Catolicismo contemporâneo

Sumário

1 Revolução francesa e a Igreja católica

1.1 Revolução inspirada no iluminismo

2 Catolicismo e o processo de restauração (1814-1846)

2.1 Restauração, um conceito

2.2 Estratégia agressiva contra a modernidade

3 Catolicismo e o combate ao liberalismo (1846-1878)

4 Questão social e o catolicismo

4.1 Leão XIII (1878-1903) e a questão social

4.2 Rerum Novarum (1891)

5 Condenação do modernismo e as reformas intereclesiais

5.1 Contra o modernismo

5.2 Reformas intereclesiais

6 Movimentos de renovação

7 Catolicismo e as Grandes Guerras

7.1 Período entre Guerras

7.2 Pio XII: pastoral, teologia e a 2ª Guerra Mundial

8 Transição e renovação, o papa cristão

8.1 João XXIII (1958-1963)

8.2 Vaticano II (1962-1965) e sua relação com a modernidade

8.3 Paulo VI, reformador e incompreendido (1963-1978)

9 O santo criticado e seu continuador

9.1 João Paulo II (1978-2005)

9.2 Bento XVI (2005-2013)

10 O retorno ao Cristianismo: Francisco

11 Referências Bibliográficas

1 Revolução francesa e a Igreja católica

1.1 Revolução inspirada no iluminismo

Na transição dos séculos XVIII-XIX, a sociedade europeia entra no enorme palco de transformações impulsionado pelas revoluções iluminista (pensamento), francesa (social burguesa) e industrial (econômica capitalista). O iluminismo, no “século das luzes” (XVIII), rompe com o determinismo religioso, imprime força incondicional na ação crítica da razão, questiona a obediência submissa, organiza o saber criando métodos de pesquisa, critica autoridade e poder. Suas críticas não pouparam a Igreja católica: abismo social entre alto e baixo clero, indiferença diante das dificuldades do povo. A revolução social francesa afetou todo o Ocidente, deixando profundas marcas no catolicismo. A luta está alicerçada nos resultados da sociedade medieval (clero, nobreza, artesãos) e a sociedade industrial (burguesia e trabalhadores). A revolução econômica provoca mudanças no sistema de produção, o capitalismo explora as riquezas naturais, se beneficia do avanço científico, mas o progresso porta consigo consequências gravíssimas para a sociedade. Dentre elas, a exploração humana: longas jornadas de trabalho, êxodo rural, fim dos artesãos, divisão social do trabalho, concentrações urbanas, precariedade nas condições de vida, prostituição, alcoolismo, criminalidade, epidemias e uma imensidão de despossuídos.

A Revolução francesa foi um acontecimento inesperado para a Igreja católica, gestado no berço do iluminismo. No seu desdobramento se sucederam outras revoluções até a ditadura militar de Napoleão Bonaparte. O século XIX inicia, para a Igreja, com um novo pontificado, Pio VII (1800-1823). Após várias tratativas, o papa assina, juntamente com Napoleão, a Concordata (1801). O documento é uma tentativa de recuperar as relações diplomáticas entre ambos Estados. Assim, a Igreja renunciava aos bens expropriados e aceitava que a remuneração do clero fosse efetuada pelo Estado francês. Bonaparte, secretamente, acrescentou à Concordata 77 ‘artigos orgânicos’, que aboliam em parte as conquistas da mesma. O protesto do papa não surtiu efeito, e Pio VII ainda sofreria outras humilhações por parte de Napoleão, que em 1808 ordenou a ocupação de Roma e do Estado Pontifício. O papa excomunga Napoleão e este faz Pio VII prisioneiro em Fontainebleau, sendo pressionado a abdicar o Estado Pontifício. Com a queda de Napoleão, na sequência da campanha da Rússia (1812) e da batalha de Leipzig (1813), e de tropas aliadas terem invadido Paris (1814), a reordenação da Europa pode ser empreendida pelo Congresso de Viena (1814-1815).

No início do século XIX, o papado parecia atravessar um dos momentos mais difíceis da era moderna. Pio VI havia morrido (1799) só e abandonado, prisioneiro da Revolução francesa. O episcopalismo parecia que triunfaria, sendo o sistema papal e a infalibilidade, segundo alguns autores alemães e franceses, questões antiquadas e sem importância histórica. Nenhum outro acontecimento histórico contribuiu tanto para o triunfo do papado no Vaticano I (1869-70) como a Revolução francesa. Com Pio VII realiza-se a reorganização da Igreja francesa (1801), e 36 bispos que viviam fora da França foram depostos, demonstrando, apesar de tudo, que o papado possuía poder. Este foi um passo para o ultramontanismo.

2 Catolicismo e o processo de restauração (1814-1846)

2.1 Restauração, um conceito

Com o término da Revolução francesa e do período napoleônico, a Europa estava em situação política, cultural e religiosa de total desordem. Era fundamental, pensavam a instituição religiosa e vários membros da sociedade, restabelecer a ordem restaurando os princípios da autoridade, da religião e da moral, assim como eram no Antigo Regime.

2.2 Estratégia agressiva contra a modernidade

O programa de restauração é evidente no pontificado do papa Leão XII (1823-1829). Sua preocupação era recuperar tudo o que a secularização e a revolução haviam destruído. A intenção nunca foi a de adaptar a Igreja às exigências dos novos tempos, mas uma restauração aos tempos anteriores. Seu sucessor, Pio VIII (1829-1830), não era um papa de objetivos diferentes. Sua ação era defensiva da Igreja e da fé católica, defender dos erros daquelas doutrinas, segundo ele mentirosas e perversas, que atacavam a fé. A educação deveria estar nas mãos da religião católica. Era evidente que este pontificado ficaria numa escala de transição. A grande reviravolta viria com seu sucessor.

A reação agressiva da instituição católica contra a modernidade não tardaria. Gregório XVI (1831-1846), o novo papa, realizou um pontificado dentro de uma linha programática da situação cultural e política de seu tempo. A cultura era dominada pelo iluminismo, anticlericalismo, maçonaria e pelo elemento antirreligioso, enquanto na política oficial predominava a restauração. Neste contexto, o papa publica a encíclica Mirari vos (1832). Entre as temáticas tratadas, em termos duríssimos, estão as duas fontes do mal: liberdade de imprensa e o indiferentismo religioso. Na mentalidade da cristandade medieval e da sociedade perfeita reinantes, o papa não consegue constatar nenhum sinal positivo em seu tempo e, por sua vez, não identifica as situações preocupantes dentro da instituição religiosa que necessitam de transformação. A ideia de renovação da Igreja é rejeitada, considerada um ultraje. Condena as ferrovias, pontes, energia elétrica. Tudo é sinal da modernidade e, por consequência, erros que devem ser condenados. O modelo de Igreja da cristandade prevalecerá durante todo o século XIX.

Um aspecto significativo deste período foi a vitalidade da ação missionária da Igreja através de muitas comunidades religiosas e um interessante florescimento de novas congregações, sobretudo no campo da educação, da assistência aos enfermos e empenho missionário. As contradições da história se sucedem no decorrer do século XIX. Se, por um lado, um segmento da instituição constrói um embate com a modernidade, outros setores se veem dentro de uma febre missionária, de fundação de congregações dedicadas exclusivamente às missões, assim como de preparação para as futuras igrejas locais.

3 Catolicismo e o combate ao liberalismo (1846-1878)

O final do pontificado de Gregório XVI foi para os romanos uma libertação. O papa e o seu secretário de Estado, cardeal Lambruschini, não eram amados e seu governo foi considerado tirânico e obscurantista. Todos esperavam um novo papa capaz de enfrentar, de maneira diplomática, a situação social e política. Eleito Pio IX (1846-1878), os liberais e democratas construíram a imagem do papa liberal, embora depois tenha sido acusado de inimigo da liberdade de consciência e de culto e de promover uma Igreja hostil à sociedade moderna. Defendia a plena independência do papa e da Igreja em relação ao Estado, opositor combativo do galicanismo. Se, por um lado, os anticlericais se tornaram grandiosos inimigos do papa, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, por outro lado, os ultramontanos cultuavam tão exageradamente o papa que atribuíam a ele o título de “Grande”. São três os pontos fundamentais de seu pontificado: proclamação do dogma da Imaculada Conceição (1854); publicação da encíclica Quanta Cura e seu anexo Sylabus (1864); e o Concílio Vaticano I (1869-70).

Pio IX não aceitava o regime constitucional, não somente por entender que não era apto para a Igreja, mas porque o julgava ruim em si mesmo. Enorme era sua aversão aos católicos liberais. O auge de sua política antiliberal se dá com a publicação da Quanta Cura e Sylabus. A encíclica tem por objetivo apontar os “erros modernos” que colocam a fé da Igreja em perigo e demonstrar sua superação, afirmando a autoridade da Igreja, fundamentada na autoridade divina. Esses erros, decorrentes da emergência das filosofias modernas como teorias de um novo estado de espírito, distorcem a consciência humana e a consciência eclesial. Perderam-se os valores morais e o caráter sacral da sociedade atual. Os erros modernos em destaque são o naturalismo e o panteísmo, o liberalismo, o comunismo e o socialismo, a dissociação entre Igreja e Estado. O anexo à encíclica, o Sylabus, é uma relação de 80 erros da modernidade que já haviam sido expostos e condenados em documentos anteriores. O documento é publicado no momento em que há dissonância entre os católicos. Além das motivações da sociedade para elencar estes erros, o papa analisa de maneira negativa os católicos que estavam abertos ao diálogo com a sociedade moderna, democráticos, progressistas, constitucionais. Contudo, os papistas, tradicionalistas e ultramontanos, estavam demasiadamente cultuando o passado.

As críticas de Pio IX objetivavam salvaguardar a fé da Igreja e a própria autoridade da Igreja na sociedade moderna. Sua apologética, incluindo o dogma da Imaculada Conceição, realçou a postura da Igreja em defender-se da modernidade e em afirmar sua identidade, construída no Concílio de Trento (1545-63). As críticas serviram também para apontar os maximalismos tanto dos defensores quanto dos opositores da modernidade. Essa apologética possibilitou estabelecer um clima necessário para buscar o equilíbrio na relação entre Igreja e Estado, fé e razão.

Na festa da Imaculada de 1869, foi aberto o Concílio Vaticano I, que se organizou com um objetivo principal: completar e confirmar a obra de exposição doutrinal anterior contra o racionalismo teórico e prático do século XIX. Duas constituições foram aprovadas, uma sobre a fé católica e outra sobre o papel do Romano Pontífice e sua autoridade doutrinal. Em julho de 1870, a guerra franco-prussiana obrigou a suspensão do Vaticano I, que nunca mais foi reaberto. Também em 1870, o Estado Pontifício foi anexado oficialmente ao território italiano, situação tão conflitiva que o papa excomungou o rei Vittorio Emanuelle e se refugiou em sua residência, o Quirinal. Pio IX não autorizava os italianos a serem candidatos ou votarem nas eleições. Essa situação durou mais de trinta anos. Estava iniciada a Questão romana (1870-1929).

Apesar das polêmicas historiográficas, o papa João Paulo II solicitou a continuidade do processo de beatificação de Pio IX, que ocorreu, juntamente com a do papa João XXIII, em 3 de setembro do ano 2000.

4 Questão social e o catolicismo

4.1 Leão XIII (1878-1903) e a questão social

Esse pontificado conseguiu alcançar um prestígio não obtido em tempos anteriores. A conjuntura final do século XIX coincidiu com um conjunto de mudanças radicais no campo político, econômico, social e científico. Em 1892, o papa orienta os franceses a aceitar a República, significando o final, para o mundo católico, da cristandade. Seu magistério tratou de diversos assuntos de grande importância naquele contexto, da vida religiosa à social. A sociedade estava dividida pelo conflito entre o capital e o trabalho: eis a questão social. Essa preocupação social havia começado na segunda metade do século XIX, quando em diversos países foram fundadas associações e círculos em favor dos operários. Leão XIII publicará um emblemático documento que tratou de maneira objetiva a questão operária e social: a encíclica Rerum Novarum.

4.2 Rerum Novarum (1891)

A encíclica conferiu à Igreja católica uma espécie de carta de cidadania. Sem dúvida, a encíclica foi para a ação social cristã aquilo que foi o “Manifesto do Partido Comunista” e o “Capital”, de Karl Marx, para a ação socialista. O documento trata da questão operária, contendo os princípios básicos da Doutrina Social da Igreja, que serão retomados, aprofundados e aplicados em sucessivos documentos e pronunciamentos do Magistério. Essa encíclica é o primeiro texto do magistério eclesiástico a estudar seriamente o problema social ocasionado pela industrialização. O texto, ao mesmo tempo, condenava o liberalismo e o socialismo, mas reconhecia o direito natural à propriedade e sublinhava o valor social, atribuía ao Estado o papel de promotor do bem comum, da prosperidade pública e da privada, superando o absolutismo social do Estado liberal, e reconhecia ao operário o direito a um salário justo. Condenava a luta de classes e aceitava o direito do operário associar-se para defender seus interesses.

A encíclica foi publicada 44 anos depois do aparecimento do ‘Manifesto’ de Marx, e aparentemente não foi tão importante para o movimento de emancipação dos operários. Muitas vezes utiliza uma linguagem abstrata, sem analisar a situação real criada pelo capitalismo e também não apresenta uma análise estrutural das causas da miséria da classe operária. Apesar dessas e outras lacunas, o documento representa uma importante postura na história da Igreja católica.

Essas mudanças na postura da Igreja produziram também dificuldades: não foram poucas as pessoas que pediam a conversão de Leão XIII, que o consideravam entregue às teses marxistas. A outra face da moeda é que em países como a França, Bélgica e Itália nasceu um movimento que se denominou democrata cristão, unindo as aspirações apostólicas, a vontade de reformas sociais e uma preocupação política, não sempre clara, mas favorável à democracia.

5 Condenação do modernismo e reformas intereclesiais

5.1 Contra o modernismo

O modernismo e sua consequente crise tiveram início nos tempos de Leão XIII, mas seu ponto fulcral se deu no pontificado de Pio X (1903-1914). Esse movimento surge em ambiente universitário liberal. Elaborou um pensamento que consistia na aplicação dos métodos modernos de investigação científica à teologia. O objetivo era abrir o cristianismo às exigências filosóficas e históricas da sociedade contemporânea. Uma tentativa de acolher o pensamento modernista foi realizada na obra filosófica de Maurice Blondel, L’Action (1893).

As ideias do modernismo foram aplicadas à teologia e à Sagrada Escritura. As proposições aplicadas no campo eclesiológico tendiam a reduzir a Igreja a uma forma democrática. O modernismo foi a tentativa de conciliar a Igreja católica com os resultados conseguidos pela crítica histórica. Neste sentido, a Igreja não é hierarquia, mas é originária da consciência coletiva, nascida não da vontade divina, mas da necessidade. Gerada de baixo para cima. As proposições modernistas foram censuradas pela Igreja, mas encontraram adesão na medida que afastavam-se do projeto de cristandade. Alguns representantes do modernismo tiveram suas obras submetidas ao Index. Alguns se reconciliaram com a Igreja e outros foram excomungados. Dois dos protagonistas são o padre francês Alfred Loisy (1857-1940) e o jesuíta inglês George Tyrrell (1861-1909). O primeiro foi excomungado, interpretava em sentido escatológico a pregação de Jesus; negava a imutabilidade e o valor objetivo dos dogmas; reduzia o valor da autoridade eclesiástica, pregava total separação entre a fé e a história. O segundo afirmava que se poderia ficar no catolicismo sob condição de distinguir entre a fé viva e a teologia morta, entre a Igreja real e a autoridade que a governa. Foi expulso da Companhia de Jesus e não foi aceito em nenhuma diocese. Mais tarde, foi decretada sua exclusão aos sacramentos, mas não a excomunhão.

Através da encíclica Pascendi Dominici Gregis e do decreto Lamentabili (1907), Pio X apresenta uma forte condenação ao modernismo, reprimindo a reconciliação da doutrina cristã com a ciência e o conhecimento moderno. Foi realizada uma caça formal à heresia dos teólogos reformistas, de maneira especial a exegetas e historiadores. São excluídas do ensinamento as obras de Lagrange, Funk, Delehaye, Duchesne. Em 1910, é imposto aos professores de seminários o juramento antimodernista. São realizadas visitas apostólicas nos seminários italianos, resultando em relatórios às vezes duros por parte dos visitadores. Um dos avaliados nestas visitas foi Ângelo Roncalli, futuro João XXIII.

5.2 Reformas intereclesiais 

O papa Sarto foi um dos grandes reformadores da Igreja.  É de sua iniciativa a organização legislativa da Igreja através do Código de Direito Canônico. Sua apresentação final realizou-se em 1917, no pontificado de Bento XV. Outras reformas aconteceram na catequese e na liturgia. Organizou um catecismo da doutrina cristã. Na liturgia, lançou documentos sobre a música sacra (restauração do canto gregoriano), breviário (harmonização do breviário e ano litúrgico) e sobre a eucaristia (comunhão frequente e idade para primeira eucaristia). Pio X foi canonizado por Pio XII em 1954.

6 Movimentos de renovação

Os movimentos bíblico, litúrgico e ecumênico foram a porta de entrada do sujeito moderno na Igreja. Surgem no século XIX e deslancham no século XX. Os albores do Vaticano II também tem sua gestação nesses movimentos.  O movimento ecumênico, por exemplo, nasceu fora da Igreja católica. Em Edimburgo (Escócia), em 1910, missionários protestantes organizaram uma conferência para estudar as possibilidades e os meios de união, em vistas de uma única evangelização cristã. Nascia o movimento ecumênico. Em 1960, no pontificado de João XXIII, foi criado o Secretariado para a União dos Cristãos, presidido pelo cardeal jesuíta alemão Augustin Bea. O movimento nasce no mundo protestante por razões de evangelização e assume relevância na Igreja católica à medida que os teólogos desposam tal projeto.

7 Catolicismo e as grandes Guerras

Numa linha intermediária e de grande importância histórica para a compreensão da modernidade está o pontificado de Bento XV (1914-1922). O papa envolveu-se na mediação com a 1ª Guerra Mundial, mas sem sucesso. O caos global da Guerra (1914-1918) tornou evidente que os principais valores da modernidade estavam em crise: a absolutização moderna da razão, do progresso, da nação e da indústria. A total crença na razão, no progresso, no nacionalismo, no capitalismo e no socialismo fracassara. A Europa estava pagando um preço alto com os movimentos reacionários do fascismo, nazismo e comunismo. Esses movimentos idealizavam, de uma maneira moderna, a raça, a classe e seus líderes impediram uma ordem mundial nova e melhor.

A 1ª Guerra colocou em marcha a revolução global que se tornaria explícita após a 2ª Guerra Mundial: a mudança do paradigma eurocêntrico de modernidade, que tinha uma marca colonialista, imperialista e capitalista. O novo paradigma, que começara a se desenvolver, da pós-modernidade seria global, policêntrico e de orientação ecumênica. A Igreja católica reconhecera isto somente em parte, e um pouco tarde.

7.1 Período entre Guerras

O sentido do pontificado de Pio XI (1922-1939), no entre guerras, deve ser compreendido dentro dos acontecimentos políticos de seu tempo: uma humanidade oprimida pelos totalitarismos gerados pela sociedade de massa, as profundas diferenças ideológicas que tornaram, particularmente durante a guerra civil, os valores cristãos e a Igreja hostilizados e perseguidos. O desenrolar deste pontificado acontece durante a dramaticidade de grandes eventos que marcam o mundo contemporâneo: fascismo, nazismo e totalitarismo stalinista. Todo este contexto justificava, de certo modo, sua política concordatária realizada na Itália através dos Pactos Lateranenses (1929). O desenvolvimento de suas atividades será explicitado através das encíclicas: Non abbiamo bisogno (1931), Quadragesimo anno (1931), Mit brennender Sorge (1937), e, em seguida, a condenação do comunismo ateu na Divini Redemptoris (1937).

A Ação Católica (movimento de leigos), organizada neste pontificado, está na base da preparação do Concílio Vaticano II. Apesar desta intenção inicial, os leigos da Ação Católica levaram os colegiais (JEC), os universitários (JUC), os operários (JOC, ACO), o mundo rural (JAC) e pessoas dos meios independentes (JIC) a inserirem-se nos seus ambientes específicos, a tal ponto que eles trouxeram para dentro da Igreja toda a problemática e reflexão moderna que em tais situações se vivia. Essa atuação do laicato no mundo, seu engajamento, assumindo compromissos políticos, levou a uma maior participação dentro da Igreja, requerendo maior formação espiritual e teológica.  É aí que esse laicato se defronta com os problemas da modernidade. Os grandes pensadores Yves Congar, Jacques Maritain e Emmanuel Mounier desenvolveram reflexões teológicas sobre a presença do leigo cristão na Igreja e no mundo. Toda essa mentalidade estava caracterizada pelos sinais da modernidade.

Diante das medidas fascistas baixadas na Itália, em junho de 1938, e também porque na Alemanha o problema judaico ia se agravando, Pio XI confiou ao padre jesuíta americano John La Farge a tarefa de preparar um texto sobre a unidade do gênero humano, destinada a condenar em especial o racismo e o antissemitismo. O esboço do texto chegou às mãos do papa somente no final de 1938. O papa estava doente e em seguida morreria, a encíclica jamais foi publicada. No Brasil a encíclica (e um longo comentário) foi publicada pela Editora Vozes com o título “A encíclica escondida de Pio XI”.

7.2 Pio XII: pastoral, teologia e a 2ª Guerra Mundial

Pio XII (1939-1958) fazia ressurgir o projeto de uma civilização cristã. Eugênio Pacelli, que havia sido núncio em Munique, teve um pontificado de extremos. Isto se explica pelo notável contraste entre sua figura e orientação e as de seu sucessor João XXIII (o papa do século). Representava a encarnação do papado em toda a sua dignidade e superioridade. Herdara de seu antecessor uma Igreja fortemente centralizada. As atividades desse papa foram adquirindo outro tom diante, principalmente, de suas relações com a Alemanha e o nazismo. Nesse sentido, seu pontificado foi extremamente criticado por uns, que afirmavam a ausência de manifestações públicas do papa na questão judaica do holocausto, e defendido por outros, que diziam que o papa estava realizando tudo o que estava a seu alcance por vias diplomáticas.

O magistério de Pio XII poderá ser compreendido através de suas mensagens, discursos e encíclicas. Seu pontificado pode ser considerado o último da era antimoderna medieval. Teve diversos aspectos autoritários: rejeitou as doutrinas evolucionistas, existencialistas, historicistas e suas infiltrações na teologia católica foram de grande impacto, como as censuras aos estudiosos Maritain, Congar, Chenu, De Lubac, Mazzolari, Milani e os padres operários franceses.

A situação mundial e mesmo, em muitos aspectos, o interior da Igreja respiravam um ar desejoso de novidades. Pio XII via de forma positiva as reformas, mas sua atitude tendia para uma prudência exagerada. Sua preocupação cada vez maior com uma Igreja envolvida num mundo de agitações e tensões revolucionárias explica, em parte, porque começou a concentrar o governo em suas mãos. Eugenio Pacelli via na exposição da doutrina da Igreja em face dos muitos problemas do mundo moderno sua missão mais importante. Publicou grande número de encíclicas. As principais foram Mystici Corporis (1950) e Humani Generis (1950). A primeira trata da identidade e ordenamento da Igreja, com franco combate à nova teologia. A segunda determina a posição do pontífice a respeito da moderna teoria evolucionista, contendo recusa a algumas hipóteses da escola de Teilhard de Chardin (sem citar nomes). Uma especial atenção dispensou à questão sobre Maria. Em 1950, proclamou o dogma da Assunção de Nossa Senhora.

8 Transição e renovação, o papa cristão

8.1 João XXIII (1958-1963)

O pontificado de João XXIII se caracterizou por uma eclesiologia profética e sua pastoralidade em continuidade à tradição da Igreja. Seus primeiros gestos pastorais indicavam uma nova orientação para a Igreja. Em 1959, anunciou três acontecimentos eclesiais: Sínodo Diocesano de Roma, revisão do Código de Direito Canônico e um Concílio, o Vaticano II. Seu pontificado de aggiornamento marcou uma mudança de direção devido à sua intuição na convocação do Concílio.

Ângelo Giuseppe Roncalli nasceu no povoado de Sotto il Monte na província de Bérgamo, Itália, no dia 25 de novembro de 1881, de família pobre de camponeses. O jovem Roncalli estudou os dois primeiros anos de teologia no seminário de Bérgamo, sendo admitido no ano de 1896 na ordem franciscana secular, onde professou as regras em maio de 1897. Com uma bolsa de estudos que ganhou de sua diocese, foi aluno do Pontifício Seminário Romano, onde recebeu a ordenação sacerdotal em agosto de 1904 – Roma. No ano de 1905, foi nomeado secretário do bispo de Bérgamo, D. Giacomo Radini Tedeschi, o que lhe possibilitou fazer inúmeras viagens, visitas pastorais e colaborar com múltiplas iniciativas apostólicas como sínodos, redação de boletim diocesano e obras sociais. Colaborou com o jornal católico da diocese de Bérgamo e foi assistente da Ação Católica Feminina. Foi como professor no seminário da mesma diocese que aprofundou seus estudos sobre três pregadores católicos:  São Francisco de Sales, São Gregório Barbarigo (na ocasião era beato e depois foi canonizado pelo próprio Roncalli em 1960), e São Carlos Borromeu, de quem publicou as Atas das visitas realizadas na diocese de Bérgamo no ano de 1575. Após a morte do bispo de sua diocese, em 1914, do qual foi secretário, o padre Roncalli prosseguiu seu ministério sacerdotal na diocese, onde pretendia permanecer.

Em 1915, Roncalli foi à guerra defender seu país, pois nos anos de seminarista em Roma havia prestado um ano de serviço militar. Roncalli foi convocado como sargento sanitário e nomeado capelão militar dos soldados feridos que regressavam da linha de combate, quando a Itália, após o Tratado de Londres de 26 de abril de 1915 renunciou ao acordo com a Tríplice Aliança, entrando na guerra.

A segunda fase de sua vida teve início em 1921, com sua convocação, pelo papa Bento XV (1914-1922), para integrar o Conselho das Obras Pontifícias para a Propagação da Fé, da qual foi presidente, função que o obrigou a percorrer inúmeras dioceses italianas organizando círculos missionários. Essa fase romana e a vida aparentemente tranquila de presbítero não duraram muito tempo. No papado de Pio XI (1922-1938), o padre do pequeno vilarejo de Sotto il Monte foi elevado ao episcopado em 1925 e nomeado como Visitador Apostólico para a Bulgária. Em 1934, foi nomeado para a função de Delegado Apostólico na Turquia e Grécia e, ao mesmo tempo, administrador do Vicariato Apostólico de Istambul, onde se destacou no diálogo com os muçulmanos e os ortodoxos.

Em 1944, Pio XII nomeou Roncalli para ser Núncio Apostólico em Paris. Sua nomeação teve a intervenção direta do pró-secretário de Estado, Mons. Montini. Aos cinquenta e três anos de idade, Roncalli foi alçado a cardeal e dois anos mais tarde patriarca de Veneza. Aos setenta e sete anos chegou ao conclave e foi eleito papa João XXIII. Sua encíclica Pacem in terris (1963) foi o último ato de um pontificado tão breve, mas intenso, dinâmico e incisivo.

A morte do papa no dia 3 de junho de 1963 – Dia de Pentecostes – foi recebida com grande comoção em várias partes do mundo católico. Impressionante esse momento, diferente de outros tempos, em que homens e mulheres de todos os países e de todas as religiões choraram a sua morte. João XXIII foi canonizado em abril de 2014, pelo papa Francisco.

8.2 Vaticano II (1962-1965) e sua relação com a modernidade

Em 11 de outubro de 1962, João XXIII abriu a primeiro período do Concílio. O texto de abertura é de fundamental importância (Gaudet Mater Ecclesia) e exerceu profunda influência na redação de todos os documentos conciliares. Três pontos merecem destaque. Em primeiro lugar, o papa dirige-se aos profetas que anunciam apenas desgraças, vendo no mundo moderno somente declínio e catástrofes, comportando-se como se não aprendessem nada da história. Em segundo lugar, o ponto central do Concílio. Não será somente uma discussão de um ou outro artigo da doutrina fundamental da Igreja, repetindo e proclamando o ensino dos padres e dos teólogos antigos e modernos, pois supõe que isso já seja bem presente e familiar. Para isso, não haveria necessidade de um Concílio. Trata-se de uma renovada, com serena e tranquila adesão a todo o ensino da Igreja. Em terceiro lugar, a Igreja sempre se opôs aos erros; muitas vezes até condenou com maior severidade. A Igreja, agora, levando por meio do Concílio o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente e cheia de misericórdia com seus filhos dela separados.

O Vaticano II promulgou dezesseis constituições, decretos e declarações. Há um consenso de que a constituição dogmática Lumen Gentium e a constituição pastoral Gaudium et spes sejam o eixo do Concílio. A Igreja teve coragem de olhar para o seu passado, refletir e criar uma relação nova no presente. A continuidade do diálogo e de todos os frutos que ele gerou continuam acontecendo.

O evento conciliar teve duas grandes personalidades à sua frente: João XXIII, que morreu após o primeiro período do Concílio, aos 82 anos, e Paulo VI (1963-1978), que o substituiu. Montini (Paulo VI – beatificado em 2014 pelo papa Francisco) tomou a sério sua grande tarefa de continuidade do Concílio, evidentemente com uma tônica diferente. Roncalli (João XXIII) era pastor e Montini era personagem da Cúria. Nesse sentido, a análise do pós-Concílio merece uma reflexão sobre os avanços e os retrocessos dentro do próprio evento conciliar. Apesar das concessões sobre a reforma da liturgia, a renovação da Igreja católica e o diálogo ecumênico com as outras Igrejas Cristãs, desejado por João XXIII, o Concílio não teve um avanço, mas sim uma estabilidade. Historicamente era muito cedo, apesar da janela aberta, para perceber na prática cotidiana relações de transformações absolutas, abrindo a janela, portas, limpando o grande pó dos móveis e, principalmente, dos seus interiores. Já era um grande passo para o diálogo com a modernidade. Algumas vezes tornou-se, novamente, monólogo.

8.3 Paulo VI, reformador e incompreendido (1963-1978)

O papa Paulo VI, Giovanni Battista Montini, nasceu em Concesio, próximo à Brescia, no ano de 1897. De família abastada, sua mãe, muito católica, era presidente da Associação Católica Feminina de Brescia; o pai era doutor em direito, escritor e fundador do diário “Il cittadino de Brescia”, foi presidente da União Eleitoral Católica de Brescia e deputado no parlamento pelo Partido Popular, do qual era um dos fundadores. Ordenado sacerdote em 1920, Montini estudou direito eclesiástico na Universidade Gregoriana (Roma) e após um exame de admissão tornou-se professor por um curto período.

Depois de seus trabalhos na Secretaria de Estado da Santa Sé, Montini foi nomeado arcebispo de Milão. No período de seu arcebispado em Milão (1955-1963), aproximou-se dos operários, e das reivindicações da esquerda, que atuavam na sua arquidiocese, e também não se esqueceu dos que estavam afastados da Igreja. Um dos eventos de maior importância que realizou em Milão foi a Missão de Milão (5-24 de novembro de 1957). Foi um enorme trabalho pastoral que envolveu toda a imensa cidade. Preparada durante dois anos, participaram 500 agentes de pastoral, dois cardeais, 24 bispos, e foram realizadas sete mil intervenções e palestras nas igrejas, estabelecimentos industriais, entidades culturais. O tema central de todas as pregações foi Deus Pai. O arcebispo Montini participou diretamente dessas atividades através do rádio, escritos e conferências. Procurou implantar uma reforma pastoral favorecendo a renovação da liturgia e promovendo a construção de novas igrejas. Consagrou 72 igrejas no período em que permaneceu em Milão. No momento de sua eleição pontifícia, outras 19 igrejas estavam em construção.

No dia seguinte à sua eleição, Paulo VI anunciava, através de uma mensagem radiofônica, a sua intenção de continuar o Concílio. Coordenou os três períodos seguintes do Vaticano II.

Da América Latina, o papa recebeu denúncias da situação aviltante das populações empobrecidas, que viviam em situação miserável e em grande parte debaixo de regimes ditatoriais funestos, apoiados pelo capitalismo “democrático” americano. O papa não ficou imune a essa situação, lançando a encíclica Populorum Progressio (1967), que provocou grande debate nos meios eclesiais e fora dele, principalmente entre os conservadores da Cúria, que achavam que o papa havia excedido em suas colocações à esquerda, como, por exemplo, quando citou e questionou a supremacia da propriedade privada em detrimento dos direitos coletivos.

O papa publicou outras encíclicas, mas a que causou maiores discussões foi a Humanae vitae (1968). A encíclica tratava de um assunto altamente complexo para a sociedade: o controle de natalidade.  Nunca uma encíclica provocou tantas polêmicas externas e internas. O texto trata da temática da sexualidade humana. A afirmação é que a sexualidade deve ser vista não como prazer animalesco. A incompreensão do documento é, sobretudo, devido a uma leitura redutiva da encíclica, levando em consideração a questão da proibição da pílula e ignorando outra parte altamente positiva: a função criativa da sexualidade, não só biológica, mas personalística.

Em Jerusalém (1964), abraçou com o patriarca Antenágoras o diálogo com todos os cristãos. No Congresso Eucarístico de Bombaim (Índia – 1964), marcou presença no encontro com os fiéis católicos. Discursou na ONU (1965) diante de 117 delegados de diversos países, marcando assim o diálogo com a sociedade. Celebrou missa em Fátima, Portugal, em 1967, comemorando os 50 anos da aparição de Maria aos pastorzinhos. No Congresso Eucarístico de Bogotá (1968), abriu a II Conferência do Episcopado Latino-americano de Medellín, um encontro com os pobres do então terceiro mundo. No encontro de oração no Congresso Ecumênico das Igrejas em Genebra (1969), abraça todos os irmãos cristãos de outras denominações.

A questão da colegialidade foi, para Paulo VI, fundamental, por estar ligada a outra que o preocupava, o ecumenismo. A essas questões internas se junta a grande questão que na atualidade ainda é de enorme importância e com a qual a instituição religiosa tem dificuldade de lidar: o diálogo com a sociedade. Para encaminhar estas questões tratadas no Vaticano II, o papa tinha consciência que dentro da instituição havia dois polos opostos, em alta conflituosidade: novidade e tradição, verdade e caridade, historicidade e permanência, autoridade e liberdade, poder e fraternidade, superioridade e humildade, separação do mundo e unidade com o mundo. Paulo VI também tinha plena consciência que deveria conciliar esses binômios. Ainda importante destacar que esse pontificado teve início dentro de um período conciliar e sua continuidade difícil nos primeiros anos de um pós-Concílio.

Paulo VI faleceu no dia 6 de agosto de 1978 em Castel Gandolfo, com 81 anos de idade. Foi sepultado na cripta da Basílica São Pedro, numa tumba humilde, como ele mesmo pediu em seu testamento.

9 O santo criticado e seu continuador

9.1 João Paulo II (1978-2005)

Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, eleito em 1978 após a morte repentina de João Paulo I, com 33 dias de pontificado, recebeu a herança espiritual deixada por Paulo VI e o espírito pastoral do Vaticano II. Seu longo pontificado (1978-2005) é marcado por diversos fatores, um deles é o religioso. Incrementando esse caráter religioso, o papa propôs uma Nova Evangelização. Escreveu 14 encíclicas (3 sociais) e outros documentos e catequeses. O Código de Direito Canônico (1983) e o Catecismo da Igreja Católica foram o auge de um processo iniciado e enriquecido neste pontificado. Apresentou duras críticas ao sistema totalitário comunista e ao capitalismo. Incentivou o ecumenismo e o diálogo inter-religioso. Visitou 114 países, arrebanhando multidões. O jubileu, no ano 2000, foi uma grandiosa celebração e incentivo à nova evangelização.

O pontificado de Wojtyla também sofreu críticas, como as do jesuíta brasileiro João Batista Libânio (2005) sobre o Código e o Catecismo, e se referem às pontes que não criaram na continuidade ao Vaticano II. Vários teólogos apresentaram suas observações sobre o Sínodo Extraordinário de 1985, convocado para avaliar o Vaticano II, mas visto, porém, como um retorno ao pré-concílio. João Paulo II é criticado, apesar da afirmação da colegialidade, pela centralização, que tinha como pilar a Cúria Romana, com uma eclesiologia hierárquica, desfavorecendo a concretização da Igreja Povo de Deus. São questionadas as restrições feitas às mulheres nos diversos níveis ministeriais e a condenação de inúmeros teólogos. Renasce um autoritarismo e clericalismo durante o pontificado, ao contrário das diretrizes do Vaticano II.

O papa enfrentou diversos sofrimentos particulares relativos à sua saúde, inclusive um atentado em 1981 em plena Praça São Pedro. Sua saúde passou por muitos momentos de dificuldade, levando a um sofrimento geral dos fiéis nos últimos anos de seu pontificado. Uma multidão acompanhou o seu longo velório em Roma e pedia que fosse feito santo imediatamente. Sua canonização ocorreu em 2014, juntamente com João XXIII.

9.2 Bento XVI (2005-2013)

O sucessor de João Paulo II foi seu braço direito na Cúria Romana, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal alemão Joseph Ratzinger. A escolha feita no conclave foi recebida com inúmeras reservas em âmbitos eclesiásticos. Enfrentou diversas dificuldades e passará para a história como o papa teólogo e o que renunciou.

No dia 11 de fevereiro de 2013, na Cidade do Vaticano, na sala do Consistório, Bento XVI presidiu um consistório público para a canonização de beatos. Em seguida, continuou lendo uma breve declaração em latim que levava a sua assinatura e a data do dia anterior, na qual anunciava sua decisão de renunciar ao pontificado por motivos de idade, comunicando que a Sé de Pedro ficaria vacante a partir das 20 horas do dia 28 de fevereiro. A declaração consta de 22 linhas, linhas destinadas a mudar a história da Igreja. Sua renúncia é um grande gesto, que se tornará revolucionário. Bento XVI trouxe o papado para os tempos modernos.

Seu pontificado foi extremamente difícil. Carregado de obstáculos, ataques, crises, escândalos (pedofilia) e tensões no governo da Cúria romana, carreirismo, lutas internas. Seus poucos anos de pontificado foram marcados por outras situações polêmicas: relacionamento com os bispos lefebvrianos; a autorização da missa em latim através do Motu Proprio Summorum Pontificum (2007), trazendo à tona a oração pela conversão dos judeus; as discussões sobre as hermenêuticas do Vaticano II; o discurso em Regensburg (Alemanha 2006); o caso Richard Williamson, da Fraternidade São Pio X, excomungado por João Paulo II e reabilitado pelo papa Ratzinger; as notificações da Congregação da Doutrina da Fé para vários teólogos. Dentre eles estão: Roger Haight, Jon Sobrino, Jacques Dupuis, Peter Phan, Torres Queiruga, José Antônio Pagola.

 Alguns projetos iniciados por Bento XVI foram paralisados, da “reforma da reforma” da liturgia à relação com os lefebvrianos, passando pelo diálogo ecumênico. O caso Vatileaks, no último ano do pontificado, trouxe à tona uma complexa realidade, certamente não limitada somente à traição do mordomo Paolo Gabriele, entregando documentos sigilosos a terceiros não autorizados, que foram depois publicados. Essa é a conjuntura em que o papa Bento XVI renuncia e, ao mesmo tempo, é o cenário de crise em que é eleito Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco. Sua eleição (2013) parece evocar aquela visão de oito séculos atrás: “Vai Francisco, e restaura a minha Igreja em ruínas”. Sua missão, outorgada pelos seus cardeais eleitores, é a de mudar a arranhada imagem da Igreja.

10 O retorno ao Cristianismo: Francisco

 Eleito em 2013, Francisco é o primeiro papa jesuíta e latino-americano (Argentina) em 20 séculos da Igreja católica. Seu nome é um programa de pontificado: proximidade com os pobres e compromisso de renovação da Igreja. O cardeal Bergoglio nasceu em 1936, no bairro de Flores, coração de Buenos Aires. Em 1957, entra para a Companhia de Jesus. Seus anos de estudo de teologia e filosofia se deram na Argentina e no Chile. Em dezembro de 1969, foi ordenado padre. Não é possível defini-lo como um grande carreirista, foi prior provincial dos jesuítas na Argentina de 1973 a 1979. Entre 1980 e 1986, foi reitor da Faculdade de Teologia em San Miguel. No ano de 1992, foi nomeado bispo auxiliar da arquidiocese de Buenos Aires, guiada pelo então cardeal Antônio Quarracino. A partir de 1998, com a morte de Quarracino, Bergoglio será o novo arcebispo de Buenos Aires. Foi criado cardeal por João Paulo II em 2001. Na tarde de 13 de março de 2013, na Capela Sistina, cidade do Vaticano, às 16h30, na quarta votação, é eleito o novo papa. Francisco terá pela frente uma missão imensa, não só pelo serviço em si, mas pelas enormes dificuldades que a instituição vive neste contexto. São desafios que o papa jesuíta sabe bem; é importante plantar a semente, mas não é necessário colher os frutos no tempo presente. Afirma Francisco: “desconfio das decisões tomadas de modo repentino” (SPADARO, 2013, p.11). Nesse primeiro ano de pontificado, foi lançada a encíclica Lumen Fidei, iniciada por Bento XVI.

Em tempos de neoliberalismo, nada é tão atual quanto elaborar ensinamentos sociais em situações sempre novas e aí anunciá-los profética e criticamente. O papa Francisco, preocupado com a tarefa incompleta do Vaticano II e em andamento, afirma que o mandamento não matar põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim, hoje, devemos dizer “não à economia da exclusão e da desigualdade social” (Evangelii Gaudium n.53). A exortação apostólica do papa, Evangelii Gaudium, publicada em 2013, já causou enorme debate mundo afora. De um lado, muitos analisam o documento como um grande passo na questão social, mas, por outro lado, empresários, especialmente americanos, ficaram extremamente descontentes com as críticas feitas ao capitalismo. Críticas que João Paulo II já havia realizado. Na exortação, Francisco denuncia que “o ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora” (EG n.53). Portanto, é uma declaração e, ao mesmo tempo, uma necessidade de atualizar o Vaticano II, valorizando a dignidade da pessoa e dizendo, sem medos, um enorme não à sacralização do mercado. Não a um dinheiro que governa ao invés de servir.

O que o papa está realizando foi um sonho de João XXIII, ou seja, que a Igreja saísse do Vaticano II e ficasse bem próxima dos pobres, de modo que esses se sentissem em casa no seu seio, mas, no acervo documental do Concílio, os pobres se perdem. Os empobrecidos não podem sair da ótica de uma Igreja que segue as inspirações do Vaticano II. Este tema é evangelicamente sempre atual, embora muitas vezes tenha sido silenciado na sociedade e mesmo no interior da Igreja, em determinados setores eclesiásticos.

O papa tem demonstrado sua capacidade de se relacionar com os judeus, os islâmicos e com outros de diversas denominações religiosas, na perspectiva de uma eclesiologia missionária: Igreja em saída, voltada para a sociedade e a serviço da humanidade. Igreja que saiba escutar e realizar a urgente enculturação da fé, enculturação que foi obstaculizada nos últimos anos pela centralização.

Um evento histórico e emblemático do início de seu pontificado foi a celebração da XXVIII Jornada Mundial da Juventude (julho de 2013), no Rio de Janeiro – Brasil. Seus discursos, homilias, gestos e a presença imensa de fiéis revelaram o relacionamento que já marca esse pontificado: próximo do povo, não só no discurso mas também em uma sadia rebeldia diante de sua segurança pessoal. Visitou periferias da cidade maravilhosa e celebrou no Santuário de Aparecida do Norte, em São Paulo. Encontrou com argentinos na Catedral de São Sebastião no Rio de Janeiro. Por onde passou deixou um sinal diferente do bispo de Roma, no caminho de Assis em busca de reformas da Igreja e de uma Igreja missionária. Nesse mesmo ano visitou ainda, na Itália, Cagliari, Assis e a emblemática ida a Lampedusa e seu pronunciamento diante da tragédia global da imigração e das inúmeras mortes no mar, especialmente o naufrágio de africanos.

O papa visitou, em 2014, a Turquia, Tirana (Albânia), o Parlamento Europeu, a Coreia do Sul e a Terra Santa. Na Itália, realizou visitas em 2014: Redipuglia, Caserta, Campobasso e Boiano, Isernia-Vesafro e Cassano allo Jonio. Convocou e participou do Sínodo Extraordinário sobre a Família em 2014, que teve sua continuidade e término em outubro de 2015. Em 2015, visitou as Filipinas, onde mais de 6 milhões de pessoas compareceram à missa realizada em Manila, e o Sri Lanka; Equador, Bolívia, Paraguai, Bósnia, Cuba e Estados Unidos e a Organização das Nações Unidas (ONU). E ainda  em novembro visitou o Quênia, Uganda e República Centro Africana. Na Itália, já visitou, em 2015, Prato, Florença, Turim, Pompéia e Nápoles.

“Quando insisto na fronteira, de modo particular, refiro-me à necessidade de o homem da cultura estar inserido no contexto em que opera e sobre o qual reflete. Está sempre à espreita o perigo de viver em um laboratório” e ainda continua Francisco afirmando que “nossa fé não é uma fé-laboratório, mas uma fé-caminho, uma fé histórica. Deus revelou-Se como história, não como um compêndio de verdades abstratas…é preciso viver na fronteira” (SPADARO, 2013, p.33-4).

Em outra encíclica de 2015, Laudato Si’ – “Louvado Sejas, sobre o cuidado da casa comum”, o papa oferece uma grandiosa reflexão para os debates sobre a temática da ecologia integral. O texto apresenta uma análise do que está acontecendo no planeta (poluição, clima, água, biodiversidade, deterioração da vida e degradação social). Em seguida, trata da Criação e aborda a questão da raiz humana da crise ecológica. É, sem dúvida, um documento do magistério que apresenta enorme contribuição e críticas ao sistema econômico gerador das crises da integralidade ecológica.

Na sua bula Misericordiae Vultus (2015), convida para a realização do Ano Santo do Jubileu extraordinário da Misericórdia a ser realizado entre 8 de dezembro de 2015 (festa da Imaculada Conceição) e 20 de novembro de 2016 (festa de Cristo Rei).

Ney de Souza, PUC São Paulo

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