condenados. Segundo o cardeal Desejo Mercier, Arcebispo de Malines, renomado teólogo neotomista e reitor da Universidade Católica de Lovaina, o modernismo teológico tinha, na sua origem, dois grandes erros: primeiro, “o suposto antagonismo entre a Igreja e o progresso”, e segundo, “a assimilação inconsciente da constituição da Igreja Católica às organizações políticas das sociedades modernas”, ignorando a autoridade do Papa e dos bispos como “continuadores da missão apostólica” de Jesus Cristo (MERCIER, 1907, p.35-38).

Em 1907, a encíclica Pascendi Dominici gregis, de Pio X, condenou o modernismo como “a síntese de todas as heresias”. Também foi instituído o “juramento antimodernista”, obrigatório para “todo o clero, os pastores, confessores, pregadores, superiores religiosos e professores de filosofia e teologia nos seminários”.

2.3 Compromisso social do catolicismo conservador

Paralelamente à condenação da modernidade, manifestou-se, tanto na Europa como no continente americano, um compromisso progressivo dos católicos conservadores contra a “questão social”. Várias propostas e diversas denúncias  tinham em comum a rejeição contundente do liberalismo individualista e do socialismo, associado com o uso da violência. Em 1848, Frederico Ozanam lançou seu chamado “Vamos aos bárbaros e sigamos Pio IX”; os “bárbaros” eram os trabalhadores – considerados perigosos por muitos cristãos – acuados pela mecanização e cujas necessidades Ozanam conhecia bem. Seguiram as advertências de numerosos bispos: Dom Wilhelm Ketteler, em Mainz, o bispo Maurice de Bonald, em Lyon, o arcebispo Henry Edward Manning, em Westminster, o então bispo Vincenzo Pecci, em Perugia, futuro Leão XIII, apelando ao compromisso dos leigos católicos. Os objetivos eram a defesa da Igreja, acossada em várias frentes, e a reconquista da sociedade para Cristo.

Embora o catolicismo social nascente incluísse várias tendências, a corrente mais antiliberal prevaleceu, em parte como resultado das revoltas de 1848. Neste contexto, houve o encontro das várias fontes do catolicismo social. Prisioneiros durante a guerra franco-prussiana, os franceses Albert de Mun e Rene de la Tour du Pin descobriram o catolicismo social alemão e a figura de Mons. Ketteler. Uma vez livres, De Mun e La Tour du Pin promoveram os Círculos Católicos de Operários na França. Esta obra se difundiu por toda a Europa e contribuiu significativamente para a recristianização das classes dominantes e o fortalecimento dos núcleos de operários cristãos.

A coordenação do catolicismo social europeu foi estimulada a partir da queda de Roma, com a associação de leigos católicos conservadores, muito próximos às questões sociais. Em outubro de 1870, com o apoio papal, surgiu em Genebra o “Comitê de Defesa Católica”, também chamado “Comitê de Genebra”, presidido por Mons. Gaspard Mermillod, bispo auxiliar de Lausanne-Genebra. Composto por importantes católicos da Áustria, França, Suíça, Bélgica e Países Baixos, o Comitê desenvolveu duas tarefas importantes: por um lado, a publicação do jornal Correspondance de Genève, que  transmitia informações que vinham secretamente do Vaticano; por outro, o impulso da sociedade católica através de contatos permanentes com comitês católicos europeus e com o Vaticano. A partir de 1871, os membros do Comitê denominaram-se “Internacional cristã ou católica”, e “Internacional Preta” e a “questão social” ocupou uma posição privilegiada entre os temas das suas reuniões anuais. Eles argumentavam que o grande desafio social da Igreja era o combate à pobreza e recomendavam um maior compromisso social do clero, o estabelecimento de associações de trabalhadores cristãos, a organização de conferências populares, a criação de uma imprensa popular e, acima de tudo, “a restauração do direito público cristão”, fundamento social indispensável. Em 1875, o Comitê aprovou o princípio do intervencionismo social do Estado e pediu aos católicos para promover o controle do trabalho de mulheres e crianças, melhorar a habitação dos trabalhadores e preservar o descanso dominical.

Personalidades vinculadas ao Comitê de Genebra ou seus congressos integraram os círculos de estudo e comissões que deram origem à União de Friburgo, presidida por Mermillod, criada em 1885 e ativa até 1891. Sob a influência da Escola vienense e de La Tour du Pin, a União de Friburgo deu forma ao corporativismo organicista que era  frontalmente oposto ao capitalismo liberal. Com laços com o antigo Comitê de Genebra, este laboratório de ideias influenciou, em alguns aspectos, a preparação da encíclica Rerum Novarum e a definição da doutrina social da Igreja, que incluia, também, elementos mais democráticos (LAMBERTS, 2002, p.15-101).

3  A modernidade e a Igreja Católica na América Latina

3.1  Consolidação dos Estados e das Igrejas

Ao complexo início da vida independente dos jovens estados ibero-americanos, seguiu-se o desenvolvimento de dois processos paralelos de concentração de poder. Por um lado, no nível do governo civil, houve a consolidação gradual do poder do Estado nas novas nações. Por outro, as autoridades eclesiásticas reivindicavam a sua autonomia e se aproximaram gradualmente de Roma, o que envolvia a revisão do conceito histórico do padroado régio. Como resultado, se multiplicaram os conflitos em torno dos dois eixos, a diferente interpretação do alcance jurídico do direito de padroado e a concepção também diferente de Igreja, para uns, uma instituição dependente do Estado, para outros, uma sociedade independente e soberana.

Nos confrontos das autoridades eclesiásticas, zelosas de sua autonomia, com as reivindicações dos governos republicanos para serem herdeiros do padroado real, o apoio da Santa Sé foi decisivo. Além disso, a defesa do ultramontanismo e as duras condenações às ideias liberais por parte do papado provocaram a crescente rejeição dos grupos intelectuais, dos líderes políticos e de todos aqueles que interpretavam as posições do Vaticano e das Igrejas locais como um anúncio do afastamento – e até  ruptura – com a modernidade.

Este processo de consolidação das Igrejas católicas locais, em comunhão com o papa, ocorreu através de instrumentos precisos. Além da presença, em algumas cidades, dos legados papais, pode-se mencionar, também,  o trabalho constante para uma melhor formação do clero, através do estabelecimento ou restabelecimento de seminários, muitas vezes sob a direção da Companhia de Jesus, e a formação de sacerdotes em Roma. Neste sentido, em 1858, foi fundado o Colégio Pio Latino-americano, sob responsabilidade dos padres jesuítas, que recebeu seminaristas de todo o continente, futuros bispos e formadores do clero. Também se desenvolveram a imprensa católica, os centros culturais e os centros de ensino católicos, com o objetivo de atingir todos os níveis socioeconômicos. A chegada de numerosas congregações religiosas de vida ativa, dedicadas à educação ou ao trabalho social, vindas da Europa, foi outra contribuição fundamental neste período. Analogamente, seguindo o modelo europeu, se organizaram Congressos Católicos com importante participação do laicato: em Buenos Aires, em 1883, em Montevidéu, em 1889, no México, em 1903. Por fim, os bispos latino-americanos reafirmaram sua lealdade a Roma com a participação no Concílio Vaticano I – 48 dos 700 participantes eram da América Latina – e no Concílio Plenário Latino-americano em 1899 (LYNCH, 2000, p.78-79).

Durante todo este processo, foi determinante o papel dos bispos, que marcaram profundamente as igrejas locais. Uma geração de prelados nomeados pelo Papa Pio IX a partir do final da década de 1840 caracterizou-se por um forte perfil missionário, por sua proximidade com Roma e pelos confrontos com os governos liberais, que muitas vezes culminaram com o exílio. Em 1847, Rafael Valentin Valdivieso foi nomeado arcebispo de Santiago do Chile; em 1852, Silvestre Guevara e Lira foi nomeado arcebispo de Caracas; em 1853, Pedro Espinosa e Davalos assumiu como bispo de Guadalajara (México) e como primeiro arcebispo em 1863; em 1854, Mariano José de Escalada foi nomeado bispo de Buenos Aires e, em 1866, primeiro arcebispo. Todos participaram do Concílio Vaticano I. Sob a liderança de Leão XIII, se consolidou uma nova geração, formada no Colégio Pio-Latino-americano, doutorada na Universidade Gregoriana e mais comprometida com a ação educativa e social da Igreja. Entre eles estavam os participantes do Concílio Plenário Latino-americano: Pedro Rafael González e Calixto, bispo de Ibarra em 1876 e arcebispo de Quito em 1893; Mariano Soler, bispo de Montevidéu em 1881 e primeiro arcebispo em 1897; Jerônimo Tomé da Silva, bispo de Belém do Pará desde 1890 e arcebispo de Salvador em 1893.

Todos representavam, nas palavras de Christopher Clark, o “Novo Catolicismo”, cujo discurso reafirmou a influência “civilizadora” da Igreja Católica ao longo da história ocidental. O cristianismo era sinônimo de civilização e a melhor sociedade possível era a fundada na fé cristã, na prática das virtudes religiosas e na presença docente e orientadora da hierarquia católica.

3.2  Catolicismo social na América Latina

Como na Europa, os círculos católicos conservadores expressaram um forte compromisso com as primeiras manifestações da “questão social”. A formação de círculos de trabalhadores, associações de socorro mútuo e cooperativas foram as primeiras ações do movimento social cristão na América Latina. A partir da década de 1870, foram fundados círculos católicos de trabalhadores em várias cidades latino-americanas. Em 1878, o padre Ramón Angel Jara e Abdon Ruiz Cifuentes promoveram a fundação do primeiro Círculo Católico dos Trabalhadores em Santiago do Chile e o modelo foi replicado em outras cidades do Chile. Também em Santiago, em 1885, foi criada a Associação de Trabalhadores São José, impulsionada pelo padre espanhol  Hilario Fernandez e pelo vigário geral da Arquidiocese de Santiago, Joaquín Larraín Gandarillas. Nesse mesmo ano, nasceu, em Montevidéu, o primeiro Círculo Católico dos Trabalhadores, por iniciativa de um grupo de leigos da Ordem Terceira Franciscana. Na Argentina, o primeiro Círculo dos Trabalhadores foi fundado em Buenos Aires, em fevereiro de 1892, pelo alemão redentorista padre Federico Grote. No México, a primeira União de Círculos Católicos de Trabalhadores, ou União Católica Operária, emergiu do Congresso Católico de 1907. Em todos os casos, os círculos de trabalhadores foram uma das propostas mais notórias para combater as consequências da pobreza e instruir os trabalhadores na doutrina social cristã.

A recepção da encíclica Rerum Novarum de Leão XIII, em maio de 1891, assumiu características diversas nas Igrejas da América Latina, em função tanto do desenvolvimento econômico e social de cada nação, quanto do grau de comprometimento da hierarquia, do clero e do laicato com a “questão social”. Sua implementação se deu primeiro na Argentina, Chile, Uruguai, Brasil e México, e mais tarde na Colômbia e em Cuba. De qualquer forma, prevaleceu o que Gerard Cholvy chamou de “interpretação minimalista” da Rerum Novarum, própria dos católicos conservadores, que consideraram excessivas algumas das propostas da encíclica ou que concluíram que ela não estava dirigida às suas respectivas sociedades. Na Argentina, a imprensa católica divulgou amplamente a encíclica, mas não houve comentários de Mons. Federico Aneiros, arcebispo de Buenos Aires. No Chile, a divulgação do documento foi acompanhada por uma carta pastoral do arcebispo de Santiago, Dom Mariano Casanova, insistindo na ameaça do desenvolvimento do socialismo e do ressentimento entre os grupos sociais. No México, no regime de Porfirio Diaz, a encíclica foi publicada e divulgada em várias regiões pelo clero e organizações católicas; os bispos mantiveram um relacionamento mais conciliador ou ambivalente com o governo. A recepção da encíclica de Leão XIII foi tardia no Uruguai; Mariano Soler, bispo de Montevidéu desde 1890, publicou, seis anos depois, a Carta Pastoral sobre a Igreja e as Questões Sociais e um volumoso ensaio complementar A questão  social ante as teorias racionalistas e o critério católico (SARANYANA, 2001, p.199-255).

4   Complexa relação da Igreja com a modernidade

4.1 As tentativas de reconciliação da Igreja com a modernidade

A partir de meados do século XIX e ao longo do século XX, houve momentos de particular intensidade nas controvérsias, entre os próprios católicos, sobre as relações da Igreja com as liberdades modernas. A ênfase dessas discussões transitou por temas políticos, sociais ou puramente teológicos; seu eixo se situaria no complexo equilíbrio entre o respeito à doutrina e ao magistério da Igreja e a necessidade de diálogo e integração na sociedade em constante mudança.

No início, a crise do catolicismo liberal, tanto na Europa como na América Latina, centrou-se nas novas propostas políticas e nas relações entre a Igreja e o Estado. Ele enfrentou os apoiantes do antigo regime e aqueles que aderiram à, depois denominada, “autonomia do temporal”; ambas posições manifestaram suas fraquezas quando se tornaram extremas (AUBERT, 1977, p.45). Este episódio motivou a primeira manifestação do chamado “catolicismo de conciliação” – um retorno às fontes e com vontade de ajustar-se aos tempos da democracia política, do liberalismo econômico e da liberdade cultural. Seria confrontado com o “catolicismo de rejeição”, que significava a aceitação, por parte de alguns setores da Igreja, de firmes posições defensivas da tradição, mesmo de fechamento (MALLIMACI, 2004, p.27-28). Nesse sentido, a publicação do Syllabus, em 1864, criaria uma confusão acentuada entre as mentes modernas, também “membros” da Igreja.

Nas duas primeiras décadas do século XX, deu-se o segundo momento de polêmica aguda, com a propriamente dita “crise modernista”, de caráter marcadamente intelectual. Seus protagonistas tentaram abrir o diálogo entre a cultura católica e as modernas correntes de pensamento no campo científico, histórico e crítico. As tentativas de relacionar fé e história, de aprofundar e comparar os ensinamentos de Jesus de Nazaré e os ensinamentos da Igreja necessitavam trabalho bem fundamentado e consistente, exigiam guias e mestres; nem sempre o conseguiram. A nova tentativa de “reconciliação” provocou uma nova “rejeição”. Em 1907, a encíclica Pascendi, de Pio X, condenou os trabalhos de exegeses bíblicas como iniciativas anticatólicas e definiu os “modernistas” como “inimigos internos”. As consequências foram complexas: por um lado, consolidou-se a corrente fundamentalista, que passou a resistir à modernização da sociedade e a confrontar as possíveis mudanças dentro da própria Igreja, mesmo através de obras lamentáveis como La Sapinière; por outro lado, deu-se um desenvolvimento constante dos estudos bíblicos e da história das religiões – o Pontifício Instituto Bíblico de Roma, a Escola Bíblica de Jerusalém – com o acompanhamento romano, com a criação da Pontifícia Comissão Bíblica.

Um terceiro momento se manifestou, a partir do final da década de 1940, quando reapareceram o “catolicismo de conciliação” e o “catolicismo de rejeição” com base nas  renovadoras obras teológicas desenvolvidas pelos dominicanos em Le Saulchoir (Etioles-sur – Seine, França) e pelos jesuítas em Fourvière (Lyon, França). Esta Nouvelle Théologie se opôs ao intelectualismo escolástico, aprofundou o estudo dos Padres da Igreja e questionou a distância entre a teologia e a cultura moderna. Também motivou as censuras promovidas pela encíclica Humani Generis, do Papa Pio XII, em 1950, e os expurgos de Fourvière e Le Saulchoir alguns anos mais tarde. Menos de quinze anos mais tarde, vários dos teólogos censurados atuariam como peritos no Concílio Vaticano II. Jean Daniélou, SJ, Yves Congar, O.P., e Henri de Lubac, SJ, seriam nomeados cardeais.

4.2 Concilio Vaticano II e Conferências do Episcopado latino-americano

O processo de reunificação das Igrejas da América Latina recém havia começado, com a reunião da Primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-americanos no Rio de Janeiro, em 1955 – da qual surgiria  o CELAM – quando se iniciaram os trabalhos preparatórios para o Concílio Vaticano II em 1959, impulsionado por João XXIII.

O Concílio Vaticano II representou, de acordo com Alberto Methol Ferré, a primeira superação da modernidade pela Igreja. “Para este aggiornamiento a Igreja tinha de reassumir o conjunto da modernidade, da qual se tinha defendido no processo de decomposição da antiga cristandade medieval e barroca” (METHOL e METALLI, 2006, p.64) Não sem dificuldade, a Igreja teria conseguido, no Vaticano II, responder aos desafios da Reforma protestante e do Iluminismo secularista, assumindo seus desafios e assimilando o melhor de cada um desses processos.

No entanto, o Concílio Vaticano II,  que abriria uma nova era na história da Igreja Católica, foi vivido de forma tênue pelas Igrejas latino-americanas. “As Igrejas da América Latina recriaram o Concílio, uma vez concluído” – diz Methol. De fato, ao final dos anos sessenta, “a lógica do Concílio” entrou na América Latina através da Constituição Apostólica Gaudium et Spes, de dezembro de 1965, da encíclica Populorum Progressio, de março de 1967, e da reunião da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín, em meados de 1968 (METHOL e METALLI, 2006, p. 62).

Três anos após o encerramento do Concílio, realizou-se a Conferência de Medellín, que causou uma mudança sem precedentes nas igrejas e nas sociedades latino-americanas. A partir da revalorização da dimensão humanista, não por isso  menos transcendente, do cristianismo, a Conferência de Medellín contribuiu para o aumento da preocupação com a justiça e para a revalorização do enfoque da política com sentido de serviço. “A preocupação não [foi] a ‘defesa da fé’, como no Rio de Janeiro, mas a radical solidariedade da Igreja com os pobres e oprimidos da América Latina e no sentido bíblico da irrupção do Deus  libertador na história” ( METHOL, 1986).

A Igreja latino-americana atravessou, na década seguinte, um processo de riscos e de valiosas definições. Os resultados da elaboração e reflexão teológica latino-americana se manifestaram na III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Puebla, em 1979. Fortemente inspirada pela Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, a Conferência de Puebla focou no tema da evangelização continental e concluiu com uma reafirmação da necessidade de conversão de toda a Igreja a uma opção preferencial pelos pobres, com vista à sua completa libertação.

4.3 O diálogo necessário com os tempos históricos

Em sua relação com as mudanças dos tempos históricos se manifesta a complexidade das definições eclesiais. A Igreja Católica é certamente una, por sua fé em Jesus Cristo, suas verdades doutrinais e seu seguimento do magistério doutrinal; a Igreja também é diferente porque deve se inserir dentro de circunstâncias históricas e culturais em constante mudança, e deve dialogar com elas.

Nesse sentido, o compromisso com a unidade e com a pluralidade envolve riscos. O olhar que se concentra exclusivamente na unidade poderia levar a atitudes fundamentalistas e à rejeição de toda manifestação de “catolicismo de conciliação”. De outro modo, o olhar que enfatiza somente a diversidade poderia cair em posições relativistas, porque a conciliação nem sempre é possível.

“Dialogar com o mundo exige ser perfeitamente bilíngues, ou seja, levar a revelação de Jesus Cristo na própria carne e conhecer as linguagens contemporâneas dos homens” (POUPARD, 2005, p.26), afirmou o cardeal Poupard, em 2004, convidando a serem fiéis à fé e ao mesmo tempo abertos e inovadores.

Susana Monreal, Universidad Católica de Uruguay. Texto original em espanhol.

5 Referências bibliográficas

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DI STÉFANO, R. De qué hablamos cuando decimos “Iglesia”? Reflexiones sobre el uso historiográfico de un término polisémico. Ariadna histórica. Lenguajes, conceptos, metáforas, n.1, p.197-222, 2012. Disponível em: www.ehu.eus/ojs/index.php/Ariadna/issue/view/476. Acesso em: 20 out 2015.

DI STÉFANO, R. Por una historia de la secularización y de la laicidad en la Argentina. Quinto Sol, v.15, n.1,  2011. Disponível em: http://ojs.fchst.unlpam.edu.ar/ojs/index.php/quintosol/article/viewFile/116/94 Acesso em: 20 out 2015.

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GUERRA, F.-X. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. Madrid: Encuentro, 2009.

LYNCH, J. La Iglesia Católica en América Latina. 1830-1930. In: BETHELL, L. (Ed.). Historia de América Latina. 8. América Latina: Cultura y sociedad. 1830-1930. Barcelona: Crítica, 2000. p.65-122.

MALLIMACI, F. Catolicismo y liberalismo: las etapas del enfrentamiento por la definición de la modernidad religiosa en América Latina. In: BASTIAN, R. (Coord.) La modernidad religiosa. Europa latina y América Latina en perspectiva comparada. México: Fondo de Cultura Económica, 2004. p.19-44.

MERCIER, D. Le modernisme, sa position vis-à-vis de la science, sa condamnation par le Pape Pie X.  Bruxelas: L’Action Catholique, 1907.

METHOL FERRÉ, A. La Iglesia en América Latina. Revista Nexo, v.4, n.10, dic 1986. Disponível em: http://www.ili-metholferre.com/detalle_de_pagina.php?entidad =articulo&pagina=88  Acesso em: 3 fev 2016.

METHOL FERRÉ, A.; METALLI A. La América Latina del siglo XXI. Buenos Aires: Edhasa, 2006.

POUPARD, P. La identidad de los Centros Culturales y los jóvenes en busca de la belleza que cautiva. In: Encuentro de Responsables de Centros Culturales Católicos del Cono Sur. Documentos. Salta: Consejo Pontificio de la Cultura, Arzobispado de Salta, 2005. p.17-32.

Para saber mais

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FOUILLOUX, E. Une Église en quête de liberté. La pensée catholique française entre modernisme et Vatican II (1914- 1962). Paris: Desclée de Brouwer, 1998.

LAMBERTS, E. (ed.) The Black International. L’Internationale noire (1870-1878). Leuven: Leuven University Press, 2002.

MICELI, Sérgio.  A Elite Eclesiástica Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

RODRIGUES, Cândido; ZANOTTO, Gizele; CALDEIRA, Rodrigo Coppe (org.). Manifestações do pensamento católico na América do Sul. São Paulo: Fonte Editorial, 2015.

Igreja e sociedade

Sumário

1 Relação Igreja-sociedade na história

2 Diferentes imagens explicativas da relação

3 Passagens importantes da Escritura

4 As aproximações das  diferentes denominações cristãs

5 Relação Igreja-sociedade na atualidade: o paradigma democrático de separação Igreja-Estado

6 O desafio da secularização e a privatização da religião

7 Propostas de presença pública da Igreja nas sociedades plurais

7.1 O modelo da lei natural

7.2 Propostas de teologia pública

7.3  Propostas da teologia da libertação

7.4 Propostas de Igreja como comunidade alternativa

8 Referências bibliográficas

1 Relação Igreja-sociedade na história     

A relação entre a Igreja e a sociedade mudou muito ao longo da história do cristianismo e de acordo com as diferentes denominações cristãs. Desta forma, podemos ver momentos de profunda oposição entre a Igreja e a sociedade, como durante as perseguições do Império Romano, durante a Revolução Francesa ou os regimes liberais; e  tempos de conluio claro, como durante o final do Império Romano, depois do Edito de Tessalônica do ano 380, ou durante a Idade Média na Europa.

Como veremos, este problema pode ser apresentado de duas maneiras: de modo mais reduzido, como relação entre Igreja e Estado – entendida como parte da sociedade – ou, de modo mais amplo, enquanto relação geral da Igreja com a sociedade como um todo. Se o principal problema foi a primeira forma de relação durante grande parte da história do cristianismo, hoje é a segunda que está em evidência com o debate sobre a privatização das religiões.

2 Diferentes imagens explicativas da relação

A grande imagem explicativa da relação Igreja-sociedade tem sido, historicamente, a ideia das duas cidades presentes na história, a cidade de Deus e a cidade terrena, que propõe Agostinho em A cidade de Deus. A imagem das cidades é uma teologia da história que foca no amor que move aos homens, seja o amor-próprio, no caso da cidade terrena, ou o amor de Deus, no caso da cidade celestial (Livro XIV, 28). Ambas sociedades humanas coincidem na história e ambas se distribuem para os seres humanos existentes (Livro XV, 1). A origem e a finalidade da cidade celestial é Deus. Além disso, parte da cidade terrena, a Igreja, simboliza na história a Cidade de Deus (Livro XV, 2) Apesar do extenso tratamento desta imagem por parte de  Santo Agostinho, é difícil saber com precisão a relação concreta que ele propõe para ambas as cidades e ainda mais difícil saber a  relação da Igreja com elas. Esta dificuldade em interpretar fielmente o pensamento de Santo Agostinho implica que essa mesma imagem possa ser  entendida tanto como uma relação de colaboração entre a Igreja e a cidade terrena quanto uma relação de antagonismo.

Outro paradigma explicativo importante é proposto pelo teólogo alemão Ernst Throeltsch (1865-1923). Ele estudou as diferentes denominações cristãs em relação à sua visão da sociedade, e isso lhe permitiu propor uma distinção básica entre elas. Assim, Troeltsch diferencia, em sua obra Os ensinamentos sociais das igrejas cristãs, publicado em alemão em 1912, a categoria “seita” ou comunidade eclesial, que se limita apenas a dar um testemunho pelo seu modo de vida, e a categoria “igreja”, que considera que a comunidade cristã tem responsabilidades na configuração do conjunto da sociedade (TROELTSCH, 2009).

Talvez a tipologia explicativa mais abrangente a este respeito seja oferecida pelo teólogo americano H. Richard Niebuhr (1894-1962) em seu livro Cristo e a cultura (NIEBUHR, 1951). Neste trabalho, o autor identifica cinco diferentes pontos de vista da relação entre Igreja e sociedade: Cristo contra a cultura, o Cristo da cultura, Cristo na cultura, Cristo e a cultura como paradoxo, e Cristo transformador da cultura. Niebuhr  associa, de modo geral, cada categoria a uma confissão cristã. O autor favorece claramente a última categoria, Cristo transformador da cultura, que ele identifica com sua própria confissão calvinista.

3 Passagens importantes da Escritura

É possível ver uma base comum para a percepção do relacionamento das denominações cristãs com a sociedade inspirada, principalmente, em Mt 22,15-21 e em seu chamado para dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Esta base implicaria uma distinção entre Igreja e sociedade,  em contraste, por exemplo, com a visão da tradição muçulmana que tende a ver a religião e a sociedade como um todo inseparável.

Em seu comentário sobre o Evangelho de Mateus, Ulrich Luz considera, no entanto, que não é possível desenvolver toda uma teoria do Estado a partir desta passagem, pois essa não era a intenção do evangelista (LUZ, 2003, p.332-343). O autor do Evangelho de Mateus visa, unicamente, mostrar a malícia dos fariseus ante Jesus, ao tentar apanhá-lo numa armadilha, e como Jesus se saiu bem. Contudo, é certo que a história da interpretação da passagem a identificou como chave para entender a relação Igreja-sociedade. Especificamente, a tradição tem enfatizado o versículo 21, se perguntando se a obrigação de obediência a Deus e a obrigação fiscal de pagar o tributo a César são do mesmo nível.

Para Luz, uma interpretação rigorosa da passagem deve reconhecer que a mensagem principal é que a obediência a Deus está acima de qualquer outra, embora isso não signifique necessariamente negar essas outras obediências. Assim, reconhece-se que a obediência ao Estado é necessária, mas afirma que nunca pode ser superior à obediência a Deus. Deus é o Senhor acima de toda autoridade. Luz adverte, porém, que um perigo a evitar na interpretação dessa passagem é identificar a obediência a Deus com a obediência à Igreja.

Outra passagem importante que marcou a história das relações entre a Igreja e a sociedade é Rm 13,1-7. Neste trecho da Carta aos Romanos, Paulo chama a submeter-se à autoridade civil, porque “não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13,1) Esta afirmação tem sido historicamente usada para exigir da comunidade cristã a obediência ao Estado e ao poder político. Foi, assim, uma passagem clássica para legitimar formas absolutistas de governo.

Simon Légasse reconhece, estudando essa passagem, que Paulo faz uma chamada à submissão ante as autoridades civis e que existe uma visão implícita subjacente sobre a relação entre a Igreja e sociedade (LEGASSE, 2002, p.807-834). No entanto, Legasse afirma que esta posição de Paulo responde a uma situação histórica particular: os primeiros momentos da comunidade cristã, quando ainda não há perseguição por parte do Estado romano e é possível encontrar cristãos e homens prudentes (como Sêneca) no governo do Império. O ensinamento de Paulo é uma verdadeira teologia do poder civil, porque evidencia que a autoridade política é necessária para a vida em sociedade e que é querida por Deus como servidora de seus planos. A comunidade cristã, para viver comprometida com a sua sociedade, deve reconhecer isto e respeitar a sua autoridade. No entanto, esta mesma teologia legitimaria a desobediência ou a crítica ao poder se não cumprir o seu papel como um servo do plano de Deus e da sociedade.

4 As aproximações das diferentes denominações cristãs

Além desta base bíblica comum, podemos identificar diferentes posições segundo a interpretação dessas passagens em função da história e circunstâncias de cada confissão cristã. Estas posições diferentes nos oferecem alternativas de interpretação das fontes cristãs que nos permitem continuar a aprofundá-las.

Por um lado, a posição católica – do Papa Gelásio I, em 496, e seu argumento do Duo sunt contra o imperador bizantino – tem defendido a existência de dois poderes independentes, Igreja e Estado, um espiritual e outro temporal, com ordens jurídicas diferentes: civil e eclesiástico. Ambas as ordens têm, no entanto, um quadro moral  comum de fundo, que é normalmente expresso pela lei natural. Igreja e Estado são, portanto, consideradas duas “sociedades perfeitas”, ou seja, elas têm em si mesmas todos os recursos para atingir seu fim e não precisam da intervenção da outra. Elas se diferenciam pelo fim de cada uma: o bem comum terrestre da sociedade e o bem comum espiritual da Igreja. Considera-se que o fim da Igreja é superior ao do Estado e que o engloba.

Por outro lado, a ortodoxia diferencia Igreja e sociedade-Estado, mas fala de uma relação “sinfônica” entre as duas, ou seja, há o reconhecimento mútuo e respeito sem a pretensão de estar uma acima da outra. Esta visão é o desenvolvimento da experiência do intervencionismo dos imperadores bizantinos na vida da Igreja Ortodoxa.

Lutero, reagindo à confusão entre o poder político e religioso da Renascença, desenvolveu sua teoria dos dois reinos. Esta teoria, difícil de precisar em suas concreções, assume que as esferas da Igreja e da autoridade política (o magistrado) são completamente diferentes, sendo a da Igreja puramente espiritual, e sendo a ação temporal do Estado necessária para conter o mal dos homens. Portanto, a Igreja não pode intervir na vida temporal e a lógica do Estado não pode ser contrastada pela Igreja. Ao mesmo tempo, o Estado tem a responsabilidade de lidar com a dimensão temporal da vida da Igreja.

Calvino tem uma visão mais positiva do Estado que Lutero e acredita que o Estado pode contribuir para o bem-estar do homem, e não só para conter o pecado. Calvino propõe ainda um sistema de equilíbrio de poderes dentro do governo. Nisso há forte influência da concepção que propõe as profissões civis como vocações cristãs. Estado e Igreja devem cooperar para o bem da sociedade, mas se o governante se levanta contra Deus, perde a sua autoridade e deve ser deposto.

É particularmente interesse a compreensão da relação entre Igreja e sociedade que tem o movimento menonita. Entende que há uma oposição necessária entre sociedade e Igreja, e que esta última há de tornar-se uma sociedade alternativa que ofereça uma proposta de vida contrária à da sociedade. A Igreja deve viver segundo o Evangelho, enquanto a sociedade vive em oposição a ele.

5 Relação Igreja-sociedade na atualidade: o paradigma democrático de separação Igreja-Estado

A interpretação tendenciosa medieval de A cidade de Deus, de Santo Agostinho, levou ao paradigma clássico medieval de relação Igreja-Estado que Henri-Xavier Arquillière, em 1934, denominou “agostinismo político” (ARQUILLIERE, 2005). Para o autor, esta interpretação da obra de Santo Agostinho identificava a cidade de Deus  com a Igreja e a cidade terrena com o Estado e a sociedade. Cada um tinha um âmbito de atuação, mas o fim da Igreja era superior, o que significava a subordinação do Estado.

Esta interpretação da relação Igreja-Estado, na prática, conduzia a uma situação oposta, porque, sob o pretexto de servir à Igreja, os governantes frequentemente intervinham e condicionavam sua vida interior. Um bom exemplo disso é o regalismo dos reis dos estados nacionais dos séculos XVI e XVII, como no caso dos reis católicos da Espanha. Este regalismo acentuou-se no século XVIII, com medidas como a necessidade de aprovação prévia dos reis para publicar documentos papais em um país.

A Revolução Francesa, e o liberalismo extremo das revoluções do século XIX, envolviam, em grande parte, uma reação de rejeição desta estreita relação entre Igreja e Estado. De modo particular, a Igreja Católica experimentou essa posição de liberalismo político como uma agressão e defendeu-se ao longo do século XIX e grande parte do século XX. Mas, aos poucos, foi-se estabelecendo um diálogo entre os dois lados que acabou permitindo à Igreja receber os valores da posição liberal.

Atualmente, existe um consenso prático – com algumas nuances – nas várias denominações cristãs sobre o modelo político da democracia pluralista ocidental, o que significa a separação Igreja-Estado. No caso católico, chegar a este consenso tomou tempo e várias discussões ao longo dos séculos XIX e XX, pois as primeiras propostas democráticas da Revolução Francesa foram apresentadas como explicitamente anticatólicas.

Historicamente, podem ser encontradas raízes deste modelo democrático no pensamento católico clássico. Francisco Suarez, em De Legibus (Livro 1), fala sobre a origem do poder do príncipe como vindo de Deus, mas tendo como origem a própria sociedade humana.

Um primeiro passo de aceitação deste modelo foi feito por Leão XIII, com sua teoria da tese-hipótese. Este ponto de vista é abordado de forma privilegiada na encíclica Libertas Praestantissimum, de 1888. De acordo com este ponto de vista, a religião católica ainda é a verdadeira fé, portanto, é responsabilidade do Estado proteger a verdadeira fé como parte do bem comum (tese). Defende-se, assim, a existência de Estados confessionalmente católicos e restrições ao culto público de outras religiões, mas não a prática privada. No entanto, se aceita a tolerância com o culto público de outras confissões cristãs, se as circunstâncias práticas o exigirem, em prol da paz social (hipótese). Um exemplo clássico desta situação seria um país predominantemente protestante, onde seria impensável tentar impor um Estado católico.

O grande avanço na Igreja Católica ocorre com o Vaticano II, em que o direito à liberdade religiosa e à participação política, dois pilares da democracia moderna, são afirmados explicitamente. No entanto, estes princípios não são novos na doutrina social da Igreja, pois haviam sido já anunciados pelas rádio-mensagens de Natal de Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial (1942 e 1944).

Do ponto de vista da imagem de duas cidades de A Cidade de Deus, o Concílio, na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, explicitamente fala de uma “interpenetração” (compenetratio) entre a cidade terrena e a cidade de Deus, o que implica uma relação entre elas. Observando a complexidade desta inter-relação, a Constituição fala que tem um certo grau de mistério (Gaudium et Spes n.40). O Concílio reconhece, assim, a ajuda mútua que se prestam Igreja e mundo e como precisam um do outro (GS n.41-44).

Na declaração Dignitatis Humanae, o Concílio afirma que, como resultado da dignidade humana, os seres humanos não devem ser coagidos na sua consciência e devem gozar de liberdade religiosa. O Concílio não cai no relativismo ao declarar isso, pois afirma-se que há uma obrigação moral de buscar a verdade. A chave é que esta verdade deve ser encontrada livremente (DH n.2)

Na Constituição Gaudium et Spes, o Concílio, recolhendo ensinamentos anteriores, reafirma o direito de participar da vida política como expressão da dignidade humana (GS n.73) A garantia desta participação é o respeito, pelo Estado, dos direitos humanos dos cidadãos.

O reconhecimento da autonomia e do valor da vida sócio-política, a afirmação explícita do direito à liberdade religiosa e à participação política, como consequência da dignidade humana, bem como a exigência de respeito, por parte do Estado, dos direitos humanos implica a plena aceitação do paradigma da democracia pluralista moderna pela Igreja Católica. Depois deste posicionamento, a doutrina social da Igreja segue reafirmando esta posição a cada novo documento social. Ultimamente, há, no entanto, um novo matiz mais crítico no tratamento do modelo das democracias ocidentais, que é acusado, especialmente, de ter renunciado a uma moral mais profunda do que a mera ordem legal como base para a organização social. Assim afirmava, por exemplo, João Paulo II, em 1991, na Centesimus Annus parágrafo 47.

6 O desafio da secularização e a privatização da religião

O consenso sobre o paradigma da democracia pluralista moderna permitiu superar, em certa medida, a controvérsia sobre a relação Igreja-Estado. No entanto, as mudanças sociais, em particular o processo de secularização, trouxeram à tona uma controvérsia levemente diferente, a da relação Igreja-sociedade ligeiramente diferente em geral. A partir de algumas posições – como as de John Rawls (1995) e Marcel Gauchet (2005) – afirma-se que a democracia real requer a redução das crenças para a esfera privada e qualquer presença pública da Igreja é rejeitada porque ela supõe a imposição de crenças concretas ao conjunto da sociedade. Se a justa separação de Igreja e estado é chamada laicidade, a rejeição da presença pública de religiões pode ser chamada laicismo, a laicidade negativa ou excludente (CONSELHO EDITORIAL, 2009).

O modelo para esta posição está representado pela proposta de Rousseau em O contrato social para desenvolver uma religião civil que substitui, no espaço público, as religiões particulares. A tradição republicana francesa inspira-se diretamente nestas posições, cuja melhor expressão é a lei francesa de separação entre Igreja e Estado de 1905. Esta visão foi apoiada pelas teorias de secularização de autores como Thomas Luckmann, que afirmavam que o declínio da religião até o seu desaparecimento era um processo histórico necessário (LUCKMANN, 1973).

Diante desta visão privatizadora da religião, o desafio para o pensamento teológico é mostrar a necessidade e bondade de uma presença pública das religiões, como resultado da necessária dimensão social da fé. Um fato contribuiu para este esforço em nosso atual mundo globalizado: a crescente presença, nas sociedades ocidentais, de comunidades provenientes de outras regiões do mundo, com diferentes religiões. Assim, as democracias ocidentais são forçadas, hoje, a gerenciar a presença de novas religiões, particularmente a presença do islamismo, que são regidas por diferentes parâmetros e que exigem uma presença pública essencial para sua própria existência. Esta nova realidade obriga a repensar essas posições mais privatizantes do aspecto religioso.

De fato, no pensamento filosófico e político atual, há uma clara recuperação do valor do religioso e da sua contribuição para a vida pública. Jürgen Habermas fala mesmo de uma época pós-secular em que é necessário reconhecer a contribuição das religiões para a vida social (HABERMAS, 2006, p.122-155). Enquanto isso, José Casanova rejeita as teorias de secularização e afirma que o declínio das religiões no Ocidente não é um processo necessário, mas conjuntural e que hoje vivemos um processo de desprivatização da religião (CASANOVA, 1994). Diante dessa crescente presença pública das religiões, Casanova oferece um modelo de presença positivo que ele chama de “religião pública”. Religião pública é aquela capaz de contribuir para a vida pública com as fontes de sua tradição, mas a partir da aceitação plena das liberdades políticas e da separação religião-Estado. Os exemplos de Espanha, Polônia, Brasil ou Estados Unidos mostram que uma presença pública positiva das religiões é perfeitamente possível.

O desafio é, portanto, mostrar como as religiões – integrando plenamente a separação religião-Estado – podem fazer uma contribuição para o bem comum da sociedade através da sua presença pública. Tal posição é chamada laicidade positiva ou inclusiva. Esta é a posição que a doutrina social da Igreja Católica tem defendido recentemente (cf. Caritas in Veritate n.55-56).

7 Propostas de presença pública da Igreja nas sociedades plurais

Do ponto de vista teológico, atualmente uma questio disputata, no campo da relação Igreja-sociedade, é como articular o discurso da Igreja em democracias pluralistas. Esta questão é muito importante, porque a forma como o discurso é elaborado condiciona o tipo de presença pública da Igreja na sociedade. Hoje encontramos diferentes modelos de articulação do discurso religioso. Cada modelo envolve uma visão da Igreja e da sociedade diferente, e poderia remeter, mesmo, às diferentes posições das denominações cristãs.

7.1 O modelo da lei natural

Na tradição da Igreja Católica é extremamente importante o paradigma ético da lei natural, que sempre esteve presente no magistério católico, embora de modo mais discreto no Concílio Vaticano II. Este paradigma implica a existência de uma ordem moral, que todo ser humano pode reconhecer pela razão, que deve orientar a organização social e as leis e que a comunidade cristã pode ajudar a descobrir, iluminando-a a partir do evangelho. O jesuíta norte-americano John Courtney Murray propunha adotar o paradigma da lei natural para fazer uma filosofia pública que estabelecesse as bases morais e políticas da sociedade pluralista estadunidense dos anos 1950 e 1960 (MURRAY, 2005).

  Articular a presença pública da Igreja a partir do paradigma da lei natural implica a suposição que existe um espaço para o diálogo sobre os princípios éticos nas sociedades modernas. Esse diálogo seria totalmente racional e comum a todas as tradições religiosas. A Igreja poderia ajudar nesse diálogo, sob a forma de um discurso racional semelhante ao de outros atores. Um problema com este ponto de vista da sociedade é que, em ambientes não-crentes e secularistas, esse modelo da lei natural é rejeitado, por ser considerado um subterfúgio da Igreja para impor sua própria moral.

A própria visão da lei natural mudou e irá variar ainda mais no futuro. Se, no passado, foi entendida de maneira muito rígida e excessivamente detalhada, hoje apresenta-se mais na forma de consenso acerca de alguns princípios éticos entre as diferentes tradições culturais e religiosas. São especialmente importantes, neste contexto, as contribuições de Jean Porter (PORTER, 1999) e Lisa Cahill (CAHILL, 2013).

7.2 Propostas de teologia pública

Desde o início do século XX, tem havido um crescente interesse em mostrar as consequências sociais da fé cristã em diferentes denominações. Um bom exemplo desta preocupação foi a conferência do movimento ecumênico realizado em Oxford, em 1937, sob o título “Igreja, comunidade e Estado”.

No ambiente católico, essa preocupação com as consequências sociais da fé vem do século XIX e foi formulada de forma privilegiada no Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes, n.30). A partir de então, foram desenvolvidas várias propostas de compreensão da teologia do ponto de vista social. Entre essas propostas podemos mencionar a teologia da libertação, a teologia política e a teologia pública. Em todas elas pode ser percebida a influência do esquema teológico de Karl Rahner (MARTINEZ, 2002, p.216-251).

Dentre essas correntes, a teologia pública foi a que mais diretamente refletiu o discurso público da Igreja nas sociedades pluralistas. A teologia pública implica um desenvolvimento da ideia de John Courtney Murray de uma filosofia pública, mas que procura desenvolver um discurso explicitamente teológico que seja ao mesmo tempo significativo e relevante para a sociedade plural. Assim, esta forma de argumentação quer afirmar os dois polos: o respeito pelo pluralismo moral e religioso da sociedade democrática e a integridade do discurso teológico e das fontes cristãs. Isto supõe que se acredita que a Igreja e a fé cristã podem contribuir para o bem comum da sociedade plural a partir de sua própria identidade e respeitando a pluralidade de pontos de vista. No ambiente católico, é David Tracy que tem uma metodologia concreta mais sólida para esta tarefa, o paradigma da correlação crítica (TRACY, 1981). Por sua vez, o moralista David Hollenbach aplicou esta metodologia a vários problemas sociais (HOLLENBACH, 2002).

7.3 Propostas da teologia da libertação

Embora o problema que a teologia da libertação enfrenta não seja diretamente o da relação entre sociedade e Igreja, ser um modelo de mediação entre a revelação e a vida social, inevitavelmente, envolve uma certa visão dessa relação. Sua origem puramente latino-americana, mas, acima de tudo, sua enorme popularidade e influência, tornam sua abordagem muito importante. A teologia da libertação tem origem nas posições do Vaticano II, que já vimos, e que foram recebidas na América Latina através da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano de Medellín em 1968. Nas conclusões dessa Conferência, se afirmava que, ao se observar o homem latino-americano, se percebia em primeiro lugar a situação de injustiça em que se encontra, e se descrevia a  ação salvífica de Deus na história, ante essa situação, como um processo de libertação (Cf. EPISCOPADO LATINOAMERICANO, Conferencias Generales, 1993, n.109-111).

Gustavo Gutiérrez desenvolveu essas intuições em sua obra programática Teologia da Libertação – Perspectivas, de 1971. Gutierrez vê a salvação que Deus nos traz como um processo de libertação com três fases, que se condicionam entre elas:  libertação política, libertação do homem e libertação do pecado. Isto significa que a salvação de Deus deve ter efeitos e supor mudanças na dimensão sócio-histórica. Esta salvação, o Reino de Deus, é um dom de Deus, mas o homem contribui para ela através de sua luta histórica pela libertação, luta impulsionada pela a ação de Deus nele (Cf. GUTIERREZ, 1972, p.236-241). Seguindo a inspiração eclesiológica do Vaticano II, o papel da Igreja na sociedade seria, então, um sacramento, mas o sacramento da libertação que Deus traz. Isto significa estar presente e apoiar os seus membros comprometidos com essa luta sócio-histórica pela libertação (Cf. GUTIERREZ, 1972, p.325-336).

Também Ignacio Ellacuría contribuiu para a fundamentação da tradição da teologia da libertação, especialmente filosoficamente. Sua abordagem leva a uma perspectiva sobre a relação Igreja-sociedade muito concreta. Para Ellacuría, a Igreja deve ser uma Igreja institucionalizada por ser um sinal de salvação que é histórica. No entanto, esta institucionalização tem sempre o perigo de cair em mundanização, colocando-a no centro da sua própria atividade. Para evitar esse desvio, a Igreja há de ser consciente que seu centro está fora de si mesma, o seu centro é o Reino de Deus. Isso permite que a Igreja abandone a mundanização e avance para o Reino, que tem como protagonistas e vencedores os pobres e os oprimidos (cf. ELLACURÍA, 2000). Ellacuría compreende a Igreja na sociedade como uma Igreja que há de ter os pobres como principal sujeito e fundamento da sua própria estrutura, e falará, assim, da verdadeira Igreja dos pobres (cf. ELLACURÍA, 1990, p.147).

Como podemos ver, a tradição da teologia da libertação, olhando para a relação entre Igreja e sociedade e propondo um papel para a Igreja na sociedade, é muito exigente com a integridade entre a vida da Igreja e a mensagem que ela apresenta. Esta integridade implica colocar no centro os pobres e sua libertação, bem como concretizar sua mensagem em práticas sócio-históricas em favor deles. O lugar da Igreja na sociedade é determinado, portanto, pelo princípio da opção preferencial pelos pobres, que já se estabelecera em Medellín e que se consagrou na Conferência de Puebla em 1979 (Cf. EPISCOPADO LATINOAMERICANO, Conferencias Generales 1993, n.436).

7.4 Propostas de Igreja como comunidade alternativa

A partir da tradição anabatista, atualizada por John Howard Yoder (YODER, 1972), e reforçada pela renovação da ética aristotélica de Alisdair McIntyre (MACINTYRE, 1987), aparece, a partir dos anos 1980, uma nova posição na controvérsia entre Igreja e sociedade. Podemos chamar esta posição de Igreja como comunidade alternativa. Esta posição, defendida por autores como John Milbank (MILBANK, 1990) – fundador do movimento Radical Orthodoxy, Stanley Hauerwas (HAUERWAS, 1981) e Michael Baxter (BAXTER, 1996), envolve uma visão relativamente negativa da sociedade. Estes autores consideram que qualquer esforço para elaborar um discurso da Igreja em termos significativos e próximos aos da sociedade envolve, necessariamente, concessões na integridade da identidade cristã da comunidade. Por isso, eles consideram que o objetivo deve ser, sim, cuidar da vida interna da comunidade cristã, se esforçando para ser fiel ao modelo do Evangelho. Esta centralidade da vida e da identidade da comunidade é entendida a partir da ética das virtudes, pois visa fortalecer o caráter da comunidade.

A comunidade cristã torna-se, assim, uma comunidade de contraste, que confronta os valores e as práticas da sociedade. Este tipo de articulação do discurso cristão envolve uma visão da relação Igreja-sociedade que coloca no centro a oposição entre elas. A Igreja participa da missão salvífica de Cristo compartilhando o sofrimento e a rejeição que ele viveu em sua própria sociedade. A Igreja pode fornecer e iluminar a vida social, mas o fará enfatizando o contraste, confrontando a sociedade em seus valores e a partir do testemunho de uma vida alternativa.

Não devemos ver estas três posições como mutuamente excludentes, mas sim como complementares ou como diferentes formas de estar presente na sociedade, segundo as circunstâncias que se apresentam. O paradigma da lei natural permite chegar a consensos morais de grande força normativa e autoridade, que podem ser muito importantes para graves problemas morais. O paradigma da Igreja como uma comunidade alternativa é uma perspectiva interessante para pensar a presença da comunidade cristã em ambientes secularizados que podem corroer a sua identidade. O paradigma da teologia pública é uma proposta moderada e construtiva, especialmente válida para situações de grande pluralismo religioso e moral.

O desafio, hoje, para as denominações cristãs está em sua capacidade de serem religiões públicas, segundo os termos de José Casanova. É necessário partir de um reconhecimento teórico e prático completo dos valores da democracia pluralista moderna, mas manter uma voz própria, inspirada pelas fontes cristãs, e capaz de fornecer uma visão crítica da sociedade – especialmente em defesa dos mais pobres – quando se fizer necessário. Junto a isso, o crescente pluralismo religioso da sociedade moderna está começando a exigir que a presença e a voz pública da Igreja na sociedade sejam capazes de entrar em diálogo e promover ações com outras religiões presentes na sociedade, como pode ser com o islamismo. Uma palavra comum dita pelas religiões na sociedade em favor da justiça tem uma força sem paralelo, que deve ser explorada.

Gonzalo Villagrán Medina, SJ. Faculdade de Teologia de Granada, Espanha. Texto original em espanhol.

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Concílio Ecumênico Vaticano II

Sumário

1 Antecedentes históricos do Concílio Vaticano II

1.1 Concílio Vaticano I

1.2 Movimentos anteriores ao Concílio Vaticano II

1.3 Reformas dos papas Pio X e Pio XI

1.4 Reformas do papa Pio XII

2 O papa João XXIII

3 Preparação do Concílio Vaticano II

4 A novidade do Concílio Vaticano II

5 Documentos do Concílio Vaticano II

6 As quatro constituições do Concílio Vaticano II

6.1 Sacrosanctum Concilium

6.2 Lumen gentium

6.3 Dei Verbum

6.4 Gaudium et spes

7 Os nove decretos do Concílio Vaticano II

8 As três declarações do Concílio Vaticano II

9 O episcopado latino-americano no Concílio Vaticano II

10 Atualidade e recepção do Concílio Vaticano II

11 Referências bibliográficas

1 Antecedentes históricos do Concílio Vaticano II

1.1 Concílio Vaticano I

O Concílio Vaticano I (1869-1870) passou à história como um “concílio inacabado”. Em razão de circunstâncias que lhes foram impostas pelo momento histórico-político na Europa de então, os padres conciliares não puderam concluir satisfatoriamente a agenda proposta nesse concílio do século XIX. Em razão da guerra franco-prussiana, e mais precisamente da invasão de Roma pelas tropas italianas no dia 20 de setembro de 1870, o Papa Pio IX, no dia 20 de outubro do mesmo ano, suspendeu as atividades do Concílio sine die. Desta forma, restou aos papas posteriores a Pio IX a tarefa de retomar e concluir os trabalhos do Concílio Vaticano I, o que normalmente deveria ser feito através da convocação de uma nova assembleia conciliar.

1.2 Movimentos anteriores ao Concílio Vaticano II

Nos tempos anteriores ao Vaticano II, em mosteiros beneditinos europeus, deram-se os primeiros passos na direção da reforma da liturgia, uma vez que monges cultivavam o estudo das fontes da liturgia e o faziam mediante a leitura assídua dos Padres da Igreja. Tal movimento fez com que a liturgia deixasse de ser entendida como mero centro da piedade cristã individualista e fosse compreendida como dinâmica de renovação espiritual da sociedade como um todo. Iniciativas de Dom Prosper Guéranger (1805-1875), já no século XIX, abriram portas para tal rejuvenescimento da vida litúrgica, antes nos mosteiros e, em seguida, nas comunidades católicas, enquanto que Dom Lambert Beauduin (1873-1960) iniciou o movimento litúrgico propriamente dito. Digna de nota foi também a influência exercida pelo jesuíta austríaco Josef Andreas Jungmann (1889-1975), que em 1948 publicou, em dois volumes, uma importante história da missa segundo o rito romano, Missarum Solemnia.

Já no campo da reflexão teológica, emergiram esforços no sentido de renovar o modo de se fazer teologia. Teólogos como Johann Adam Möhler (1796-1838), da Escola de Tübingen, e Matthias Scheeben (1835-1888), de Colônia, foram pioneiros na articulação entre eclesiologia e liturgia. Além disso, mencione-se a Nouvelle théologie (Nova teologia), nascida da França, e que propunha a substituição da teologia escolástica por uma síntese teológica que respondesse mais adequadamente às legítimas necessidades e aspirações humanas. A Nouvelle théologie defendia a articulação entre Bíblia, liturgia e Padres da Igreja. Ora, estas novas impostações teológicas foram decisivas enquanto reação à teologia segundo a qual se elaboraram os primeiros esquemas preparatórios a serem entregues aos padres conciliares, teologia esta marcada pela mentalidade curial e pela incapacidade de se abrir às questões que a história e a sociedade de então propunham à Igreja. Nesses textos provisórios, percebiam-se ranços da linguagem da Contrarreforma e do combate ao modernismo. Neste horizonte de renovação teológica, foi notável a contribuição que diversos teólogos deram aos padres conciliares através de conferências realizadas em diversos lugares de Roma, levando-os a se abrirem a novas perspectivas teológicas e a se sensibilizarem em face dos “sinais dos tempos” que vinham da sociedade como um todo.

Não se pode olvidar a influência do movimento ecumênico sobre o Concílio Vaticano II. Nascido em âmbito protestante, o movimento ecumênico acabou por motivar líderes e teólogos católicos a trabalharem, cada qual em sua competência, na direção da busca da unidade visível dos cristãos. À guisa de exemplo, recorde-se a obra do teólogo dominicano francês, Yves Congar, Vraie et fausse réforme dans l’Église (Verdadeira e falsa reforma na Igreja), publicada em 1950.

As décadas anteriores ao Concílio foram marcadas ainda pelo resgate do estudo dos Padres da Igreja. Digno de menção neste particular foi o empreendimento de Jacques-Paul Migne, cujo esforço de editar os textos patrísticos de tradição latina, bem como aqueles de tradição grega com a tradução ao latim, tornou tais escritos acessíveis a estudiosos que não mais deveriam recorrer a edições esparsas dos textos dos Padres da Igreja. Posteriormente, por volta do ano 1952, surgiu na França a coleção Sources Chrétiennes (Fontes Cristãs), sob a responsabilidade dos teólogos jesuítas Jean Daniélou e Henri de Lubac, que editava textos patrísticos com a tradução ao francês. Desnecessário dizer o quanto a revisitação dos Padres da Igreja foi enriquecedora para a renovação da teologia nas décadas anteriores ao Concílio.

Para o sucesso do Concílio Vaticano II, foi também decisiva a contribuição do movimento bíblico, o qual ensejou a adoção, em campo católico, de uma hermenêutica bíblica que se distanciava de uma leitura fundamentalista da Sagrada Escritura. Tal avanço significou a superação de uma interpretação moralista dos escritos sacros, mormente nas pregações, bem como o uso da Escritura na apologética, em face dos protestantes, por exemplo. O movimento bíblico ensejou ainda a superação de certa concepção mecânica de inspiração bíblica, como se os textos da Escritura fossem pura e simplesmente a transcrição, feita pelo hagiógrafo, de um ditado do Espírito Santo. De singular importância para que se respirassem novos ares em termos de leitura da Bíblia na Igreja católica romana foi a publicação da carta encíclica Divino afflante Spiritu, do papa Pio XII, que abriu portas aos biblistas católicos para que eles se dedicassem a estudos bíblicos fazendo uso de recursos interpretativos modernos, tais como a crítica das formas, o método histórico-crítico, a história das civilizações que circundavam o povo judeu, a arqueologia, os resultados dos estudos sobre a linguagem e a hermenêutica.

1.3. Reformas dos papas Pio X e Pio XI

Devem ser reconhecidas algumas iniciativas de reforma da da Igreja católica romana, imediatamente anteriores ao Vaticano II, assumidas por papas do século XX. Tais medidas contribuíram para amadurecer a decisão de se convocar um novo concílio. Citemos alguns poucos exemplos. Visando promover a participação dos fiéis na liturgia, o papa Pio X (1903-1914) determinou a utilização do canto gregoriano nas paróquias, através do motu proprio Inter Sollicitudines sobre a música sacra, de 1903, bem como incentivou a recepção frequente da eucaristia. E por seu turno, o papa Pio XI (1922-1939) incentivou a participação dos leigos na vida de Igreja, em sintonia com a hierarquia, nos tempos da então influente “Ação Católica”.

1.4 Reformas do papa Pio XII

O papa Pio XII (1939-1958) também promoveu reformas significativas para a vida da Igreja, das quais mencionemos apenas alguns exemplos. No que concerne aos estudos da Escritura Sagrada, o papa Pacelli concedeu liberdade para a pesquisa bíblica, com os consequentes ganhos da utilização do método histórico-crítico na exegese através da já mencionada carta encíclica Divino afflante Spiritu (cf. PIO XII, 1943). Com relação à liturgia, citem-se a publicação da encíclica Mediator Dei, em 1947, e a promulgação, em 1955, da Semana Santa restaurada (cf. SAGRADA CONGREGAÇÃO DOS RITOS, 1955), de modo particular, a reestruturação do Tríduo pascal, com ganhos substanciais em termos de enriquecimento da experiência litúrgica do Povo de Deus. Em todo o caso, a convocação de um concílio, mesmo que fosse para tão somente concluir o Vaticano I, veio a dar-se com o sucessor de Pio XII: o papa João XXIII (1958-1963).

2 O Papa João XXIII

Angelo Giuseppe Roncalli foi eleito papa no dia 28 de outubro de 1958, aos 76 anos de idade. Antes de ter sido escolhido como sucessor de Pedro, havia atuado por 27 anos no serviço diplomático da Santa Sé, tanto no Oriente como no Ocidente, iniciado na Bulgária em 1925. Ademais, por seis anos havia exercido o ministério pastoral como Patriarca de Veneza. Seu lema episcopal dizia Obediência e Paz. O papa Roncalli tornou pública sua intenção de convocar o Concílio Vaticano II no dia 25 de janeiro de 1959, transcorridos apenas noventa dias de sua eleição como bispo de Roma! João XXIII inaugurou solenemente os trabalhos conciliares no dia 11 de outubro de 1962 com o discurso Gaudet Mater Ecclesia, proferido diante de mais de 2.800 bispos, além de abades e superiores gerais de ordens religiosas masculinas, procedentes de 116 países. Nesse discurso, João XXIII advertiu que o Vaticano II não proporia novas doutrinas, mas apresentaria o mesmo e imutável conteúdo da fé cristã através de uma linguagem acessível aos homens e mulheres do século XX. E mais, Roncalli enfatizou a orientação pastoral do Concílio e reafirmou que, frente aos erros, a Igreja “prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade” (JOÃO XXIII, 1962, 7,2). Como dirá o papa Paulo VI (1963-1978), pouco mais de três anos depois, à véspera da solene conclusão do Concílio: “A antiga história do Samaritano foi o paradigma da espiritualidade do Concílio” (Vian, 2006, p.156).

3 Preparação do Concílio Vaticano II

De acordo com o Ordo Concilii, regulamento promulgado por João XXIII no dia 6 de agosto de 1962 e que dava indicações para a organização dos trabalhos conciliares, foi constituída uma Comissão Preparatória Central, bem como dez comissões temáticas, com a tarefa de preparar textos que seriam submetidos à apreciação dos bispos uma vez reunidos no Vaticano.

4 A novidade do Concílio Vaticano II

No Concílio Vaticano II (1962-1965), o 21º da história da Igreja e, quem sabe, a maior assembleia da história da humanidade, a Igreja adotou postura totalmente diversa daquelas assumidas nos concílios passados, de Niceia até o Vaticano I. Pode-se falar de um estilo totalmente original. Desta feita, a Igreja não empregará a linguagem condenatória peculiar aos concílios anteriores, sinalizadora de intransigência da Igreja em face de grupos cismáticos e/ou heréticos, ou diante daqueles que, fora dela, lhe faziam oposição. Com efeito,

o Vaticano II modificou tão radicalmente o modelo legislativo e judicial que havia prevalecido desde o primeiro concílio de Niceia […] a ponto de virtualmente abandoná-lo. Em seu lugar, o Vaticano II instaurou um modelo amplamente baseado no convencimento e no convite. (O’Malley, 2012, p.28)

No tocante ao problema da divisão entre os cristãos, a Igreja católica romana passará a participar decididamente do movimento ecumênico, e diante do mundo, ela assumirá uma atitude de diálogo, abertura e compreensão (cf. Gaudium et spes). Enquanto evento extremamente original, o Vaticano II introduziu algo de novo na tradição conciliar: buscar a correção de alguns desvios no modo de a Igreja atuar no mundo sem assumir uma atitude defensiva e combativa. Tratou-se, com certeza, de um “concílio de transição de época”, na expressão de Giuseppe Alberigo, autorizado historiador do Vaticano II (cf. Alberigo, 2005, p.26 e 40).

5 Documentos do Concílio Vaticano II

O magistério do Concílio Vaticano II encontra-se consignado em dezesseis documentos: quatro constituições (Sacrosanctum concilium, Lumen gentium, Dei verbum e Gaudium et spes), nove decretos (Unitatis redintegratio, Orientalium ecclesiarum, Ad gentes, Christus dominus, Presbyterorum ordinis, Perfectae caritatis, Optatam totius, Apostolicam actuositatem e Inter mirifica) e três declarações (Gravissimum educationis, Dignitatis humanae e Nostra aetate).

6 As quatro constituições do Concílio Vaticano II

6.1 Sacrosanctum Concilium

A constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a sagrada liturgia, foi o primeiro documento conciliar a ser promulgado pelo Papa Paulo VI, a 4 de dezembro de 1963. Texto que menos dificuldades trouxe à assembleia conciliar, propõe a reforma litúrgica em vista do bem de toda a Igreja. O proêmio da constituição já traz uma série de motivos pelos quais se faz necessária “a reforma e o incremento da liturgia” (cf. SC 1; 3,1), o que deve ser feito em fidelidade à Tradição (cf. SC 4). A reforma litúrgica proposta pelo Vaticano II, portanto, nada teve de busca da novidade pela novidade, mas consistiu em recuperar, no bimilenar patrimônio litúrgico da Igreja, uma série de valores que foram esquecidos ao longo de sua história. Desta forma, tal reforma litúrgica materializou-se como resgate da centralidade do mistério pascal de Cristo, Senhor e Esposo da Igreja.

Os parágrafos de 5 a 8 da constituição apresentam o mistério de Cristo no amplo horizonte da história da salvação. Assim sendo,

para realizar a obra da redenção, Cristo está sempre presente na sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas. Presente ele está no sacrifício da missa, quer na pessoa do ministro, quer, sobretudo, sob as espécies eucarísticas. Ele está presente com o seu dinamismo nos Sacramentos, de modo que, quando alguém batiza, é o próprio Cristo que batiza. Ele está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Enfim, ele está presente quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles” (Mt 18,20). (SC 7,1)

Na grande obra da redenção, “Cristo associa sempre a si a Igreja, sua esposa muito amada, a qual invoca o seu Senhor e por meio dele rende culto ao Eterno Pai” (SC 7,2). Com tais palavras, o Concílio evidencia que a liturgia não é uma ação qualquer da Igreja, mas “é considerada como o exercício da função sacerdotal de Cristo” (SC 7,3); portanto, “por ser obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja, é ação sagrada por excelência” (SC 7,4).

Digna de nota é a dimensão escatológica da liturgia. Ela não é uma ação circunscrita às realidades deste mundo, mas tem a faculdade de impulsionar a Igreja em busca de sua realização na plena comunhão com o seu Senhor e Esposo. Assim explica o Concílio:

pela Liturgia terrena participamos, já a saboreando, na Liturgia celeste celebrada na cidade santa Jerusalém, para a qual, como peregrinos, nos dirigimos e onde Cristo está sentado à direita de Deus, ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo (SC 8).

Portanto, o Concílio apresenta a liturgia como dinâmica eclesial vivida, sim, neste mundo, mas que permanentemente anima a Igreja “a aguardar o Salvador, nosso Senhor Jesus Cristo, até que apareça como nossa vida e nós apareçamos com ele na glória” (cf. ibid.). E mais: segundo o Concílio, a veneração dos santos insere-se neste horizonte escatológico (cf. ibid.). Assim, o Vaticano II pretende fazer ver ao Povo de Deus, no conjunto da vida litúrgica da Igreja, a justa medida da devoção aos santos, a ser praticada com a devida moderação, uma vez que Jesus Cristo, modelo e referência última da vida cristã, é o único mediador entre os homens e Deus Pai.

Buscando salvaguardar o compromisso querigmático da Igreja, a constituição Sacrosanctum Concilium afirma que “a sagrada Liturgia não esgota toda a ação da Igreja” (SC 9,1). Ou seja, o fato de se reconhecer o caráter sagrado da liturgia não pode levar a Igreja a se eximir de sua responsabilidade de anunciar o Evangelho àqueles que ainda não receberam a fé cristã. Além disso, a liturgia não esgota toda a ação da Igreja na medida em que ela “é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força” (SC 10,1). Ou seja, o trabalho apostólico deve-se inspirar na liturgia, precisamente no que esta tem de dinâmica de louvor e glorificação de Deus por intermédio do Cristo na virtude do Espírito Santo. E também a liturgia, de modo especial a Eucaristia, é o lugar em que a Igreja se alimenta para prosseguir em sua ação pastoral (cf. SC 10,2). Merece destaque aqui o tema da eclesiologia eucarística, altamente considerada pela Tradição oriental e valorizadora da Igreja particular:

Todos devem dar a maior importância à vida litúrgica da diocese, em torno do bispo, sobretudo na igreja catedral, convencidos de que a principal manifestação da Igreja se faz numa participação plena e ativa de todo o Povo santo de Deus na mesma celebração litúrgica, especialmente na mesma Eucaristia, numa única oração, ao redor do único altar a que preside o bispo rodeado pelo presbitério e pelos ministros (SC 41,2).

6.2 Lumen gentium

A constituição dogmática Lumen gentium (promulgada em 21 de novembro de 1964) traz o ensino conciliar sobre o mistério da Igreja. Já em sua estrutura, revela uma total mudança de perspectiva em comparação a anteriores posturas da Igreja católica romana. Uma vez que o projeto de constituição proposto pela comissão teológica da Cúria romana (centrado no tema da “Igreja militante”) foi rejeitado e que uma nova série de grandes temas foi apresentada para a confecção da aludida constituição − a saber: a Igreja como mistério, o episcopado, o laicato e a vocação à santidade −, os Bispos tomaram uma decisão revolucionária. Passadas algumas discussões − o que levou à definição da seguinte ordem de assuntos que viriam a ser os primeiros capítulos da Lumen gentium: Mistério da Igreja, Hierarquia e Povo de Deus −, os padres conciliares decidiram apresentar a Igreja, antes de tudo, como comunidade cristã que se espelha na comunidade perfeita que é Santíssima Trindade (cap. I: “O mistério da Igreja”) e que se insere na história dos homens (cap. II: “O Povo de Deus”), para, só em seguida, tratar da configuração hierárquica da Igreja (cap. III: “A constituição hierárquica da Igreja e em especial o Episcopado”). Essa opção foi significativa na medida em que atesta o desejo da grande maioria dos padres conciliares em propor uma “eclesiologia total”, isto é, uma autocompreensão de Igreja que reconhece todos os batizados como a ela pertencentes. A expressão “eclesiologia total” deve ser entendida no contexto da crítica de Yves Congar, ao dizer que, num tempo em que a reflexão teológica a respeito da Igreja levava em conta tão somente os ministérios de governo eclesiástico, ignorando os leigos e religiosos, o que se fazia era, pura e simplesmente, hierarcologia, e não eclesiologia. Vale dizer: na compreensão do Vaticano II, a Igreja não é feita só de bispos, padres e religiosos, mas de todos os que seguem Cristo, cada qual em sua vocação e estado de vida.

Os seguintes três capítulos da Lumen gentium concernem à vocação de todos os batizados à santidade (cap. V: “A vocação universal à santidade”), e às formas específicas de vivência da fé cristã (cap. IV: “Os leigos” e cap. VI: “Os religiosos”). O penúltimo capítulo trata da experiência da Igreja que, em meio a tribulações e dificuldades neste mundo, caminha em demanda de sua consumação final como feliz Esposa do Cordeiro (cf. Ap 19,7; 21,9): cap. VII: “Índole escatológica da Igreja peregrina e sua união com a Igreja celeste”. Quanto à mariologia conciliar, optou-se pela inserção do tema de Maria na Lumen gentium, com a anexação de um último capítulo à constituição dogmática (cap. VIII: “A bem-aventurada Virgem Maria Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja”). Maria é, assim, reconhecida como seguidora e discípula de Jesus, e como ícone da Igreja, por sua fidelidade e exemplaridade nesta mesma vocação de seguidora e discípula.

6.3 Dei Verbum

A constituição dogmática Dei Verbum (promulgada em 18 de novembro de 1965) apresenta o tema da revelação divina. Ora, uma vez que se tinha chegado à conclusão de que a revelação divina não é uma mera comunicação de ideias, mas a autocomunicação de um Deus que quer estar junto aos homens, pensou-se em falar da revelação em termos de presença e atuação da Palavra de Deus na história dos homens, sendo que a Palavra de Deus por excelência é uma Pessoa: o Verbo de Deus feito carne (cf. Jo 1,14). Ou seja, mais do que revelar sua vontade mediante a comunicação de doutrinas, Deus se revela como o Emanuel, Deus-conosco. Daí, então, se falar de uma única autocomunicação de Deus, que se dá ao longo de toda a história da salvação e culmina no evento Cristo, e que se manifesta através de duas vias: a Escritura e a Tradição. Reconheceu-se, portanto, a primazia e a centralidade da Palavra de Deus na Igreja.

Um retorno mais atento ao Concílio de Trento (1545-1563) pôs em relevo o caráter exclusivamente interpretativo da Tradição no que diz respeito à fé, pois na Escritura se encontram “as verdades necessárias para a salvação” (cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma de Teologia, I-II, qq. 106 e 108). Desta forma, a Tradição tem caráter constitutivo só para as questões de disciplina e de costumes. Ocorreu, aqui, uma solução conciliatória significativa: o Vaticano II estabeleceu uma diferença entre os dados constitutivos da Escritura e a função criteriológica da Tradição. Ou dizendo de modo diverso: a Escritura é a “norma que norma” (norma normans) e a Tradição, uma “norma normada” (norma normata). Alcançou-se, desta forma, um equilíbrio ecumênico de grande valor: nem a doutrina das duas fontes (própria do pensamento católico romano), nem a doutrina da sola Scriptura (característica do pensamento luterano). Para a constituição dogmática Dei Verbum, a Tradição tem dois sentidos: (a) o conteúdo que não está na Escritura; e (b) o processo de transmissão vital da Revelação na Igreja. A Tradição é a Escritura na Igreja. A Igreja, mediante a Tradição, com seu ensino, vida, culto etc, conserva e transmite a todas as gerações “aquilo que ela é” e “aquilo em que ela crê”, graças ao “Espírito Santo, por quem a voz viva do Evangelho ressoa na Igreja, e através dela ao mundo inteiro” (DV 8).

A Tradição concretiza-se nos Santos Padres, na liturgia, nos símbolos da fé (= os credos), nos textos dos concílios, nas intervenções magisteriais, nas vidas dos santos, no testemunho cotidiano dos fiéis cristãos de todos os tempos e lugares etc. A Igreja é a Tradição viva e o eixo de toda a transmissão da Revelação através dos tempos. Assim sendo, a revisitação do passado, que nada tem a ver com saudosismo, e muito menos com tradicionalismo, proporciona à Igreja rejuvenescer-se e, desse modo, manter-se fiel e dinamicamente obediente ao Senhor. Voltando-se para o passado enquanto exercício de “memória no Espírito”, a Igreja será sempre obediente e fiel a seu Esposo, como a mulher enamorada que procura ouvir a voz do amado (cf. o Cântico dos Cânticos).

Há um detalhe significativo na Dei Verbum: enquanto o Concílio de Trento fala de “tradições” (no plural e com “t” minúsculo), o Concílio Vaticano II fala de “Tradição” (no singular e com “t” maiúsculo). Isto torna claro que o Vaticano II entendeu a Tradição não como mera comunicação de doutrinas e ideias, mas como um todo único, em que as partes se articulam harmonicamente, e que, afinal de contas, se confunde com a própria vida da Igreja.

6.4 Gaudium et spes

A constituição pastoral Gaudium et spes (promulgada em 7 de dezembro de 1965) volta-se para a questão das relações entre a Igreja e o mundo no qual ela se insere. Se em Trento e no Vaticano I as atitudes da Igreja foram de clara hostilidade – no primeiro, frente aos reformadores protestantes, e no segundo, frente aos defensores das ideias secularizantes que remontam à Revolução francesa –, agora a Igreja assume uma postura otimista frente ao mundo. Ela se entende servidora da humanidade, o que já deixara claro na Lumen gentium e repete na Gaudium et spes: “A Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 1, cf. GS 42,3). Desta forma, a Igreja se reconhece “perita em humanidade” (Paulo VI, 1965, p.878-85), o que a faz sensível a todas as experiências pelas quais passam os homens, sejam boas, sejam ruins (cf. GS 1). Sua vocação é servir, razão pela qual ela pode dizer que não é movida por “nenhuma ambição terrestre” (GS 3,2).

Porque “perita em humanidade”, a Igreja se debruça sobre o homem dotado de aspirações elevadas (cf. GS 9) e cujo coração é inquieto em consequência de interrogações as mais profundas (cf. GS 10; 21,4). E ela o faz de modo respeitoso tendo em vista o âmbito mais íntimo do homem: “a consciência é o centro mais secreto e o santuário do ser humano, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (GS 16).

A solução do problema do homem é formulada pelo Concílio de modo lapidar: “O mistério do ser humano só se ilumina de fato à luz do mistério do Verbo encarnado” (GS 22,1). E isso vale não só para os cristãos, pois, ao assumir a condição humana em todas as suas dimensões, o Verbo associou-se de certo modo a todo homem (cf. GS 22,2). E ressalte-se, ainda, que o assumir a condição humana por parte do Filho de Deus conta com a participação amorosa do Espírito Santo; com efeito, “o Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal, de maneira conhecida somente por Deus” (GS 22,5). A antropologia centrada em Cristo − ou seja, o homem entendido a partir do mistério de Cristo – é, “no fundo, uma tomada de posição que afirma que o homem se humaniza só graças à divinização: a finalidade de plenitude à qual estamos chamados é inalcançável sem os auxílios da graça” (ARCE, 2008, p.434-5).

Tem-se acusado a Gaudium et spes de ser excessivamente otimista em sua formulação. Atento a esta crítica, o Sínodo dos Bispos de 1985, celebrado para comemorar os vinte anos de conclusão do Concílio, propôs a teologia da cruz como polo de equilíbrio para o conteúdo desta constituição pastoral. Ou seja, as intuições e os horizontes abertos pela Gaudium et spes devem ser tomados como princípios propulsores de uma ação pastoral que leva em conta com realismo os desafios e as dificuldades colocados pelo mundo contemporâneo à Igreja.

7 Os nove decretos do Concílio Vaticano II

Os meios de comunicação social naturalmente despertaram o interesse dos padres conciliares, já que não se podia pensar a evangelização nos novos tempos ignorando-se os recursos de comunicação de massa, mormente os eletrônicos. Em resposta a essa questão, promulgou-se o decreto Inter mirifica (5 de dezembro de 1963).

O decreto Unitatis redintegratio (21 de novembro de 1964) sinaliza a inequívoca participação da Igreja católica romana no movimento ecumênico. Sua força está na decisiva orientação em superar os preconceitos frente aos “irmãos separados” e em propor princípios teológicos para a discussão e solução de problemas em torno à divisão dos cristãos.

Já o decreto Orientalium ecclesiarum (21 de novembro de 1964) trata especificamente das Igrejas orientais católicas. Reconhecem-se os valores mantidos pela Tradição nestas Igrejas, tanto quanto os sacramentos e o governo eclesiástico, o que contribuirá enormemente para o incremento do diálogo ecumênico.

Christus dominus (28 de outubro de 1965) é o decreto que trata do encargo pastoral dos bispos. Antes de tratar das responsabilidades particulares dos bispos – ensinar, santificar e reger –, apresenta-se o caráter colegial de seu ministério, dado da tradição eclesial que aponta para a solicitude de todos os bispos para com a Igreja de Cristo.

Os Institutos de vida consagrada são convidados a se renovarem segundo o espírito do Concílio. É o que fica patente no decreto Perfectae caritatis (28 de outubro de 1965). Os padres conciliares reconheceram o valor da vida religiosa na Igreja, manifestado em suas diversas e fecundas concretizações históricas.

Não negligenciando a formação dos presbíteros, os padres conciliares tratam desse tema no decreto Optatam totius (28 de outubro de 1965). Destaque-se aqui a intenção de se promover uma melhor preparação espiritual dos futuros presbíteros, sem esquecer uma formação intelectual que os capacite para dialogar com o mundo.

Numa configuração eclesial sugerida pelo conceito de Igreja Povo de Deus, contemplado na Lumen gentium, o Concílio não poderia esquecer o apostolado dos leigos, trabalhado no decreto Apostolicam actuositatem (18 de novembro de 1965). Valores da tradição eclesial tais como o sensus fidelium e o sacerdócio comum dos fiéis constituem fundamento robusto para o engajamento dos fiéis leigos na obra da evangelização.

Sobre os presbíteros o Concílio fala detidamente no decreto Presbyterorum ordinis (7 de dezembro de 1965). Como colaboradores da ordem episcopal, os presbíteros devem, a exemplo dos bispos, zelar pelo bem de todo o corpo eclesial, e o fazem mediante as tarefas que assumem na Igreja. Dão-se, nesse documento, orientações para o bom relacionamento dos presbíteros entre si, bem como deles com os leigos.

A concepção conciliar de missão estabelece-se no decreto Ad gentes (7 de dezembro de 1965). Digna de nota é a impostação trinitária do documento, ao tomar como ponto de partida o desígnio de salvação do Pai, e as missões próprias do Filho e do Espírito Santo.

8 As três declarações do Concílio Vaticano II

As três declarações promulgadas no Concílio Vaticano II, a saber: Gravissimum educationis (28 de dezembro de 1965), Dignitatis humanae (28 de dezembro de 1965) e Nostra aetate (7 de dezembro de 1965) concernem, respectivamente, à educação cristã, às religiões não cristãs e à liberdade religiosa.

9 O episcopado latino-americano no Concílio Vaticano II

“A América Latina era o único continente que, ao chegar ao Concílio, já contava com uma estrutura episcopal de caráter colegial, o Conselho Episcopal Latino-Americano, o CELAM, fundado no Rio de Janeiro (RJ), em 1955” (BEOZZO, 1998, p.823). Este espírito colegial latino-americano, ainda incipiente no início do Concílio, foi se desenvolvendo à medida que o Concílio avançava em suas discussões e decisões. Ademais, o tema inspirador da “Igreja dos Pobres”, brotado de comunidades latino-americanas, ganhou certo relevo nos debates conciliares – embora tenha emergido em poucas passagens de todos os documentos aprovados – a tal ponto que deu ocasião à iniciativa conhecida como “Pacto das Catacumbas”. Essa iniciativa consistiu na opção de bispos, não exclusivamente latino-americanos, de viverem com simplicidade em suas dioceses e se comprometerem, efetivamente, com as causas dos empobrecidos. Além disso, reflexo destas inquietações foi a promulgação, pelo Papa Paulo VI, da carta encíclica Populorum Progressio, no ano de 1967. Ora, coube ao episcopado latino-americano e caribenho, em suas sucessivas assembleias, de Medellín a Aparecida, com avanços e recuos, acolher as inspirações do Concílio Vaticano II e utilizá-las na análise dos problemas vividos pelos povos latino-americanos, inseridos em estruturas marcadas pela exploração socioeconômica dos pobres.

10 Atualidade e recepção do Concílio

O ensinamento do Concílio Vaticano II, de notável atualidade, ainda não foi suficientemente assimilado pelas comunidades católicas espalhadas por todo o mundo. Na realidade, encontramo-nos em pleno processo de recepção do conteúdo doutrinal desse grande e surpreendente evento eclesial, concluído em dezembro de 1965. E além deste esforço – o de receber o conteúdo do Vaticano II –, devemos defendê-lo de interpretações dos documentos conciliares que tendem a não respeitar o mais profundo significado da doutrina neles contida e o novo modo de propor aos homens e mulheres de todos os tempos “a beleza tão antiga e tão nova que é Cristo Senhor” (cf. SANTO AGOSTINHO, Conf. 10,27). Isto significa, além de reler seus documentos, resgatar as inspirações mais profundas – valer dizer: divinas – que estão à raiz deste que é considerado, com justiça, o mais significativo e promissor evento eclesial do século XX.

Paulo César Barros, SJ, Departamento de teologia da FAJE

11 Referências bibliográficas

Alberigo, G. Breve storia del concilio Vaticano II (1959-1965). Bologna: Il Mulino, 2005.

ARCE, R. La recepción del Concilio Vaticano II en la Arquidiócesis de Montevideo (1965-1985). Montevideo: Observatorio del Sur / Facultad de Teología del Uruguay Mons. Mariano Soler, 2008.

BEOZZO, J. O. Medellín: inspiração e raízes. Revista Eclesiástica Brasileira, v.58, n.232, p.822-50. 1998.

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Catolicismo contemporâneo

Sumário

1 Revolução francesa e a Igreja católica

1.1 Revolução inspirada no iluminismo

2 Catolicismo e o processo de restauração (1814-1846)

2.1 Restauração, um conceito

2.2 Estratégia agressiva contra a modernidade

3 Catolicismo e o combate ao liberalismo (1846-1878)

4 Questão social e o catolicismo

4.1 Leão XIII (1878-1903) e a questão social

4.2 Rerum Novarum (1891)

5 Condenação do modernismo e as reformas intereclesiais

5.1 Contra o modernismo

5.2 Reformas intereclesiais

6 Movimentos de renovação

7 Catolicismo e as Grandes Guerras

7.1 Período entre Guerras

7.2 Pio XII: pastoral, teologia e a 2ª Guerra Mundial

8 Transição e renovação, o papa cristão

8.1 João XXIII (1958-1963)

8.2 Vaticano II (1962-1965) e sua relação com a modernidade

8.3 Paulo VI, reformador e incompreendido (1963-1978)

9 O santo criticado e seu continuador

9.1 João Paulo II (1978-2005)

9.2 Bento XVI (2005-2013)

10 O retorno ao Cristianismo: Francisco

11 Referências Bibliográficas

1 Revolução francesa e a Igreja católica

1.1 Revolução inspirada no iluminismo

Na transição dos séculos XVIII-XIX, a sociedade europeia entra no enorme palco de transformações impulsionado pelas revoluções iluminista (pensamento), francesa (social burguesa) e industrial (econômica capitalista). O iluminismo, no “século das luzes” (XVIII), rompe com o determinismo religioso, imprime força incondicional na ação crítica da razão, questiona a obediência submissa, organiza o saber criando métodos de pesquisa, critica autoridade e poder. Suas críticas não pouparam a Igreja católica: abismo social entre alto e baixo clero, indiferença diante das dificuldades do povo. A revolução social francesa afetou todo o Ocidente, deixando profundas marcas no catolicismo. A luta está alicerçada nos resultados da sociedade medieval (clero, nobreza, artesãos) e a sociedade industrial (burguesia e trabalhadores). A revolução econômica provoca mudanças no sistema de produção, o capitalismo explora as riquezas naturais, se beneficia do avanço científico, mas o progresso porta consigo consequências gravíssimas para a sociedade. Dentre elas, a exploração humana: longas jornadas de trabalho, êxodo rural, fim dos artesãos, divisão social do trabalho, concentrações urbanas, precariedade nas condições de vida, prostituição, alcoolismo, criminalidade, epidemias e uma imensidão de despossuídos.

A Revolução francesa foi um acontecimento inesperado para a Igreja católica, gestado no berço do iluminismo. No seu desdobramento se sucederam outras revoluções até a ditadura militar de Napoleão Bonaparte. O século XIX inicia, para a Igreja, com um novo pontificado, Pio VII (1800-1823). Após várias tratativas, o papa assina, juntamente com Napoleão, a Concordata (1801). O documento é uma tentativa de recuperar as relações diplomáticas entre ambos Estados. Assim, a Igreja renunciava aos bens expropriados e aceitava que a remuneração do clero fosse efetuada pelo Estado francês. Bonaparte, secretamente, acrescentou à Concordata 77 ‘artigos orgânicos’, que aboliam em parte as conquistas da mesma. O protesto do papa não surtiu efeito, e Pio VII ainda sofreria outras humilhações por parte de Napoleão, que em 1808 ordenou a ocupação de Roma e do Estado Pontifício. O papa excomunga Napoleão e este faz Pio VII prisioneiro em Fontainebleau, sendo pressionado a abdicar o Estado Pontifício. Com a queda de Napoleão, na sequência da campanha da Rússia (1812) e da batalha de Leipzig (1813), e de tropas aliadas terem invadido Paris (1814), a reordenação da Europa pode ser empreendida pelo Congresso de Viena (1814-1815).

No início do século XIX, o papado parecia atravessar um dos momentos mais difíceis da era moderna. Pio VI havia morrido (1799) só e abandonado, prisioneiro da Revolução francesa. O episcopalismo parecia que triunfaria, sendo o sistema papal e a infalibilidade, segundo alguns autores alemães e franceses, questões antiquadas e sem importância histórica. Nenhum outro acontecimento histórico contribuiu tanto para o triunfo do papado no Vaticano I (1869-70) como a Revolução francesa. Com Pio VII realiza-se a reorganização da Igreja francesa (1801), e 36 bispos que viviam fora da França foram depostos, demonstrando, apesar de tudo, que o papado possuía poder. Este foi um passo para o ultramontanismo.

2 Catolicismo e o processo de restauração (1814-1846)

2.1 Restauração, um conceito

Com o término da Revolução francesa e do período napoleônico, a Europa estava em situação política, cultural e religiosa de total desordem. Era fundamental, pensavam a instituição religiosa e vários membros da sociedade, restabelecer a ordem restaurando os princípios da autoridade, da religião e da moral, assim como eram no Antigo Regime.

2.2 Estratégia agressiva contra a modernidade

O programa de restauração é evidente no pontificado do papa Leão XII (1823-1829). Sua preocupação era recuperar tudo o que a secularização e a revolução haviam destruído. A intenção nunca foi a de adaptar a Igreja às exigências dos novos tempos, mas uma restauração aos tempos anteriores. Seu sucessor, Pio VIII (1829-1830), não era um papa de objetivos diferentes. Sua ação era defensiva da Igreja e da fé católica, defender dos erros daquelas doutrinas, segundo ele mentirosas e perversas, que atacavam a fé. A educação deveria estar nas mãos da religião católica. Era evidente que este pontificado ficaria numa escala de transição. A grande reviravolta viria com seu sucessor.

A reação agressiva da instituição católica contra a modernidade não tardaria. Gregório XVI (1831-1846), o novo papa, realizou um pontificado dentro de uma linha programática da situação cultural e política de seu tempo. A cultura era dominada pelo iluminismo, anticlericalismo, maçonaria e pelo elemento antirreligioso, enquanto na política oficial predominava a restauração. Neste contexto, o papa publica a encíclica Mirari vos (1832). Entre as temáticas tratadas, em termos duríssimos, estão as duas fontes do mal: liberdade de imprensa e o indiferentismo religioso. Na mentalidade da cristandade medieval e da sociedade perfeita reinantes, o papa não consegue constatar nenhum sinal positivo em seu tempo e, por sua vez, não identifica as situações preocupantes dentro da instituição religiosa que necessitam de transformação. A ideia de renovação da Igreja é rejeitada, considerada um ultraje. Condena as ferrovias, pontes, energia elétrica. Tudo é sinal da modernidade e, por consequência, erros que devem ser condenados. O modelo de Igreja da cristandade prevalecerá durante todo o século XIX.

Um aspecto significativo deste período foi a vitalidade da ação missionária da Igreja através de muitas comunidades religiosas e um interessante florescimento de novas congregações, sobretudo no campo da educação, da assistência aos enfermos e empenho missionário. As contradições da história se sucedem no decorrer do século XIX. Se, por um lado, um segmento da instituição constrói um embate com a modernidade, outros setores se veem dentro de uma febre missionária, de fundação de congregações dedicadas exclusivamente às missões, assim como de preparação para as futuras igrejas locais.

3 Catolicismo e o combate ao liberalismo (1846-1878)

O final do pontificado de Gregório XVI foi para os romanos uma libertação. O papa e o seu secretário de Estado, cardeal Lambruschini, não eram amados e seu governo foi considerado tirânico e obscurantista. Todos esperavam um novo papa capaz de enfrentar, de maneira diplomática, a situação social e política. Eleito Pio IX (1846-1878), os liberais e democratas construíram a imagem do papa liberal, embora depois tenha sido acusado de inimigo da liberdade de consciência e de culto e de promover uma Igreja hostil à sociedade moderna. Defendia a plena independência do papa e da Igreja em relação ao Estado, opositor combativo do galicanismo. Se, por um lado, os anticlericais se tornaram grandiosos inimigos do papa, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, por outro lado, os ultramontanos cultuavam tão exageradamente o papa que atribuíam a ele o título de “Grande”. São três os pontos fundamentais de seu pontificado: proclamação do dogma da Imaculada Conceição (1854); publicação da encíclica Quanta Cura e seu anexo Sylabus (1864); e o Concílio Vaticano I (1869-70).

Pio IX não aceitava o regime constitucional, não somente por entender que não era apto para a Igreja, mas porque o julgava ruim em si mesmo. Enorme era sua aversão aos católicos liberais. O auge de sua política antiliberal se dá com a publicação da Quanta Cura e Sylabus. A encíclica tem por objetivo apontar os “erros modernos” que colocam a fé da Igreja em perigo e demonstrar sua superação, afirmando a autoridade da Igreja, fundamentada na autoridade divina. Esses erros, decorrentes da emergência das filosofias modernas como teorias de um novo estado de espírito, distorcem a consciência humana e a consciência eclesial. Perderam-se os valores morais e o caráter sacral da sociedade atual. Os erros modernos em destaque são o naturalismo e o panteísmo, o liberalismo, o comunismo e o socialismo, a dissociação entre Igreja e Estado. O anexo à encíclica, o Sylabus, é uma relação de 80 erros da modernidade que já haviam sido expostos e condenados em documentos anteriores. O documento é publicado no momento em que há dissonância entre os católicos. Além das motivações da sociedade para elencar estes erros, o papa analisa de maneira negativa os católicos que estavam abertos ao diálogo com a sociedade moderna, democráticos, progressistas, constitucionais. Contudo, os papistas, tradicionalistas e ultramontanos, estavam demasiadamente cultuando o passado.

As críticas de Pio IX objetivavam salvaguardar a fé da Igreja e a própria autoridade da Igreja na sociedade moderna. Sua apologética, incluindo o dogma da Imaculada Conceição, realçou a postura da Igreja em defender-se da modernidade e em afirmar sua identidade, construída no Concílio de Trento (1545-63). As críticas serviram também para apontar os maximalismos tanto dos defensores quanto dos opositores da modernidade. Essa apologética possibilitou estabelecer um clima necessário para buscar o equilíbrio na relação entre Igreja e Estado, fé e razão.

Na festa da Imaculada de 1869, foi aberto o Concílio Vaticano I, que se organizou com um objetivo principal: completar e confirmar a obra de exposição doutrinal anterior contra o racionalismo teórico e prático do século XIX. Duas constituições foram aprovadas, uma sobre a fé católica e outra sobre o papel do Romano Pontífice e sua autoridade doutrinal. Em julho de 1870, a guerra franco-prussiana obrigou a suspensão do Vaticano I, que nunca mais foi reaberto. Também em 1870, o Estado Pontifício foi anexado oficialmente ao território italiano, situação tão conflitiva que o papa excomungou o rei Vittorio Emanuelle e se refugiou em sua residência, o Quirinal. Pio IX não autorizava os italianos a serem candidatos ou votarem nas eleições. Essa situação durou mais de trinta anos. Estava iniciada a Questão romana (1870-1929).

Apesar das polêmicas historiográficas, o papa João Paulo II solicitou a continuidade do processo de beatificação de Pio IX, que ocorreu, juntamente com a do papa João XXIII, em 3 de setembro do ano 2000.

4 Questão social e o catolicismo

4.1 Leão XIII (1878-1903) e a questão social

Esse pontificado conseguiu alcançar um prestígio não obtido em tempos anteriores. A conjuntura final do século XIX coincidiu com um conjunto de mudanças radicais no campo político, econômico, social e científico. Em 1892, o papa orienta os franceses a aceitar a República, significando o final, para o mundo católico, da cristandade. Seu magistério tratou de diversos assuntos de grande importância naquele contexto, da vida religiosa à social. A sociedade estava dividida pelo conflito entre o capital e o trabalho: eis a questão social. Essa preocupação social havia começado na segunda metade do século XIX, quando em diversos países foram fundadas associações e círculos em favor dos operários. Leão XIII publicará um emblemático documento que tratou de maneira objetiva a questão operária e social: a encíclica Rerum Novarum.

4.2 Rerum Novarum (1891)

A encíclica conferiu à Igreja católica uma espécie de carta de cidadania. Sem dúvida, a encíclica foi para a ação social cristã aquilo que foi o “Manifesto do Partido Comunista” e o “Capital”, de Karl Marx, para a ação socialista. O documento trata da questão operária, contendo os princípios básicos da Doutrina Social da Igreja, que serão retomados, aprofundados e aplicados em sucessivos documentos e pronunciamentos do Magistério. Essa encíclica é o primeiro texto do magistério eclesiástico a estudar seriamente o problema social ocasionado pela industrialização. O texto, ao mesmo tempo, condenava o liberalismo e o socialismo, mas reconhecia o direito natural à propriedade e sublinhava o valor social, atribuía ao Estado o papel de promotor do bem comum, da prosperidade pública e da privada, superando o absolutismo social do Estado liberal, e reconhecia ao operário o direito a um salário justo. Condenava a luta de classes e aceitava o direito do operário associar-se para defender seus interesses.

A encíclica foi publicada 44 anos depois do aparecimento do ‘Manifesto’ de Marx, e aparentemente não foi tão importante para o movimento de emancipação dos operários. Muitas vezes utiliza uma linguagem abstrata, sem analisar a situação real criada pelo capitalismo e também não apresenta uma análise estrutural das causas da miséria da classe operária. Apesar dessas e outras lacunas, o documento representa uma importante postura na história da Igreja católica.

Essas mudanças na postura da Igreja produziram também dificuldades: não foram poucas as pessoas que pediam a conversão de Leão XIII, que o consideravam entregue às teses marxistas. A outra face da moeda é que em países como a França, Bélgica e Itália nasceu um movimento que se denominou democrata cristão, unindo as aspirações apostólicas, a vontade de reformas sociais e uma preocupação política, não sempre clara, mas favorável à democracia.

5 Condenação do modernismo e reformas intereclesiais

5.1 Contra o modernismo

O modernismo e sua consequente crise tiveram início nos tempos de Leão XIII, mas seu ponto fulcral se deu no pontificado de Pio X (1903-1914). Esse movimento surge em ambiente universitário liberal. Elaborou um pensamento que consistia na aplicação dos métodos modernos de investigação científica à teologia. O objetivo era abrir o cristianismo às exigências filosóficas e históricas da sociedade contemporânea. Uma tentativa de acolher o pensamento modernista foi realizada na obra filosófica de Maurice Blondel, L’Action (1893).

As ideias do modernismo foram aplicadas à teologia e à Sagrada Escritura. As proposições aplicadas no campo eclesiológico tendiam a reduzir a Igreja a uma forma democrática. O modernismo foi a tentativa de conciliar a Igreja católica com os resultados conseguidos pela crítica histórica. Neste sentido, a Igreja não é hierarquia, mas é originária da consciência coletiva, nascida não da vontade divina, mas da necessidade. Gerada de baixo para cima. As proposições modernistas foram censuradas pela Igreja, mas encontraram adesão na medida que afastavam-se do projeto de cristandade. Alguns representantes do modernismo tiveram suas obras submetidas ao Index. Alguns se reconciliaram com a Igreja e outros foram excomungados. Dois dos protagonistas são o padre francês Alfred Loisy (1857-1940) e o jesuíta inglês George Tyrrell (1861-1909). O primeiro foi excomungado, interpretava em sentido escatológico a pregação de Jesus; negava a imutabilidade e o valor objetivo dos dogmas; reduzia o valor da autoridade eclesiástica, pregava total separação entre a fé e a história. O segundo afirmava que se poderia ficar no catolicismo sob condição de distinguir entre a fé viva e a teologia morta, entre a Igreja real e a autoridade que a governa. Foi expulso da Companhia de Jesus e não foi aceito em nenhuma diocese. Mais tarde, foi decretada sua exclusão aos sacramentos, mas não a excomunhão.

Através da encíclica Pascendi Dominici Gregis e do decreto Lamentabili (1907), Pio X apresenta uma forte condenação ao modernismo, reprimindo a reconciliação da doutrina cristã com a ciência e o conhecimento moderno. Foi realizada uma caça formal à heresia dos teólogos reformistas, de maneira especial a exegetas e historiadores. São excluídas do ensinamento as obras de Lagrange, Funk, Delehaye, Duchesne. Em 1910, é imposto aos professores de seminários o juramento antimodernista. São realizadas visitas apostólicas nos seminários italianos, resultando em relatórios às vezes duros por parte dos visitadores. Um dos avaliados nestas visitas foi Ângelo Roncalli, futuro João XXIII.

5.2 Reformas intereclesiais 

O papa Sarto foi um dos grandes reformadores da Igreja.  É de sua iniciativa a organização legislativa da Igreja através do Código de Direito Canônico. Sua apresentação final realizou-se em 1917, no pontificado de Bento XV. Outras reformas aconteceram na catequese e na liturgia. Organizou um catecismo da doutrina cristã. Na liturgia, lançou documentos sobre a música sacra (restauração do canto gregoriano), breviário (harmonização do breviário e ano litúrgico) e sobre a eucaristia (comunhão frequente e idade para primeira eucaristia). Pio X foi canonizado por Pio XII em 1954.

6 Movimentos de renovação

Os movimentos bíblico, litúrgico e ecumênico foram a porta de entrada do sujeito moderno na Igreja. Surgem no século XIX e deslancham no século XX. Os albores do Vaticano II também tem sua gestação nesses movimentos.  O movimento ecumênico, por exemplo, nasceu fora da Igreja católica. Em Edimburgo (Escócia), em 1910, missionários protestantes organizaram uma conferência para estudar as possibilidades e os meios de união, em vistas de uma única evangelização cristã. Nascia o movimento ecumênico. Em 1960, no pontificado de João XXIII, foi criado o Secretariado para a União dos Cristãos, presidido pelo cardeal jesuíta alemão Augustin Bea. O movimento nasce no mundo protestante por razões de evangelização e assume relevância na Igreja católica à medida que os teólogos desposam tal projeto.

7 Catolicismo e as grandes Guerras

Numa linha intermediária e de grande importância histórica para a compreensão da modernidade está o pontificado de Bento XV (1914-1922). O papa envolveu-se na mediação com a 1ª Guerra Mundial, mas sem sucesso. O caos global da Guerra (1914-1918) tornou evidente que os principais valores da modernidade estavam em crise: a absolutização moderna da razão, do progresso, da nação e da indústria. A total crença na razão, no progresso, no nacionalismo, no capitalismo e no socialismo fracassara. A Europa estava pagando um preço alto com os movimentos reacionários do fascismo, nazismo e comunismo. Esses movimentos idealizavam, de uma maneira moderna, a raça, a classe e seus líderes impediram uma ordem mundial nova e melhor.

A 1ª Guerra colocou em marcha a revolução global que se tornaria explícita após a 2ª Guerra Mundial: a mudança do paradigma eurocêntrico de modernidade, que tinha uma marca colonialista, imperialista e capitalista. O novo paradigma, que começara a se desenvolver, da pós-modernidade seria global, policêntrico e de orientação ecumênica. A Igreja católica reconhecera isto somente em parte, e um pouco tarde.

7.1 Período entre Guerras

O sentido do pontificado de Pio XI (1922-1939), no entre guerras, deve ser compreendido dentro dos acontecimentos políticos de seu tempo: uma humanidade oprimida pelos totalitarismos gerados pela sociedade de massa, as profundas diferenças ideológicas que tornaram, particularmente durante a guerra civil, os valores cristãos e a Igreja hostilizados e perseguidos. O desenrolar deste pontificado acontece durante a dramaticidade de grandes eventos que marcam o mundo contemporâneo: fascismo, nazismo e totalitarismo stalinista. Todo este contexto justificava, de certo modo, sua política concordatária realizada na Itália através dos Pactos Lateranenses (1929). O desenvolvimento de suas atividades será explicitado através das encíclicas: Non abbiamo bisogno (1931), Quadragesimo anno (1931), Mit brennender Sorge (1937), e, em seguida, a condenação do comunismo ateu na Divini Redemptoris (1937).

A Ação Católica (movimento de leigos), organizada neste pontificado, está na base da preparação do Concílio Vaticano II. Apesar desta intenção inicial, os leigos da Ação Católica levaram os colegiais (JEC), os universitários (JUC), os operários (JOC, ACO), o mundo rural (JAC) e pessoas dos meios independentes (JIC) a inserirem-se nos seus ambientes específicos, a tal ponto que eles trouxeram para dentro da Igreja toda a problemática e reflexão moderna que em tais situações se vivia. Essa atuação do laicato no mundo, seu engajamento, assumindo compromissos políticos, levou a uma maior participação dentro da Igreja, requerendo maior formação espiritual e teológica.  É aí que esse laicato se defronta com os problemas da modernidade. Os grandes pensadores Yves Congar, Jacques Maritain e Emmanuel Mounier desenvolveram reflexões teológicas sobre a presença do leigo cristão na Igreja e no mundo. Toda essa mentalidade estava caracterizada pelos sinais da modernidade.

Diante das medidas fascistas baixadas na Itália, em junho de 1938, e também porque na Alemanha o problema judaico ia se agravando, Pio XI confiou ao padre jesuíta americano John La Farge a tarefa de preparar um texto sobre a unidade do gênero humano, destinada a condenar em especial o racismo e o antissemitismo. O esboço do texto chegou às mãos do papa somente no final de 1938. O papa estava doente e em seguida morreria, a encíclica jamais foi publicada. No Brasil a encíclica (e um longo comentário) foi publicada pela Editora Vozes com o título “A encíclica escondida de Pio XI”.

7.2 Pio XII: pastoral, teologia e a 2ª Guerra Mundial

Pio XII (1939-1958) fazia ressurgir o projeto de uma civilização cristã. Eugênio Pacelli, que havia sido núncio em Munique, teve um pontificado de extremos. Isto se explica pelo notável contraste entre sua figura e orientação e as de seu sucessor João XXIII (o papa do século). Representava a encarnação do papado em toda a sua dignidade e superioridade. Herdara de seu antecessor uma Igreja fortemente centralizada. As atividades desse papa foram adquirindo outro tom diante, principalmente, de suas relações com a Alemanha e o nazismo. Nesse sentido, seu pontificado foi extremamente criticado por uns, que afirmavam a ausência de manifestações públicas do papa na questão judaica do holocausto, e defendido por outros, que diziam que o papa estava realizando tudo o que estava a seu alcance por vias diplomáticas.

O magistério de Pio XII poderá ser compreendido através de suas mensagens, discursos e encíclicas. Seu pontificado pode ser considerado o último da era antimoderna medieval. Teve diversos aspectos autoritários: rejeitou as doutrinas evolucionistas, existencialistas, historicistas e suas infiltrações na teologia católica foram de grande impacto, como as censuras aos estudiosos Maritain, Congar, Chenu, De Lubac, Mazzolari, Milani e os padres operários franceses.

A situação mundial e mesmo, em muitos aspectos, o interior da Igreja respiravam um ar desejoso de novidades. Pio XII via de forma positiva as reformas, mas sua atitude tendia para uma prudência exagerada. Sua preocupação cada vez maior com uma Igreja envolvida num mundo de agitações e tensões revolucionárias explica, em parte, porque começou a concentrar o governo em suas mãos. Eugenio Pacelli via na exposição da doutrina da Igreja em face dos muitos problemas do mundo moderno sua missão mais importante. Publicou grande número de encíclicas. As principais foram Mystici Corporis (1950) e Humani Generis (1950). A primeira trata da identidade e ordenamento da Igreja, com franco combate à nova teologia. A segunda determina a posição do pontífice a respeito da moderna teoria evolucionista, contendo recusa a algumas hipóteses da escola de Teilhard de Chardin (sem citar nomes). Uma especial atenção dispensou à questão sobre Maria. Em 1950, proclamou o dogma da Assunção de Nossa Senhora.

8 Transição e renovação, o papa cristão

8.1 João XXIII (1958-1963)

O pontificado de João XXIII se caracterizou por uma eclesiologia profética e sua pastoralidade em continuidade à tradição da Igreja. Seus primeiros gestos pastorais indicavam uma nova orientação para a Igreja. Em 1959, anunciou três acontecimentos eclesiais: Sínodo Diocesano de Roma, revisão do Código de Direito Canônico e um Concílio, o Vaticano II. Seu pontificado de aggiornamento marcou uma mudança de direção devido à sua intuição na convocação do Concílio.

Ângelo Giuseppe Roncalli nasceu no povoado de Sotto il Monte na província de Bérgamo, Itália, no dia 25 de novembro de 1881, de família pobre de camponeses. O jovem Roncalli estudou os dois primeiros anos de teologia no seminário de Bérgamo, sendo admitido no ano de 1896 na ordem franciscana secular, onde professou as regras em maio de 1897. Com uma bolsa de estudos que ganhou de sua diocese, foi aluno do Pontifício Seminário Romano, onde recebeu a ordenação sacerdotal em agosto de 1904 – Roma. No ano de 1905, foi nomeado secretário do bispo de Bérgamo, D. Giacomo Radini Tedeschi, o que lhe possibilitou fazer inúmeras viagens, visitas pastorais e colaborar com múltiplas iniciativas apostólicas como sínodos, redação de boletim diocesano e obras sociais. Colaborou com o jornal católico da diocese de Bérgamo e foi assistente da Ação Católica Feminina. Foi como professor no seminário da mesma diocese que aprofundou seus estudos sobre três pregadores católicos:  São Francisco de Sales, São Gregório Barbarigo (na ocasião era beato e depois foi canonizado pelo próprio Roncalli em 1960), e São Carlos Borromeu, de quem publicou as Atas das visitas realizadas na diocese de Bérgamo no ano de 1575. Após a morte do bispo de sua diocese, em 1914, do qual foi secretário, o padre Roncalli prosseguiu seu ministério sacerdotal na diocese, onde pretendia permanecer.

Em 1915, Roncalli foi à guerra defender seu país, pois nos anos de seminarista em Roma havia prestado um ano de serviço militar. Roncalli foi convocado como sargento sanitário e nomeado capelão militar dos soldados feridos que regressavam da linha de combate, quando a Itália, após o Tratado de Londres de 26 de abril de 1915 renunciou ao acordo com a Tríplice Aliança, entrando na guerra.

A segunda fase de sua vida teve início em 1921, com sua convocação, pelo papa Bento XV (1914-1922), para integrar o Conselho das Obras Pontifícias para a Propagação da Fé, da qual foi presidente, função que o obrigou a percorrer inúmeras dioceses italianas organizando círculos missionários. Essa fase romana e a vida aparentemente tranquila de presbítero não duraram muito tempo. No papado de Pio XI (1922-1938), o padre do pequeno vilarejo de Sotto il Monte foi elevado ao episcopado em 1925 e nomeado como Visitador Apostólico para a Bulgária. Em 1934, foi nomeado para a função de Delegado Apostólico na Turquia e Grécia e, ao mesmo tempo, administrador do Vicariato Apostólico de Istambul, onde se destacou no diálogo com os muçulmanos e os ortodoxos.

Em 1944, Pio XII nomeou Roncalli para ser Núncio Apostólico em Paris. Sua nomeação teve a intervenção direta do pró-secretário de Estado, Mons. Montini. Aos cinquenta e três anos de idade, Roncalli foi alçado a cardeal e dois anos mais tarde patriarca de Veneza. Aos setenta e sete anos chegou ao conclave e foi eleito papa João XXIII. Sua encíclica Pacem in terris (1963) foi o último ato de um pontificado tão breve, mas intenso, dinâmico e incisivo.

A morte do papa no dia 3 de junho de 1963 – Dia de Pentecostes – foi recebida com grande comoção em várias partes do mundo católico. Impressionante esse momento, diferente de outros tempos, em que homens e mulheres de todos os países e de todas as religiões choraram a sua morte. João XXIII foi canonizado em abril de 2014, pelo papa Francisco.

8.2 Vaticano II (1962-1965) e sua relação com a modernidade

Em 11 de outubro de 1962, João XXIII abriu a primeiro período do Concílio. O texto de abertura é de fundamental importância (Gaudet Mater Ecclesia) e exerceu profunda influência na redação de todos os documentos conciliares. Três pontos merecem destaque. Em primeiro lugar, o papa dirige-se aos profetas que anunciam apenas desgraças, vendo no mundo moderno somente declínio e catástrofes, comportando-se como se não aprendessem nada da história. Em segundo lugar, o ponto central do Concílio. Não será somente uma discussão de um ou outro artigo da doutrina fundamental da Igreja, repetindo e proclamando o ensino dos padres e dos teólogos antigos e modernos, pois supõe que isso já seja bem presente e familiar. Para isso, não haveria necessidade de um Concílio. Trata-se de uma renovada, com serena e tranquila adesão a todo o ensino da Igreja. Em terceiro lugar, a Igreja sempre se opôs aos erros; muitas vezes até condenou com maior severidade. A Igreja, agora, levando por meio do Concílio o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente e cheia de misericórdia com seus filhos dela separados.

O Vaticano II promulgou dezesseis constituições, decretos e declarações. Há um consenso de que a constituição dogmática Lumen Gentium e a constituição pastoral Gaudium et spes sejam o eixo do Concílio. A Igreja teve coragem de olhar para o seu passado, refletir e criar uma relação nova no presente. A continuidade do diálogo e de todos os frutos que ele gerou continuam acontecendo.

O evento conciliar teve duas grandes personalidades à sua frente: João XXIII, que morreu após o primeiro período do Concílio, aos 82 anos, e Paulo VI (1963-1978), que o substituiu. Montini (Paulo VI – beatificado em 2014 pelo papa Francisco) tomou a sério sua grande tarefa de continuidade do Concílio, evidentemente com uma tônica diferente. Roncalli (João XXIII) era pastor e Montini era personagem da Cúria. Nesse sentido, a análise do pós-Concílio merece uma reflexão sobre os avanços e os retrocessos dentro do próprio evento conciliar. Apesar das concessões sobre a reforma da liturgia, a renovação da Igreja católica e o diálogo ecumênico com as outras Igrejas Cristãs, desejado por João XXIII, o Concílio não teve um avanço, mas sim uma estabilidade. Historicamente era muito cedo, apesar da janela aberta, para perceber na prática cotidiana relações de transformações absolutas, abrindo a janela, portas, limpando o grande pó dos móveis e, principalmente, dos seus interiores. Já era um grande passo para o diálogo com a modernidade. Algumas vezes tornou-se, novamente, monólogo.

8.3 Paulo VI, reformador e incompreendido (1963-1978)

O papa Paulo VI, Giovanni Battista Montini, nasceu em Concesio, próximo à Brescia, no ano de 1897. De família abastada, sua mãe, muito católica, era presidente da Associação Católica Feminina de Brescia; o pai era doutor em direito, escritor e fundador do diário “Il cittadino de Brescia”, foi presidente da União Eleitoral Católica de Brescia e deputado no parlamento pelo Partido Popular, do qual era um dos fundadores. Ordenado sacerdote em 1920, Montini estudou direito eclesiástico na Universidade Gregoriana (Roma) e após um exame de admissão tornou-se professor por um curto período.

Depois de seus trabalhos na Secretaria de Estado da Santa Sé, Montini foi nomeado arcebispo de Milão. No período de seu arcebispado em Milão (1955-1963), aproximou-se dos operários, e das reivindicações da esquerda, que atuavam na sua arquidiocese, e também não se esqueceu dos que estavam afastados da Igreja. Um dos eventos de maior importância que realizou em Milão foi a Missão de Milão (5-24 de novembro de 1957). Foi um enorme trabalho pastoral que envolveu toda a imensa cidade. Preparada durante dois anos, participaram 500 agentes de pastoral, dois cardeais, 24 bispos, e foram realizadas sete mil intervenções e palestras nas igrejas, estabelecimentos industriais, entidades culturais. O tema central de todas as pregações foi Deus Pai. O arcebispo Montini participou diretamente dessas atividades através do rádio, escritos e conferências. Procurou implantar uma reforma pastoral favorecendo a renovação da liturgia e promovendo a construção de novas igrejas. Consagrou 72 igrejas no período em que permaneceu em Milão. No momento de sua eleição pontifícia, outras 19 igrejas estavam em construção.

No dia seguinte à sua eleição, Paulo VI anunciava, através de uma mensagem radiofônica, a sua intenção de continuar o Concílio. Coordenou os três períodos seguintes do Vaticano II.

Da América Latina, o papa recebeu denúncias da situação aviltante das populações empobrecidas, que viviam em situação miserável e em grande parte debaixo de regimes ditatoriais funestos, apoiados pelo capitalismo “democrático” americano. O papa não ficou imune a essa situação, lançando a encíclica Populorum Progressio (1967), que provocou grande debate nos meios eclesiais e fora dele, principalmente entre os conservadores da Cúria, que achavam que o papa havia excedido em suas colocações à esquerda, como, por exemplo, quando citou e questionou a supremacia da propriedade privada em detrimento dos direitos coletivos.

O papa publicou outras encíclicas, mas a que causou maiores discussões foi a Humanae vitae (1968). A encíclica tratava de um assunto altamente complexo para a sociedade: o controle de natalidade.  Nunca uma encíclica provocou tantas polêmicas externas e internas. O texto trata da temática da sexualidade humana. A afirmação é que a sexualidade deve ser vista não como prazer animalesco. A incompreensão do documento é, sobretudo, devido a uma leitura redutiva da encíclica, levando em consideração a questão da proibição da pílula e ignorando outra parte altamente positiva: a função criativa da sexualidade, não só biológica, mas personalística.

Em Jerusalém (1964), abraçou com o patriarca Antenágoras o diálogo com todos os cristãos. No Congresso Eucarístico de Bombaim (Índia – 1964), marcou presença no encontro com os fiéis católicos. Discursou na ONU (1965) diante de 117 delegados de diversos países, marcando assim o diálogo com a sociedade. Celebrou missa em Fátima, Portugal, em 1967, comemorando os 50 anos da aparição de Maria aos pastorzinhos. No Congresso Eucarístico de Bogotá (1968), abriu a II Conferência do Episcopado Latino-americano de Medellín, um encontro com os pobres do então terceiro mundo. No encontro de oração no Congresso Ecumênico das Igrejas em Genebra (1969), abraça todos os irmãos cristãos de outras denominações.

A questão da colegialidade foi, para Paulo VI, fundamental, por estar ligada a outra que o preocupava, o ecumenismo. A essas questões internas se junta a grande questão que na atualidade ainda é de enorme importância e com a qual a instituição religiosa tem dificuldade de lidar: o diálogo com a sociedade. Para encaminhar estas questões tratadas no Vaticano II, o papa tinha consciência que dentro da instituição havia dois polos opostos, em alta conflituosidade: novidade e tradição, verdade e caridade, historicidade e permanência, autoridade e liberdade, poder e fraternidade, superioridade e humildade, separação do mundo e unidade com o mundo. Paulo VI também tinha plena consciência que deveria conciliar esses binômios. Ainda importante destacar que esse pontificado teve início dentro de um período conciliar e sua continuidade difícil nos primeiros anos de um pós-Concílio.

Paulo VI faleceu no dia 6 de agosto de 1978 em Castel Gandolfo, com 81 anos de idade. Foi sepultado na cripta da Basílica São Pedro, numa tumba humilde, como ele mesmo pediu em seu testamento.

9 O santo criticado e seu continuador

9.1 João Paulo II (1978-2005)

Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, eleito em 1978 após a morte repentina de João Paulo I, com 33 dias de pontificado, recebeu a herança espiritual deixada por Paulo VI e o espírito pastoral do Vaticano II. Seu longo pontificado (1978-2005) é marcado por diversos fatores, um deles é o religioso. Incrementando esse caráter religioso, o papa propôs uma Nova Evangelização. Escreveu 14 encíclicas (3 sociais) e outros documentos e catequeses. O Código de Direito Canônico (1983) e o Catecismo da Igreja Católica foram o auge de um processo iniciado e enriquecido neste pontificado. Apresentou duras críticas ao sistema totalitário comunista e ao capitalismo. Incentivou o ecumenismo e o diálogo inter-religioso. Visitou 114 países, arrebanhando multidões. O jubileu, no ano 2000, foi uma grandiosa celebração e incentivo à nova evangelização.

O pontificado de Wojtyla também sofreu críticas, como as do jesuíta brasileiro João Batista Libânio (2005) sobre o Código e o Catecismo, e se referem às pontes que não criaram na continuidade ao Vaticano II. Vários teólogos apresentaram suas observações sobre o Sínodo Extraordinário de 1985, convocado para avaliar o Vaticano II, mas visto, porém, como um retorno ao pré-concílio. João Paulo II é criticado, apesar da afirmação da colegialidade, pela centralização, que tinha como pilar a Cúria Romana, com uma eclesiologia hierárquica, desfavorecendo a concretização da Igreja Povo de Deus. São questionadas as restrições feitas às mulheres nos diversos níveis ministeriais e a condenação de inúmeros teólogos. Renasce um autoritarismo e clericalismo durante o pontificado, ao contrário das diretrizes do Vaticano II.

O papa enfrentou diversos sofrimentos particulares relativos à sua saúde, inclusive um atentado em 1981 em plena Praça São Pedro. Sua saúde passou por muitos momentos de dificuldade, levando a um sofrimento geral dos fiéis nos últimos anos de seu pontificado. Uma multidão acompanhou o seu longo velório em Roma e pedia que fosse feito santo imediatamente. Sua canonização ocorreu em 2014, juntamente com João XXIII.

9.2 Bento XVI (2005-2013)

O sucessor de João Paulo II foi seu braço direito na Cúria Romana, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal alemão Joseph Ratzinger. A escolha feita no conclave foi recebida com inúmeras reservas em âmbitos eclesiásticos. Enfrentou diversas dificuldades e passará para a história como o papa teólogo e o que renunciou.

No dia 11 de fevereiro de 2013, na Cidade do Vaticano, na sala do Consistório, Bento XVI presidiu um consistório público para a canonização de beatos. Em seguida, continuou lendo uma breve declaração em latim que levava a sua assinatura e a data do dia anterior, na qual anunciava sua decisão de renunciar ao pontificado por motivos de idade, comunicando que a Sé de Pedro ficaria vacante a partir das 20 horas do dia 28 de fevereiro. A declaração consta de 22 linhas, linhas destinadas a mudar a história da Igreja. Sua renúncia é um grande gesto, que se tornará revolucionário. Bento XVI trouxe o papado para os tempos modernos.

Seu pontificado foi extremamente difícil. Carregado de obstáculos, ataques, crises, escândalos (pedofilia) e tensões no governo da Cúria romana, carreirismo, lutas internas. Seus poucos anos de pontificado foram marcados por outras situações polêmicas: relacionamento com os bispos lefebvrianos; a autorização da missa em latim através do Motu Proprio Summorum Pontificum (2007), trazendo à tona a oração pela conversão dos judeus; as discussões sobre as hermenêuticas do Vaticano II; o discurso em Regensburg (Alemanha 2006); o caso Richard Williamson, da Fraternidade São Pio X, excomungado por João Paulo II e reabilitado pelo papa Ratzinger; as notificações da Congregação da Doutrina da Fé para vários teólogos. Dentre eles estão: Roger Haight, Jon Sobrino, Jacques Dupuis, Peter Phan, Torres Queiruga, José Antônio Pagola.

 Alguns projetos iniciados por Bento XVI foram paralisados, da “reforma da reforma” da liturgia à relação com os lefebvrianos, passando pelo diálogo ecumênico. O caso Vatileaks, no último ano do pontificado, trouxe à tona uma complexa realidade, certamente não limitada somente à traição do mordomo Paolo Gabriele, entregando documentos sigilosos a terceiros não autorizados, que foram depois publicados. Essa é a conjuntura em que o papa Bento XVI renuncia e, ao mesmo tempo, é o cenário de crise em que é eleito Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco. Sua eleição (2013) parece evocar aquela visão de oito séculos atrás: “Vai Francisco, e restaura a minha Igreja em ruínas”. Sua missão, outorgada pelos seus cardeais eleitores, é a de mudar a arranhada imagem da Igreja.

10 O retorno ao Cristianismo: Francisco

 Eleito em 2013, Francisco é o primeiro papa jesuíta e latino-americano (Argentina) em 20 séculos da Igreja católica. Seu nome é um programa de pontificado: proximidade com os pobres e compromisso de renovação da Igreja. O cardeal Bergoglio nasceu em 1936, no bairro de Flores, coração de Buenos Aires. Em 1957, entra para a Companhia de Jesus. Seus anos de estudo de teologia e filosofia se deram na Argentina e no Chile. Em dezembro de 1969, foi ordenado padre. Não é possível defini-lo como um grande carreirista, foi prior provincial dos jesuítas na Argentina de 1973 a 1979. Entre 1980 e 1986, foi reitor da Faculdade de Teologia em San Miguel. No ano de 1992, foi nomeado bispo auxiliar da arquidiocese de Buenos Aires, guiada pelo então cardeal Antônio Quarracino. A partir de 1998, com a morte de Quarracino, Bergoglio será o novo arcebispo de Buenos Aires. Foi criado cardeal por João Paulo II em 2001. Na tarde de 13 de março de 2013, na Capela Sistina, cidade do Vaticano, às 16h30, na quarta votação, é eleito o novo papa. Francisco terá pela frente uma missão imensa, não só pelo serviço em si, mas pelas enormes dificuldades que a instituição vive neste contexto. São desafios que o papa jesuíta sabe bem; é importante plantar a semente, mas não é necessário colher os frutos no tempo presente. Afirma Francisco: “desconfio das decisões tomadas de modo repentino” (SPADARO, 2013, p.11). Nesse primeiro ano de pontificado, foi lançada a encíclica Lumen Fidei, iniciada por Bento XVI.

Em tempos de neoliberalismo, nada é tão atual quanto elaborar ensinamentos sociais em situações sempre novas e aí anunciá-los profética e criticamente. O papa Francisco, preocupado com a tarefa incompleta do Vaticano II e em andamento, afirma que o mandamento não matar põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim, hoje, devemos dizer “não à economia da exclusão e da desigualdade social” (Evangelii Gaudium n.53). A exortação apostólica do papa, Evangelii Gaudium, publicada em 2013, já causou enorme debate mundo afora. De um lado, muitos analisam o documento como um grande passo na questão social, mas, por outro lado, empresários, especialmente americanos, ficaram extremamente descontentes com as críticas feitas ao capitalismo. Críticas que João Paulo II já havia realizado. Na exortação, Francisco denuncia que “o ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora” (EG n.53). Portanto, é uma declaração e, ao mesmo tempo, uma necessidade de atualizar o Vaticano II, valorizando a dignidade da pessoa e dizendo, sem medos, um enorme não à sacralização do mercado. Não a um dinheiro que governa ao invés de servir.

O que o papa está realizando foi um sonho de João XXIII, ou seja, que a Igreja saísse do Vaticano II e ficasse bem próxima dos pobres, de modo que esses se sentissem em casa no seu seio, mas, no acervo documental do Concílio, os pobres se perdem. Os empobrecidos não podem sair da ótica de uma Igreja que segue as inspirações do Vaticano II. Este tema é evangelicamente sempre atual, embora muitas vezes tenha sido silenciado na sociedade e mesmo no interior da Igreja, em determinados setores eclesiásticos.

O papa tem demonstrado sua capacidade de se relacionar com os judeus, os islâmicos e com outros de diversas denominações religiosas, na perspectiva de uma eclesiologia missionária: Igreja em saída, voltada para a sociedade e a serviço da humanidade. Igreja que saiba escutar e realizar a urgente enculturação da fé, enculturação que foi obstaculizada nos últimos anos pela centralização.

Um evento histórico e emblemático do início de seu pontificado foi a celebração da XXVIII Jornada Mundial da Juventude (julho de 2013), no Rio de Janeiro – Brasil. Seus discursos, homilias, gestos e a presença imensa de fiéis revelaram o relacionamento que já marca esse pontificado: próximo do povo, não só no discurso mas também em uma sadia rebeldia diante de sua segurança pessoal. Visitou periferias da cidade maravilhosa e celebrou no Santuário de Aparecida do Norte, em São Paulo. Encontrou com argentinos na Catedral de São Sebastião no Rio de Janeiro. Por onde passou deixou um sinal diferente do bispo de Roma, no caminho de Assis em busca de reformas da Igreja e de uma Igreja missionária. Nesse mesmo ano visitou ainda, na Itália, Cagliari, Assis e a emblemática ida a Lampedusa e seu pronunciamento diante da tragédia global da imigração e das inúmeras mortes no mar, especialmente o naufrágio de africanos.

O papa visitou, em 2014, a Turquia, Tirana (Albânia), o Parlamento Europeu, a Coreia do Sul e a Terra Santa. Na Itália, realizou visitas em 2014: Redipuglia, Caserta, Campobasso e Boiano, Isernia-Vesafro e Cassano allo Jonio. Convocou e participou do Sínodo Extraordinário sobre a Família em 2014, que teve sua continuidade e término em outubro de 2015. Em 2015, visitou as Filipinas, onde mais de 6 milhões de pessoas compareceram à missa realizada em Manila, e o Sri Lanka; Equador, Bolívia, Paraguai, Bósnia, Cuba e Estados Unidos e a Organização das Nações Unidas (ONU). E ainda  em novembro visitou o Quênia, Uganda e República Centro Africana. Na Itália, já visitou, em 2015, Prato, Florença, Turim, Pompéia e Nápoles.

“Quando insisto na fronteira, de modo particular, refiro-me à necessidade de o homem da cultura estar inserido no contexto em que opera e sobre o qual reflete. Está sempre à espreita o perigo de viver em um laboratório” e ainda continua Francisco afirmando que “nossa fé não é uma fé-laboratório, mas uma fé-caminho, uma fé histórica. Deus revelou-Se como história, não como um compêndio de verdades abstratas…é preciso viver na fronteira” (SPADARO, 2013, p.33-4).

Em outra encíclica de 2015, Laudato Si’ – “Louvado Sejas, sobre o cuidado da casa comum”, o papa oferece uma grandiosa reflexão para os debates sobre a temática da ecologia integral. O texto apresenta uma análise do que está acontecendo no planeta (poluição, clima, água, biodiversidade, deterioração da vida e degradação social). Em seguida, trata da Criação e aborda a questão da raiz humana da crise ecológica. É, sem dúvida, um documento do magistério que apresenta enorme contribuição e críticas ao sistema econômico gerador das crises da integralidade ecológica.

Na sua bula Misericordiae Vultus (2015), convida para a realização do Ano Santo do Jubileu extraordinário da Misericórdia a ser realizado entre 8 de dezembro de 2015 (festa da Imaculada Conceição) e 20 de novembro de 2016 (festa de Cristo Rei).

Ney de Souza, PUC São Paulo

11. Referências bibliográficas

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Batismo – Crisma

Sumário

1 A unidade da iniciação cristã

2 Da lex orandi à lex credendi

2.1 A iniciação cristã no séc. III

2.2 A caracterização do batismo-crisma

2.2.1 Batismo-crisma, sacramento da fé

2.2.2 Batismo-crisma, sacramento da conversão

2.2.3 Batismo-crisma, sacramento de iniciação

2.3 A distinção entre o batismo e a crisma

3 A dimensão eclesial do batismo-crisma

3.1 A Igreja faz o batismo-crisma

3.2 O batismo-crisma faz a Igreja

4 Referências bibliográficas

1 A unidade da iniciação cristã (TABORDA, 2012, p.25-28)

Batismo e crisma são dois sacramentos, como se pode verificar na lista dos sete sacramentos definida pelo Concílio de Trento (cf. DH 1901). Mas são dois sacramentos intimamente unidos. Juntamente com a eucaristia batismal são os sacramentos da iniciação cristã. Como a eucaristia não é só sacramento de iniciação, aqui se tratará somente do batismo e da crisma em sua unidade. Tal foi, nas origens, a prática da tradição eclesial conservada ainda hoje no Oriente, mesmo para crianças de colo. A prática atual da Igreja Latina é testemunhada desde o séc. V (cf. DH 215). Em consequência dessa prática, perdeu-se na Igreja Latina a visão da unidade dos sacramentos da iniciação cristã e tentou-se (em vão) desenvolver uma teologia da crisma independente do batismo. Só considerando a unidade dos dois sacramentos é possível fazer uma teologia da crisma que não “roube” algo do batismo, e vice-versa, uma teologia do batismo que não “perca” algo para que a crisma possa existir.

2 Da lex orandi à lex credendi (TABORDA, 2015, p.23-47)

Graças à volta às fontes, a teologia redescobriu na Patrística uma forma de refletir sobre os sacramentos, distinta da maneira usual da sacramentária sistematizada pela Escolástica. A Patrística parte da celebração vivida em comunidade. A prática litúrgica da Igreja, tal como foi “em toda a parte, sempre e por todos” celebrada (Vicente de Lérins, † cerca de 450), contém uma teologia implícita a ser desenvolvida. Segundo o antigo axioma, verificando como a Igreja ora (lex orandi), conclui-se sobre o que devemos crer (lex credendi).

2.1 A iniciação cristã no século III (BRADSHAW; JOHNSON; PHILLIPS, 2002; JOHNSON, 1999, p.82-135; TRADIÇÃO APOSTÓLICA, 1971, p.40-55)

A chamada “Tradição Apostólica”, outrora atribuída a Hipólito de Roma (BRADSHAW, 1996), é um antiquíssimo testemunho pormenorizado de como se processava a iniciação cristã nos sécs. III-IV. O texto que apresenta a tradição do santo batismo pode ser dividido em cinco cenas: 1) a apresentação e exame do candidato ao batismo; 2) o catecumenato e a escolha dos que serão batizados; 3) a preparação próxima para o batismo; 4) a celebração do batismo; 5) a vida cristã subsequente. Embora se fale da “tradição do santo batismo”, trata-se do que poderia ser chamado “o grande batismo”, que inclui todos os ritos da iniciação cristã, inclusive crisma e eucaristia, pois a iniciação cristã constitui uma unidade composta por uma série de ações e ritos, pelos quais a pessoa se torna cristã. O processo tem como ponto de partida a vida pregressa (paganismo) e como ponto de chegada a prática da vida cristã. É, portanto, um processo de conversão e de iniciação que culmina no banho batismal, durante o qual o eleito professa a fé trinitária. Com isso, em sua estrutura litúrgica mais tradicional, o batismo-crisma se desvenda como sacramento da fé, da conversão e da iniciação cristã.

2.2 A caracterização do batismo-crisma (TABORDA, 2012, p.39-45)

2.2.1 Batismo-crisma, sacramento da fé (TABORDA, 2012, p.55-78)

Com base na profissão de fé trinitária que acompanha o banho batismal, o (grande) batismo é sacramento da fé. A fé não é inata ao ser humano. Ela vem pela pregação do Evangelho (cf. Rm 10,17), a boa notícia de que Deus se revelou em Cristo crucificado (cf. 1Cor 1,23). No entanto, ele é escândalo para os “piedosos” e loucura para os “sábios”, pois significa que a salvação de Deus vem através de um rejeitado. Ambos os grupos pretendem saber como é Deus e como ele se deve revelar. Os “piedosos” só admitem que ele se mostre no maravilhoso e extraordinário; os “sábios”, no razoável. “Piedosos” e “sábios” personificam a falta de fé. Coincidem em pretender saber perfeitamente quem é Deus e querer dar normas a seu agir.

Revelando-se no “crucificado pela injustiça” (cf. Puebla), Deus manifesta sua proximidade, pois o último aos olhos humanos é a fonte de salvação. Mas, com isso, ao mesmo tempo ele revela o pecado e o perdão de Deus. “Nenhum dos poderosos deste mundo a conheceu [a sabedoria de Deus, Cristo crucificado]. Pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória” (1Cor 2,8). Fora da fé é impossível reconhecer o pecado e acolher o perdão. O pecado não é “boa notícia”, mas o Evangelho torna patente o pecado como contraponto da fé. Como sacramento da fé, o batismo-crisma sela a aceitação da fé e inclui, por isso mesmo, a remissão dos pecados como a outra face da “obediência da fé” (cf. Rm 1,5).

O reconhecimento do pecado permite captar a incapacidade humana de salvar-se pelas próprias forças (autossalvação). Nem a mera contemplação da verdade (“sábios”), nem a observância abstrata da Lei (“piedosos”) são capazes de salvar, mas a ação do Espírito que impele o ser humano a “fazer a verdade” (cf. Jo 3,21), aproximando-se de quem está à margem do caminho (cf. Lc 10,29-37) e realizando o bem concreto, que agora se apresenta a ser feito, mesmo que a Lei pudesse lançar dúvidas sobre sua liceidade (cf. curas no sábado).

A fé no Evangelho é dom e presença do Espírito, porque a criatura animada pelo Espírito não vive a partir de si, mas a partir de Deus. Essa vida nova é fruto de um novo nascimento pela água e pelo Espírito (cf. Jo 3,5). Como para o banho batismal o catecúmeno tem que despir-se para depois vestir novas roupas, assim também, pela fé e pelo batismo, o neófito se reveste do “homem novo, criado à imagem de Deus, na verdadeira justiça e santidade” (Ef 4,24). A nova criação que surge da fonte batismal, por um lado, só se realizará plenamente na consumação do mundo e, portanto, é objeto da esperança; por outro lado, ela já está presente na novidade trazida por Cristo. O “velho homem” que morre no batismo é o ser humano atingido pelo pecado, até a raiz de sua existência histórica (cf. pecado original, pecado social).

Se o Evangelho é o Cristo crucificado, este concretiza em si, por sua obediência até a morte, o Reino de Deus. Ele é o “reino em pessoa” (autobasileia, Orígenes † 254). O Reino de Deus é uma nova ordem de coisas, fundamentada em Deus, onde predominam justiça, fraternidade, amor, igualdade, solidariedade… Quando Deus reina, a fraternidade não fica em palavras, mas passa à prática e se torna história. O batismo-crisma expressa e realiza a adesão ao Reino, segundo o Espírito de Jesus, aprendendo a obediência na sua entrega ao Pai (cf. Hb 5,8).

2.2.2 Batismo-crisma, sacramento da conversão (TABORDA, 2012, p.79-109)

A “Tradição Apostólica” descreve o processo batismal como mudança de costumes e hábitos, passagem dos ídolos ao Deus verdadeiro (cf. 1Ts 1,9). A idolatria não necessariamente tem feição religiosa, pois consiste em pôr como o absoluto de nossa existência aquilo que é relativo. Tudo pode tornar-se ídolo. Hoje se trata especialmente da riqueza, poder, prazer e saber, coisas boas em si, que se transformam em ídolo quando se faz delas o valor supremo da vida. Por isso, o cuidado que se observa na “Tradição Apostólica” para que o candidato abandone toda atividade que, de alguma maneira, rescenda a idolatria.

Pertence à natureza do ídolo exigir sacrifícios humanos (cf. Dt 12,31; 2Rs 16,3; Os 13,2; Mq 6,7; Jr 7,31 e 19,5; Ez 20,31 e 23,39), porque são forças de morte. Para obtê-los, passa-se por cima dos direitos dos outros, ou os próprios idólatras se sacrificam, desgastando-se para obter intimidade com o ídolo. O Deus vivo, Pai de Jesus Cristo, ao contrário, quer a vida do ser humano, e vida em abundância (cf. Jo 10,10). Desse modo, em Cristo se aproxima dos excluídos e dos pecadores. Lança o desafio a que as pessoas mudem de vida, acercando-se de quem está à margem e é desprezado (cf. Lc 10,29-37). Só a partir de baixo se pode construir a igualdade exigida pelo Reino de Deus. Jesus vai à frente (cf. Hb 12,2), abrindo caminho, para que se reconheça Deus nos pequenos e humilhados, pois ele próprio carregou a humilhação da morte de cruz fora dos muros da Cidade Santa (cf. Hb 13,12-13).

A conversão dos ídolos ao Deus verdadeiro é uma passagem da morte à vida. É Páscoa, como a existência de Jesus (cf. Jo 16,28). O mistério pascal de Cristo só pode ser entendido de modo correto quando visto como consequência de sua vida. Jesus morreu condenado à morte, porque viveu da forma que viveu. Ressuscitou, porque viveu e morreu daquela maneira. Ora, a vida e obra de Jesus se resumem na fidelidade à sua missão de tornar presente o Reino de Deus, que exige que se absolutize somente a Deus e nada mais, e ninguém mais (cf. Mt 13,44-46). Onde Deus é o único absoluto, pratica-se o primado da justiça, da verdade, da solidariedade, da fraternidade e de todos os demais valores do Reino.

A mensagem do Reino que Jesus tematiza em suas ações e em suas palavras é, pois, uma mensagem de vida contra os ídolos da morte. Nada mais natural que os ídolos se voltem contra Jesus e procurem eliminá-lo. Por sua atuação, Jesus entra na luta entre os ídolos e Deus e morre vítima desses ídolos. A Lei dos judeus absolutizada e o poder dos romanos divinizado são os dois ídolos que determinam a condenação de Jesus. Por isso, a conversão dos ídolos ao Deus verdadeiro é participação na luta de vida e morte de Jesus contra os ídolos.

O mistério pascal é a passagem de Cristo da morte à vida. O aspecto “vida” no mistério pascal é uma unidade estruturada, diferenciada em três momentos: ressurreição-ascensão-Pentecostes. Essas três etapas podem ser apresentadas num esquema temporal, como o faz Lucas em sua dupla obra (Evangelho e Atos dos Apóstolos), bem como o final canônico de Marcos (cf. Mc 16,9-20). Mas também podem ser vistos em sua unidade, como sintetiza João sob o conceito de “glorificação” que entretece morte, ressurreição, ida ao Pai e envio do Espírito numa unidade inseparável. Mateus, embora não distinga os três momentos, supõe-nos na única aparição de Jesus aos discípulos em um monte da Galileia (cf. Mt 28,16-20).

A unidade diferenciada do mistério pascal de Cristo possibilita que reconheçamos o mesmo para batismo e crisma. A passagem pela água – afogamento e fonte de vida – simboliza a participação no mistério pascal enquanto passagem da morte à vida (ressurreição); os gestos simbólicos da crisma expressam a comunhão ao mistério pascal de Cristo como novo Pentecostes (cf. a seguir em 2.3).

Pela conversão a Cristo, o ser humano faz também sua páscoa ou “passagem”, em Cristo e com Cristo, ao Pai. Aceitar na fé o mistério pascal e aceitar participar dele só é possível se nos é dada a mesma liberdade de Cristo, seu Espírito que transformou os apóstolos de medrosos em audazes e valentes. Não por acaso, Pentecostes é uma dimensão do mistério pascal de Cristo, o seu fecho e desfecho. Participar do mistério pascal de Cristo é tomar parte em sua liberdade. Ora, a liberdade está ali, onde está o Espírito do Senhor (cf. 2Cor 3,17).

A conversão, dos ídolos ao Deus verdadeiro, não é simplesmente um ato nosso: é dom de Deus, graça. Deus tem a iniciativa no convite à conversão. A ação de Deus desperta a liberdade humana e, despertando-a, a “carrega”, acompanha, liberta e salva dos ídolos, forças de morte. A idolatria torna a liberdade humana escrava do pecado (cf. Jo 8,34). Pela conversão à fé cristã e pelo (grande) batismo, “fomos chamados à liberdade” (Gl 5,13).

A liberdade apresenta dois polos: é liberdade de e liberdade para. Negativamente, é liberdade de: liberdade do pecado, da Lei, da morte, forças de morte próprias da idolatria. Positivamente, ela se concretiza como liberdade para Deus (cf. Rm 6,18-22; Gl 5,13; 1Pd 2,16; 1Cor 7,21s), liberdade para o outro (cf. Gl 5,13s.22s; 1Cor 6,12), liberdade em Cristo e por ele (cf. Gl 2,4; 5,1; Jo 8,36). A liberdade segundo o Espírito de Cristo é serviço mútuo (cf. Gl 5,13), é dar espaço à liberdade dos outros, limitar-se por amor ao outro (cf. 1Cor 8,13; Rm 14,20-21).

2.2.3 Batismo-crisma, sacramento da iniciação cristã (TABORDA, 2012, p.111-134)

O processo batismal descrito na “Tradição Apostólica” mostra também que é preciso aprender a ser cristão, porque, como disse Tertuliano, “não nascemos cristãos; nós nos fazemos cristãos” (Apologeticus, c.18). Esse processo consiste em que, pela ação do Espírito Santo, o candidato seja introduzido no mistério de Deus (mistagogia), pois somente no Espírito temos acesso ao Pai para clamar “Abbá” (cf. Rm 8,14-17; Gl 4,4-7). Sem ele, não é possível conhecer o Pai (cf. 1Cor 2,10-12) nem confessar o Filho (cf. 1Cor 12,3). Por isso, tradicionalmente o (grande) batismo recebeu o nome de “iluminação”: só se pode ter acesso ao Mistério de Deus pela luz do alto.

Como todo conhecimento entre pessoas, também o conhecimento de Deus só é possível na revelação mútua que se autossupera no amor: é um tipo de conhecimento não meramente intelectual; ele se dá na práxis do seguimento de Jesus. Quem se converte a Cristo não precisa apenas ser instruído numa doutrina, mas posto em contato com uma pessoa viva a quem se entrega no amor.

O seguimento é concretização da fé em Jesus. Ele vai à frente na caminhada (cf. Hb 12,2), mas junto com ele, empós ele, vem toda a “nuvem de testemunhas” (cf. Hb 12,1), com as quais está prometido obtermos a “plena realização” (cf. Hb 11,40). O caminho do seguimento de Jesus é comunitário, eclesial. Seguir Jesus significa assemelhar-se a ele (proximidade) por uma prática semelhante à dele (movimento subordinado), que tem um desenlace como o dele, na cruz. Pois somente a partir da cruz se pode conhecer a Jesus e assim ao Pai, porque então realmente se rompem todos os esquemas humanos sobre quem é Deus e sobre o que significa ser Filho de Deus. A cruz é crise e revolução na ideia de Deus. Deus, que se costuma considerar como poder, força e glória, mostra-se na impotência, vergonha e ignomínia, no absurdo (kénosis).

O Espírito Santo nos leva a fixar os olhos em Jesus, para nele vermos o Pai (cf. Jo 14,9) e caminharmos com ele, pois sua existência toda foi passagem para o Pai (Páscoa). Seguir Jesus nos revela a face do Pai como nosso Pai, pois, sob ação do Espírito, somos feitos “filhos no Filho” pela fé e pelo batismo.

Nessa condição, podemos dirigir-nos ao Pai na franqueza e liberdade (parrhesía) de filhas e filhos. Por isso, ao rito da iniciação cristã pertence a “entrega do Pai Nosso” que é aprendizado da oração cristã com suas características próprias, diferentes das de outras religiões. A oração especificamente cristã sempre se dirige ao Pai, pela mediação do Filho no Espírito Santo, porque não é a oração de um estranho, mas de alguém que está inserido no mistério de Deus e no qual habita Deus por seu Espírito (cf. 1Cor 6,19). De fato, pelo Espírito Santo estamos mergulhados no mistério do Deus que se aproximou de nós em Jesus Cristo. Ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo, a oração do cristão é a graça de participar da dinâmica mesma da vida trinitária.

Salientem-se dois elementos essenciais da oração cristã: a consciência de não sabermos orar como convém e, por isso mesmo, deixar que o Espírito ore por nós “com gemidos inenarráveis” (cf. Rm 8,14-27); e não fugir da realidade para orar, mas dirigir-nos ao Pai a partir de nossa inserção na história humana, ouvindo e fazendo eco aos gemidos da criação (cf. Rm 8,22-23).

2.3 A distinção entre o batismo e a crisma (TABORDA, 2012, p.145-150; 187-211)

Até agora foi explicitada a graça comum ao batismo e à crisma, que pode ser resumida como participação no mistério pascal de Cristo e, portanto, na vida trinitária. Ora, o mistério pascal com seus três momentos (ressurreição, ascensão e Pentecostes) é uma unidade diferenciada. Da mesma forma os sacramentos da iniciação, em sua unidade, diferenciam-se em batismo e crisma (e eucaristia). Batismo e crisma, pelos gestos simbólicos com que se realizam, remetem a dois momentos do mistério pascal de Cristo: morte-ressurreição (passagem da morte à vida) e Pentecostes (efusão do Espírito para o testemunho). A passagem da morte à vida é simbolizada no banho batismal, pois afogar-se leva à morte, mas desse mergulho na morte se sai com uma vida nova. Pentecostes é significado pelo gesto simples e complexo da imposição das mãos, assinalação e unção com óleo perfumado. A imposição das mãos é um gesto de bênção; no caso, a bênção por excelência que é o Espírito (cf. Lc 11,13). A assinalação significa pertença a alguém e, biblicamente, também é sinal de salvação para quando do juízo escatológico de Deus (cf. Ez 9,4-6; Ap 7,3 e 9,4). Na crisma, significa que já agora pertencemos a Deus (cf. 2Cor 1,22), embora essa pertença ainda não se manifeste em plenitude (cf. 1Jo 3,2). A unção indica que pelo batismo-crisma somos sacerdotes, profetas e reis. Como, porém, se trata de um óleo perfumado, o sacramento nos constitui, por nossa própria vida, testemunhas do Ressuscitado, pois o perfume permite perceber a presença de alguém, mesmo sem que se veja a pessoa.

Os gestos simbólicos distinguem os dois sacramentos (batismo e crisma), mas é na sua unidade que eles devem ser compreendidos como participação no mistério pascal. A eucaristia, terceiro sacramento da iniciação, tem uma característica específica: é o sacramento cotidiano de nossa entrega com Cristo ao Pai pela ação do Espírito Santo. Dá-nos parte no mistério pascal enquanto sacrifício.

3 A dimensão eclesial do batismo-crisma

A característica do sacramento é sua dimensão eclesial (→Eclesialidade dos sacramentos). Há uma relação mútua entre Igreja e sacramento, expressa no axioma “a Igreja faz os sacramentos; os sacramentos fazem a Igreja”.

3.1 A Igreja faz o batismo-crisma (TABORDA, 2012, p.215-230)

A missão da Igreja está expressa em Mt 28,19-20, em termos de fazer todos os povos discípulos de Jesus, batizando-os. Batizar é intrínseco ao ser da Igreja. A ela cabe não só iniciar na fé pelo (grande) batismo, mas também propiciar aos batizados um crescimento constante na fé recebida no batismo, porque, embora a fé seja um ato pessoal, livre e intransferível, é essencialmente comunitário. Sendo a fé adesão ao mistério inesgotável de Deus, ninguém é capaz de vivê-la plenamente; tem que confrontar-se sempre com outras formas de acolher e viver o Deus que se autocomunica por meio de Cristo no Espírito Santo.

A Igreja é criada pelo Espírito de Cristo que desperta a fé, move à conversão, atua na iniciação. O Espírito Santo é o Espírito da unidade e da diversidade. No batismo-crisma ele eleva os iniciados à dignidade de filhos e filhas de Deus. Confere-lhes uma dignidade que torna iguais todos os membros da Igreja. Mas, como Espírito de vida, “na variedade dos dons celestes e na diversidade dos membros”, faz “crescer com admirável unidade” o Corpo de Cristo (prece de ordenação diaconal da liturgia romana). Como os membros do corpo não são iguais, também cada membro da Igreja tem seu carisma a ser vivido harmonicamente com os demais carismas, pois todos provém do Espírito que nos foi dado no (grande) batismo.

3.2 O batismo-crisma faz a Igreja (TABORDA, 2012, p.231-248)

Ao dar a todos os cristãos igual dignidade, o (grande) batismo cria a Igreja como comunidade de iguais. Gl 3,26-28 professa que a Igreja, pelo batismo, é uma comunidade onde todas as diferenças sociais, culturais, religiosas, nacionais, raciais e de gênero são superadas ou, pelo menos, deveriam sê-lo, porque todos foram revestidos de Cristo. O que conta, a partir do batismo, não são os papéis sociais, culturais e religiosos, mas o discipulado e o poder concedido pelo Espírito. Conferindo igualdade a judeus e gregos, escravos e livres, homens e mulheres, a Igreja vive numa constante tensão, criada pelo batismo, entre a igualdade em Cristo e as desigualdades criadas pela sociedade.

A igualdade batismal tem sua base na dignidade de sacerdotes, profetas e reis, comum a todos os batizados. Esse tríplice múnus se resume em dar testemunho da fé. Como sacerdote, o cristão proclama os grandes feitos de Deus em Cristo Jesus (cf. 1Pd 2,9), adora Deus com sua vida, rejeitando os ídolos históricos da riqueza, do poder, do prazer e do saber, descobre a imagem de Deus ultrajada no rosto do pobre. Como rei, concretiza o Reino na busca da justiça e do direito, combatendo os ídolos que, para viverem, exigem a morte do pobre, lutando por implantar a igualdade batismal, para além de toda diferença de raça, posição social e gênero, o que, nas condições concretas da história, só se faz privilegiando quem é descartado. Como profeta, desmascara a falta de fé como egoísmo e negação do outro, especialmente do pobre, mostra-se livre para Deus e para o próximo, denuncia toda desfiguração da imagem de Deus no ser humano, resultante da exploração de uns pelos outros.

Embora a Igreja seja una pelo batismo, existe em diversas confissões, devido ao pecado dos cristãos. Sob esse ponto de vista, vale o que declarou o Documento de Lima (1982): “Nosso único batismo em Cristo constitui um apelo dirigido às Igrejas, para ultrapassarem suas divisões e manifestarem visivelmente sua comunhão”, pois o batismo “nos une ao Cristo na fé” e é, assim, “um vínculo fundamental de unidade” (CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS, 1983, n.6, p.17).

Francisco Taborda, SJ. FAJE, Belo Horizonte (Brasil). Texto original em português.

4 Referências bibliográficas

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Ascese pagã

Sumário

1 O conceito de ascese

2 Ascese pagã

2.1 Pitágoras e órficos

2.2 Sócrates

2.3 Platão

2.4 Cínicos

2.5 Estoicos

3 Conclusões

4 Referências Bibliográficas

 1 O conceito de ascese

 O termo ascese provém do grego áskesis e seu sentido básico é de exercício. Oriundo do âmbito do atletismo, o termo tem relações estreitas com todos os termos relativos a esforço, disciplina e trabalho com vistas a se adquirir uma determinada habilidade, como os termos meléte, gymnastiké etc. A transposição de um âmbito do treinamento corpóreo para o treinamento moral/espiritual se dá explicitamente pelos cínicos, como veremos a seguir. Neste âmbito moral e espiritual, o conceito de ascese gira em torno da relação humana com seus próprios desejos e impulsos, podendo ser 1) uma relação de negação total do desejo e dos instintos da vida animal, com a supressão ao mínimo possível das necessidades do corpo ou 2) um redirecionamento do desejo e dos impulsos para seu aproveitamento em busca de uma evolução moral ou espiritual.

Assim, teríamos dois polos nas definições de ascese, ambos baseados em uma ideia de treinamento humano em relação aos seus desejos com vistas a um aprimoramento moral e espiritual. No primeiro, uma renúncia, repressão e mortificação das tendências e impulsos corpóreos; no segundo, um refinamento e um redirecionamento do desejo inicialmente vinculado ao mundo humano e mortal, para que ele se volte em direção ao espiritual e eterno, em direção à vita contemplativa, seja contemplando as ideias (pagã-neoplatônica) seja na unio mística (cristã), com a experiência da presença de Deus. De acordo com o Dictionnaire de Spiritualité, grande parte dos estudiosos cristãos tendem a definir a ascese no primeiro sentido, mas estudos mais modernos como aqueles apresentados em Wimbush e Valantasis (1995) ressaltam o segundo sentido.

De todo modo, o conceito de treinamento tem relações tanto com o âmbito atlético quanto com o âmbito militar, pois a ascese está vinculada a um treino para uma luta contra princípios maléficos aos homens, como as famosas lutas contra demônios dos primeiros monges do deserto (Santo Antão, Pacômico etc, secs. IV e V; ver ATANASIO, 2002). Ascese é tudo aquilo que, na vida espiritual, é exercício, esforço e luta contra si e contra as tentações exteriores, visando o aperfeiçoamento de habilidades espirituais. A ascese normalmente é vista como a etapa de purgação e purificação de tendências viciosas, a etapa de preparação para a vida espiritual mais intensa da experiência mística. Poderia se relacionar a ascese com a práxis do homem espiritual, sua vida de trabalho diário e cuidado com o próximo. Já o aspecto da theoria desta vida, seu aspecto contemplativo, seria composto pelas experiências espirituais, de proximidade com o divino, a unio mystica. Assim, a ascese é um caminho para a mística, como a cruz pode ser pensada como o caminho para a ressurreição.

Mesmo na primeira forma de se definir a ascese, em seu aspecto de negação radical dos desejos, há o alerta para o perigo de um excesso na tendência de autonegação. O Dictionnaire de Spiritualité relata a heresia ascética, em que a visão mais negativa da ascese chega a extremos repudiados por diversas instâncias do próprio cristianismo nascente (VILLER, 1935, p.936)

2 Ascese Pagã

Desde a obra de Pierre Hadot (edição francesa em 1987, no Brasil em 2014), toda a história da filosofia grega tem sido reinterpretada à luz do fato de ela ser uma forma de vida. Trata-se de pensar a filosofia antiga como composta de escolas de formação de seres humanos completos, moralmente educados, em que determinados exercícios espirituais seriam centrais para a formação do caráter. O próprio Hadot nos diz que retirou o termo exercícios espirituais de Ignácio de Loyola, e traspôs este conceito para se pensar o processo de aprendizado das escolas filosóficas gregas. Assim, podemos interpretar toda a filosofia grega como construída por métodos ascéticos (métodos de exercício e disciplina) de aprimoramento espiritual e o cristianismo, quando nasce, absorve claramente essas práticas em suas próprias práticas ascéticas (ver, por exemplo, o termo apatheía, de Evágrio, retirado explicitamente dos estoicos). Um conhecimento prévio dos pontos principais da ascese grega é fundamental para uma correta compreensão da ascese cristã. A filosofia grega constrói diversos tipos de exercícios espirituais, todos fundados na ideia de algum tipo de controle dos desejos para que ocorra o aprimoramento moral humano. Pode-se dizer que a ascese grega, em relação à ascese cristã, é mais intelectual, voltando-se para um treinamento das capacidades cognitivas humanas, com alguma repercussão no relacionamento com os desejos corpóreos. Já ascese cristã, especialmente aquela praticada pelos padres do deserto (Santo Antão, Pacômio etc), é mais claramente direcionada ao controle dos desejos corpóreos (sexo, comida, bebida), apesar de o exercício da leitura e da escrita, por exemplo, também ser praticado pelos monges.

2.1 Pitágoras e órficos

Por volta do final do século VI e início do século V aC, formaram-se grupos no sul da Itália, alguns chamados pitagóricos e outros órficos (vinculados a Orfeu, poeta mitológico), com práticas ascéticas. Junto com os cultos de mistérios, os pitagóricos e os órficos acreditavam no ciclo de reencarnação e que a verdadeira natureza humana seria uma parcela divina, a alma, presa neste corpo como em uma tumba (relação entre os termos sôma, corpo, e sêma, tumba, ver Cratilo de Platão, 400b-c). A alma humana se encontra nesta situação por um erro primordial que deveria ser expiado através de práticas purificatórias. Assim, a filosofia era uma prática de purificação da alma nesta vida com vistas a uma melhor migração para outra vida. Tanto o termo philosophía quanto o termo kátharsis são oriundos dos grupos pitagóricos, e estão em estreita relação um com o outro. O filósofo, portanto, é iniciado em diversos processos de purificação, como abstinência de sexo e carne, jejuns e vigílias, para preparar sua alma para compreensões místicas que purificariam sua alma de impurezas de suas vidas anteriores.  (Para as fontes mais antigas do pitagorismo, ver GOUTRIE, 1987. Ver também KAHN, 2007).

2.2 Sócrates

Para boa parte da ascese helenística, Sócrates é o paradigma principal. A kartería (força de vontade) socrática é notória desde a antiguidade, até mesmo naqueles textos que procuram detratá-lo (Aristófanes, Nuvens 362). No discurso de Alcebíades, no Banquete (215a-222d) de Platão, temos talvez o quadro geral mais fiel para descrever sua autocontinência. Trata-se de sua famosa participação na batalha de Potideia (219e-221b), em que demonstrou uma aptidão excepcional para suportar a fadiga e a fome, quando as circunstâncias o obrigavam, e especialmente o frio, durante o inverno. Sua marcha pela neve com pés descalços chegou mesmo a irritar seus colegas do exército, supondo ser uma vã demonstração de sua superioridade.  Sua resistência ao vinho também era notória, nunca tendo sido visto embriagado, apesar de beber tanto ou mais do que os outros. A passagem central, importantíssima para a tradição, descreve Sócrates em pé por vinte e quatro horas, investigando sozinho um determinado problema, e parecia não desistir enquanto não encontrasse o que procurava. Começa pela manhã e vai até a aurora seguinte, quando faz uma oração ao deus sol e vai realizar suas atividades. Temos aqui uma passagem sobre a ascese socrática que congrega perfeitamente tanto um aspecto filosófico e racional (pois ele busca resolver um problema) quanto um devocional e religioso (já que termina sua empresa com uma oração). Assim, pode-se ver em Sócrates aspectos tanto filosóficos quanto religiosos em sua ascese.

Quanto à sexualidade, seu encontro com Alcebíades, também descrito no Banquete (216c-219d), é um dos momentos mais exemplares. Sócrates propõe ao belíssimo jovem Alcebíades que não se entreguem um ao outro enquanto não tiverem certeza de que isto é para o melhor bem de ambos. Também em Cármides, Sócrates é apresentado como desejando ardentemente o jovem ao seu lado, mas se contém e conversa sobre filosofia com ele.

Estes traços de resistência física têm seu óbvio correlato moral e ético.  Teoricamente, Sócrates baseia sua enkrateía (autocontinência) em um estrito intelectualismo: a virtude é alcançada pelo conhecimento. A equação “virtude é conhecimento” funda a ética socrática. Tal identificação o obriga a negar a possibilidade da akrasía, isto é, da alma não ter força para se fazer o bem. O argumento principal baseia-se em uma constatação mais ou menos evidente de que o homem sempre busca o melhor, sendo a causa de seu erro a ignorância do que seja o melhor. Mesmo os homens que praticassem o mal, o fariam porque acreditam que tal ato é bom em alguma medida: mesmo que seja para o seu próprio bem em detrimento do bem alheio, o homem sempre está em busca do bem. Assim, a solução para os equívocos nas atividades humanas é fruto do correto esclarecimento do que seja o bem, pois naturalmente o homem seguiria o bem correto caso o conhecesse.

Desta forma, não se pode falar de uma divisão interna na alma humana na visão socrática. Não há dois impulsos em conflito em sua psique, sendo que o homem não precisa, desse modo, lutar contra si memo. Não havendo divisão na concepção de alma socrática, não poderia haver uma luta entre um princípio psíquico baixo e malvado e outro superior e espiritualizado. O processo de aprimoramento moral passa por uma investigação racional do que seja o bem. Esse, quando adquirido, orientaria perfeitamente o homem rumo àquilo que verdadeiramente deseja. Assim, o princípio paulino da falta de força da alma em se fazer o bem (Rm 7,19) é negado nesta visão fundamentalmente intelectualista da ética socrática. Novamente, não há akrasía, falta de força, na alma humana, ela sempre busca realizar aquilo que mais obviamente lhe parece o bem.

2.3 Platão

Uma das importantes diferenças de Platão, em comparação com Sócrates, sobre a noção de alma, é a introdução de uma tripartição psíquica (especialmente em República III e IV, Fedro 246a-246d e 253d-254e, Timeu 69b-71e): 1) a parte apetitiva (desejo sexual, por comida e bebida); 2) a parte orgulhosa ou emotiva (que se protege e se emociona); e 3) a parte racional e reflexiva (que raciocina em busca do melhor). Isso  possibilita resolver um dos maiores problemas na noção psíquica socrática, a saber, a falta de força da alma (akrasía) em fazer o que para ela se mostra como o melhor. Na concepção platônica da alma, a sua falta de harmonia e virtude está no fato de haver um conflito entre as três partes fundamentais da alma. Assim, é necessário que as partes apetitiva e emotiva se subordinem à parte racional, já que essa última terá o conhecimento do bem que fornece as diretrizes às outras duas. Há, portanto, na base da ascese platônica, apresentada de modo geral, uma exigência de subordinamento dos impulsos emotivos e desiderativos frente aos princípios racionais.

O Banquete ou Simposio de Platão é um importante texto para a história da ascese, já que relata um processo de sublimação do desejo erótico. No discurso de Sócrates sobre Eros, é apresentada a sabedoria de uma sacerdotisa, a Diotima (198a-212c). Ela nos apresenta os mistérios elevados do Eros (210a-212c), em que há um aprendizado da verdadeira natureza do objeto erótico desejado. Há, portanto, uma pedagogia erótica que retira o interesse pelo mundo corpóreo conduzindo-o ao mundo espiritual/intelectual. O jovem aprendiz de Eros deve começar sentindo-se atraído por belos corpos, mas deve ser educado a perceber uma beleza mais intensa ainda nas almas. Depois de aprender a desejar almas belas, o aprendiz deve aprender a apreciar a beleza das leis e das atitudes que fazem com que estas almas sejam belas. Ainda subindo em sua busca pelo objeto erótico por excelência, o jovem aprende a amar as ciências belas e encontra aí uma intensidade de Eros muito maior do que sentia pelo corpo. Por fim, o aprendiz compreende a fonte de todo seu Eros e a causa última de todas as realidades anteriores se apresentarem como belas: a própria essência do belo, a Ideia de Belo. Este texto foi profundamente influente na história de todo ocidente, em particular do cristianismo (como se pode ver em Orígenes, em seu Comentário ao Cântico dos Cânticos, que cita diversas vezes o texto de Platão), como sendo a base da compreensão da busca amorosa por Deus e de uma crítica à possibilidade de nossos verdadeiros anseios serem satisfeitos apenas no âmbito do mundo sensível e corpóreo.

No diálogo Fedon encontramos alguns pontos fundamentais sobre a noção de purificação (kátharsis) do corpo e da alma. Trata-se do suposto último diálogo que Sócrates trava com seus amigos, antes de tomar cicuta e morrer. Nesse diálogo, Sócrates investiga o que seja a morte (a separação da alma e do corpo) e busca defender (em quatro argumentos centrais de acordo com a maioria dos comentadores) que a alma seja eterna. De acordo com a tradição socrática que define o homem mais como alma do que como corpo, Platão nos apresenta, neste diálogo, a necessidade do cuidado e da purificação da alma. A própria filosofia é definida como purificação (influência pitagórica), isto é, como o exercício de uma separação da alma e do corpo. Este processo de purificação é descrito como a tentativa de manter o corpo, com suas necessidades e apetites, o mais quieto possível para que a alma possa trabalhar por conta própria em busca da verdade. Assim, o filósofo não deve ter como preocupação principal saciar os impulsos corpóreos, sendo que sua atenção primordial deve estar voltada para o conhecimento da verdade utilizando apenas o intelecto nele mesmo, elemento puramente psíquico. Por fim, vale apenas indicar que a própria alegoria da caverna pode ser vista como um processo de ascese. Nela, o mundo das sombras, dos homens acorrentados dentro da caverna, é descrito como o mundo dos sentidos atrelado ao corpo. A saída da caverna é um processo doloroso e de trabalho (ascese) de descoberta de um mundo para além do mundo sensível que fundamenta tanto ontológica quanto epistemologicamente o mundo sensível.

2.4 Cínicos

O movimento cínico (ver DUDLEY, 1937, e em português GOULET-CAZÉ e BRANHAM, 2010) tem enorme importância para a consolidação de práticas ascéticas tanto no mundo grego pagão quanto no latino cristão (DOWNING, 1992 e KRUEGER, 1993). Os cínicos serão, em alguns pontos, até mesmo confundidos com os primeiros cristãos, sendo que provavelmente estes retiram suas vestes simples daqueles: um surrão, um cajado e uma pequena bolsa de couro eram a vestimenta típica que identificava um cínico, filósofo andarilho e pobre. Sua filosofia defende uma necessidade premente de retornar ao natural e combater os artifícios da sociedade, como o poder, a fama e a riqueza material. De acordo com os cínicos, esses seriam invenções artificiais que afastam os homens da natureza e não produzem uma verdadeira realização humana.  O próprio termo cínico (kynikós, canino, referente a cachorro, kýon) remete à tentativa de se voltar para a vida simples dos animais, acreditando na força da natureza para a realização humana.

Diógenes (413-327 aC), também chamado de o Cão Celeste, é o primeiro a utilizar o termo áskesis para descrever a atividade própria do filósofo que busca refinar moralmente sua alma. Com Diógenes o termo alça o seu patamar propriamente ético e filosófico (LAÉRCIO, 1977, VI 70-72; ver especialmente o livro de GOULET-CAZÉ, 1986). Trata-se, realmente, de buscar o paradigma do esforço moral de autoaperfeiçoamento nas atividades do atletismo e das técnicas artísticas. Assim como o corpo pode se tornar melhor ao se exercitar na corrida ou na flauta, também a alma pode se tornar melhor ao se realizar exercícios, áskesis. A filosofia de Diógenes nos é relatada pelas suas anedotas que descrevem um estilo de vida simples em que o esforço e o trabalho (pónos) são os componentes principais para nos acostumarmos a viver naturalmente. Diógenes era conhecido por abraçar estátuas de bronze geladas no inverno e rolar na areia quente no verão para que seu corpo se acostumasse às intempéries da natureza. Certa vez viu um rato comendo das migalhas de seu pão e se sentiu envergonhado por um rato ser mais simples que ele.  A história mais famosa de Diógenes nos relata o seu encontro com Alexandre, o Grande. Este o teria encontrado banhando-se ao sol e, ao se por à sua frente, lhe pergunta: peça-me o que quiseres. Ao que Diógenes responde, “saia da frente do meu sol”. Temos aqui o embate exemplar do homem que conseguiu tudo o que o poder bélico e político pode lhe dar em contraste com o homem que se satisfaz com o que a natureza lhe pode dar.

Todos esses relatos nos descrevem modelos de uma vida composta de exercícios que faziam parte de um projeto ético e moral que visava o fortalecimento do caráter e a aceitação dos limites naturais. Assim, a vida simples e o treinamento para se realizar com a simplicidade da natureza é o processo de aprendizado moral do cinismo, moldando pela primeira vez em termos filosóficos uma vida ascética.

2.5 Estoicos

Os estoicos são descendentes espirituais dos cínicos, já que se diz que o primeiro estoico, Zenão de Cício, foi aluno de Crates, um cínico. No entanto, as práticas e exercícios morais, que antes estavam vinculados ao corpo, no cinismo, ganham um aspecto mais teórico no estoicismo. Pode-se dizer que no estoicismo a ascese é eminentemente teórica no sentido que o combate e o treinamento (ascese) incidem sobre as opiniões falsas que levam o homem a julgar equivocadamente o que seja o seu próprio bem. Assim, a transformação moral no estoicismo está na modificação das opiniões equivocadas que se tem sobre o mundo e sobre os valores.

Uma distinção fundamental no estoicismo é aquela entre as realidades que estão sob o meu encargo e aquelas que não estão, sendo que apenas aquilo que é de minha responsabilidade pode ter valor moral. Na medida em que apenas as minhas 1) opiniões, os meus 2) impulsos a agir e os meus 3) desejos estão na ordem daquilo que está sob minha responsabilidade, só esses poderiam ser considerados bons ou maus. Todo o resto, isto é, o poder político, a minha reputação, meus bens materiais, são, por princípio, realidades indiferentes no seu aspecto moral, já que não estão sob minha responsabilidade, isto é, independem de uma ação que provém de minha escolha. Todo valor moral está vinculado a ser virtuoso, isto é, àquilo que é minha responsabilidade, que está sob o meu encargo (opiniões, impulso a agir, e desejos), por isso as realidades que independem de mim não possuem valor moral, não são nem algo bom nem algo ruim. Assim, ser pobre ou rico, ter boa ou má reputação, estar saudável ou doente são realidades indiferentes frente à felicidade humana que consiste estritamente em ser virtuoso.

Ser virtuoso é viver de acordo com a natureza, como os cínicos, e por isso nossas opiniões devem também estar de acordo com a natureza. A morte, por exemplo, é um fato natural e deve ser encarada como tal: não é nem um bem nem um mal, pois está fora da alçada da minha responsabilidade. Neste sentido, a moral estoica professa uma indiferença frente às realidades que são exteriores àquelas que estão sob meu encargo, frente às realidades exteriores. Todo esforço, todo o trabalho (ascese) em se tornar um filósofo estoico está baseada na transformação das opiniões para que elas se adequem ao mundo como ele é. Assim, o exame de consciência é um dos trabalhos ascéticos mais desenvolvidos no estoicismo, podendo mesmo definir todo o texto as Meditações de Marco Aurélio, imperador estoico do século II dC. A partir disto, podemos compreender a indiferença radical da postura estoica frente aos supostos benefícios dos bens materiais e dos prazeres. A busca por uma vida boa não consiste em acumular bens materiais, ou angariar uma boa reputação ou conquistar poder político, mas na escolha certa por adequar-se ao que ocorre naturalmente, pela aceitação da vida natural. Passar por momentos em que se está vedado aos prazeres, por momentos em que se está doente, em que se perde um ente querido, tudo isto faz parte da natureza, e o homem virtuoso é aquele que escolhe aceitar a vida do modo como ela se apresenta. Como dissemos, as realidades externas são indiferentes moralmente, e a única realidade que nos trará felicidade é uma escolha correta de acordo com a natureza.

3 Conclusões

A filosofia antiga, de modo geral, pensada como uma forma de vida, tem como intenção básica educar o homem a partir de exercícios espirituais para que ele seja feliz (eudaimonía). Apesar de cada uma das correntes ter sua própria visão sobre o que seja a felicidade e o método de alcançá-la, todas elas professam algum tipo de continência em relação aos desejos.  O homem deve aprender a lidar com seus desejos caso queira realizar plenamente suas potências e esse aprendizado passa por determinados exercícios, físicos e intelectuais, para se adaptar à vida propriamente humana. De modo geral, pode-se dizer que a ascese greco-pagã é mais intelectual, voltada para práticas como o exame de consciência, a dialética, a investigação racional de determinado assunto ético ou científico – apesar de tais exercícios intelectuais sempre acarretarem algum tipo de relação específica com os desejos e o corpo em geral. Por fim, vale indicar que as práticas ascéticas cristãs serão mais voltadas para o corpo e o controle dos desejos corpóreos, apesar de diversos aspectos da ascese mais intelectual dos gregos estarem explicitamente presentes na ascese cristã.

Marcus Reis Pinheiro, Departamento de Filosofia da UFF

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