Concílio Ecumênico Vaticano II

Sumário

1 Antecedentes históricos do Concílio Vaticano II

1.1 Concílio Vaticano I

1.2 Movimentos anteriores ao Concílio Vaticano II

1.3 Reformas dos papas Pio X e Pio XI

1.4 Reformas do papa Pio XII

2 O papa João XXIII

3 Preparação do Concílio Vaticano II

4 A novidade do Concílio Vaticano II

5 Documentos do Concílio Vaticano II

6 As quatro constituições do Concílio Vaticano II

6.1 Sacrosanctum Concilium

6.2 Lumen gentium

6.3 Dei Verbum

6.4 Gaudium et spes

7 Os nove decretos do Concílio Vaticano II

8 As três declarações do Concílio Vaticano II

9 O episcopado latino-americano no Concílio Vaticano II

10 Atualidade e recepção do Concílio Vaticano II

11 Referências bibliográficas

1 Antecedentes históricos do Concílio Vaticano II

1.1 Concílio Vaticano I

O Concílio Vaticano I (1869-1870) passou à história como um “concílio inacabado”. Em razão de circunstâncias que lhes foram impostas pelo momento histórico-político na Europa de então, os padres conciliares não puderam concluir satisfatoriamente a agenda proposta nesse concílio do século XIX. Em razão da guerra franco-prussiana, e mais precisamente da invasão de Roma pelas tropas italianas no dia 20 de setembro de 1870, o Papa Pio IX, no dia 20 de outubro do mesmo ano, suspendeu as atividades do Concílio sine die. Desta forma, restou aos papas posteriores a Pio IX a tarefa de retomar e concluir os trabalhos do Concílio Vaticano I, o que normalmente deveria ser feito através da convocação de uma nova assembleia conciliar.

1.2 Movimentos anteriores ao Concílio Vaticano II

Nos tempos anteriores ao Vaticano II, em mosteiros beneditinos europeus, deram-se os primeiros passos na direção da reforma da liturgia, uma vez que monges cultivavam o estudo das fontes da liturgia e o faziam mediante a leitura assídua dos Padres da Igreja. Tal movimento fez com que a liturgia deixasse de ser entendida como mero centro da piedade cristã individualista e fosse compreendida como dinâmica de renovação espiritual da sociedade como um todo. Iniciativas de Dom Prosper Guéranger (1805-1875), já no século XIX, abriram portas para tal rejuvenescimento da vida litúrgica, antes nos mosteiros e, em seguida, nas comunidades católicas, enquanto que Dom Lambert Beauduin (1873-1960) iniciou o movimento litúrgico propriamente dito. Digna de nota foi também a influência exercida pelo jesuíta austríaco Josef Andreas Jungmann (1889-1975), que em 1948 publicou, em dois volumes, uma importante história da missa segundo o rito romano, Missarum Solemnia.

Já no campo da reflexão teológica, emergiram esforços no sentido de renovar o modo de se fazer teologia. Teólogos como Johann Adam Möhler (1796-1838), da Escola de Tübingen, e Matthias Scheeben (1835-1888), de Colônia, foram pioneiros na articulação entre eclesiologia e liturgia. Além disso, mencione-se a Nouvelle théologie (Nova teologia), nascida da França, e que propunha a substituição da teologia escolástica por uma síntese teológica que respondesse mais adequadamente às legítimas necessidades e aspirações humanas. A Nouvelle théologie defendia a articulação entre Bíblia, liturgia e Padres da Igreja. Ora, estas novas impostações teológicas foram decisivas enquanto reação à teologia segundo a qual se elaboraram os primeiros esquemas preparatórios a serem entregues aos padres conciliares, teologia esta marcada pela mentalidade curial e pela incapacidade de se abrir às questões que a história e a sociedade de então propunham à Igreja. Nesses textos provisórios, percebiam-se ranços da linguagem da Contrarreforma e do combate ao modernismo. Neste horizonte de renovação teológica, foi notável a contribuição que diversos teólogos deram aos padres conciliares através de conferências realizadas em diversos lugares de Roma, levando-os a se abrirem a novas perspectivas teológicas e a se sensibilizarem em face dos “sinais dos tempos” que vinham da sociedade como um todo.

Não se pode olvidar a influência do movimento ecumênico sobre o Concílio Vaticano II. Nascido em âmbito protestante, o movimento ecumênico acabou por motivar líderes e teólogos católicos a trabalharem, cada qual em sua competência, na direção da busca da unidade visível dos cristãos. À guisa de exemplo, recorde-se a obra do teólogo dominicano francês, Yves Congar, Vraie et fausse réforme dans l’Église (Verdadeira e falsa reforma na Igreja), publicada em 1950.

As décadas anteriores ao Concílio foram marcadas ainda pelo resgate do estudo dos Padres da Igreja. Digno de menção neste particular foi o empreendimento de Jacques-Paul Migne, cujo esforço de editar os textos patrísticos de tradição latina, bem como aqueles de tradição grega com a tradução ao latim, tornou tais escritos acessíveis a estudiosos que não mais deveriam recorrer a edições esparsas dos textos dos Padres da Igreja. Posteriormente, por volta do ano 1952, surgiu na França a coleção Sources Chrétiennes (Fontes Cristãs), sob a responsabilidade dos teólogos jesuítas Jean Daniélou e Henri de Lubac, que editava textos patrísticos com a tradução ao francês. Desnecessário dizer o quanto a revisitação dos Padres da Igreja foi enriquecedora para a renovação da teologia nas décadas anteriores ao Concílio.

Para o sucesso do Concílio Vaticano II, foi também decisiva a contribuição do movimento bíblico, o qual ensejou a adoção, em campo católico, de uma hermenêutica bíblica que se distanciava de uma leitura fundamentalista da Sagrada Escritura. Tal avanço significou a superação de uma interpretação moralista dos escritos sacros, mormente nas pregações, bem como o uso da Escritura na apologética, em face dos protestantes, por exemplo. O movimento bíblico ensejou ainda a superação de certa concepção mecânica de inspiração bíblica, como se os textos da Escritura fossem pura e simplesmente a transcrição, feita pelo hagiógrafo, de um ditado do Espírito Santo. De singular importância para que se respirassem novos ares em termos de leitura da Bíblia na Igreja católica romana foi a publicação da carta encíclica Divino afflante Spiritu, do papa Pio XII, que abriu portas aos biblistas católicos para que eles se dedicassem a estudos bíblicos fazendo uso de recursos interpretativos modernos, tais como a crítica das formas, o método histórico-crítico, a história das civilizações que circundavam o povo judeu, a arqueologia, os resultados dos estudos sobre a linguagem e a hermenêutica.

1.3. Reformas dos papas Pio X e Pio XI

Devem ser reconhecidas algumas iniciativas de reforma da da Igreja católica romana, imediatamente anteriores ao Vaticano II, assumidas por papas do século XX. Tais medidas contribuíram para amadurecer a decisão de se convocar um novo concílio. Citemos alguns poucos exemplos. Visando promover a participação dos fiéis na liturgia, o papa Pio X (1903-1914) determinou a utilização do canto gregoriano nas paróquias, através do motu proprio Inter Sollicitudines sobre a música sacra, de 1903, bem como incentivou a recepção frequente da eucaristia. E por seu turno, o papa Pio XI (1922-1939) incentivou a participação dos leigos na vida de Igreja, em sintonia com a hierarquia, nos tempos da então influente “Ação Católica”.

1.4 Reformas do papa Pio XII

O papa Pio XII (1939-1958) também promoveu reformas significativas para a vida da Igreja, das quais mencionemos apenas alguns exemplos. No que concerne aos estudos da Escritura Sagrada, o papa Pacelli concedeu liberdade para a pesquisa bíblica, com os consequentes ganhos da utilização do método histórico-crítico na exegese através da já mencionada carta encíclica Divino afflante Spiritu (cf. PIO XII, 1943). Com relação à liturgia, citem-se a publicação da encíclica Mediator Dei, em 1947, e a promulgação, em 1955, da Semana Santa restaurada (cf. SAGRADA CONGREGAÇÃO DOS RITOS, 1955), de modo particular, a reestruturação do Tríduo pascal, com ganhos substanciais em termos de enriquecimento da experiência litúrgica do Povo de Deus. Em todo o caso, a convocação de um concílio, mesmo que fosse para tão somente concluir o Vaticano I, veio a dar-se com o sucessor de Pio XII: o papa João XXIII (1958-1963).

2 O Papa João XXIII

Angelo Giuseppe Roncalli foi eleito papa no dia 28 de outubro de 1958, aos 76 anos de idade. Antes de ter sido escolhido como sucessor de Pedro, havia atuado por 27 anos no serviço diplomático da Santa Sé, tanto no Oriente como no Ocidente, iniciado na Bulgária em 1925. Ademais, por seis anos havia exercido o ministério pastoral como Patriarca de Veneza. Seu lema episcopal dizia Obediência e Paz. O papa Roncalli tornou pública sua intenção de convocar o Concílio Vaticano II no dia 25 de janeiro de 1959, transcorridos apenas noventa dias de sua eleição como bispo de Roma! João XXIII inaugurou solenemente os trabalhos conciliares no dia 11 de outubro de 1962 com o discurso Gaudet Mater Ecclesia, proferido diante de mais de 2.800 bispos, além de abades e superiores gerais de ordens religiosas masculinas, procedentes de 116 países. Nesse discurso, João XXIII advertiu que o Vaticano II não proporia novas doutrinas, mas apresentaria o mesmo e imutável conteúdo da fé cristã através de uma linguagem acessível aos homens e mulheres do século XX. E mais, Roncalli enfatizou a orientação pastoral do Concílio e reafirmou que, frente aos erros, a Igreja “prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade” (JOÃO XXIII, 1962, 7,2). Como dirá o papa Paulo VI (1963-1978), pouco mais de três anos depois, à véspera da solene conclusão do Concílio: “A antiga história do Samaritano foi o paradigma da espiritualidade do Concílio” (Vian, 2006, p.156).

3 Preparação do Concílio Vaticano II

De acordo com o Ordo Concilii, regulamento promulgado por João XXIII no dia 6 de agosto de 1962 e que dava indicações para a organização dos trabalhos conciliares, foi constituída uma Comissão Preparatória Central, bem como dez comissões temáticas, com a tarefa de preparar textos que seriam submetidos à apreciação dos bispos uma vez reunidos no Vaticano.

4 A novidade do Concílio Vaticano II

No Concílio Vaticano II (1962-1965), o 21º da história da Igreja e, quem sabe, a maior assembleia da história da humanidade, a Igreja adotou postura totalmente diversa daquelas assumidas nos concílios passados, de Niceia até o Vaticano I. Pode-se falar de um estilo totalmente original. Desta feita, a Igreja não empregará a linguagem condenatória peculiar aos concílios anteriores, sinalizadora de intransigência da Igreja em face de grupos cismáticos e/ou heréticos, ou diante daqueles que, fora dela, lhe faziam oposição. Com efeito,

o Vaticano II modificou tão radicalmente o modelo legislativo e judicial que havia prevalecido desde o primeiro concílio de Niceia […] a ponto de virtualmente abandoná-lo. Em seu lugar, o Vaticano II instaurou um modelo amplamente baseado no convencimento e no convite. (O’Malley, 2012, p.28)

No tocante ao problema da divisão entre os cristãos, a Igreja católica romana passará a participar decididamente do movimento ecumênico, e diante do mundo, ela assumirá uma atitude de diálogo, abertura e compreensão (cf. Gaudium et spes). Enquanto evento extremamente original, o Vaticano II introduziu algo de novo na tradição conciliar: buscar a correção de alguns desvios no modo de a Igreja atuar no mundo sem assumir uma atitude defensiva e combativa. Tratou-se, com certeza, de um “concílio de transição de época”, na expressão de Giuseppe Alberigo, autorizado historiador do Vaticano II (cf. Alberigo, 2005, p.26 e 40).

5 Documentos do Concílio Vaticano II

O magistério do Concílio Vaticano II encontra-se consignado em dezesseis documentos: quatro constituições (Sacrosanctum concilium, Lumen gentium, Dei verbum e Gaudium et spes), nove decretos (Unitatis redintegratio, Orientalium ecclesiarum, Ad gentes, Christus dominus, Presbyterorum ordinis, Perfectae caritatis, Optatam totius, Apostolicam actuositatem e Inter mirifica) e três declarações (Gravissimum educationis, Dignitatis humanae e Nostra aetate).

6 As quatro constituições do Concílio Vaticano II

6.1 Sacrosanctum Concilium

A constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a sagrada liturgia, foi o primeiro documento conciliar a ser promulgado pelo Papa Paulo VI, a 4 de dezembro de 1963. Texto que menos dificuldades trouxe à assembleia conciliar, propõe a reforma litúrgica em vista do bem de toda a Igreja. O proêmio da constituição já traz uma série de motivos pelos quais se faz necessária “a reforma e o incremento da liturgia” (cf. SC 1; 3,1), o que deve ser feito em fidelidade à Tradição (cf. SC 4). A reforma litúrgica proposta pelo Vaticano II, portanto, nada teve de busca da novidade pela novidade, mas consistiu em recuperar, no bimilenar patrimônio litúrgico da Igreja, uma série de valores que foram esquecidos ao longo de sua história. Desta forma, tal reforma litúrgica materializou-se como resgate da centralidade do mistério pascal de Cristo, Senhor e Esposo da Igreja.

Os parágrafos de 5 a 8 da constituição apresentam o mistério de Cristo no amplo horizonte da história da salvação. Assim sendo,

para realizar a obra da redenção, Cristo está sempre presente na sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas. Presente ele está no sacrifício da missa, quer na pessoa do ministro, quer, sobretudo, sob as espécies eucarísticas. Ele está presente com o seu dinamismo nos Sacramentos, de modo que, quando alguém batiza, é o próprio Cristo que batiza. Ele está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Enfim, ele está presente quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles” (Mt 18,20). (SC 7,1)

Na grande obra da redenção, “Cristo associa sempre a si a Igreja, sua esposa muito amada, a qual invoca o seu Senhor e por meio dele rende culto ao Eterno Pai” (SC 7,2). Com tais palavras, o Concílio evidencia que a liturgia não é uma ação qualquer da Igreja, mas “é considerada como o exercício da função sacerdotal de Cristo” (SC 7,3); portanto, “por ser obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja, é ação sagrada por excelência” (SC 7,4).

Digna de nota é a dimensão escatológica da liturgia. Ela não é uma ação circunscrita às realidades deste mundo, mas tem a faculdade de impulsionar a Igreja em busca de sua realização na plena comunhão com o seu Senhor e Esposo. Assim explica o Concílio:

pela Liturgia terrena participamos, já a saboreando, na Liturgia celeste celebrada na cidade santa Jerusalém, para a qual, como peregrinos, nos dirigimos e onde Cristo está sentado à direita de Deus, ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo (SC 8).

Portanto, o Concílio apresenta a liturgia como dinâmica eclesial vivida, sim, neste mundo, mas que permanentemente anima a Igreja “a aguardar o Salvador, nosso Senhor Jesus Cristo, até que apareça como nossa vida e nós apareçamos com ele na glória” (cf. ibid.). E mais: segundo o Concílio, a veneração dos santos insere-se neste horizonte escatológico (cf. ibid.). Assim, o Vaticano II pretende fazer ver ao Povo de Deus, no conjunto da vida litúrgica da Igreja, a justa medida da devoção aos santos, a ser praticada com a devida moderação, uma vez que Jesus Cristo, modelo e referência última da vida cristã, é o único mediador entre os homens e Deus Pai.

Buscando salvaguardar o compromisso querigmático da Igreja, a constituição Sacrosanctum Concilium afirma que “a sagrada Liturgia não esgota toda a ação da Igreja” (SC 9,1). Ou seja, o fato de se reconhecer o caráter sagrado da liturgia não pode levar a Igreja a se eximir de sua responsabilidade de anunciar o Evangelho àqueles que ainda não receberam a fé cristã. Além disso, a liturgia não esgota toda a ação da Igreja na medida em que ela “é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força” (SC 10,1). Ou seja, o trabalho apostólico deve-se inspirar na liturgia, precisamente no que esta tem de dinâmica de louvor e glorificação de Deus por intermédio do Cristo na virtude do Espírito Santo. E também a liturgia, de modo especial a Eucaristia, é o lugar em que a Igreja se alimenta para prosseguir em sua ação pastoral (cf. SC 10,2). Merece destaque aqui o tema da eclesiologia eucarística, altamente considerada pela Tradição oriental e valorizadora da Igreja particular:

Todos devem dar a maior importância à vida litúrgica da diocese, em torno do bispo, sobretudo na igreja catedral, convencidos de que a principal manifestação da Igreja se faz numa participação plena e ativa de todo o Povo santo de Deus na mesma celebração litúrgica, especialmente na mesma Eucaristia, numa única oração, ao redor do único altar a que preside o bispo rodeado pelo presbitério e pelos ministros (SC 41,2).

6.2 Lumen gentium

A constituição dogmática Lumen gentium (promulgada em 21 de novembro de 1964) traz o ensino conciliar sobre o mistério da Igreja. Já em sua estrutura, revela uma total mudança de perspectiva em comparação a anteriores posturas da Igreja católica romana. Uma vez que o projeto de constituição proposto pela comissão teológica da Cúria romana (centrado no tema da “Igreja militante”) foi rejeitado e que uma nova série de grandes temas foi apresentada para a confecção da aludida constituição − a saber: a Igreja como mistério, o episcopado, o laicato e a vocação à santidade −, os Bispos tomaram uma decisão revolucionária. Passadas algumas discussões − o que levou à definição da seguinte ordem de assuntos que viriam a ser os primeiros capítulos da Lumen gentium: Mistério da Igreja, Hierarquia e Povo de Deus −, os padres conciliares decidiram apresentar a Igreja, antes de tudo, como comunidade cristã que se espelha na comunidade perfeita que é Santíssima Trindade (cap. I: “O mistério da Igreja”) e que se insere na história dos homens (cap. II: “O Povo de Deus”), para, só em seguida, tratar da configuração hierárquica da Igreja (cap. III: “A constituição hierárquica da Igreja e em especial o Episcopado”). Essa opção foi significativa na medida em que atesta o desejo da grande maioria dos padres conciliares em propor uma “eclesiologia total”, isto é, uma autocompreensão de Igreja que reconhece todos os batizados como a ela pertencentes. A expressão “eclesiologia total” deve ser entendida no contexto da crítica de Yves Congar, ao dizer que, num tempo em que a reflexão teológica a respeito da Igreja levava em conta tão somente os ministérios de governo eclesiástico, ignorando os leigos e religiosos, o que se fazia era, pura e simplesmente, hierarcologia, e não eclesiologia. Vale dizer: na compreensão do Vaticano II, a Igreja não é feita só de bispos, padres e religiosos, mas de todos os que seguem Cristo, cada qual em sua vocação e estado de vida.

Os seguintes três capítulos da Lumen gentium concernem à vocação de todos os batizados à santidade (cap. V: “A vocação universal à santidade”), e às formas específicas de vivência da fé cristã (cap. IV: “Os leigos” e cap. VI: “Os religiosos”). O penúltimo capítulo trata da experiência da Igreja que, em meio a tribulações e dificuldades neste mundo, caminha em demanda de sua consumação final como feliz Esposa do Cordeiro (cf. Ap 19,7; 21,9): cap. VII: “Índole escatológica da Igreja peregrina e sua união com a Igreja celeste”. Quanto à mariologia conciliar, optou-se pela inserção do tema de Maria na Lumen gentium, com a anexação de um último capítulo à constituição dogmática (cap. VIII: “A bem-aventurada Virgem Maria Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja”). Maria é, assim, reconhecida como seguidora e discípula de Jesus, e como ícone da Igreja, por sua fidelidade e exemplaridade nesta mesma vocação de seguidora e discípula.

6.3 Dei Verbum

A constituição dogmática Dei Verbum (promulgada em 18 de novembro de 1965) apresenta o tema da revelação divina. Ora, uma vez que se tinha chegado à conclusão de que a revelação divina não é uma mera comunicação de ideias, mas a autocomunicação de um Deus que quer estar junto aos homens, pensou-se em falar da revelação em termos de presença e atuação da Palavra de Deus na história dos homens, sendo que a Palavra de Deus por excelência é uma Pessoa: o Verbo de Deus feito carne (cf. Jo 1,14). Ou seja, mais do que revelar sua vontade mediante a comunicação de doutrinas, Deus se revela como o Emanuel, Deus-conosco. Daí, então, se falar de uma única autocomunicação de Deus, que se dá ao longo de toda a história da salvação e culmina no evento Cristo, e que se manifesta através de duas vias: a Escritura e a Tradição. Reconheceu-se, portanto, a primazia e a centralidade da Palavra de Deus na Igreja.

Um retorno mais atento ao Concílio de Trento (1545-1563) pôs em relevo o caráter exclusivamente interpretativo da Tradição no que diz respeito à fé, pois na Escritura se encontram “as verdades necessárias para a salvação” (cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma de Teologia, I-II, qq. 106 e 108). Desta forma, a Tradição tem caráter constitutivo só para as questões de disciplina e de costumes. Ocorreu, aqui, uma solução conciliatória significativa: o Vaticano II estabeleceu uma diferença entre os dados constitutivos da Escritura e a função criteriológica da Tradição. Ou dizendo de modo diverso: a Escritura é a “norma que norma” (norma normans) e a Tradição, uma “norma normada” (norma normata). Alcançou-se, desta forma, um equilíbrio ecumênico de grande valor: nem a doutrina das duas fontes (própria do pensamento católico romano), nem a doutrina da sola Scriptura (característica do pensamento luterano). Para a constituição dogmática Dei Verbum, a Tradição tem dois sentidos: (a) o conteúdo que não está na Escritura; e (b) o processo de transmissão vital da Revelação na Igreja. A Tradição é a Escritura na Igreja. A Igreja, mediante a Tradição, com seu ensino, vida, culto etc, conserva e transmite a todas as gerações “aquilo que ela é” e “aquilo em que ela crê”, graças ao “Espírito Santo, por quem a voz viva do Evangelho ressoa na Igreja, e através dela ao mundo inteiro” (DV 8).

A Tradição concretiza-se nos Santos Padres, na liturgia, nos símbolos da fé (= os credos), nos textos dos concílios, nas intervenções magisteriais, nas vidas dos santos, no testemunho cotidiano dos fiéis cristãos de todos os tempos e lugares etc. A Igreja é a Tradição viva e o eixo de toda a transmissão da Revelação através dos tempos. Assim sendo, a revisitação do passado, que nada tem a ver com saudosismo, e muito menos com tradicionalismo, proporciona à Igreja rejuvenescer-se e, desse modo, manter-se fiel e dinamicamente obediente ao Senhor. Voltando-se para o passado enquanto exercício de “memória no Espírito”, a Igreja será sempre obediente e fiel a seu Esposo, como a mulher enamorada que procura ouvir a voz do amado (cf. o Cântico dos Cânticos).

Há um detalhe significativo na Dei Verbum: enquanto o Concílio de Trento fala de “tradições” (no plural e com “t” minúsculo), o Concílio Vaticano II fala de “Tradição” (no singular e com “t” maiúsculo). Isto torna claro que o Vaticano II entendeu a Tradição não como mera comunicação de doutrinas e ideias, mas como um todo único, em que as partes se articulam harmonicamente, e que, afinal de contas, se confunde com a própria vida da Igreja.

6.4 Gaudium et spes

A constituição pastoral Gaudium et spes (promulgada em 7 de dezembro de 1965) volta-se para a questão das relações entre a Igreja e o mundo no qual ela se insere. Se em Trento e no Vaticano I as atitudes da Igreja foram de clara hostilidade – no primeiro, frente aos reformadores protestantes, e no segundo, frente aos defensores das ideias secularizantes que remontam à Revolução francesa –, agora a Igreja assume uma postura otimista frente ao mundo. Ela se entende servidora da humanidade, o que já deixara claro na Lumen gentium e repete na Gaudium et spes: “A Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 1, cf. GS 42,3). Desta forma, a Igreja se reconhece “perita em humanidade” (Paulo VI, 1965, p.878-85), o que a faz sensível a todas as experiências pelas quais passam os homens, sejam boas, sejam ruins (cf. GS 1). Sua vocação é servir, razão pela qual ela pode dizer que não é movida por “nenhuma ambição terrestre” (GS 3,2).

Porque “perita em humanidade”, a Igreja se debruça sobre o homem dotado de aspirações elevadas (cf. GS 9) e cujo coração é inquieto em consequência de interrogações as mais profundas (cf. GS 10; 21,4). E ela o faz de modo respeitoso tendo em vista o âmbito mais íntimo do homem: “a consciência é o centro mais secreto e o santuário do ser humano, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (GS 16).

A solução do problema do homem é formulada pelo Concílio de modo lapidar: “O mistério do ser humano só se ilumina de fato à luz do mistério do Verbo encarnado” (GS 22,1). E isso vale não só para os cristãos, pois, ao assumir a condição humana em todas as suas dimensões, o Verbo associou-se de certo modo a todo homem (cf. GS 22,2). E ressalte-se, ainda, que o assumir a condição humana por parte do Filho de Deus conta com a participação amorosa do Espírito Santo; com efeito, “o Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal, de maneira conhecida somente por Deus” (GS 22,5). A antropologia centrada em Cristo − ou seja, o homem entendido a partir do mistério de Cristo – é, “no fundo, uma tomada de posição que afirma que o homem se humaniza só graças à divinização: a finalidade de plenitude à qual estamos chamados é inalcançável sem os auxílios da graça” (ARCE, 2008, p.434-5).

Tem-se acusado a Gaudium et spes de ser excessivamente otimista em sua formulação. Atento a esta crítica, o Sínodo dos Bispos de 1985, celebrado para comemorar os vinte anos de conclusão do Concílio, propôs a teologia da cruz como polo de equilíbrio para o conteúdo desta constituição pastoral. Ou seja, as intuições e os horizontes abertos pela Gaudium et spes devem ser tomados como princípios propulsores de uma ação pastoral que leva em conta com realismo os desafios e as dificuldades colocados pelo mundo contemporâneo à Igreja.

7 Os nove decretos do Concílio Vaticano II

Os meios de comunicação social naturalmente despertaram o interesse dos padres conciliares, já que não se podia pensar a evangelização nos novos tempos ignorando-se os recursos de comunicação de massa, mormente os eletrônicos. Em resposta a essa questão, promulgou-se o decreto Inter mirifica (5 de dezembro de 1963).

O decreto Unitatis redintegratio (21 de novembro de 1964) sinaliza a inequívoca participação da Igreja católica romana no movimento ecumênico. Sua força está na decisiva orientação em superar os preconceitos frente aos “irmãos separados” e em propor princípios teológicos para a discussão e solução de problemas em torno à divisão dos cristãos.

Já o decreto Orientalium ecclesiarum (21 de novembro de 1964) trata especificamente das Igrejas orientais católicas. Reconhecem-se os valores mantidos pela Tradição nestas Igrejas, tanto quanto os sacramentos e o governo eclesiástico, o que contribuirá enormemente para o incremento do diálogo ecumênico.

Christus dominus (28 de outubro de 1965) é o decreto que trata do encargo pastoral dos bispos. Antes de tratar das responsabilidades particulares dos bispos – ensinar, santificar e reger –, apresenta-se o caráter colegial de seu ministério, dado da tradição eclesial que aponta para a solicitude de todos os bispos para com a Igreja de Cristo.

Os Institutos de vida consagrada são convidados a se renovarem segundo o espírito do Concílio. É o que fica patente no decreto Perfectae caritatis (28 de outubro de 1965). Os padres conciliares reconheceram o valor da vida religiosa na Igreja, manifestado em suas diversas e fecundas concretizações históricas.

Não negligenciando a formação dos presbíteros, os padres conciliares tratam desse tema no decreto Optatam totius (28 de outubro de 1965). Destaque-se aqui a intenção de se promover uma melhor preparação espiritual dos futuros presbíteros, sem esquecer uma formação intelectual que os capacite para dialogar com o mundo.

Numa configuração eclesial sugerida pelo conceito de Igreja Povo de Deus, contemplado na Lumen gentium, o Concílio não poderia esquecer o apostolado dos leigos, trabalhado no decreto Apostolicam actuositatem (18 de novembro de 1965). Valores da tradição eclesial tais como o sensus fidelium e o sacerdócio comum dos fiéis constituem fundamento robusto para o engajamento dos fiéis leigos na obra da evangelização.

Sobre os presbíteros o Concílio fala detidamente no decreto Presbyterorum ordinis (7 de dezembro de 1965). Como colaboradores da ordem episcopal, os presbíteros devem, a exemplo dos bispos, zelar pelo bem de todo o corpo eclesial, e o fazem mediante as tarefas que assumem na Igreja. Dão-se, nesse documento, orientações para o bom relacionamento dos presbíteros entre si, bem como deles com os leigos.

A concepção conciliar de missão estabelece-se no decreto Ad gentes (7 de dezembro de 1965). Digna de nota é a impostação trinitária do documento, ao tomar como ponto de partida o desígnio de salvação do Pai, e as missões próprias do Filho e do Espírito Santo.

8 As três declarações do Concílio Vaticano II

As três declarações promulgadas no Concílio Vaticano II, a saber: Gravissimum educationis (28 de dezembro de 1965), Dignitatis humanae (28 de dezembro de 1965) e Nostra aetate (7 de dezembro de 1965) concernem, respectivamente, à educação cristã, às religiões não cristãs e à liberdade religiosa.

9 O episcopado latino-americano no Concílio Vaticano II

“A América Latina era o único continente que, ao chegar ao Concílio, já contava com uma estrutura episcopal de caráter colegial, o Conselho Episcopal Latino-Americano, o CELAM, fundado no Rio de Janeiro (RJ), em 1955” (BEOZZO, 1998, p.823). Este espírito colegial latino-americano, ainda incipiente no início do Concílio, foi se desenvolvendo à medida que o Concílio avançava em suas discussões e decisões. Ademais, o tema inspirador da “Igreja dos Pobres”, brotado de comunidades latino-americanas, ganhou certo relevo nos debates conciliares – embora tenha emergido em poucas passagens de todos os documentos aprovados – a tal ponto que deu ocasião à iniciativa conhecida como “Pacto das Catacumbas”. Essa iniciativa consistiu na opção de bispos, não exclusivamente latino-americanos, de viverem com simplicidade em suas dioceses e se comprometerem, efetivamente, com as causas dos empobrecidos. Além disso, reflexo destas inquietações foi a promulgação, pelo Papa Paulo VI, da carta encíclica Populorum Progressio, no ano de 1967. Ora, coube ao episcopado latino-americano e caribenho, em suas sucessivas assembleias, de Medellín a Aparecida, com avanços e recuos, acolher as inspirações do Concílio Vaticano II e utilizá-las na análise dos problemas vividos pelos povos latino-americanos, inseridos em estruturas marcadas pela exploração socioeconômica dos pobres.

10 Atualidade e recepção do Concílio

O ensinamento do Concílio Vaticano II, de notável atualidade, ainda não foi suficientemente assimilado pelas comunidades católicas espalhadas por todo o mundo. Na realidade, encontramo-nos em pleno processo de recepção do conteúdo doutrinal desse grande e surpreendente evento eclesial, concluído em dezembro de 1965. E além deste esforço – o de receber o conteúdo do Vaticano II –, devemos defendê-lo de interpretações dos documentos conciliares que tendem a não respeitar o mais profundo significado da doutrina neles contida e o novo modo de propor aos homens e mulheres de todos os tempos “a beleza tão antiga e tão nova que é Cristo Senhor” (cf. SANTO AGOSTINHO, Conf. 10,27). Isto significa, além de reler seus documentos, resgatar as inspirações mais profundas – valer dizer: divinas – que estão à raiz deste que é considerado, com justiça, o mais significativo e promissor evento eclesial do século XX.

Paulo César Barros, SJ, Departamento de teologia da FAJE

11 Referências bibliográficas

Alberigo, G. Breve storia del concilio Vaticano II (1959-1965). Bologna: Il Mulino, 2005.

ARCE, R. La recepción del Concilio Vaticano II en la Arquidiócesis de Montevideo (1965-1985). Montevideo: Observatorio del Sur / Facultad de Teología del Uruguay Mons. Mariano Soler, 2008.

BEOZZO, J. O. Medellín: inspiração e raízes. Revista Eclesiástica Brasileira, v.58, n.232, p.822-50. 1998.

______. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II. 1959-1965. São Paulo: Paulinas, 2005.

Camara, Helder. Obras completas. Vaticano II: Correspondência Conciliar. Circulares à Família do São Joaquim 1962-1964. v.I, t.I. Recife: Instituto Dom Helder Câmara / Editora Universitária UFPE, 2004.

JOÃO XXIII. Discurso Gaudet Mater Ecclesia (11 de outubro de 1962). Acta Apostolicae Sedis, Roma, v.54, p.786-95, 1962.

KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II: V. I: Documentário preconciliar. Petrópolis: Vozes, 1962.

______. Concílio Vaticano II: V. II: Primeira sessão (set-dez 1962), Petrópolis: Vozes, 1963.

______. Concílio Vaticano II: V. III: Segunda sessão (set-dez 1963), Petrópolis: Vozes, 1964.

______. Concílio Vaticano II: V. IV: Terceira sessão (set-nov 1964), Petrópolis: Vozes, 1965.

______. Concílio Vaticano II: V. V: Quarta sessão (set-dez 1965), Petrópolis: Vozes, 1966.

LIBANIO, j. b. La Iglesia desde el Vaticano II hasta el nuevo milenio. Bilbao: Mensajero, 2004.

______. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005.

Lima, A. A. Cartas do pai. De Alceu Amoroso Lima para sua filha madre Maria Teresa, OSB. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2003.

MARQUES, L. C. L.; FARIA R. A. (orgs.). Dom Helder Câmara: Circulares Conciliares, v. I, t. I; v. I, t. II; v. I, t. III. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2009.

O’Malley, J. W. ¿Qué pasó en el Vaticano II?. Santander: Sal Terrae, 2012.

Passos J. D.; Sanchez, W. L. (orgs.). Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas; Paulus, 2015.

Paulo VI. Alocução diante da Assembleia plenária das Nações Unidas “Au moment de prendre” (4 de outubro de 1965). Acta Apostolicae Sedis, Roma, v.57, p. 878-85. 1965.

PIO XII. Carta encíclica Divino afflante Spiritu (30 de setembro de 1943). Acta Apostolicae Sedis, Roma, v.35, p. 309-19. 1943.

ROCHA, Z. (org.). Dom Helder Câmara: Circulares Interconciliares, v. II, t. I; v. II, t. II; v. II, t. III. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2009.

SAGRADA CONGREGAÇÃO DOS RITOS. Maxima redemptionis: Liturgicus hebdomadae sanctae ordo instauratur. Acta Apostolicae Sedis, Roma, v.47, n.17, p. 838-47. 1955.

Vian, G. M. (org.). Paolo VI – Giovanni Battista Montini. Carità intellettuale. Testi scelti (1921-1978). 2.ed. Milano: Biblioteca di Via Senato, 2006.