Sumário
Introdução
1 O Livro do Gênesis
2 O Livro do Êxodo
3 O Livro do Levítico
4 O Livro dos Números
5 O Livro do Deuteronômio
6 Considerações finais
7 Referências bibliográficas
Introdução
O Pentateuco, contendo os primeiros cinco livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), funciona como uma “locomotiva” que, ao invés de puxar, empurra e faz avançar todo o Antigo Testamento. Nesses livros se encontram os fundamentos normativos e pedagógicos da trajetória histórica do antigo Israel, sob a condução de um grande líder e protagonista humano ao lado de Deus: Moisés. Os cristãos, além de herdar o Pentateuco, também herdaram a ideia de “locomotiva” que está presente na dinâmica normativa e pedagógica dos cinco primeiros livros (Mateus, Marcos, Lucas, João e Atos) que empurram e fazem avançar o Novo Testamento sob a condução do verdadeiro Deus e verdadeiro Homem protagonista de toda a História da Salvação: Jesus Cristo.
Os livros do Pentateuco constituem um conjunto que reuniu várias tradições e são tidos, por judeus e cristãos, como a herança que Moisés deixou para todo o povo eleito. Na tradição judaica, os cinco primeiros livros são chamados de Torá (“lei-instrução-ensinamento”). As versões latinas, em particular a Vetus Latina e a Vulgata, adotaram a nomenclatura grega (Pentáteuchos = “cinco rolos” ou “cinco invólucros/estojos”) que passou para as versões modernas das Bíblias em línguas vernáculas. Por isso, esses livros são chamados de Pentateuco na tradição cristã.
A divisão atual em cinco livros, no dizer dos judeus: “cinco quintos da Torá” (hamišā humšê hatōrâ), de onde deriva a tradução grega Pentateuco, é uma divisão muito prática. Os judeus, ao invés de um único rolo de pergaminho, preferiram cinco rolos menores, mais fáceis de serem manuseados, transportados, conservados e reescritos quando se fazia necessário.
Em hebraico, cada uma das cinco partes, ou “rolos”, do primeiro corpus literário da Bíblia, é designada pela primeira palavra importante do seu texto: berēšît (“no princípio”); shemôt (“nomes”); wayyiqrā’ (“e chamou”); bemidbar (“no deserto”); haddebārîm (“as palavras”). Já os judeus, residentes em Alexandria e responsáveis pela tradução grega das Escrituras, designaram esses livros com nomes que, de algum modo, fossem capazes de ajudar a lembrar o conteúdo de cada livro: Génesis (Gênesis), porque trata das origens do mundo, das criaturas, do ser humano e dos antepassados do antigo Israel; Éxodos (Êxodo), porque trata da saída do Egito; Leuitikón (Levítico), porque trata da legislação relativa a tudo que envolve o culto; Arithmoi (Números), porque trata do recenseamento dos filhos de Israel no deserto; Deuteronómion (Deuteronômio), porque trata da “segunda lei” ou da “cópia da lei” (cf. Dt 17,18), que Moisés deu aos filhos de Israel nas planícies de Moab, antes de entrarem na terra prometida, e que completariam as prescrições recebidas no Sinai.
A divisão em cinco quintos não foi casual, mas foi realizada criando pontos de ruptura e de sutura entre o final e o início de cada livro. O gráfico abaixo permite uma visualização mais clara dessa afirmação. Início e final de cada livro se correspondem. A dupla promessa, a da descendência numerosa e a da terra boa e fértil, é um fio condutor importante. As citações não são exaustivas, mas apenas exemplos.
Gênesis | Êxodo | Levítico | Números | Deuteronômio |
Gn 1,1
Gn 3,15 sinal de esperança |
Ex 1,8
Inicia com José |
Lv 1,1
Inicia com a Tenda |
Nm 1,1
Inicia com a Tenda |
Dt 1,1-5
Inicia com Moab |
Promessa da prole numerosa
Gn 1,26-28 Gn 9,1.6-7 Gn 15,5 Gn 16,10 Gn 17,2.20 Gn 22,17 Gn 47,27 Gn 48,4 |
Promessa da prole numerosa
Ex 1,7.10.12.20 Ex 32,13 |
Promessa da prole numerosa
Lv 26,9 |
Promessa da prole numerosa
Nm 26,54 Nm 33,54 Nm 35,8 |
Promessa da prole numerosa
Dt 1,10 Dt 6,3 Dt 7,13 Dt 8,1.13 Dt 11,21 Dt 13,18 Dt 28,63 Dt 30,5.16 |
Terra prometida
Gn 12,7 Gn 15,7.18 Gn 24,7 Gn 26,3 Gn 48,4 Gn 50,24 |
Terra prometida
Ex 3,8.17 Ex 6,4 Ex 13,5.11 Ex 32,13 Ex 33,1.3 |
Terra prometida
Lv 14,34 Lv 18,3 Lv 20,24 Lv 25,24.38 |
Terra prometida
Nm 13,2.17.32 Nm 14,8.23 Nm 15,2 Nm 16,14 Nm 32,11 Nm 34,2 |
Terra prometida
Dt 1,35 Dt 3,18 Dt 9,4 Dt 10,11 Dt 26,9 Dt 34,4 |
Temas centrais:
Origens (criação, queda, restauração) Patriarcas: (Abraão, Isaac e Jacó) |
Temas centrais:
Servidão Libertação Êxodo Marcha Sinai |
Temas centrais:
Sacrifícios Rituais Funções sacerdotais |
Temas centrais:
Recenseamento Marcha pelo deserto: de Cades Barnea às estepes de Moab |
Temas centrais:
No dia da morte de Moisés: discursos e instruções; Bênçãos e Maldições |
Gn 50,26
termina com José |
Ex 40,34-35 termina com a Tenda | Lv 27,34
termina com a Tenda |
Nm 36,13
termina com Moab |
Dt 34,1-12
termina com Moab |
A principal questão disputada e que empenha grande número de estudiosos do Pentateuco se concentra na compreensão do seu difícil processo de formação. Para uma visão mais ampla e aprofundada da problemática (RÖMER – MACCHI – NIHAN: 2010, p.85-143). Resulta útil uma comparação do tópico “Composição literária” na introdução ao Pentateuco da antiga (1973) e da nova (2002) edição da Bíblia de Jerusalém.
Segue-se, apenas, uma breve síntese do problema sobre o processo de formação:
Ponto de partida: 1) hipótese dos Documentos: na base do Pentateuco se percebem duas, três ou mais tramas narrativas contínuas (“fontes” ou “documentos”) que foram redigidas em épocas diferentes e com ideologias diferentes. No final, teriam sido justapostas ou imbricadas umas às outras por redatores sucessivos. 2) hipótese dos Fragmentos: é uma reação à hipótese anterior; supõe que tenha existido, originalmente, um número indeterminado de relatos esparsos e de textos isolados sem alguma continuidade narrativa. Estes teriam sido reunidos ulteriormente por um ou vários redatores-compositores. 3) hipótese dos Complementos: tentativa de conciliar os dois precedentes, admitindo que, inicialmente, houve uma trama narrativa básica e contínua que, ao longo dos séculos, recebeu acréscimos e complementos.
Por quase um século, prevaleceu o modelo dos Documentos-Fontes (J. Wellhausen; G. Von Rad; M. Noth; H. Gunkel). Este explicava a origem do Pentateuco pela fusão de quatro documentos que tiveram origem independente: Javista (“J”) do século X aC, oriundo no reino do sul; Elohista (“E”) do século VIII aC, oriundo no reino do norte; Deuteronomista (“D”) do século VII aC, oriundo no reino do sul; Sacerdotal (“P”) dos séculos VI-V aC, iniciado com exilados na Babilônia e concluído em Jerusalém.
Desde os primórdios, este modelo interpretativo recebeu muitas críticas, e a partir de 1970 foi fortemente abalado, sendo retomado, em grande parte, o modelo dos Fragmentos com uma nova configuração (R. Rendtorff; E. Blum). Segundo esse modelo, a primeira coisa a fazer é abandonar, peremptoriamente, o modelo dos Documentos-Fontes, e retomar os estudos partindo das grandes unidades literárias (Gn 1–11; 12–50; Ex 1–15; 19–24; 16–18 + Nm 11–20; Nm 21–36). O Pentateuco, então, resultaria de trabalho redacional, mas principalmente de duas composições: uma sacerdotal (KP) e uma deuteronomista (KD), ambas pós-exílicas.
Diante do conturbado momento e dos impasses das pesquisas, outros estudiosos (P. Weimar; E. Zenger) têm se voltado para o que restou do modelo dos Documentos-Fontes e do que resultou das novas pesquisas do modelo dos Fragmentos. De certa forma, é uma retomada do modelo dos Complementos, pelo qual se tenta formular uma compreensão do processo de formação do Pentateuco, considerando que é possível admitir uma historiografia pré-exílica no início do século VII aC. (“Obra Jerusalimitana de História”), que foi ampliada por mãos leigas, durante o exílio na Babilônia (“Obra Exílica de História”) e reinterpretada por mãos sacerdotais (“Obra Sacerdotal de História”), imediatamente após o exílio, pelos que regressaram em 520 aC para restaurar o templo de Jerusalém. Finalmente, essas duas obras (ampliadas e reinterpretadas) foram fundidas na segunda metade do século V aC (“Grande Obra pós-exílica de História), resultando numa obra muito ampla e abrangente: de Gênesis a Reis (Eneateuco). Dessa obra, o escriba e sacerdote Esdras separou os cinco primeiros livros e os promulgou como Torá, marcando o surgimento da nova forma religiosa, judaísmo, no momento em que se criava a Província persa de Judá. Com a separação, surgiu um novo bloco de livros: Josué – Reis que recebeu mais tarde a denominação de Profetas anteriores.
No momento, não há um consenso entre os estudiosos e não surgiu um novo modelo capaz de se impor como aconteceu com o modelo dos Documentos-Fontes. O Javista e o Elohista, por exemplo, que eram considerados “fontes” são denominados de tradições. Ultimamente, prefere-se trabalhar apenas com a leitura sincrônica e explicar os textos a partir da sua forma final e canônica. É uma operação válida, mas existem muitas questões diacrônicas que não podem ser ignoradas e exigem a combinação de ambos os procedimentos metodológicos.
1 O livro do Gênesis
Este livro aborda temas universais: trata das origens do mundo, do surgimento do ser humano, do seu pecado e desventuras. Este contexto serviu para introduzir a história dos antepassados de Israel, segundo uma dinâmica familiar, falando da história que se desenvolve com Abraão, Isaac, Jacó e José. Este é o elo entre o final do Gênesis e o início do Êxodo. As “histórias” dos antepassados são ciclos narrativos que, inicialmente, tiveram origem independente e só mais tarde foram unificados, servindo de fundamento para se falar das origens do antigo Israel.
O livro pode ser dividido em dois grandes blocos: Gn 1–11 e Gn 12–50.
Gn 1–11 é, comumente, chamado de “História Primeva”, porque seu conteúdo é universal e retrata os primórdios da humanidade. Estes onze capítulos são narrações amalgamadas, inspiradas nas mitologias mesopotâmicas, nas quais se objetiva fazer uma reflexão e dar uma explicação teológica sobre as origens do ser humano, apoiada em dois pilares: a) Quem é Deus e o seu agir: justo e fiel à sua criação, em particular ao ser humano; b) Quem é o ser humano e o seu agir: infiel na sua relação com Deus e com o seu semelhante. Ao lado disso, figuram as principais instituições humanas (o matrimônio, as línguas, as divisões étnicas, as culturas de subsistência, a elaboração dos metais, o confronto entre o campo e o urbano), e o seu caminho rumo à concretização do seu destino.
A perspectiva universalista presente em toda a narrativa serve de fundamentação para a história do antigo Israel, que, a partir da vocação de Abraão, encontra-se inserida no contexto da história humana universal. Esta, por sua vez, está inserida no relato da criação do mundo, qual ambiente favorável para o surgimento e desenvolvimento da raça humana. O tema principal e dominante de Gn 1–11 é o da origem de todas as coisas pelas mãos de um Deus único que fez, dispôs e mantém a sua criação como previdente e providente. Ao lado do tema principal, a narrativa quer mostrar como o ser humano, pelo pecado dos seus progenitores (cf. Gn 3,1-24), está cada vez mais se distanciando de Deus criador e de seu plano de amor.
O relato do dilúvio (cf. Gn 6,5–9,17), por exemplo, serve para avolumar a condição humana após o pecado, mas segundo dimensões cósmicas que, desde o início, demonstram que apenas Deus pode criar e destruir o mundo. É um modo para denotar o domínio divino e para dizer que o ser humano não tem a última palavra sobre a realidade. A destruição da humanidade no caos de um dilúvio com proporções universais tem a ver com as proporções universais que foram desencadeadas pela desobediência dos progenitores da humanidade. De algum modo, o dilúvio fez a criação voltar à precedente situação das origens, mas permitiu que tudo tivesse um novo início com Noé, a sua família e os animais salvos na arca. Com isso, chega-se à intenção principal: a vocação e a missão de Abraão, pelas quais o antigo Israel surge e se torna um povo.
Gn 11,27–50,26 descreve as origens do antigo Israel, mostrando como Deus criou e elegeu este povo através da realização do seu favor aos antepassados, dando-lhes um novo destino humano com a promessa da descendência numerosa e da terra boa e fértil. Abraão, Isaac, Jacó e José representam quatro gerações que vêm de um novo e justo cepo humano, pois são os descendentes de Set (cf. Gn 4,25-26), o filho que Eva deu à luz para não apenas ocupar o lugar de Abel, mas denotar que o mal não terá a última palavra sobre o bem.
Na segunda parte do livro do Gênesis, encontram-se três ciclos de tradições familiares: Abraão e Sara (cf. Gn 11,27–25,18); Jacó e seus filhos (cf. Gn 25,19–36,43); José e os seus irmãos (cf. Gn 37,1–50,26). A narrativa sobre Isaac não constitui um ciclo em si, mas é o elo forte entre Abraão e Jacó, respectivamente o elo entre as tradições patriarcais de Judá (Abraão) e de Israel (Jacó). Isaac é este elo pelo qual se garantiu da posse da terra, visto que o segundo patriarca nunca deixou a terra de Canaã para morar em uma terra estrangeira.
A reconstrução das etapas que deram origem aos textos autográficos é algo impossível de ser alcançada, devido à ausência de fontes extrabíblicas que coadunem com os relatos bíblicos. É preciso admitir que o livro do Gênesis tenha passado por um longo processo de redação e que grande parte do seu conteúdo situa-se melhor durante o exílio vivido na Babilônia ou, até mesmo, no pós-exílio, durante a dominação persa, quando muitas tradições do antigo Israel alcançaram a sua redação final.
As tradições javista e eloísta, alvo de grandes questionamentos nos últimos trinta anos, podem ser admitidas como reelaborações de poemas épicos, originalmente orais, numa forma de prosa escrita. O redator final, provavelmente sacerdotal, organizou o material em amplos blocos, usando uma fórmula: “estas são as gerações de…” (tôledôt). Essa fórmula introduz o material tradicional e ocorre cinco vezes na história das origens (cf. Gn 2,4; 5,1; 6,9; 10,1; 11,10) e cinco vezes na história dos antepassados do antigo Israel (cf. Gn 11,27; 25,12; 25,19; 36,1.11; 37,2), servindo de pontos de ligação e guia geral das narrativas que compõem os dois blocos que formam o livro do Gênesis.
2 O livro do Êxodo
Este livro tem o seu foco principal na saída dos filhos de Israel da terra do Egito e na sua marcha pelo deserto até chegar ao monte Sinai, no qual Deus selou uma aliança com o povo liberto, tornando-o a sua propriedade peculiar (cf. Ex 19,5).
Estes três momentos centrais do livro do Êxodo constituem a base em torno da qual os outros livros do Pentateuco se relacionam. Assim, as histórias primitiva (Gn 1–11) e patriarcal (Gn 12–50) servem de premissas para justificar: a entrada e a saída do Egito dos filhos de Israel (Ex 1,1–15,21), a marcha deles pelo deserto (Ex 15,22–18,27), a chegada e a permanência deles no Sinai (Ex 19,1–Nm 10,10); também servem para mostrar que os libertos, recebendo as leis e os preceitos divinos, se tornaram a propriedade particular de Deus (Levítico). Livres e com uma legislação justa, os filhos de Israel retomam a marcha pelo deserto para, chegando às estepes de Moab e após conquistar os territórios da Transjordânia, entrar e conquistar a terra de Canaã (Nm 10,11–Dt 34). Com isso, mostra-se a continuidade entre os temas da promessa e da realização da descendência numerosa com o tema do dom da terra.
O livro do Êxodo, como o livro do Gênesis, também pode ser dividido em dois blocos, que giram em torno de dois eixos: narrativo e legislativo. 1) Ex 1,1–15,21: opressão dos filhos de Israel, vocação, missão de Moisés e libertação do Egito; 2) Ex 15,22–40,38: marcha pelo deserto, chegada e permanência no monte Sinai, e diversas prescrições sobre a tenda-santuário e os ministros do culto.
A saída do Egito é o marco inicial e constitutivo do antigo Israel como povo da aliança. A libertação do Egito é o fundamento da fé desse povo, porque por ela experimentou e passou a conhecer Deus como libertador e forte aliado frente a todas as formas de opressão. A libertação foi narrada como maravilhosa, evidenciando que o Deus que liberta é o mesmo que domina toda a criação.
A experiência da libertação lançou as bases para a religião de Israel. Essa é fruto da ação de Deus e nasce do evento narrado como êxodo do Egito. Assim, a aliança que acontece no sopé do Sinai adquire forma institucional. Nela se baseia a ética dos libertos, tanto na esfera social como cultual. Israel, experimentando e se reconhecendo como povo resgatado, passou a ter as condições necessárias para colocar em prática a promessa feita a Abrão (cf. Gn 12,1-3).
O livro do Êxodo, pelo exemplo e testemunho salvífico que contém, se torna um critério capaz de compreender a salvação não como um conceito, mas como uma proposta de vida do ser humano com Deus. A aliança do Sinai expressa um novo sentido para as relações de comunhão que devem existir entre Deus e a comunidade dos libertos.
A experiência de fé que, segundo Gn-Ex, aconteceu com os antepassados (Adão, Noé, Abraão, Isaac, Jacó e José) e com Moisés, motivou a nova experiência libertadora e lançou as bases para as subsequentes experiências narradas nos livros posteriores, em torno de Josué, Samuel, Davi, Ezequias, Josué e o novo Israel, que renasceu do exílio na Babilônia e assumiu uma nova configuração religiosa com o judaísmo.
O segundo livro do Pentateuco é fruto tanto da composição a partir de diversas tradições sobre a saída do Egito e o tempo do deserto, como, em particular, da reflexão sobre a experiência vivida no exílio na Babilônia. Por isso, a redação final pode ser colocada entre os séculos VI-V aC.
3 O livro do Levítico
Este livro refere-se ao culto a ser realizado pela tribo de Levi, escolhida para os serviços da tenda-santuário que foi armada por ordem de Deus, que dela tomou posse (cf. Ex 40,34-38) passando a habitar no meio do seu povo. A posição literária no corpus do Pentateuco pode ser considerada estratégica, pois está exatamente no centro, que, por sua vez, tem o seu epicentro na Lei da Santidade. Esta posição insere-se na dinâmica do povo que de Ex 19,1 a Nm 10,10 permaneceu no Sinai, recebendo as condições necessárias de uma vida com Deus, antes de retomar a marcha pelo deserto, a fim de entrar e conquistar a terra prometida.
O livro contém basicamente material de índole legislativa, com algumas partes narrativas (cf. Lv 8–9; 10,1-5; 24,10-14.23). A vida cotidiana é o berço das leis que regulamentam a vida social, política, religiosa e cultural do antigo Israel em formação para tomar posse da terra de Canaã. Neste sentido, ao entrar e tomar posse da terra, o antigo Israel já se encontraria orientado por normas, estatutos, decretos e leis que dele fariam um povo particular dentre os demais povos (cf. Dt 4,35-40). Uma formação normativa advinda no deserto servia para garantir a permanência do povo na terra após a sua conquista e instalação.
O livro pode ser dividido em cinco partes, considerando a natureza dos textos: 1) Prescrições sobre os sacrifícios (Lv 1−7): elenco dos diversos tipos de sacrifícios que agradam a Deus e são executados pelos ministros autorizados; 2) Investidura dos sacerdotes (Lv 8−10): normas sobre o ofício dos que descendem de Levi a partir de Aarão e de seus filhos. Esses são os que tornam possível o acesso de todo o povo a Deus através do culto; 3) Prescrições sobre o puro e o impuro (Lv 11−16): elenco de animais, pessoas e situações que podem comprometer a pureza da comunidade de fé. Se essa é comprometida, a solução é um ritual de expiação que acontece uma vez por ano e concede a todo o povo o perdão e a reconciliação com Deus; 4) “Código” da Santidade (Lv 17−26): sublinha o aspecto positivo das coisas e das pessoas ligadas ao culto. Tudo deve ser santo como Deus é santo; 5) Apêndice ao “Código” da Santidade (Lv 27): tudo que pode ser oferecido, pessoas e bens, pode ser consagrado por um voto, mas só pode ser retomado, quando possível, pelo valor estipulado. Apenas o que fora votado ao anátema não podia ser resgatado. A dinâmica que anima estas cinco partes é bem clara: o Deus Santo só pode ser devidamente cultuado por um povo que lhe corresponda em santidade (cf. Lv 19,2).
Do ponto de vista da formação do livro, nota-se que nele estão contidas muitas leis antigas e recentes. As leis mais antigas podem derivar de um período no qual o antigo Israel ainda não possuía um culto e um templo únicos. Elas foram se consolidando e recebendo atualizações nos santuários locais, até que as mais recentes fossem incluídas pelo grupo proveniente da diáspora, que regressou para Judá durante o período persa com a finalidade de reconstruir a cidade de Jerusalém e nela retomar o culto sacrifical.
Assim, o material que no livro aparece como derivado da ação mediadora de Moisés faz parte, essencialmente, da tradição Sacerdotal que remonta ao seu fundador. A grande pretensão desse livro é predispor o povo para receber a presença de seu Deus em um ambiente de certa forma caracterizado pela sua ausência (Jerusalém destruída pelos babilônios). Como um manual, o livro do Levítico autentica a existência e regulamenta a prática do ofício sacerdotal. Responsáveis pela santidade do culto ao Deus único e Santo, os sacerdotes protagonizam os atos que realizam a santidade do povo.
4 O livro dos Números
Este livro completa algumas leis que não entraram nos dois livros precedentes e descreve alguns fatos que se deram na segunda etapa da peregrinação do povo pelo deserto. Dessa forma, o período do Sinai e o período do deserto se tornaram os momentos singulares para a recepção da legislação do antigo Israel. Apesar disso, não se encontra no livro dos Números uma lógica coerente e clara como nos livros do Gênesis e do Êxodo.
Moisés, que já havia mediado a aliança e feito erguer a tenda-santuário, recebeu a ordem de contar os homens aptos para a guerra, para, então, fazer o povo deixar o monte Sinai, retomar a caminhada e prosseguir na direção da terra prometida. Assim foi feito, mas pela falta de confiança em Deus a geração que deixou o Egito não entrou na terra e, ao longo de quase quarenta anos, o povo teve que vaguear e enfrentou diversos tipos de dificuldades antes de começar a conquistar os territórios da Transjordânia, tomando posse da terra de Seon, rei dos amorreus, e de Og, rei de Basã (cf. Nm 21,33-35; 32).
Nota-se que o livro dos Números contém elementos narrativos e legislativos. O conteúdo pode ser apresentado em duas partes: 1) Israel se prepara para deixar o Sinai e seguir na direção da terra prometida (cf. Nm 1,1–10,10); 2) A marcha do Sinai até o Jordão (cf. Nm 10,11–36,13). Esta segunda parte, porém, pode ser subdivida em duas etapas. Na primeira, Israel chega diante da terra prometida, explora o território, mas não toma posse. Por isso, deve vaguear pelo deserto (cf. Nm 10,11–21,20). Na segunda, Israel começa a conquista dos territórios da Transjordânia na terra de Moab (cf. Nm 22,21–36,13).
No conjunto deste livro há muitas revoltas mencionadas, o que deu ocasião para qualificar Moisés ainda mais, que aparece no seu importante papel de mediador e é apresentado como o mais humilde dos homens (cf. Nm 12,3). Devido às grandes resistências que sofreu, foi reconhecido como profeta e homem de Deus (cf. Nm 12,6-8), servo íntegro na sua fé em Deus (cf. Nm 10,29-32) e no seu amor para com o povo (cf. Nm 11,2.10-15; 21,7). Sobressai, então, o seu papel como intercessor em favor do povo, apesar dos seus pecados (cf. Nm 11,27-29; 12). Apesar disso, o livro não oculta as fraquezas de Moisés: recusa-se a interceder diante de uma rebelião de um grupo de levitas (cf. Nm 16,15); titubeia na hora de executar uma ordem de Deus (cf. Nm 20,10-12) e fica abatido pelo peso da missão (cf. Nm 11,11-15).
Um elemento central no livro dos Números é o fator transição: a antiga geração, que deixou o Egito, morreu no deserto (Nm 1,1–21,9) para que desse lugar à nova geração que tomou posse da terra prometida (Nm 26,1–36,13). Apenas Josué e Caleb, com suas famílias, foram preservados pela fidelidade à ordem dada para conquistar a terra (cf. Nm 14,6-9). Entre essas duas gerações encontra-se o curioso ciclo de Balaão, que serviu para mostrar a total e livre disposição de Deus ao eleger e abençoar Israel (cf. Nm 22,2–24,25). Outra transição importante é a geográfica: do Sinai, pelo deserto, às estepes de Moab. As primeiras conquistas lançaram as bases para os futuros acontecimentos, depois da travessia do Jordão.
O livro dos Números não é homogêneo quanto ao material usado na sua elaboração. As “fontes históricas” que serviram de base para a formação deste livro possuem por certo um desenvolvimento longo e complexo. É plausível que o livro tenha adquirido a sua forma final entre os séculos VI-V aC, respectivamente durante ou após o exílio babilônico. É possível pensar que “a mão final do livro” percebeu que a vida do povo durante a diáspora-exílio na Babilônia possuía uma analogia estreita com o período em que o povo eleito vagou pelo deserto. Assim, as antigas tradições sobre o tempo em que o povo viveu no deserto foram reinterpretadas segundo uma nova ótica e um novo contexto literário. Parte do material é de tradição sacerdotal, facilmente identificável pelo estilo, vocabulário e interesses (legislativo). Parte do material não provém de círculos sacerdotais, principalmente as partes narrativas (Nm 11–25; 33). Disso resultam as tensões presentes no livro. Muito provavelmente, porém, a versão final ficou nas mãos dos círculos sacerdotais e teria sido o último livro do Pentateuco a chegar à sua forma final e canônica, durante o período persa, no final do século V aC.
6 O livro do Deuteronômio
O último livro do Pentateuco inicia com a voz do narrador que, por sua vez, já está do outro lado do Jordão, isto é, do lado da terra prometida (Cisjordânia). Por conseguinte, o que narra olha para o outro lado do Jordão (Transjordânia), onde esteve o povo e seu líder, nas planícies de Moab, diante de Jericó (Dt 1,1.5; Dt 34,1). A totalidade do livro, porém, aparece como sendo um longo discurso de Moisés que se dá, inclusive, no mesmo dia da sua morte na terra de Moab, após ter contemplado toda a terra que Deus dispôs dar para o seu povo (cf. Dt 34,1-12). Assim, o livro foi concebido como o testamento que Moisés, antes de morrer, deixou ao seu povo que estava prestes a entrar e tomar posse da terra prometida. Neste testamento está a exigência da fidelidade, sem a qual o povo não permanecerá na terra. Tudo o que Moisés fez e ensinou deve ser colocado em prática, para que se prolongue a vida na terra prometida.
O livro pode ser dividido em introdução, três discursos de Moisés, a bênção dele sobre o povo e a conclusão, na qual se narra a morte de Moisés e se anuncia Josué como seu sucessor na condução do povo. A introdução, que se liga ao final do livro dos Números pelo fato dos filhos de Israel estarem acampados nas estepes de Moab, orienta todo o conteúdo ao dizer: “estas são as palavras que Moisés dirigiu a todo o Israel” (Dt 1,1-5). Os três discursos são iniciados por uma fórmula que lembra a usada na introdução: “estas são as palavras”, abrindo o primeiro discurso (Dt 1,6–4,40); “esta é a Torá”, abrindo o segundo discurso (Dt 4,41-49; 5,1–28,68); “estas são as palavras da aliança”, abrindo o terceiro discurso (Dt 28,69–32,52). Segue-se a bênção, introduzida pela frase “esta é a bênção” (Dt 33) e o livro termina com a narrativa da morte de Moisés (Dt 34). O livro, aberto com as palavras de Moisés a todo o Israel, termina com todo o povo pranteando a morte do seu incomparável líder.
No livro do Deuteronômio, importantes temas teológicos se destacam: a saída do Egito, a aliança de Deus com o povo e a gratuita eleição deste; o dom da terra; o dom da lei; a centralidade do lugar único de culto. Transparece que o livro, no seu conjunto, é uma síntese teológica dos principais fatos que foram assumidos das tradições e se encontram narrados de Gênesis a Números. As várias referências aos patriarcas e à saída do Egito permitem que o tecido da narrativa prossiga na direção do grande objetivo: entrar e tomar posse da terra prometida. O conteúdo dos discursos de Moisés visa alertar os filhos de Israel sobre as seduções que encontrarão diante de si depois que entrar e tomar posse da terra. Por isso, o tom dos discursos é exortativo. É dito o que se deve fazer e o que se deve evitar. A lei-instrução de Moisés é o parâmetro.
Um marco formal característico no livro encontra-se na alternância entre os destinatários das exortações de Moisés, ora apresentados pela segunda pessoa do singular “tu”, ora na segunda pessoa do plural “vós”. Apesar de Moisés protagonizar a fala na primeira pessoa, há, também, interrupções que falam de Moisés na terceira pessoa (cf. Dt 4,41–5,1a; 27,1a; 28,69; 29,1). O forte fundo mosaico está presente tanto nos discursos como no “Código Deuteronômico” (cf. Dt 12–26*). Entretanto, a origem do livro não remonta à época de Moisés e a sua forma final precisa ser colocada em um período mais tardio, pelo século V aC. Admite-se que o livro tenha passado, provavelmente, por três etapas: pré-exílica, exílica e pós-exílica. Nessas três etapas, contribuíram diferentes mãos: profética, sacerdotal e sábios da corte.
7 Considerações finais
O Pentateuco é considerado a constituição do antigo Israel em forma de história da salvação. O que aconteceu em relação ao antigo Israel, do ponto de vista da narrativa, é obra divina. A criação do mundo é o seu ponto de partida e a conquista da terra prometida é o seu ponto de chegada. Este itinerário é um percurso modelar da fé que vai da expulsão do paraíso à entrada no fértil Egito (Gênesis), e da saída deste, sob a condução de Moisés pelo deserto, até entrar na terra boa e fértil, terra em que correm leite e mel (Êxodo–Deuteronômio). Em meio à trama narrativa, uma extensa e diversificada legislação aparece distribuída em longos trechos dos livros do Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
Os livros que formam o Pentateuco evidenciam e traçam, para o ouvinte-leitor, uma história continuada, que vai das origens do mundo e dos antepassados de Israel – Abraão, Isaac, Jacó e José – até a morte de Moisés diante da terra prometida. Esta trajetória pode ser memorizada através das principais etapas: história das origens do mundo, do homem, do pecado; história dos patriarcas (Gênesis); escravidão e êxodo do Egito; marcha pelo deserto até o Sinai; aliança no Sinai; pecado de idolatria na confecção do bezerro de ouro; renovação da Aliança; determinação e normas para erguer a tenda-santuário; legislação sobre a conduta do povo e regras sobre o puro e o impuro; recenseamento do povo; retomada da marcha pelo deserto; bênção ao povo pela boca de Balaão; conquista dos territórios da Transjordânia (Êxodo–Números); recapitulação da história para firmar o povo na liberdade que recebeu como dom de Deus; diante de si, o povo tem a possibilidade de receber as bênçãos, pela obediência, e as maldições, pela desobediência (Deuteronômio).
Estas etapas se encontram em forma de sínteses em Js 24,1-10 e bem completa em Ne 9,5-23. Também em diversos Salmos de índole histórica as etapas são lembradas. Tudo isso para que o povo sempre se recordasse de cantar as maravilhas que Deus operou em seu favor (Sl 78 [77]; 105 [104]; 106 [105]; 135 [134]; 136 [135]).
Portanto, o Pentateuco atesta o dom gratuito de Deus, pela forma como conduz os eventos salvíficos a favor do seu povo, principalmente pela sua ação libertadora do Egito, pela celebração da aliança do Sinai, pela manifestação da sua misericórdia ao perdoar a grave falta do povo que elegeu um bezerro de ouro como seu Deus (cf. Ex 34,1-9) e, finalmente, por introduzir o povo na terra prometida. Nessa dinâmica histórica, o Pentateuco mostra que Deus, após eleger Abraão e ter permitido que Jacó se transferisse para o Egito, não esqueceu e muito menos deixou os descendentes dos patriarcas em terra estrangeira. A razão aparece nas alusões às promessas feitas. A libertação foi forçada porque houve opressão desmedida e cruel, ao lado da intransigente resistência do faraó que levou o seu povo e o seu país ao caos. Com isso, evidencia-se a grande característica de Deus: é fiel à sua palavra. Este é o fundamento da fé e o critério da verdade salvífica que o Pentateuco quer transmitir. O ser humano não só pode como deve confiar a sua vida nas mãos do Deus que cria, liberta e mantém a vida no deserto, onde ela não poderia existir e muito menos prosperar. É o que o Pentateuco testemunha e transmite em forma de lei e instrução.
Leonardo Agostini, PUC Rio – Original português
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