A modernidade e a Igreja católica

Sumário

1 A modernidade

1.1 Mudanças da modernidade

1.2 O processo de secularização

2 A modernidade e a Igreja Católica

2.1 O início das “guerras culturais” na Europa

2.2 A crise modernista

2.3 Compromisso social do catolicismo conservador

3 A modernidade e a Igreja Católica na América Latina

3.1 Consolidação dos Estados e das Igrejas

3.2 Catolicismo social na América Latina

4 Complexa relação da Igreja com a modernidade

4.1 As tentativas de reconciliação da Igreja com a modernidade

4.2 Concílio Vaticano II e Conferências do Episcopado Latino-Americano

4.3 O diálogo necessário com os tempos históricos

5 Referências bibliográficas

1 A modernidade

1.1 Mudanças da modernidade

O mundo ocidental passou por profundas mudanças a partir da segunda metade do século XVIII. Por um lado, a revolução industrial provocou mudanças econômicas e sociais irreversíveis, com consequências muito significativas para a América Latina, que ingressou no comércio atlântico com um novo protagonismo. Por outro lado, no campo político, o regime das liberdades civis e religiosas simbolizado pela “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” levou a um período de turbulência que muitos temiam. Parecia haver “uma relação direta entre o início de 1789 e a destruição dos valores tradicionais na ordem moral, social e religiosa” (AUBERT, 1977, p.44). O mundo ocidental entrou na “era das revoluções”, segundo a expressão clássica de Jacques Godechot – que se estenderia por várias décadas. A revolução das colônias inglesas, a Revolução Francesa, a revolução da América espanhola e as revoluções liberais de 1830 e 1848 suscitaram diversas realidades políticas e sociais. Novos atores coletivos – movimentos ideológicos, partidos, exércitos, estados, repúblicas, nações –  se tornariam os novos protagonistas da história. O liberalismo, a democracia e a cidadania entraram em jogo, tanto na Europa quanto na América.

Estes processos envolveram mudanças de ideias, nas crenças, nos imaginários, nos valores, nos comportamentos. Foi gerado, segundo François-Xavier Guerra, “um novo sistema de referências: a vitória do indivíduo, considerado como o valor supremo e critério de referência com o qual devem ser medidas as instituições e os comportamentos”. Guerra assinala que esta vitória do indivíduo teve consequências significativas no campo da sociabilidade. A nova sociabilidade moderna foi caracterizada pela associação de indivíduos de origem diversa, que se reuniram para discutir em comum e tirar suas próprias conclusões. Salões, clubes, reuniões sociais e associações eram sociedades igualitárias, onde surgiu a “opinião pública moderna, produto da discussão pública e consenso dos seus membros” (GUERRA, 2009, p.40) .

Não se deve, porém, considerar que a modernidade surgiu contra a Igreja Católica. Por um lado, isso envolveria identificar, na íntegra, as origens da modernidade com alguns princípios do Iluminismo do século XVIII. E houve, certamente, iluministas católicos. Por outro lado, não pode ser ignorado, como salienta Christopher Clark, o caráter seletivo e ideológico, no século XIX, do uso dos termos “moderno” ou “antimoderno” (CLARK, 2003, p.46). Em suma,  deve ser matizada a imagem antitética da Igreja e dos católicos que rejeitam em bloco a modernidade.

1.2 O processo de secularização

No contexto da modernização industrial e de mudança nas referências e costumes, foram desenvolvidos processos de secularização, através dos quais algumas  esferas da vida social começaram a ganhar autonomia do âmbito religioso. Não devemos simplificar o conceito de secularização, certamente muito complexo; também não se pode limitar seu desenvolvimento a determinados períodos da história. É preferível conceber a secularização como “desenvolvimento contínuo, como um trabalho permanente da religião que nas nossas sociedades modernas é recomposta, realocada e adquire modalidades múltiplas, fragmentadas, subjetivas, talvez esquivas”. A secularização é – declara Di Stefano – “(…) por um lado, a transição dos regimes da cristandade para os da modernidade religiosa; por outro, a permanente recriação das identidades religiosas que essa passagem colocou em movimento” (DI STEFANO, 2011, p.4).

Este processo se desenvolveu em diferentes níveis e com diversas consequências. De acordo com a proposta de Karel Dobbelaere, podem-se distinguir três níveis de secularização. A “secularização da sociedade” refere-se à relação entre sociedade e religião e à dessacralização progressiva da vida social, estando ligada à laicização promovida pela política. No nível médio, a “secularização organizacional” implica a progressiva autonomia das organizações, a maioria de origem eclesiástica, que se afastam das suas referências morais e religiosas e, gradualmente, se adaptam ao ambiente profano. Finalmente, a “secularização individual” está ligada à menor influência eclesiástica nas crenças e comportamentos das pessoas, o que não implica necessariamente uma diminuição da crença em Deus ou do espírito religioso. (DOBBELAERE, 2002, p.29-43).

Na América Latina, este intrincado processo é mais evidente a partir da segunda metade do século XIX e impactou mais os setores intelectuais – influenciados por correntes de pensamento racionalistas  e positivistas – e nas sociedades de cristianização tardia. A secularização seria sentida especialmente nos grupos de elite que, embora pequenos, desempenharam um papel de liderança na vida política, cultural e social. De qualquer forma, a Igreja Católica continuou a exercer ampla e profunda influência sobre vastos setores sociais e culturais.

Além disso, na maioria das repúblicas latino-americanas, o processo de secularização coincidiu com dois outros processos importantes, o que multiplicou debates e conflitos. Na verdade, a construção dos estados nacionais e a configuração  das Igrejas católicas locais e romanizadas convergiram como  processos não isentos de tensões. Além disso, estes processos também foram agentes e consequências do processo de secularização, que obrigava a estabelecer limites, determinar espaços específicos e redefinir a relação entre o religioso e o político (DI STEFANO, 2012, p.220-222).

2 A modernidade e a Igreja Católica

2.1 O início das “guerras culturais” na Europa

A reafirmação católica, que começou na Europa a partir de 1815, foi consolidada com a Restauração, que revitalizou a aliança entre o trono e o altar. Embora as revoluções liberais fossem acompanhadas por novas ondas anticlericais, ao mesmo tempo em que acontecia o nascimento da sociedade industrial, a vida cristã vivia um período de fortalecimento que durou até 1880. Por um lado, consolidava-se a revitalização e criação das ordens e congregações religiosas. Por outro lado, a ação pastoral se desenvolvia de acordo com um novo espírito, que conferia especial valor à religiosidade popular. Eram tempos de festas dos padroeiros e procissões, obras de juventude e livros religiosos populares, de devoção ao Sagrado Coração, de adoração eucarística e piedade mariana, de construção de  igrejas e grande impulso às peregrinações coletivas.

Em meados de 1846, Giovanni Mastai Ferretti, que percorrera as capitais do Cone Sul na década de 1820, tornou-se o papa Pio IX. Seu pontificado, que durou mais de 30 anos, coincidiu com esse renascimento religioso e com o processo de centralização romana, que parecia estar baseado em alguma apreensão sobre a multiplicidade de igrejas locais e apoiava a subordinação dos bispos às diretrizes de Roma. O papa e seus assessores estavam convencidos que esse era o modo de garantir  a restauração da vida católica e de reagrupar as forças da Igreja para enfrentar os desafios do liberalismo anticristão. Com o apoio das nunciaturas e das congregações religiosas, entre as quais se destacou a Companhia de Jesus, a romanização marcou por décadas a vida da Igreja e teve a entusiasta adesão das massas católicas, atraídas pela integridade e carisma de Pio IX.

Na defesa dos valores cristãos, os católicos romanos e os romanizados adotaram todos os meios modernos de organização, mobilização e comunicação. Eles fundaram jornais e revistas que criticavam o liberalismo político e a cultura secularizada, e apoiaram a criação de partidos políticos para manter a solidariedade e moral dos católicos, criando uma verdadeira rede na Europa e, um pouco mais tarde, na América Latina.

2.2 A crise modernista

Desde meados do século XIX, a afirmação da Igreja de Roma como uma referência para a Igreja universal, bem como as progressivas condenações das ideias liberais e dos avanços do racionalismo levaram à crescente rejeição dos grupos dominantes e daqueles que interpretavam a posição do Vaticano como um anúncio de ruptura com a modernidade. Além disso, entre 1861 e 1870, a “questão romana”, sobre o papel de Roma como a capital dos Estados Pontifícios ou como capital do Reino da Itália em formação, motivou o alinhamento da sociedade católica europeia com o papa, cuja plena liberdade foi reivindicada.

Na Constituição Apostólica Ineffabilis Deus, de 1854,  Pio IX definiu o dogma da Imaculada Conceição de Maria. Em 8 de dezembro do mesmo ano, festa da Imaculada Conceição, foi promulgado o decreto correspondente. Maria, chamada a ser a Mãe de Deus, foi preservada do pecado original, a partir do qual veio a fraqueza inicial da razão humana. Exatamente dez anos depois, em 8 de dezembro de 1864, Pio IX publicou a encíclica Quanta Cura, acompanhada por um catálogo de oitenta proposições que foram consideradas inaceitáveis, conhecido como Syllabus errorum. Neste documento, Pio IX condenou erros rejeitados por todas as escolas teológicas e incluiu advertências contra o totalitarismo do Estado e contra os excessos do liberalismo econômico. Ele também se opôs abertamente à concepção liberal da religião e da sociedade – o monopólio estatal da educação, à secularização das instituições, à separação de Igreja e Estado, à liberdade de culto e de imprensa. O último dos erros condenados era o seguinte: “O Romano Pontífice pode e deve se reconciliar com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna”. O Syllabus foi um texto controverso e provocou reações complexas dentro e fora da Igreja Católica, especialmente entre os católicos liberais da França e da Bélgica (AUBERT, 1977, p.49-50). O avanço das tropas italianas, a desconfiança diante da Prússia protestante, a pressão exercida pela burguesia anticlerical prevalecente em repúblicas liberais e os impulsos do socialismo, consolidado com a reunião da Primeira Internacional em Londres, em 1864, a propagação do positivismo cientificista e o evolucionismo de Charles Darwin, além do desenvolvimento da propaganda secularista tinham provocado um forte alarme, levando à exasperação dos ânimos e  a condenações contundentes.

A invasão dos Estados Pontifícios e a queda de Roma, em setembro de 1870, agravariam a “questão romana”. No Concílio Vaticano I, aberto em 8 de dezembro de 1869 e suspenso pela entrada das tropas italianas em Roma, foram aprovados, após tensos debates, dois documentos importantes: a constituição dogmática Dei Filius – que reafirmou os fundamentos do cristianismo diante dos erros modernos: o racionalismo, o materialismo e o ateísmo – e a constituição Pastor Aeternus – que determinou o primado do bispo de Roma e a infalibilidade papal.

Entre 1870 e 1914, a “crise modernista” atingiu seu ápice e afetou as principais nações da Europa ocidental: o Império Austro-Húngaro, a Alemanha, a Inglaterra, a França, a Bélgica e a Itália. A exegese bíblica de origem protestante e a publicação das primeiras obras evolucionistas de Charles Darwin influenciaram esse processo. O papado e as sociedades católicas resistiram, de vários modos, aos avanços da secularização e ao anticlericalismo. No entanto, em 1878 começara o pontificado do Papa Leão XIII, marcado pela prudência e o estilo pedagógico. Embora o novo pontífice mantivesse a condenação ao liberalismo – a liberdade de religião, imprensa, educação e de consciência – ao indiferentismo e ao secularismo, suas propostas foram renovadoras no campo social e mesmo no político, com as encíclicas Catholicae Ecclesiae (1890), Rerum Novarum (1891) e  Graves de Communi Re (1901).

No início do século XX, a revitalização do denominado modernismo teológico, influenciado pela teologia protestante, especialmente a Escola de Tübingen, causou novos atritos. Nesta nova fase, destacaram-se o teólogo francês Alfred Loisy (1857-1940) e o jesuíta irlandês George Tyrrell (1861-1909), ambos condenados. Segundo o cardeal Desejo Mercier, Arcebispo de Malines, renomado teólogo neotomista e reitor da Universidade Católica de Lovaina, o modernismo teológico tinha, na sua origem, dois grandes erros: primeiro, “o suposto antagonismo entre a Igreja e o progresso”, e segundo, “a assimilação inconsciente da constituição da Igreja Católica às organizações políticas das sociedades modernas”, ignorando a autoridade do Papa e dos bispos como “continuadores da missão apostólica” de Jesus Cristo (MERCIER, 1907, p.35-38).

Em 1907, a encíclica Pascendi Dominici gregis, de Pio X, condenou o modernismo como “a síntese de todas as heresias”. Também foi instituído o “juramento antimodernista”, obrigatório para “todo o clero, os pastores, confessores, pregadores, superiores religiosos e professores de filosofia e teologia nos seminários”.

2.3 Compromisso social do catolicismo conservador

Paralelamente à condenação da modernidade, manifestou-se, tanto na Europa como no continente americano, um compromisso progressivo dos católicos conservadores contra a “questão social”. Várias propostas e diversas denúncias  tinham em comum a rejeição contundente do liberalismo individualista e do socialismo, associado com o uso da violência. Em 1848, Frederico Ozanam lançou seu chamado “Vamos aos bárbaros e sigamos Pio IX”; os “bárbaros” eram os trabalhadores – considerados perigosos por muitos cristãos – acuados pela mecanização e cujas necessidades Ozanam conhecia bem. Seguiram as advertências de numerosos bispos: Dom Wilhelm Ketteler, em Mainz, o bispo Maurice de Bonald, em Lyon, o arcebispo Henry Edward Manning, em Westminster, o então bispo Vincenzo Pecci, em Perugia, futuro Leão XIII, apelando ao compromisso dos leigos católicos. Os objetivos eram a defesa da Igreja, acossada em várias frentes, e a reconquista da sociedade para Cristo.

Embora o catolicismo social nascente incluísse várias tendências, a corrente mais antiliberal prevaleceu, em parte como resultado das revoltas de 1848. Neste contexto, houve o encontro das várias fontes do catolicismo social. Prisioneiros durante a guerra franco-prussiana, os franceses Albert de Mun e Rene de la Tour du Pin descobriram o catolicismo social alemão e a figura de Mons. Ketteler. Uma vez livres, De Mun e La Tour du Pin promoveram os Círculos Católicos de Operários na França. Esta obra se difundiu por toda a Europa e contribuiu significativamente para a recristianização das classes dominantes e o fortalecimento dos núcleos de operários cristãos.

A coordenação do catolicismo social europeu foi estimulada a partir da queda de Roma, com a associação de leigos católicos conservadores, muito próximos às questões sociais. Em outubro de 1870, com o apoio papal, surgiu em Genebra o “Comitê de Defesa Católica”, também chamado “Comitê de Genebra”, presidido por Mons. Gaspard Mermillod, bispo auxiliar de Lausanne-Genebra. Composto por importantes católicos da Áustria, França, Suíça, Bélgica e Países Baixos, o Comitê desenvolveu duas tarefas importantes: por um lado, a publicação do jornal Correspondance de Genève, que  transmitia informações que vinham secretamente do Vaticano; por outro, o impulso da sociedade católica através de contatos permanentes com comitês católicos europeus e com o Vaticano. A partir de 1871, os membros do Comitê denominaram-se “Internacional cristã ou católica”, e “Internacional Preta” e a “questão social” ocupou uma posição privilegiada entre os temas das suas reuniões anuais. Eles argumentavam que o grande desafio social da Igreja era o combate à pobreza e recomendavam um maior compromisso social do clero, o estabelecimento de associações de trabalhadores cristãos, a organização de conferências populares, a criação de uma imprensa popular e, acima de tudo, “a restauração do direito público cristão”, fundamento social indispensável. Em 1875, o Comitê aprovou o princípio do intervencionismo social do Estado e pediu aos católicos para promover o controle do trabalho de mulheres e crianças, melhorar a habitação dos trabalhadores e preservar o descanso dominical.

Personalidades vinculadas ao Comitê de Genebra ou seus congressos integraram os círculos de estudo e comissões que deram origem à União de Friburgo, presidida por Mermillod, criada em 1885 e ativa até 1891. Sob a influência da Escola vienense e de La Tour du Pin, a União de Friburgo deu forma ao corporativismo organicista que era  frontalmente oposto ao capitalismo liberal. Com laços com o antigo Comitê de Genebra, este laboratório de ideias influenciou, em alguns aspectos, a preparação da encíclica Rerum Novarum e a definição da doutrina social da Igreja, que incluia, também, elementos mais democráticos (LAMBERTS, 2002, p.15-101).

3  A modernidade e a Igreja Católica na América Latina

3.1  Consolidação dos Estados e das Igrejas

Ao complexo início da vida independente dos jovens estados ibero-americanos, seguiu-se o desenvolvimento de dois processos paralelos de concentração de poder. Por um lado, no nível do governo civil, houve a consolidação gradual do poder do Estado nas novas nações. Por outro, as autoridades eclesiásticas reivindicavam a sua autonomia e se aproximaram gradualmente de Roma, o que envolvia a revisão do conceito histórico do padroado régio. Como resultado, se multiplicaram os conflitos em torno dos dois eixos, a diferente interpretação do alcance jurídico do direito de padroado e a concepção também diferente de Igreja, para uns, uma instituição dependente do Estado, para outros, uma sociedade independente e soberana.

Nos confrontos das autoridades eclesiásticas, zelosas de sua autonomia, com as reivindicações dos governos republicanos para serem herdeiros do padroado real, o apoio da Santa Sé foi decisivo. Além disso, a defesa do ultramontanismo e as duras condenações às ideias liberais por parte do papado provocaram a crescente rejeição dos grupos intelectuais, dos líderes políticos e de todos aqueles que interpretavam as posições do Vaticano e das Igrejas locais como um anúncio do afastamento – e até  ruptura – com a modernidade.

Este processo de consolidação das Igrejas católicas locais, em comunhão com o papa, ocorreu através de instrumentos precisos. Além da presença, em algumas cidades, dos legados papais, pode-se mencionar, também,  o trabalho constante para uma melhor formação do clero, através do estabelecimento ou restabelecimento de seminários, muitas vezes sob a direção da Companhia de Jesus, e a formação de sacerdotes em Roma. Neste sentido, em 1858, foi fundado o Colégio Pio Latino-americano, sob responsabilidade dos padres jesuítas, que recebeu seminaristas de todo o continente, futuros bispos e formadores do clero. Também se desenvolveram a imprensa católica, os centros culturais e os centros de ensino católicos, com o objetivo de atingir todos os níveis socioeconômicos. A chegada de numerosas congregações religiosas de vida ativa, dedicadas à educação ou ao trabalho social, vindas da Europa, foi outra contribuição fundamental neste período. Analogamente, seguindo o modelo europeu, se organizaram Congressos Católicos com importante participação do laicato: em Buenos Aires, em 1883, em Montevidéu, em 1889, no México, em 1903. Por fim, os bispos latino-americanos reafirmaram sua lealdade a Roma com a participação no Concílio Vaticano I – 48 dos 700 participantes eram da América Latina – e no Concílio Plenário Latino-americano em 1899 (LYNCH, 2000, p.78-79).

Durante todo este processo, foi determinante o papel dos bispos, que marcaram profundamente as igrejas locais. Uma geração de prelados nomeados pelo Papa Pio IX a partir do final da década de 1840 caracterizou-se por um forte perfil missionário, por sua proximidade com Roma e pelos confrontos com os governos liberais, que muitas vezes culminaram com o exílio. Em 1847, Rafael Valentin Valdivieso foi nomeado arcebispo de Santiago do Chile; em 1852, Silvestre Guevara e Lira foi nomeado arcebispo de Caracas; em 1853, Pedro Espinosa e Davalos assumiu como bispo de Guadalajara (México) e como primeiro arcebispo em 1863; em 1854, Mariano José de Escalada foi nomeado bispo de Buenos Aires e, em 1866, primeiro arcebispo. Todos participaram do Concílio Vaticano I. Sob a liderança de Leão XIII, se consolidou uma nova geração, formada no Colégio Pio-Latino-americano, doutorada na Universidade Gregoriana e mais comprometida com a ação educativa e social da Igreja. Entre eles estavam os participantes do Concílio Plenário Latino-americano: Pedro Rafael González e Calixto, bispo de Ibarra em 1876 e arcebispo de Quito em 1893; Mariano Soler, bispo de Montevidéu em 1881 e primeiro arcebispo em 1897; Jerônimo Tomé da Silva, bispo de Belém do Pará desde 1890 e arcebispo de Salvador em 1893.

Todos representavam, nas palavras de Christopher Clark, o “Novo Catolicismo”, cujo discurso reafirmou a influência “civilizadora” da Igreja Católica ao longo da história ocidental. O cristianismo era sinônimo de civilização e a melhor sociedade possível era a fundada na fé cristã, na prática das virtudes religiosas e na presença docente e orientadora da hierarquia católica.

3.2  Catolicismo social na América Latina

Como na Europa, os círculos católicos conservadores expressaram um forte compromisso com as primeiras manifestações da “questão social”. A formação de círculos de trabalhadores, associações de socorro mútuo e cooperativas foram as primeiras ações do movimento social cristão na América Latina. A partir da década de 1870, foram fundados círculos católicos de trabalhadores em várias cidades latino-americanas. Em 1878, o padre Ramón Angel Jara e Abdon Ruiz Cifuentes promoveram a fundação do primeiro Círculo Católico dos Trabalhadores em Santiago do Chile e o modelo foi replicado em outras cidades do Chile. Também em Santiago, em 1885, foi criada a Associação de Trabalhadores São José, impulsionada pelo padre espanhol  Hilario Fernandez e pelo vigário geral da Arquidiocese de Santiago, Joaquín Larraín Gandarillas. Nesse mesmo ano, nasceu, em Montevidéu, o primeiro Círculo Católico dos Trabalhadores, por iniciativa de um grupo de leigos da Ordem Terceira Franciscana. Na Argentina, o primeiro Círculo dos Trabalhadores foi fundado em Buenos Aires, em fevereiro de 1892, pelo alemão redentorista padre Federico Grote. No México, a primeira União de Círculos Católicos de Trabalhadores, ou União Católica Operária, emergiu do Congresso Católico de 1907. Em todos os casos, os círculos de trabalhadores foram uma das propostas mais notórias para combater as consequências da pobreza e instruir os trabalhadores na doutrina social cristã.

A recepção da encíclica Rerum Novarum de Leão XIII, em maio de 1891, assumiu características diversas nas Igrejas da América Latina, em função tanto do desenvolvimento econômico e social de cada nação, quanto do grau de comprometimento da hierarquia, do clero e do laicato com a “questão social”. Sua implementação se deu primeiro na Argentina, Chile, Uruguai, Brasil e México, e mais tarde na Colômbia e em Cuba. De qualquer forma, prevaleceu o que Gerard Cholvy chamou de “interpretação minimalista” da Rerum Novarum, própria dos católicos conservadores, que consideraram excessivas algumas das propostas da encíclica ou que concluíram que ela não estava dirigida às suas respectivas sociedades. Na Argentina, a imprensa católica divulgou amplamente a encíclica, mas não houve comentários de Mons. Federico Aneiros, arcebispo de Buenos Aires. No Chile, a divulgação do documento foi acompanhada por uma carta pastoral do arcebispo de Santiago, Dom Mariano Casanova, insistindo na ameaça do desenvolvimento do socialismo e do ressentimento entre os grupos sociais. No México, no regime de Porfirio Diaz, a encíclica foi publicada e divulgada em várias regiões pelo clero e organizações católicas; os bispos mantiveram um relacionamento mais conciliador ou ambivalente com o governo. A recepção da encíclica de Leão XIII foi tardia no Uruguai; Mariano Soler, bispo de Montevidéu desde 1890, publicou, seis anos depois, a Carta Pastoral sobre a Igreja e as Questões Sociais e um volumoso ensaio complementar A questão  social ante as teorias racionalistas e o critério católico (SARANYANA, 2001, p.199-255).

4   Complexa relação da Igreja com a modernidade

4.1 As tentativas de reconciliação da Igreja com a modernidade

A partir de meados do século XIX e ao longo do século XX, houve momentos de particular intensidade nas controvérsias, entre os próprios católicos, sobre as relações da Igreja com as liberdades modernas. A ênfase dessas discussões transitou por temas políticos, sociais ou puramente teológicos; seu eixo se situaria no complexo equilíbrio entre o respeito à doutrina e ao magistério da Igreja e a necessidade de diálogo e integração na sociedade em constante mudança.

No início, a crise do catolicismo liberal, tanto na Europa como na América Latina, centrou-se nas novas propostas políticas e nas relações entre a Igreja e o Estado. Ele enfrentou os apoiantes do antigo regime e aqueles que aderiram à, depois denominada, “autonomia do temporal”; ambas posições manifestaram suas fraquezas quando se tornaram extremas (AUBERT, 1977, p.45). Este episódio motivou a primeira manifestação do chamado “catolicismo de conciliação” – um retorno às fontes e com vontade de ajustar-se aos tempos da democracia política, do liberalismo econômico e da liberdade cultural. Seria confrontado com o “catolicismo de rejeição”, que significava a aceitação, por parte de alguns setores da Igreja, de firmes posições defensivas da tradição, mesmo de fechamento (MALLIMACI, 2004, p.27-28). Nesse sentido, a publicação do Syllabus, em 1864, criaria uma confusão acentuada entre as mentes modernas, também “membros” da Igreja.

Nas duas primeiras décadas do século XX, deu-se o segundo momento de polêmica aguda, com a propriamente dita “crise modernista”, de caráter marcadamente intelectual. Seus protagonistas tentaram abrir o diálogo entre a cultura católica e as modernas correntes de pensamento no campo científico, histórico e crítico. As tentativas de relacionar fé e história, de aprofundar e comparar os ensinamentos de Jesus de Nazaré e os ensinamentos da Igreja necessitavam trabalho bem fundamentado e consistente, exigiam guias e mestres; nem sempre o conseguiram. A nova tentativa de “reconciliação” provocou uma nova “rejeição”. Em 1907, a encíclica Pascendi, de Pio X, condenou os trabalhos de exegeses bíblicas como iniciativas anticatólicas e definiu os “modernistas” como “inimigos internos”. As consequências foram complexas: por um lado, consolidou-se a corrente fundamentalista, que passou a resistir à modernização da sociedade e a confrontar as possíveis mudanças dentro da própria Igreja, mesmo através de obras lamentáveis como La Sapinière; por outro lado, deu-se um desenvolvimento constante dos estudos bíblicos e da história das religiões – o Pontifício Instituto Bíblico de Roma, a Escola Bíblica de Jerusalém – com o acompanhamento romano, com a criação da Pontifícia Comissão Bíblica.

Um terceiro momento se manifestou, a partir do final da década de 1940, quando reapareceram o “catolicismo de conciliação” e o “catolicismo de rejeição” com base nas  renovadoras obras teológicas desenvolvidas pelos dominicanos em Le Saulchoir (Etioles-sur – Seine, França) e pelos jesuítas em Fourvière (Lyon, França). Esta Nouvelle Théologie se opôs ao intelectualismo escolástico, aprofundou o estudo dos Padres da Igreja e questionou a distância entre a teologia e a cultura moderna. Também motivou as censuras promovidas pela encíclica Humani Generis, do Papa Pio XII, em 1950, e os expurgos de Fourvière e Le Saulchoir alguns anos mais tarde. Menos de quinze anos mais tarde, vários dos teólogos censurados atuariam como peritos no Concílio Vaticano II. Jean Daniélou, SJ, Yves Congar, O.P., e Henri de Lubac, SJ, seriam nomeados cardeais.

4.2 Concilio Vaticano II e Conferências do Episcopado latino-americano

O processo de reunificação das Igrejas da América Latina recém havia começado, com a reunião da Primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-americanos no Rio de Janeiro, em 1955 – da qual surgiria  o CELAM – quando se iniciaram os trabalhos preparatórios para o Concílio Vaticano II em 1959, impulsionado por João XXIII.

O Concílio Vaticano II representou, de acordo com Alberto Methol Ferré, a primeira superação da modernidade pela Igreja. “Para este aggiornamiento a Igreja tinha de reassumir o conjunto da modernidade, da qual se tinha defendido no processo de decomposição da antiga cristandade medieval e barroca” (METHOL e METALLI, 2006, p.64) Não sem dificuldade, a Igreja teria conseguido, no Vaticano II, responder aos desafios da Reforma protestante e do Iluminismo secularista, assumindo seus desafios e assimilando o melhor de cada um desses processos.

No entanto, o Concílio Vaticano II,  que abriria uma nova era na história da Igreja Católica, foi vivido de forma tênue pelas Igrejas latino-americanas. “As Igrejas da América Latina recriaram o Concílio, uma vez concluído” – diz Methol. De fato, ao final dos anos sessenta, “a lógica do Concílio” entrou na América Latina através da Constituição Apostólica Gaudium et Spes, de dezembro de 1965, da encíclica Populorum Progressio, de março de 1967, e da reunião da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín, em meados de 1968 (METHOL e METALLI, 2006, p. 62).

Três anos após o encerramento do Concílio, realizou-se a Conferência de Medellín, que causou uma mudança sem precedentes nas igrejas e nas sociedades latino-americanas. A partir da revalorização da dimensão humanista, não por isso  menos transcendente, do cristianismo, a Conferência de Medellín contribuiu para o aumento da preocupação com a justiça e para a revalorização do enfoque da política com sentido de serviço. “A preocupação não [foi] a ‘defesa da fé’, como no Rio de Janeiro, mas a radical solidariedade da Igreja com os pobres e oprimidos da América Latina e no sentido bíblico da irrupção do Deus  libertador na história” ( METHOL, 1986).

A Igreja latino-americana atravessou, na década seguinte, um processo de riscos e de valiosas definições. Os resultados da elaboração e reflexão teológica latino-americana se manifestaram na III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Puebla, em 1979. Fortemente inspirada pela Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, a Conferência de Puebla focou no tema da evangelização continental e concluiu com uma reafirmação da necessidade de conversão de toda a Igreja a uma opção preferencial pelos pobres, com vista à sua completa libertação.

4.3 O diálogo necessário com os tempos históricos

Em sua relação com as mudanças dos tempos históricos se manifesta a complexidade das definições eclesiais. A Igreja Católica é certamente una, por sua fé em Jesus Cristo, suas verdades doutrinais e seu seguimento do magistério doutrinal; a Igreja também é diferente porque deve se inserir dentro de circunstâncias históricas e culturais em constante mudança, e deve dialogar com elas.

Nesse sentido, o compromisso com a unidade e com a pluralidade envolve riscos. O olhar que se concentra exclusivamente na unidade poderia levar a atitudes fundamentalistas e à rejeição de toda manifestação de “catolicismo de conciliação”. De outro modo, o olhar que enfatiza somente a diversidade poderia cair em posições relativistas, porque a conciliação nem sempre é possível.

“Dialogar com o mundo exige ser perfeitamente bilíngues, ou seja, levar a revelação de Jesus Cristo na própria carne e conhecer as linguagens contemporâneas dos homens” (POUPARD, 2005, p.26), afirmou o cardeal Poupard, em 2004, convidando a serem fiéis à fé e ao mesmo tempo abertos e inovadores.

Susana Monreal, Universidad Católica de Uruguay. Texto original em espanhol.

5 Referências bibliográficas

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