All posts by Geraldo Mori

Ofício Divino das Comunidades

Sumário

1 Como tudo começou

2 Breve história da Liturgia das Horas

2.1 Origens

2.2 A reforma da Liturgia das Horas

3 Da Liturgia das Horas ao Ofício Divino das Comunidades

3.1 Alguns princípios norteadores

3.2 A sacramentalidade do Ofício Divino das Comunidades

3.3. A santificação do tempo

3.4. O lucernário

3.5 Oração da Igreja

4 Uma palavra final

Referências

1 Como tudo começou

A reforma da Liturgia das Horas empreendida pela Igreja cumpriu a importante tarefa de recuperar o sentido eclesial da oração, seu caráter celebrativo, e a mais genuína tradição de associar a oração, pelas horas do dia, ao mistério pascal (cf. IGLH, p.33.38-39). Contudo, é consenso que a versão oficial do Ofício Divino no rito romano manteve características predominantemente clericais e monásticas (TAFT, 1999, p.303-305; JOIN-LAMBERT, 2009, p.83-90; p.99-100). No Brasil, a sua versão traduzida tardou a chegar na capilaridade do tecido eclesial, dificultando ainda mais a recepção do ofício reformado no período pós-conciliar (LIMA, 2011, p.31-34). Mas as dificuldades converteram-se em oportunidade, pois iniciou-se um processo genuíno de recepção a partir da experiência de oração dos fiéis.

Encontram-se registros na CNBB, que datam de 1986, sobre a formação de um grupo que se encarregaria de elaborar uma proposta alternativa e popular de Ofício, visando a participação dos fiéis na Oração da Igreja. Mas a ideia de um ofício divino popular começou bem antes, na década de 1970, por iniciativa de Geraldo Leite Bastos, presbítero da arquidiocese de Olinda e Recife, então pároco da Comunidade de Ponte dos Carvalhos, na periferia do Recife. Padre Geraldo havia iniciado uma prática diária de oração, sob o impulso do Concílio Vaticano II. Em 1987, em uma entrevista, ele fala dessa experiência:

Há 17 anos, nós, da comunidade de Ponte dos Carvalhos, já cantávamos o Ofício. Eu deixei escrito no Livro de Tombo da paróquia o início de quando começamos a fazer uma oração diferente da missa. Acho que a nossa experiência começou por dois motivos: primeiro porque a missa tinha se tornado um tanto formal. Era necessário encontrar um outro jeito de rezar que não fosse só missa. (…) Outro motivo foi o contato com os irmãos de Taizé, que haviam chegado a Olinda. Participei diversas vezes com eles e notei que tinham uma experiência de oração diferente do Mosteiro de São Bento. Comecei a pensar que o povo poderia rezar o Ofício. Naqueles tempos difíceis da Igreja, muitas vezes eu ficava até de madrugada rezando um Ofício mal rezado, lendo aquela salmodia toda… Isso me levou a imaginar um breviário simplificado, popular, de modo que eu, que tinha tanta dificuldade de rezar sozinho, encontrasse um jeito de rezar essa oração com o povo. (LEITE BASTOS, 1988, p.56)

 Nesse tempo, a Igreja do Brasil vivia o impulso da recepção do Concílio Vaticano II, assumida, sobretudo, pela conferência do episcopado latino-americano, em Medellín. Sentia-se, nesse contexto, a necessidade de uma referência de oração que melhor correspondesse à experiência das Comunidades Eclesiais de Base, que emergiam como expressão concreta da Igreja povo de Deus. Atentas aos princípios e proposições conciliares, as CEBs queriam aprofundar o caminho aberto pela piedade popular que custodiou tesouros da tradição como o Ofício parvo da Bem-aventurada Virgem Maria e o costume de rezar em determinadas horas do dia.

Mais tarde, em 1986, o padre Marcelo Barros, então prior do mosteiro da Anunciação em Goiás, assessor das Comunidades de Base, reuniu um grupo de pessoas para elaborar um Ofício Divino acessível às comunidades. Tomou como inspiração a experiência do padre Geraldo Leite e como referência imediata a Liturgia das Horas reformada pelo Concílio Vaticano II, que já estava traduzida desde 1971. Além disso, foi decisiva nesse processo a convivência com a pequena comunidade do mosteiro da Anunciação, como lugar de experimentar a celebração do Ofício com a participação dos vizinhos. Em dezembro de 1988, foi publicada a primeira edição do Ofício Divino das Comunidades (ODC), que, em 2018, completou 30 anos com sua terceira edição, ocasião em que já somava 21 reimpressões.

Trata-se de uma experiência nascida no Brasil, em contexto de recepção do Concílio Vaticano II na América Latina, à luz das Conferências Latino-americanas de Medellín e Puebla. Embora o ODC tenha sido adotado em assembleias da Pastoral da Juventude e outros movimentos eclesiais, no contexto de América Latina, não existem iniciativas similares ao ODC em outros países do Continente.

2 Breve história da Liturgia das Horas

2.1 Origens

O Ofício Divino é uma concretização da tradição que remonta aos inícios da Igreja. Nos Atos dos Apóstolos, encontramse alusões de uma prática de oração nas horas do dia, em continuidade com o ritmo diário da oração judaica. No século IV, esse tipo de liturgia havia alcançado estabilidade: laudes e vésperas eram celebradas diariamente, em comunidade (ELBERTI, 2011, p.166). Segundo Etéria, a peregrina que relatou a liturgia em Jerusalém nesse mesmo século, tratava-se de uma prática diária, ligada às horas, sobretudo ao entardecer e ao amanhecer, em memória do crucificado-ressuscitado. Contava-se com a participação do povo, homens e mulheres e até crianças. Era uma liturgia expressiva, não só com salmos e hinos, mas com gestos e símbolos, de maneira simples e popular (cf. ETÉRIA, 1977, n.24,1-7). Esse modelo de ofício celebrado nas catedrais, com toda a densidade bíblica e teológica, simples e acessível ao povo, tendia a alimentar a vida do cristão comum.

Contudo, com o tempo, a oração da Igreja sofreu um encolhimento até o ponto de restringir-se a uma determinada parcela do povo de Deus, o que ocorreu por vários motivos, como a fixação do latim como língua litúrgica, a multiplicação das horas em alguns contextos, a complicação e saturação dos ritos, que excluiu o povo da participação e da compreensão das palavras. Segundo Pietro Sorci, a causa principal do desaparecimento da oração horária se deve à eucaristização (celebração de missas cotidianas e, às vezes, de mais de uma; ocorrência de horas santas de adoração ao Santíssimo) e a tudo o que a ela diz respeito (clericalização, eclesiologia de eleitos, sacramentalização), em detrimento da evangelização, incluindo a insuficiente formação nos seminários. Além disso, o apagamento dessa forma de oração também se deveu à recitação individual imposta ao clero, que deixou de reunir o povo para celebrar comunitariamente o Ofício (SORCI apud PEREIRA SILVA, 2015, p.15).

Essa realidade trouxe para o Ofício Divino consequências celebrativas, como o empobrecimento da gestualidade, a transformação do que era expressão de gratuidade em peso, infligido pela “obrigação”. A desconexão com a hora, já que, a recitação da oração era muitas vezes, feita em qualquer momento do dia, levou a uma diminuição do caráter pascal do Ofício. Nos ambientes monásticos, ao contrário, o Ofício manteve seu estilo comunitário, ligado às horas e ao ano litúrgico, mas em latim e com acréscimos requeridos pela condição da vida monástica. Dessa forma, o que era simples e popular tornou-se complexo e com sobrecarga de elementos, com salmos, hinos, leituras, litanias, ofícios diários em honra da Virgem Maria e dos defuntos, entre outros.

O povo, em sua grande maioria entregue, muitas vezes, à própria sorte, sem qualquer oportunidade de uma verdadeira iniciação à fé e de celebração do mistério, buscou criativamente nas devoções o alimento da fé cristã como atesta o Diretório sobre liturgia e piedade popular:

Do século VII até a metade do século XV, determina-se e acentua-se, progressivamente, a diferenciação entre liturgia e piedade popular, até se criar um dualismo celebrativo: paralelamente à liturgia, oficiada em latim, desenvolve-se uma piedade popular comunitária, que se expressa em língua vernácula. (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, 2003, n.29)

Em relação ao Ofício, o rosário, com 150 Ave-Marias, substitui os 150 salmos; o Angelus, rezado três vezes ao dia, ocupa as horas do Ofício; o Ofício de Nossa Senhora reúne os hinos de todas as horas do Ofício da Mãe do Senhor e é rezado numa hora só, imitando o clero na desconexão com a hora.

2.2 A reforma da Liturgia das Horas

O propósito da reforma do Concílio Vaticano II a respeito do Ofício Divino foi o de fazer essa prática voltar à condição de “oração pública e comum do povo de Deus” (IGLH, n.1), recuperando sua dimensão de ação comunitária, oração de Cristo ao Pai e oração da Igreja com Cristo (e a Cristo, segundo santo Agostinho), fazendo memória da sua páscoa. Além disso, o Concílio mudou a linguagem rubricista e clerical da Liturgia das Horas para uma linguagem eclesial e pascal, gratuita e espiritual.

Destacamos, a seguir, quatro aspectos da reforma.

O Ofício Divino é liturgia. Como toda a liturgia, o Ofício Divino é uma ação ritual, comunitária, eclesial, e não uma ação particular (cf. SC n.26). Trata-se, de uma lit-URGIA (lit = povo; urgia = ação, ofício, trabalho): ação do povo e ação de Deus (divina) a serviço do povo. É ação litúrgica como qualquer outra. Nela, os mesmos elementos que fazem parte das demais celebrações da Igreja (hinos, salmos, leituras bíblicas, silêncio, orações, música, gestos simbólicos) foram organizados levando em conta a sua peculiaridade: a memória do mistério pascal ligado às horas no ritmo diário, articulando-se também com o ritmo semanal e anual.

O povo como sujeito. O Concílio Vaticano II quis devolver a todo o povo o direito de celebrar o Ofício Divino, embora tenha ficado mais no âmbito do clero e da vida consagrada. Mas recomendou que os leigos “recitem o Ofício Divino, quer juntamente com os sacerdotes, quer reunidos entre si, e até cada um em particular” (SC n.100). A Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas enfatiza que “o louvor da Igreja não é reservado aos clérigos e monges, nem por sua origem, nem por sua natureza, mas pertence a toda comunidade cristã” (IGLH n.270). O Ofício Divino é ação litúrgica se o povo se torna sujeito orante, no exercício do sacerdócio batismal oferecendo o sacrifício de louvor (cf. GARCIA, 2015, p.78).

A verdade das horas. A reforma do Concílio Vaticano II chamou a atenção para a finalidade específica do Ofício Divino: “consagrar, pelo louvor a Deus, o curso diurno e noturno do tempo” (SC n.84). Enfatizou a verdade das horas (SC n.94), destacando, como horas principais, Laudes, rezadas ao chegar a luz do dia, em memória da ressurreição de Jesus, e Vésperas, celebradas ao pôr-do-sol, hora que lembra a última Ceia de Jesus e a cruz (Lc 22,53). A Liturgia das Horas é a Oração da Igreja, unida ao Cristo em sua oração de louvor, ação de graças e intercessão, fazendo memória da sua páscoa.

Foi o próprio Salvador quem vinculou o nosso tempo à redenção: “Hoje se cumpriu esta palavra das Escrituras” (Lc 4,21), em outras palavras, hoje a Palavra proclamada transforma o tempo em libertação e graça (cf. GARCIA, 2015, p.77). Na Liturgia das Horas, a palavra de Deus pronunciada, proclamada, ouvida, vivida e atualizada, interpreta o tempo como kairós, evento de salvação, tempo favorável, memorial da nova aliança (cf. GARCIA, 2015, p.72). Há, no ato de celebrar, uma profunda relação entre as horas de Jesus e as horas da comunidade que ora, entre a sua paixão e as marcas da paixão que as pessoas trazem em seus corpos (cf. SC n.12; 2Cor 4,10-11).

Fonte de piedade. A intenção da reforma do Ofício Divino foi a de torná-lo fonte de piedade e alimento da oração pessoal (SC n.90). A liturgia das horas é expressão de aliança e, consequentemente, fonte de transformação pascal. É glorificação e santificação. Por isso é determinante que participemos com inteireza e acompanhemos com a mente [e o coração] as palavras [e os gestos], e cooperemos com a graça divina para não a recebermos em vão (cf. SC n.11 e 90).

Apesar desses avanços, a liturgia das horas se manteve bastante “monástica” em sua forma. Há quem diga que dos pontos fracos da reforma litúrgica o mais evidente é a reforma da Liturgia das Horas. No movimento de volta às fontes, a reforma não conseguiu restaurar a simplicidade e a ritualidade da prática primitiva do Ofício das Catedrais, com toda a riqueza de ministérios, de símbolos e ritos, celebrada com a participação do povo, como observado acima. A reforma levou mais em conta o clero e a vida consagrada do que o povo. Além disso, devido ao peso histórico da obrigação, na prática, há dificuldade em passar da recitação à celebração. A versão brasileira da Liturgia das Horas (LH) é primorosa do ponto de vista da tradução, sobretudo dos salmos, adaptados ao canto. Mas carrega em si esses limites da edição típica, como o fato, inclusive, de não ter avançado em direção à inculturação, tão desejada pelo próprio Concílio (cf. SC n.37-40).

3 Da Liturgia das Horas ao Ofício Divino das Comunidades

3.1 Alguns princípios norteadores

O Ofício Divino das Comunidades (ODC), tomando como referência imediata para a sua elaboração a Liturgia das Horas renovada, buscou oferecer ao povo uma versão popular da tradição de oração da Igreja.

De um lado, foi fiel à Liturgia das Horas (LH), porque obedeceu a mesma estrutura, a mesma teologia e a mesma sequência ritual. Como na LH, toda a elaboração ritual do ODC se destina a expressar o mistério do crucificado-ressuscitado nas horas do dia, seguindo o ritmo diário, semanal e anual, com hinos, salmos, cânticos bíblicos, preces e orações.

De outro lado, tomando como ponto de partida a experiência eclesial do Brasil, o ODC foi capaz de deixar de lado o que pesa na estrutura da Liturgia das Horas e ousou ser criativo na medida em que incorporou elementos novos: o jeito novo de celebrar das Comunidades Eclesiais de Base e o anseio de oração do catolicismo popular.

Não se trata de propor às comunidades o ofício tal qual no Rito Romano, mesmo simplificado ou abreviado. Trata-se de um estilo brasileiro novo no campo mais amplo da família litúrgica romana. Não bastaria também repetir ou publicar as costumeiras orações e cânticos da religião popular, ou mesmo dos encontros de oração dos grupos da caminhada. O Ofício Divino das Comunidades quer ser uma síntese real e inteligente, fiel à grande tradição litúrgica e à sensibilidade e cultura do nosso povo (BARROS, 1988, p.30).

Da tradição eclesial latino-americana, o ODC herdou a Recordação da Vida, que é expressão mais sensível da relação entre a liturgia e a vida. Segundo Libanio, as liturgias que emergiram no cenário de Igreja de Medellín respondem ao desafio de vincular liturgia com práxis libertadora “sem quebrar a coluna vertebral da gratuidade, da liberdade e da beleza contemplativa” (LIBANIO, 2001, p.107-108). O Ofício começa sem nenhum comentário, com uma invocação de Deus e convite ao louvor. Só então, quem preside convida os participantes a trazerem experiências que marcaram suas vidas.

A vida, os acontecimentos de cada dia, as pessoas, suas angústias e esperanças, suas tristezas e alegrias, as conquistas e revezes da caminhada, as lembranças marcantes da história, da comunidade, das Igrejas e dos povos, os próprios fenômenos da natureza são sinais de Deus para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir. Por aí começa a nossa escuta da Palavra de Deus. Recordar a vida, trazê-la de volta ao coração, partilhar lembranças e preocupações, é ajudar a tornar a oração verdadeira (ODC, 2018, p.11).

Mas a vida está latente em todo o ofício: na linguagem das orações e das preces, nos salmos, nos hinos da caminhada, na memória dos mártires defensores da vida em nosso continente. Cabe lembrar, ainda, o cuidado com a dimensão ecumênica no ODC, expresso em elementos como o Pai-nosso ecumênico, os hinos das Igrejas irmãs, a inclusão de imagens de Deus (de ternura, bondoso, compassivo).

O grande mérito do Ofício das Comunidades é que ele conseguiu viabilizar, na prática, o que a Liturgia das Horas propõe: que o ofício, como qualquer outra ação litúrgica, não é ação particular, mas ação comunitária, celebração.

Nas culturas populares brasileiras, o jeito para dar a cada ofício um caráter mais celebrativo, é integrar todo o corpo e o universo que nos cerca na oração. Na Bíblia os salmos contêm muitas atitudes corporais de oração, como voltar-se para a montanha, elevar o olhar e as mãos, se curvar, se ajoelhar, caminhar em procissão (BARROS, 1994, p. 30).

Mesmo sem que estivesse determinado por escrito, a prática foi criando um estilo de celebrar que prima pela valorização do espaço, do canto, dos ministérios, dos gestos (acender velas, reunir-se ao redor do ambão para a escuta do evangelho, ofertar incenso…). Tudo para conduzir ao silêncio e favorecer a participação externa e interna, consciente e frutuosa. Nesse sentido, a grande pérola no ODC é o lucernário na vigília dos domingos e solenidades. Esse rito que, nas comunidades das origens, pertencia ao Ofício cotidiano das Vésperas, foi colocado na abertura do Ofício de Vigília, enfatizando o domingo como páscoa semanal, em analogia com o rito da luz na vigília pascal.

A respeito da interação com o catolicismo popular, o ODC é um exemplo bem-sucedido da “mútua fecundação” entre liturgia e piedade popular, tão desejada pela reforma litúrgica (cf. SC n.13) e tão evocada pelos documentos do CELAM e da CNBB (CNBB, 1984, p.30). O trabalho não consistiu tanto em agregar elementos externos do catolicismo popular, mas em fazer com que o Ofício corresponda à “piedade”’ do povo, ao seu “anseio de oração e de vida cristã”, à “sede de Deus, que somente os pobres e os simples podem experimentar” (cf. Evangelii Nuntiandi, n48). Destaca-se, nessa sintonia com a piedade popular, o estilo orante, a forma de repetição nos cantos, sobretudo nas aberturas, a linguagem simples e afetuosa, a ausência de comentários, o que facilita a participação e estabelece uma relação amorosa, de aliança entre Deus e o seu povo.

3.2 A sacramentalidade do Ofício Divino das Comunidades

O Concílio Vaticano II apresenta toda a liturgia – não somente os sete sacramentos – como evento sacramental, em que Jesus Cristo se faz presente, no exercício do seu sacerdócio, para glorificar o Pai e santificar a humanidade.

No artigo 7 da Constituição litúrgica entre os sinais sensíveis que significam e que realizam o que significam, está a assembleia que ora e salmodia, porque nela Cristo se faz presente e age com a força do seu Espírito. Podemos dizer que a assembleia reunida, o tempo, a música, os salmos e cânticos, a oração, os gestos e as palavras, são sinais sensíveis que atingem a corporeidade dos participantes, evocam o mistério invisível de Jesus Cristo e pelo agir do Espírito realizam a transformação pascal.

3.3 A santificação do tempo

Tomemos a categoria tempo, tão importante para a compreensão da liturgia horária do Ofício Divino. Nas Escrituras, os termos chronos, kairós e aiôn relacionam respectivamente o tempo da vida humana em curso, o tempo da atuação de Deus na história da humanidade e o tempo humano como intercessão entre o dado histórico e o seu sentido escatológico. Em todas as acepções, o tempo é uma noção fortemente identificada ao ser humano (AUGÉ, 2019, p.36-38). De tal modo que a noção de santificação de tempo, outra coisa não diz, senão a santificação do próprio ser humano pela sua inserção memorial na própria experiência temporal do Verbo encarnado, a história da salvação. O tempo é santificado pela Liturgia das Horas porque, juntamente com o Ano Litúrgico, ela contribui para dar novo sentido ao tempo da vida humana (PINELL, 2005, p.216).

O tempo como sinal sensível torna-se mais evidente no amanhecer e no entardecer por causa da incidência da luz. Esses momentos foram estabelecidos como memória e renovação da aliança. Sem a palavra, a luz não significa; sem a luz, o verbo não se faz visível (cf. GARCIA, 2015, p.150). A palavra narra o mistério pascal de Cristo e da Igreja, na luz que ilumina o escuro da noite, ou no sol que clareia o amanhecer. A palavra invisível, mas audível nos salmos, nas leituras, nos hinos, nas orações, interpreta o sinal sensível, tornando visível o Verbo (cf. GARCIA, 2015, p.72). Por isso, o cuidado com a verdade da hora é condição para que a Palavra possa interpretar a luz.

3.4 O lucernário

O rito do lucernário, na vigília do domingo e das festas maiores, compõe-se da abertura e do hino lucernar. O ofício de vigília começa no escuro, em silêncio. Entoa-se, a meia voz, um refrão meditativo, para despertar no coração o anseio pelo Deus vivo. Como de costume, sem qualquer comentário, quem preside se levanta e começa os versos da Abertura, que a assembleia repete:

–   Venham, ó nações, ao Senhor cantar! (bis)

Ao Deus do universo, venham festejar! (bis)

–   Seu amor por nós, firme para sempre! (bis)

Sua fidelidade dura eternamente. (bis)

Acendem-se velas

–   Para ti, Senhor, toda noite é dia. (bis)

A escuridão mais densa logo se alumia. (bis)

–  És a luz do mundo, és a luz da vida! (bis)]

Cristo Jesus resplende: és nossa alegria! (bis)

Oferta-se incenso ou ervas cheirosas

–   Suba nosso incenso a ti, ó Senhor! (bis)

Este louvor pascal, oferta de amor. (bis)

–   Nossas mãos orantes para os céus subindo! (bis)

Cheguem como oferenda ao som deste hino! (bis)

–   Glória ao Pai e ao Filho e ao Santo Espírito. (bis)

Glória à Trindade Santa, glória ao Deus bendito. (bis)

–   Aleluia, irmãs, aleluia, irmãos! (bis)

Povo de sacerdotes, a Deus louvação. (bis)

 As primeiras palavras da abertura são convocação para o louvor, com versos do salmo 117. Nestas palavras ouvimos o próprio Cristo chamando a comunidade a participar de sua oração ao Pai, como tantas vezes ele fez em sua vida terrena (cf. Mc 6,30-31). Traçamos o sinal da cruz sobre o corpo no primeiro verso, recordando o nosso batismo, pelo qual Cristo nos associa ao seu mistério pascal e à sua oração. O canto da abertura continua, com palavras que se juntam ao gesto do acendimento do círio e das velas para narrar a vitória da luz sobre as trevas que correspondem às aflições do povo. A função da oração das horas é gritar, é colocar sob o olhar de Deus o que acontece no mundo. Deus escuta o clamor, olha o coração dos que sofrem, e desce para salvar (cf. Ex 3,7-8).

Um recipiente com brasas acesas está colocado sobre ao altar. Ainda na escuridão, mas agora iluminada com as chamas acesas na mão da assembleia, faz-se a oferta do incenso, sinal do sacrifício espiritual do povo sacerdotal, acompanhada dos versos cantados.

Terminada a abertura, quem preside, convida os participantes a trazerem as memórias que identificam as luzes do caminho ou as noites que persistem…

Em seguida, entoa-se o hino “Luz Radiante”. Este hino, mais antigo que o Glória, remonta ao século II e é citado por São Basílio (BASÍLIO, 2003, p.403). No ODC (p.265), a versão é de Reginaldo Veloso, em forma responsorial, para garantir a participação da assembleia por meio de um refrão que se repete a cada estrofe.

Luz radiante, luz de alegria,

luz da glória, Cristo Jesus

–És do Pai imortal e feliz

o clarão que em tudo reluz!

– Quando o sol vai chegando ao ocaso

avistamos da noite a luz!

– Nós cantamos o Pai e o Filho

e o Divino que nos conduz!

– Tu mereces o canto mais puro,

ó Senhor da vida, és a luz!

– Tua glória, ó Filho de Deus,

o universo todo seduz!

– Cante o céu, cante a terra e os mares,

a vitória, a glória da cruz!

As palavras do hino continuam a narrar o mistério manifestado nas luzes que rompem o escuro. Fazem com que a assembleia reconheça, nessa imagem da noite iluminada, a presença do Cristo Ressuscitado, a quem o hino se dirige. Diante do dia que morre, a comunidade crente contempla a luz que não morre. O texto identifica no “clarão do Pai que tudo reluz”, o filho unigênito que procede do Pai, que é fonte da vida. O canto mais puro é devotado ao Cristo, Senhor da vida, que seduz o universo com sua glória, pela qual o céu, a terra e os mares entoam o seu cantar.

A eficácia supõe a consciência da assembleia de estar inserida em um evento de salvação, no qual o Cristo, pela atuação do Espírito, realiza nela o mistério da sua páscoa. Ao transformar o tempo em kairós, realiza-se, na Igreja, a passagem da morte à vida. Afinal, o fim último da liturgia é a santificação (SC n.10 e 33). Assim, pouco a pouco, cada pessoa é levada à superação de tudo o que é velho para alcançar a estatura da “criatura nova” em Cristo.

3.5 Oração da Igreja

Reunir-se para rezar é uma ação primordial e uma exigência vital da comunidade cristã. Quando os pais da Igreja enfatizam a importância da assembleia cristã não pensam somente na eucaristia, mas também em outros momentos comuns de oração e de louvor.

O artigo 83 da Sacrosanctum Concilio faz uma afirmação que retoma a LH como parte estruturante de toda a liturgia da Igreja:

Jesus Cristo une a si toda a humanidade e a associa ao seu cântico de louvor. E continua exercendo este sacerdócio, na Igreja, que louva o Senhor sem cessar e intercede pela salvação do mundo, não só com a celebração da Eucaristia, mas de vários outros modos, especialmente pelo Ofício Divino.

 O artigo 84 diz que nesta oração “Cristo se dirige ao Pai, mediante o seu corpo”. Ou seja, esta oração pertence a todo o corpo de Cristo. A oração da comunidade e de cada pessoa que ora é sacramento da oração de Cristo. Ele é o mediador da nova aliança, por ele a humanidade tem acesso ao Pai. O Pai sempre escuta a voz do Filho (Jo 11,42). É necessário, pois, que ao celebrarmos o Ofício Divino, reconheçamos o eco de nossas vozes na voz do Cristo, e a sua em nós” (PAULO VI, 1971, n.20).

Um dos méritos do ODC é justamente o de proporcionar que o povo das comunidades tenha acesso à oração que lhe pertence e possa participar ativa, consciente e frutuosamente. Não só, mas tem desencadeado um processo de aprender a rezar com a Igreja, de descobrir os salmos como escola de oração, de reconhecer neles a voz de Cristo e de fazer da oração uma experiência de gratuidade e amorosa aliança. É algo que não se dá automaticamente. É necessário aprender.

São Bento oferece uma “regra de ouro”, que a Sacrosanctum Concilium assumiu e aplicou a toda a Igreja: Que a mente concorde com a voz” (SC n.90; RB n.19). A mente “não equivale somente à razão, mas à pessoa interior com seu conhecimento, sua vontade e seu sentimento. É quase idêntica a coração, especialmente a parte dominante da alma (cf. GRÜN, 2019, p.30-31). A voz refere-se à manifestação do Espírito, é a voz de Deus que devemos ouvir. O coração deve estar em sintonia com a voz (cf. GRÜN, 2019, p.30-31).

Pensemos no salmo.

O critério geral de escolha de um salmo no ofício é a hora. A pessoa não escolhe o salmo, ele é oferecido. Tomemos o salmo 30(29) no ofício da tarde (ODC, p.52).

Cai a tarde, vem a noite

a tristeza, o pranto a dor,

de manhã renasce o sol,

novo dia alegria.

1. Senhor, grandes coisas direi eu de ti,

Porque me livraste e não permitiste

Que os maus rissem, fazendo pouco de mim

2. Senhor, eu por ti clamei e me curaste;

Minha vida, do lugar onde os mortos residem,

Só tu me tiraste e me libertaste!

3. Cantai, santos todos, dai glória ao Senhor!

Sua raiva é um momento e logo acabou;

Bondade, toda a vida perdura o amor!

4. Seguro, eu dizia: Jamais tremerei!

Favor, me cobriste de honra e poder.

Teu rosto escondeste e eu me apavorei…

5. Piedade a meu Deus eu estou a implorar…

Vantagem, por acaso, na morte haverá?…

O pó dos meus ossos irá te louvar?!…

6. Senhor, piedade, vem me socorrer!

Minha dor e meu pranto mudaste em prazer;

Teu nome para sempre eu irei bendizer!

O salmo está aí, com uma letra em versão popular em perfeita simbiose com a melodia. Tudo nele aponta para o final de um dia de trabalho e de luta. Fala da tristeza da noite que chega, mas promete a luz de um novo dia: Cai a tarde, vem a noite, a tristeza, o pranto a dor, de manhã renasce o sol, novo dia alegria. Ao cantar as estrofes, a pessoa encontra a expressão da sua gratidão pelo dia que passou, pelas lutas superadas, pela firmeza apesar das dificuldades. A gratidão que já está no seu coração, às vezes sufocada pelo cansaço, é despertada pelas palavras do salmo. A pessoa se identifica com o salmo como se ela própria o tivesse gerado (cf. CASSIANO, 2003, p.984).

Ao encontrar no salmo a expressão da própria ação de graças, une-se à ação de graças do Filho, que fez de toda a sua vida uma oferta de louvor. Como não escutar a voz de Cristo quando se canta: Minha vida, do lugar onde os mortos residem, Só tu me tiraste e me libertaste (estrofe 2). Aí a voz do orante e a voz de Cristo se faz uma só voz. Portanto “não sou eu que faço algo com a palavra, mas é a palavra que faz algo comigo” (GRÜN, 2019, p.32), a palavra que é Cristo, muda a voz de quem salmodia na sua própria voz, o Espírito que renova todas as coisas o transforma naquilo que está rezando.

4 Uma palavra final

No atual cenário de Igreja, de modo geral, a missa, própria do domingo, que por tradição é o ápice de todas as ações litúrgicas, parece ter se tornado a única celebração da Igreja: repetida todos os dias, em todo lugar e, muitas vezes, de qualquer jeito, quando não instrumentalizada para fins duvidosos. Ao lado da missa, está o terço, a devoção aos santos, a adoração ao Santíssimo, sem falar da avalanche de práticas de um catolicismo conservador, que nada tem a ver com a piedade popular. A própria celebração da Palavra não se configura como parte orgânica da liturgia da Igreja, ocupando no máximo um lugar de suplência (por falta de padre). O Ofício Divino sequer aparece nos planejamentos pastorais das Igrejas e paróquias. E bem que poderia ser uma alternativa de celebração da comunidade cristã, a mais imediata depois da missa. O Ofício das Comunidades se oferece como uma fonte no caminho, enraizada na tradição dos pais e mães da Igreja, com um jeito bem brasileiro, e fiel à eclesiologia latino-americana. Não se impõe como obrigação, ou como forma exclusiva, mas se oferece na gratuidade para as comunidades que vivem a fé em meio às lutas de cada dia e anseiam por alimentar sua vida espiritual.

Penha Carpanedo, PDDM. Texto original português. Postado em fevereiro de 2020.

Referências

AUGÉ, Matias. Ano litúrgico: é o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019. Fonte Viva.

BARROS de SOUZA, Marcelo. Caminhada popular e Ofício Divino. Revista de Liturgia, São Paulo, v.15, n.86, p.30-36, mar/abr 1988.

______. Descolonizar a oração da igreja. Revista de Liturgia, São Paulo, v.21, n.124, p.27-32, jul/ ago 1994.

BASILIO DE CESAREIA. O Espírito Santo. In: Antologia Litúrgica: textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003.

CASSIANO, João. Conferência X, sobre a oração. In: Antologia Litúrgica: textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003.

CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia; princípios e orientações. São Paulo: Paulinas, 2003, n.29.

CNBB. Adaptar a Liturgia, tarefa da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1984.

ELBERTI, Arturo. Canto di Lodi per tuti i suoi fedeli. Milano: San Pablo, 2011.

ETÉRIA. Peregrinação de Etéria: Liturgia e catequese em Jerusalém no século IV. Petrópolis: Vozes, 1977.

GARCIA LÓPES-TELLO, Eduardo. La liturgia monástica dele ore: verso una sacramentalitá del verbo visibile. Roma: Edizioni liturgiche, 2015.

GRÜN, Anselm. Liturgia das Horas e contemplação. Petrópolis: Vozes, 2019.

INSTRUÇÃO GERAL SOBRE A LITURGIA DAS HORAS (IGLH). Comentários de Aldazábal. São Paulo: Paulinas, 2010.

JOIN-LAMBERT, Arnaud. La Liturgie des Heures par tous les baptisés: l’expérience quotidienne du mystère pascal. Leuven: Peeters, 2009. Liturgia Condenda.

LEITE BASTOS, Geraldo. Entrevista. Revista de Liturgia, São Paulo, n.86, mar/abr 1988.

LIBANIO, João Batista. Cenários da Igreja. São Paulo: Loyola, 2001.

LIMA, Danilo César dos Santos. A sacramentalidade e o caráter celebrativo do Ofício Divino das Comunidades no Brasil. Roma: Thesis ad Licentiam in Sacra Liturgia – Pontificium Athenaeum S. Anselmi de Urbe, 2010.

OFÍCIO DIVINO DAS COMUNIDADES (ODC). 3.ed. São Paulo: Paulus, 2018.

PEREIRA SILVA, Jeronimo. Semana de estudo sobre a liturgia das Horas. Revista de Liturgia, n.252, nov/dez 2015.

PINELL, Jordi. Liturgia delle ore. Genova-Milão: Casa Editrice Marietti, 2005. Anàmnesis, 5.

PAULO VI. Constituição Apostólica “Laudis Canticum”. In: Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas. Comentários de José Aldazabal. São Paulo: Paulinas, 2010.

TAFT, Robert. Oltre l’oriente e l’occidenteper una tradizione liturgica viva. Roma: Lipa Edizioni, 1999.

Cânon da sagrada escritura

Sumário

Introdução

1 Etimologia, definição e pressupostos

2 O cânon do Antigo Testamento

2.1 Cânon do Antigo Testamento antes do evento Cristo

2.2 Após o evento Cristo por judeus não cristãos

2.3 Após o evento Cristo por cristãos

3 O cânon do Novo Testamento

3.1 Reconhecimento dos escritos cristãos como sagrados

3.2 A evolução das listas de textos sagrados cristãos

Conclusão

Referências

Introdução

O cânon da Escritura é um tema tradicionalmente abordado pela Teologia Fundamental e compõe assunto clássico desse tratado teológico. Sua abordagem pressupõe a do verbete Inspiração e inerrância. De fato, o estudo do cânon vincula-se ao estudo do conceito teológico de inspiração. Cronologicamente a inspiração da Escritura veio antes da elaboração do cânon bíblico, que está, portanto, vinculado à inspiração dos livros por ele reconhecidos (O’COLLINS, 1991, p.292). Encontram-se no cânon aqueles escritos que tiveram Deus como autor, isto é, que foram divinamente inspirados (GIBERT; THEOBALD, 2007, p.39). Estão fora dele aqueles escritos que, apesar de seu valor espiritual ou histórico, não são inspirados, não tiveram Deus como autor.

Após análise da etimologia da palavra “cânon”, de sua definição como conceito teológico e da explicitação de seus pressupostos, será estudado o cânon bíblico do Antigo e do Novo Testamento.

1 Etimologia, definição e pressupostos

A Sagrada Escritura foi redigida por inúmeros autores humanos ao longo da história do antigo Israel até o século I depois de Cristo. Tais autores compuseram livros que, embora constituam a única Sagrada Escritura, eram distinguidos entre si já na época da origem de cada um. Os diversos livros foram sendo acolhidos como referência de fé por comunidades de crentes seja no antigo Israel, seja no cristianismo. Isso deu-se primeiramente pelo uso, especialmente em âmbito litúrgico. Só posteriormente o acolhimento passou a ser expresso mediante a elaboração formal de listas de escritos. A palavra grega para designar uma lista de escritos desse tipo é κανών (kanón) na sua acepção derivada que significa “regra” ou “norma”. Em sentido próprio, tal termo designava uma vara-padrão utilizada por um pedreiro ou carpinteiro para medir espaços. Trata-se de um vocábulo próximo e relacionado a outro termo grego antigo, κάννα (kánna), que significava “junco”. Na origem remota desse vocábulo está o idioma sumério, que entraria em línguas semíticas com a raiz Qnh (PERANI, 2000, p.390), a qual nessa forma haveria de influenciar línguas como o acádio, o ugarítico, o antigo hebraico e o árabe (BROWN; COLLINS, 1990, p.1035). Em nossa língua, por transliteração, existem com o mesmo sentido as formas “cânon” e “cânone”.

Em Teologia, o cânon é a lista completa dos livros que compõem a Bíblia e que constituem “regra” ou “norma” para a fé. Os escritos sagrados, tanto os que foram produzidos no tempo dos apóstolos como os que eles receberam de sua herança judaica, compõem uma lista que se encontra fechada e que foi formalizada posteriormente no tempo dos apóstolos. A lista completa dos livros é também um reconhecimento de que os demais escritos que ali não se encontram não possuem autoria divina. Por terem neles reconhecida a exclusiva origem divina, os Escritos Sagrados servem aos fiéis de maneira inigualável como guia e instrução no encontro com Jesus Cristo vivo que é a Palavra – Verbum – por excelência de Deus e que dialoga – real e não simbolicamente – com os fiéis de cada geração cristã. Por isso a lista desses livros é “regra” e “norma” para a fé. Os livros que se encontram no cânon da Sagrada Escritura têm para a fé e a vida das pessoas uma autoridade exigente a ser reconhecida de modo definitivo (CAMPENHAUSEN, 1971, p.6).

O primeiro pressuposto do cânon da Escritura é a revelação divina. Tal elemento constitui fundamento hermenêutico no acesso feito pela comunidade de fé aos livros que estão no cânon (AUWERS; DE JONGE, 2003, p.lxxxi). A existência do cânon tem como pressuposto a recepção, por parte da comunidade de fé, daquele processo personalista da revelação do “Alguém” divino verificado em Israel, tendo Cristo como ápice, processo esse que, como evento vivo, transcende e está além do “algo” que é a Bíblia. A adoção, feita com tal pressuposto, de uma determinada lista de livros como medida-padrão foi resultado da consciência, por parte da comunidade de fé, do vivo processo revelativo no qual Deus revelava sobretudo a si mesmo ao longo da história do antigo Israel e que atingiu a máxima profundidade possível no evento de Jesus Cristo.

O cânon, a lista completa de livros que compõem a Sagrada Escritura, não aparece no conteúdo de nenhum dos livros da Bíblia. Por isso, o segundo pressuposto do cânon é a autoridade revelativa extrabíblica que o estabeleceu. A decisão que reconheceu a lista de livros inspirados não é ela mesma garantida pelo carisma da inspiração bíblica (GIBERT; THEOBALD, 2007, p.50).

A elaboração de um cânon com esse sério reconhecimento de fé representou historicamente um processo complexo, cuja consideração fica facilitada ao se examinarem separadamente os processos de reconhecimento das duas grandes partes da Bíblia: Antigo e Novo Testamento.

2 O cânon do Antigo Testamento

A Igreja católica romana e várias Igrejas ortodoxas reconhecem o cânon do Antigo Testamento com 46 livros. As Igrejas reformadas e o judaísmo o aceitam uma versão encurtada de 39 livros, nesse caso dispostos em sequências diferentes e também agrupados diferentemente. A diferença de sete obras entre o cânon de 46 livros e o de 39 verifica-se pelo reconhecimento ou rejeição como textos inspirados dos livros de Tobias, Judite, 1 Macabeus, 2 Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico (Sirácida) e Baruc, mais partes dos livros de Daniel (Dn 3,24-90; 13-14) e de Ester. Nesse último, tal parte reconhecida ou rejeitada corresponde, segundo a numeração da Vulgata, a Est 10,4-16,24. Contudo na numeração da Nova Vulgata essa parte aparece fracionada como: Est 1,1a-1k; 3,13a-13h; 3,15a-15i; 4,17a-17kk; 5,2a-2p; 8,12a-12cc; 9,19a; 10,3a-3k. Os sete livros em questão, mais essas partes dos livros de Daniel e Ester, são denominados pelos católicos de deuterocanônicos e pelos protestantes de apócrifos.

Uma tese clássica para explicar a diferença entre o cânon de 46 livros e o de 39 foi lançada por Herbert Ryle em 1892 na obra The Canon of the Old Testament. Segundo Ryle, no final do século I dC já existiriam no judaísmo duas listas oficiais de livros sagrados. A primeira, o cânon veterotestamentário de 46 livros, seria pré-cristã do século II aC. Tratar-se-ia do cânon de Alexandria, que se encontra na Bíblia dos Setenta ou Septuaginta. A segunda, o cânon veterotestamentário de 39 livros, só teria sido fechada por judeus não cristãos após o evento de Jesus Cristo. Tratar-se-ia do cânon palestinense, com apenas livros em hebraico, estabelecido por rabinos na cidade de Jâmnia após a destruição do Templo de Jerusalém em 70 dC. Praticamente todos os detalhes da tese de Ryle foram submetidos a sérias críticas e modificações (BROWN; COLLINS, 1990, p.1037). O estudo mais acurado da formação do cânon do Antigo Testamento reparte-se em três fases: 1) antes do evento Cristo; 2) após Cristo, mas fora da fé cristã; 3) por cristãos.

2.1 O cânon do Antigo Testamento antes do evento Cristo

Já antes de Jesus Cristo houve esforços por parte do povo hebreu em estabelecer alguma coleção de escritos denominada Sagrada Escritura. A mais antiga definição de um cânon é fornecida pelo antigo tradutor grego do Eclesiástico (Sirácida), originalmente redigido em hebraico (MANNUCCI, 1983, p.191). Em 130 aC, aquele venerando tradutor menciona por três vezes no prólogo do livro os três grupos ou categorias da divisão canônica da Bíblia hebraica: “a Lei, os Profetas e os outros Escritos”, ou ainda na forma “Lei, Profetas e os outros livros” (Eclo, prólogo). Conhecia-se então essa divisão tripartite sem, contudo, que as três categorias já se encontrassem fechadas quanto ao elenco das obras que as compunham (SCHNIEDEWIND, 2011, p.260).

O primeiro grupo era a Lei (Torá) ou Pentateuco, que estava definida pelo menos desde o tempo de Esdras (Esd 7,25-26), por volta de 420 ou 400 aC, embora em grande parte já se encontrasse redigida antes do exílio na Babilônia em 597 aC (BROWN; COLLINS, 1990, p.1037). O estudo dos manuscritos antigos mostra que tais textos da Bíblia hebraica em uso no período do Segundo Templo de Jerusalém (entre 520 aC e 70 dC) nem sempre são absolutamente idênticos ao posterior texto massorético, havendo por vezes proximidade maior com o texto grego da Bíblia dos Setenta e com o Pentateuco samaritano.

O segundo grupo era aquele que o tradutor grego do Eclesiástico chama de “Profetas” (Nebi’im). Essa categoria inclui o que o judaísmo designa de “profetas anteriores” e os modernos chamam de “obra deuteronomista de história”: os livros de Josué, Juízes, 1-2 Samuel e 1-2 Reis (MANNUCCI, 1983, p.191). Trata-se de uma coleção de natureza pré-exílica. Nos Nebi’im incluía-se também aquilo que o judaísmo designa de “profetas posteriores”: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os “Doze profetas”. Esses últimos englobam aquilo que os cristãos designam de “profetas menores” com a exceção de Baruc. Os “Profetas” como um todo, compostos pelos textos como hoje conhecemos, compunham um cânon bem assente pelo menos desde o tempo em que o original hebraico do livro do Eclesiástico (não o prólogo grego escrito posteriormente pelo tradutor) foi redigido, por volta de 180 aC (BROWN; COLLINS, 1990, p.1037).

O terceiro grupo era aquele dos “Escritos” (Ketubim). Essa categoria refere-se a um conjunto cujo conteúdo na época pré-cristã é difícil de definir com exatidão, e é a que causa mais celeumas no que diz respeito à sua fixação (MANNUCCI, 1983, p.191). A tese clássica de Herbert Ryle, proposta em 1892, sustentava que a tradução grega denominada Bíblia dos Setenta refletiria um cânon judaico alexandrino mais longo, estabelecido antes do evento de Jesus Cristo. Segundo Ryle, esse cânon alexandrino compreenderia os livros deuterocanônicos junto com os “Escritos”  pouco tempo e se a lista original de seus livros estivesse disponível. Contudo a tese de Ryle precisa ser alterada devido ao longo tempo requerido para a tradução da Septuaginta, somado ao fato que a relação exata dos livros que a compunham na época pré-cristã não pode ser determinada com exatidão (MANNUCCI, 1983, p.192). A imprecisão das referências aos “Escritos” no judaísmo até mesmo no século I dC é um sinal a mais de que, nesse âmbito, o cânon dos “Escritos” não estava definido com rigor antes do evento de Jesus Cristo (BROWN; COLLINS, 1990, p.1039).

2.2 Após o evento Cristo por judeus não cristãos

Após o evento de Jesus Cristo, judeus não cristãos continuaram a organizar a coleção de textos sagrados. Especialistas sugerem que a hostilidade aos cristãos teria representado estímulo a esse trabalho de definição do cânon judaico após Cristo. Outros sugerem que o impulso para a definição teria provindo das disputas internas no judaísmo entre fariseus e seitas judaicas de tendência apocalíptica como a de Qumran (BROWN; COLLINS, 1990, p.1040).

A descoberta dos manuscritos do Mar Morto a partir de 1947 permitiu lançar um olhar acurado à situação do cânon do Antigo Testamento por volta do ano 70 dC, quando aqueles manuscritos foram ali escondidos. “A biblioteca de Qumran dá a impressão de uma certa seletividade, mas dificilmente de uma precisa distinção entre um cânon fechado e os demais textos” (BROWN; COLLINS, 1990, p.1041). Encontram-se em Qumran tanto a Lei como os Profetas e os Escritos, faltando o livro de Ester. Há inúmeros livros extracanônicos. Dos deuterocanônicos estão presentes parte de Baruc, assim como Tobias e Eclesiástico. Sobre esse último, foi ainda descoberto em 1964 nas ruínas da fortaleza de Massada um rolo em hebraico, o que indica sua grande importância para aqueles judeus (MANNUCCI, 1983, p.194).

No final do século I dC, o historiador Flávio Josefo manifestava que os judeus da época possuíam livros sagrados tidos como tal devido a sua origem divina (BROWN; COLLINS, 1990, p.1039). Josefo é testemunho de que, nessa altura, havia um cânon judaico acolhido com veneração, mas que este ainda não se encontrava definido com absoluta precisão (MANNUCCI, 1983, p.193).

A afirmação da tese clássica de Herbert Ryle de que um cânon judaico palestinense mais curto (correspondente ao atual cânon de 39 livros) teria sido fixado por rabinos em Jâmnia após 70 dC também precisa ser alterada. Em Jâmnia funcionou de fato uma escola destinada ao estudo da Torá, e ali rabinos tinham funções diretivas dentro da comunidade judaica. Contudo não aconteceu ali um sínodo de rabinos, um “concílio de Jâmnia” (THEOBALD, 1990, p.140). Tampouco há evidências de que tenha sido ali elaborada uma lista de livros sagrados (MANNUCCI, 1983, p.195). A posição atualmente mais segura é a de que, até o final do século II dC, em âmbito judaico, não foi estabelecido nenhum cânon equivalente aos 39 livros do atual cânon veterotestamentário abreviado e que excluísse escritos em grego (BROWN; COLLINS, 1990, p.1040). Além do mais, a hipótese da origem grega dos deuterocanônicos ficou comprometida ao se demonstrar que parte relevante deles havia sido redigida originalmente em hebraico e que a maioria dessas obras havia sido aceita por uma parcela dos judeus palestinenses não cristãos (AUWERS; DE JONGE, 2003, p.xviii).

Desse modo, a fixação do cânon por judeus não cristãos não se verificou até o início do século II dC (PERANI, 2000, p.399). O motivo último para que o judaísmo não cristão limitasse seu cânon apenas aos livros mais antigos pode ter sido o embate com os cristãos, com o propósito de estabelecer uma contraposição judaico-palestinense mais efetiva à empreitada dos cristãos que ao longo do século II dC assumiram um cânon mais amplo com base na versão grega da Bíblia dos Setenta (MANNUCCI, 1983, p.195).

2.3 Após o evento Cristo por cristãos

Esforços para definir a lista dos livros sagrados pré-cristãos passaram a ser feitos por parte dos cristãos, tanto de origem judaica como pagã. Eles utilizavam nesse trabalho o evento de Jesus como chave de leitura, o que conduzia a uma inflexão hermenêutica (GIBERT; THEOBALD, 2007, p.18). Para eles, “o fato constituído por Cristo [era …] como uma chave escrita no início da partitura e que determina tudo” (LOHFINK, 1964, p.172). Uma passagem do Evangelho de João – “Examinais as Escrituras, pensando ter nelas a vida eterna, e são elas que dão testemunho de mim” (Jo 5,39) – reflete apropriadamente essa ótica dos antigos cristãos ao considerarem a Lei, os Profetas e os Escritos.

Manifesta-se desde essa mais remota origem o paradigma personalista de revelação com o qual os cristãos dos primeiros séculos concebiam a autocomunicação de Deus e interpretavam os Livros Sagrados. Para eles, a Palavra de Deus por excelência era Jesus Cristo, Christus praesens – Cristo presente – na vida das comunidades e dos fiéis. Em relação a Ele, qualquer Livro Sagrado era apenas analogicamente referido como Palavra de Deus. A Sagrada Escritura como Palavra de Deus analógica encontrava-se totalmente subordinada àquele que é a Palavra de Deus em sentido estrito e rigoroso, a segunda pessoa divina invocada nas aclamações ao “Pai, Filho e Espírito Santo”. Estava-se ali longe do paradigma coisificado de revelação que, no segundo milênio, predominaria no cristianismo em geral e traria consigo a preocupação de determinar as letras exatas, a grafia e a fraseologia do texto bíblico, quando este passaria tardiamente a ser compreendido como imenso depósito de palavras divinamente reveladas.

Até o final do século II, não há entre os cristãos um cânon veterotestamentário exato e universalmente acolhido. A partir daí, paralelamente à progressiva fixação do cânon hebraico entre os judeus não cristãos, os cristãos foram tomando duas vias no estabelecimento do cânon do AT (BROWN; COLLINS, 1990, p.1042). De um lado, isso se deu por repercussão oposta, incluindo-se no AT tanto os livros protocanônicos como os deuterocanônicos com base na Bíblia dos Setenta. Um exemplo é Justino Mártir, que não tinha origem judaica. Ele afirmava que se deve ter como parte da Sagrada Escritura tudo aquilo que se encontra em grego na Bíblia dos Setenta, mesmo aquilo que os judeus não cristãos excluíam (Dialogus cum Thryphone, n.71). Orígenes, conforme o relato de Eusébio de Cesareia, incluía na lista de livros sagrados os deuterocanônicos Ester e 1-2 Macabeus (Historiae Ecclesiasticae VI, 25). O Códice Vaticano, manuscrito da Bíblia grega do início do século IV, apresenta os livros de Tobias, Judite, Baruc, Eclesiástico e Sabedoria. O Códice Sinaítico, da metade do século IV, é fragmentário em relação ao Antigo Testamento, mas inclui os deuterocanônicos livros de Tobias, Judite, 1 Macabeus, Eclesiástico e Sabedoria.

De outro lado, em âmbitos cristãos que viviam em contato com comunidades judaicas não cristãs, verificou-se por vezes uma repercussão em sintonia. Nesses ambientes, encaminhou-se para uma concepção abreviada do cânon do AT na qual um dos critérios era a presumida originalidade em língua hebraica do livro. Melitão, judeu convertido ao cristianismo e bispo de Sardes, forneceu no final do século II o primeiro cânon veterotestamentário cristão que conhecemos, ainda mais restrito que o cânon abreviado de 39 livros por excluir o livro de Ester. A descrição a respeito de Melitão é fornecida por Eusébio de Cesareia na História Eclesiástica, na qual a lista vem reproduzida (Historiae Ecclesiasticae IV, 26). Autores cristãos entre o século IV e início do século V, como Cirilo de Jerusalém, Atanásio e Jerônimo, favorecem o cânon abreviado, mas de uma maneira que precisa ser matizada. Cirilo de Jerusalém (EB 9) e Atanásio (EB 14) elencam o cânon abreviado, mas incluem o deuterocanônico Baruc. Jerônimo cita muitas vezes os livros deuterocanônicos, o que mostra o valor que esses livros tinham para ele (MANNUCCI, 1983, p.197). Jerônimo, além disso, comenta no prefácio da tradução do livro de Tobias: “Julgo ser melhor desagradar à decisão dos fariseus e servir ao que foi determinado pelos bispos” (Praefatio in Tobiam, c.25).

As determinações dos bispos aludidas por Jerônimo haviam sido tomadas em diversos concílios e refletiam o sensus fidelium do período. Na maior parte das vezes, iam na direção de um cânon longo. Em 360 dC, o sínodo de Laodiceia promulgou uma série de decretos. No último deles, de número 60, o sínodo definiu um cânon abreviado, mas que, diferentemente de Melitão, incluía o livro de Ester e também o deuterocanônico livro de Baruc (EB 11). O exame histórico lança hoje dúvidas sobre a autenticidade desse sexagésimo decreto de Laodiceia (GONZAGA, 2019, p.90). Pouco depois, em 382, o Sínodo de Roma definiu com o Decretum Damasi um cânon longo com os deuterocanônicos, mas sem Ester nem Baruc (DH 179). Ainda no final do século IV, a tradução da Vulgata comissionada pelo Papa Dâmaso a Jerônimo traz todos os deuterocanônicos.

Contemporaneamente, na África, os sínodos de Hipona, em 393, e de Cartago, em 397 (DH 186) e 419 (GONZAGA, 2019, p.180), seguiram a linha da Vulgata, mas não mencionam o livro de Baruc. Essa era a posição de Agostinho, cuja autoridade contribuiu decididamente para determinar as discussões a respeito do cânon no âmbito ocidental (BROWN; COLLINS, 1990, p.1036). Agostinho enumera as obras do cânon com os livros deuterocanônicos sem Baruc (AGOSTINHO, De doctrina christiana II, 8,13). A mesma linha de aceitação dessas obras no seio do AT manifesta-se em 405 na carta do Papa Inocêncio I a Exupério, bispo de Toulouse, na França. Sobre os profetas, a carta de Inocêncio I fala genericamente de “dezesseis livros dos profetas”, o que parece excluir Baruc e incluir unicamente Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel e os doze profetas menores (DH 213). Em aproximadamente 495, o Decretum Gelasii elenca no AT os deuterocanônicos, também com a exceção de Baruc (EB 26).

Nos últimos séculos do primeiro milênio, verificou-se no cristianismo uma mudança na compreensão do paradigma de revelação, a qual terá efeitos na consideração do cânon bíblico. Passa-se do paradigma personalista de revelação para o paradigma coisificado. Agora, seguindo o paradigma coisificado de revelação, esta era concebida como o resultado da transmissão de um imenso conjunto de palavras (algo) de origem divina que se encontraria disponível como revelação aos fiéis no tempo antes da morte. Tal era o paradigma de revelação, por exemplo, da Teologia escolástica. Essa mudança na concepção de revelação acarretará transformações na compreensão do cânon bíblico. Mais do que encontrar de modo vivo Aquele que é a Palavra de Deus por excelência, Cristo, mediante a fiel orientação do registro da revelação na Sagrada Escritura, entraria em vigor a preocupação de esclarecer rigorosamente os livros, em suas letras, grafias e fraseologias exatas que comporiam o depósito de palavras divinamente reveladas.

A respeito do cânon bíblico, um marco no segundo milênio foi o padre católico inglês John Wycliffe. Em 1378, ele afirmou o princípio da suficiência revelativa da Sagrada Escritura (WYCLIFFE, 1905, p.181; 1906, p.131). Concebido segundo os moldes do paradigma coisificado de revelação, esse princípio da suficiência revelativa da Bíblia (ou sola Scriptura, como seria posteriormente chamado) rejeitava como revelação divina qualquer outra coisa que não estivesse na Bíblia. Com isso em mente, Wycliffe empreendeu a primeira tradução da Bíblia (a partir da Vulgata) para o inglês com o propósito de tornar a revelação divina mais acessível. Sua tradução incluía no AT os deuterocanônicos, mas no prólogo trazia apenas a lista do cânon abreviado de 39 livros, com a afirmação de que qualquer livro do AT além daqueles deveria ser tido como apócrifo.

John Wycliffe não se deu conta da incoerência lógica de que tais juízos sobre o cânon extrapolam o princípio da suficiência revelativa da Bíblia, ou sola Scriptura. Já que o próprio texto sagrado não traz em nenhum de seus livros o elenco dos títulos que devem fazer parte da Bíblia, quem sustenta a exclusão de qualquer livro da categoria de Escritura Sagrada vale-se de uma autoridade revelativa que não se encontra na Bíblia, mas fora dela.

Nos séculos posteriores, a discussão sobre o cânon do AT estaria novamente reaberta (46 livros ou 39?), mas agora acoplada – mesmo que de maneira logicamente incoerente – a um argumento típico do paradigma coisificado de revelação: o da revelação como sola Scriptura. No século XVI, as ideias de John Wycliffe ganhariam vigor com Martinho Lutero. O pensamento de Lutero era motivado, entre outros elementos, pela ideia da suficiência da Bíblia como revelação divina. Com o objetivo de tornar essa revelação divina mais acessível, Martinho Lutero publicou em Wittenberg a Bíblia traduzida para o alemão. A primeira edição do conjunto completo dos livros bíblicos aconteceu em 1534, embora impressões contendo partes da Bíblia tivessem sido feitas nos anos anteriores.

Na Bíblia de Lutero, os sete livros deuterocanônicos mais os trechos deuterocanônicos de Daniel e Ester encontravam-se deslocados de posição, agrupados e colocados como apêndice numa seção intermediária entre o Antigo e o Novo Testamento. Tais escritos eram ali designados como apocrypha, ao que se seguia a explicação que se tratava de escritos que não eram iguais à Sagrada Escritura, mas que ainda assim eram úteis e apropriados para leitura (BROWN; COLLINS, 1990, p.1042). Posteriormente, tal apêndice passou a ser excluído das edições protestantes da Bíblia. Na Reforma, o cânon abreviado aparece detalhadamente expresso como lista de 39 livros em confissões nacionais como a Confessio Fidei Gallicana, de 1559, a Confessio Belgica, de 1561, a Confessio Anglicana, de 1563, e a Confissão de Fé de Westminster, de 1646.

Em 1546 o Concílio de Trento tratou da questão do cânon bíblico. Na ocasião, ele promulgou sua decisão a favor do cânon veterotestamentário longo. O Concílio de Trento, contudo, manteve o mesmo paradigma coisificado de revelação que, característico da Escolástica, assinalavam também John Wycliffe e os reformadores do século XVI. O texto do decreto apresenta o elenco dos livros que compõem o cânon longo do AT com todos os deuterocanônicos (DH 1502).

Ao aceitar o cânon longo, Trento parece ter preservado a autêntica memória do tempo das origens cristãs, enquanto que os outros grupos cristãos [reformados], numa tentativa de retornar ao cristianismo primitivo, contentaram-se com o cânon abreviado dos judeus [não cristãos] que, se pesquisadores protestantes como A. C. Sundberg e J. P. Lewis estiverem corretos, havia sido criação de um período posterior. (BROWN; COLLINS, 1990, p.1042)

Cerca de três séculos depois, em 1870, o Concílio Vaticano I confirmaria a decisão do Concílio de Trento a respeito do cânon longo (DH 3006 e 3029). Em 1965, o Concílio Vaticano II teria como pacífica a decisão de Trento a respeito do cânon do AT e por isso não viu necessidade de explicitar seu conteúdo. Tendo, entretanto, deixado de lado a concepção de revelação divina coisificada, o Vaticano II resgatou, na Constituição Dei Verbum, o paradigma personalista de revelação característico do “depósito da fé”, isto é, do próprio Cristo e dos apóstolos, assim como da Igreja nos primeiros séculos da era cristã. Tendo agora novamente essa concepção personalista de revelação em mente, o Vaticano II alude ao fato de que o texto sagrado redigido na Antiguidade não traz em si o elenco dos livros do cânon bíblico e que, para determinar tal elenco, é inevitável valer-se de uma autoridade revelativa viva que não se encontra na Sagrada Escritura, mas fora dela: “mediante a Tradição, a Igreja conhece o cânon inteiro dos livros sagrados [… pois] Deus, que outrora falou, dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho” (Dei Verbum n.8).

3 O cânon do Novo Testamento

As primeiras comunidades cristãs tinham escritos que consideravam sagrados, recebidos de sua herança judaica. Na sua hermenêutica desses escritos, valiam-se da chave de leitura proporcionada pelo evento da vida, morte e ressurreição de Cristo. Gradualmente essas primeiras comunidades passaram a redigir seus próprios textos à luz do evento de Jesus Cristo. A definição de um cânon desses novos escritos significou a escolha de alguns e a exclusão de outros. Há séculos o cristianismo em geral – ortodoxo, católico e reformado – reconhece o cânon de 27 livros do Novo Testamento: quatro evangelhos mais Atos dos Apóstolos, catorze cartas específicas no corpus paulinum, sete cartas católicas ou universais (de Tiago, Pedro, João e Judas) e o Apocalipse de João. Houve um processo fora da Sagrada Escritura cujo resultado – o cânon – não foi redigido por nenhum dos hagiógrafos e não se encontra no interior de nenhum dos livros da Bíblia. A história desse processo nos seis primeiros séculos da era cristã é complexa. Uma hipótese simplista deve ser excluída por ter sido demonstrada falsa: a de que no princípio teria havido uma fase de reconhecimento pacífico dos 27 livros, mas que teria sido seguida de um período de dúvidas, para enfim ter-se de novo retornado ao reconhecimento inicial (MANNUCCI, 1983, p.205).

3.1 Reconhecimento dos escritos cristãos como sagrados

O substantivo grego διαθήκη (diathéke) pode ser traduzido como “aliança” ou “testamento”, e καινὴ (kainé) é o adjetivo “nova”. A kainé diathéke (Nova Aliança ou Novo Testamento) é uma fórmula importante utilizada pelos cristãos desde o início para se referirem ao acontecimento revelativo total que se manifestou no evento de Jesus Cristo. Nos primeiros séculos a expressão “Nova Aliança” ou “Novo Testamento” possuía envergadura mais vasta do que a designação dos 27 livros do cânon do NT, e significavam o evento da vida, morte e ressurreição de Cristo. Por exemplo, Paulo fala de sua atividade missionária dizendo ser “capaz de exercer o ministério da Nova Aliança [kainé diathéke]” (2Cor 3,6), referindo-se com essa expressão à realidade ampla manifestada no evento de Jesus Cristo. Em seguida, ele recorda o acontecimento revelativo do antigo Israel e a Aliança mosaica registrados nos livros que compõem a Torá: “Até o dia de hoje, quando [os israelitas] leem o Antigo Testamento [palaiá diathéke, no sentido de Antiga Aliança …]” (2Cor 3,14). Nessa passagem, a expressão “Antigo Testamento” ou “Antiga Aliança” é um “termo para designar a Lei [que] foi inventado por Paulo para sublinhar o caráter ultrapassado da revelação feita a Moisés” (MURPHY-O’CONNOR, 1990, p.820).

Na exposição paulina, a realidade designada como nova (a Nova Aliança ou Novo Testamento na passagem de 2Cor 3,6) situa a reflexão sobre a palaiá diathéke (Antiga Aliança ou Antigo Testamento) no mesmo horizonte amplo de compreensão do termo diathéke. Do ponto de vista da exatidão das fontes, seria um anacronismo pensar que Paulo tivesse ali como implícita uma “coisa”, a lista dos 27 livros que depois seria designada de Novo Testamento.

O horizonte mais amplo de compreensão da expressão “Novo Testamento” deve ser mantido ao se considerar a elaboração do cânon neotestamentário pois manteve-se nos tempos em que esse foi sendo formado. Na época patrística, um autor que utiliza o horizonte mais amplo de kainé diathéke é Ireneu de Lyon, em 180 dC na obra Adversus Haereses. No quarto e último livro dessa obra, o bispo de Lyon aborda frequentemente o tema das duas Alianças. Em Ireneu, a referência às duas Alianças não é equivalente ao uso que hoje fazemos das fórmulas “Antigo Testamento” e “Novo Testamento”. Ele se refere aos eventos das duas Alianças – aquela do antigo Israel e a nova em Cristo – manifestadas na história do povo hebreu. Não se sustenta, portanto, a tese de que Ireneu teria inventado a fórmula “Novo Testamento” para se referir à lista dos escritos cristãos reconhecidos como sagrados.

Já em meados do século II há atestações de que escritos redigidos por cristãos eram reconhecidos como sagrados. Há, nas obras de Justino Mártir, indicações claras do reconhecimento de escritos cristãos na mesma categoria de sagrados em que se encontravam os escritos judaicos pré-cristãos (MANNUCCI, 1983, p.203). Ao falar de textos cristãos, ele faz referência a um conjunto denominado “Memórias dos Apóstolos” em cujo título o genitivo indica a autoria (FIALOVA, 2016, p.169, 171). Tais “Memórias” eram compostas pelos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João (FIALOVA, 2016, p.173). Justino comenta que essas “Memórias dos Apóstolos” são “chamadas de Evangelhos” (Apologia I, 66).

A indicação do reconhecimento da natureza sagrada desses escritos encontra-se na sequência. Justino relata que, no “dia do Sol”, primeiro dia da semana, os cristãos da cidade e do campo reuniam-se e faziam “a leitura das Memórias dos Apóstolos e dos Escritos dos Profetas” (Apologia I, 67). Depois dessas leituras, eram partilhados o pão e o vinho eucarísticos pelo presidente da celebração e feitas ações de graças. Em Justino, vê-se que as “Memórias dos Apóstolos” ou “Evangelhos” tinham o mesmo caráter sagrado das Escrituras Sagradas que haviam sido recebidas do antigo Israel (FIALOVA, 2016, p.177).

3.2 A evolução das listas de textos sagrados cristãos

A lista mais antiga de textos sagrados cristãos atualmente conhecida é o Fragmento de Muratori. O documento representa o uso, no final do século II em Roma, dos escritos cristãos reconhecidos ali como Escritura Sagrada (MANNUCCI, 1983, p.204). Trata-se de um pedaço de manuscrito em latim do século VII no qual faltam a parte inicial e final. A crítica textual indica que foi traduzido de um original grego. Data-se o Fragmento de Muratori no final do século II porque ele se refere a Pio, bispo de Roma de 140 a 155, como sendo recente. Críticos na linha de Albert Sundberg mantêm que o original do Fragmento de Muratori seria apenas do século IV, mas os argumentos não se sustentam (AUWERS; DE JONGE, 2003, p.315). A parte inicial do documento está perdida e ele não fala dos evangelhos de Mateus e Marcos, mas Lucas e João são mencionados nas primeiras linhas como terceiro e quarto evangelhos. Além dos quatro evangelhos e dos Atos dos Apóstolos, a lista afirma que devem ser aceitas as treze cartas paulinas, a Primeira e Segunda Carta de João, a Carta de Judas e o Apocalipse de João. O documento relata que deve ser acolhido um Apocalipse de Pedro, mas ressalta que alguns em Roma o rejeitam. O Fragmento de Muratori não menciona a Carta aos Hebreus, a Carta de Tiago, a Primeira e Segunda Carta de Pedro nem a Terceira Carta de João, e indica alguns livros que não devem ser lidos na Igreja entre os quais o Pastor de Hermas (EB 1-7).

Somente a partir do século IV é que chegará até nós uma consistente diversidade de testemunhos a respeito do cânon do NT. No início desse século, Eusébio de Cesareia relata a lista que teria sido reconhecida por Orígenes na primeira metade do século III (MANNUCCI, 1983, p.204). Estão ali presentes os quatro evangelhos e Atos dos Apóstolos, a Carta aos Hebreus, o Apocalipse, a Primeira e a Segunda Carta de Pedro (mas lançando dúvidas sobre a segunda), três Cartas de João (lançando dúvidas sobre as duas últimas) e um número indeterminado de cartas de Paulo. Não se fala da Carta de Tiago nem da Carta de Judas (Historiae Ecclesiasticae VI, 25).

Em outra parte de sua obra, Eusébio aborda o assunto dos livros cristãos que seriam fidedignos referindo-se a eles como “livros do Novo Testamento” (Historiae Ecclesiasticae III, 25). Ele basicamente repete o elenco acima que era reconhecido por Orígenes (MANNUCCI, 1983, p.204). A diferença é que agora, falando por si, Eusébio comenta que a Carta de Tiago e a Carta de Judas estão também na categoria de duvidosas. Atesta, porém, que ambas estavam sendo empregadas regularmente em diversas Igrejas (BROWN; COLLINS, 1990, p.1051). Além disso, alerta para uma terceira categoria de livros que, não obstante piedosos, não tinham origem no âmbito dos apóstolos, como Atos de Paulo, Pastor de Hermas, Apocalipse de Pedro, Carta de Barnabé e as Instituições dos Apóstolos. Enumera, por fim, uma quarta categoria de obras que se afastavam grosseiramente da ortodoxia e que por isso deviam ser repudiadas. Nessa categoria, ele incluiu uma série de escritos que, recebendo o nome de “Evangelhos”, eram erroneamente atribuídos a Pedro, Tomé, Matias e André e divulgados por cristãos heréticos (Historiae Ecclesiasticae III, 25).

Contemporânea a essas listas é aquela de Cirilo de Jerusalém, aproximadamente do ano 350, na qual ele enumera os livros cristãos que eram lidos na Igreja. Ele acautela que apenas quatro são os evangelhos legítimos. Os demais escritos com esse nome, como o Evangelho de Tomé, disfarçando-se “com a tinta externa e o perfume do nome de evangelho, enganam as almas dos mais ingênuos” (EB 10). Cirilo prossegue e elenca entre os demais textos legítimos os Atos dos Apóstolos, a Carta de Tiago, a Segunda e a Terceira Carta de Pedro, as três Cartas de João, a Carta de Judas e quatorze cartas paulinas (estas sem especificação individual). Não menciona o Apocalipse (EB 10). Uma lista igual a essa é aquela elaborada em 360 pelo Concílio de Laodiceia, que silencia sobre o Apocalipse de João. O cânon de Laodiceia especifica uma a uma as catorze cartas paulinas (EB 13).

Outros testemunhos relevantes são do mesmo arco de tempo ao longo do século IV. O Códice Vaticano apresenta um corpus paulinum no qual faltam a Primeira e Segunda Carta a Timóteo, a Carta a Tito e a Carta a Filêmon, além de também não apresentar o livro do Apocalipse. O Códice Sinaítico, por sua vez, apresenta os 27 livros do NT mais a Carta de Barnabé e o Pastor de Hermas.

Além dos códices com o efetivo texto bíblico, há o testemunho fornecido por listas nominais de livros bíblicos sem o texto deles. Uma delas é o Cânon de Mommsem. Theodor Mommsen publicou, em 1890, a descoberta de uma lista esticométrica dos livros bíblicos utilizada por copistas africanos na metade do século IV para calcular o preço de um exemplar da Bíblia cristã (AUWERS; DE JONGE, 2003, p.154). O Cânon de Mommsen nada fala da Carta aos Hebreus, de Tiago e de Judas.

Na segunda metade do século IV, encontra-se em Atanásio de Alexandria e nos Sínodos de Roma, Hipona e Cartago uma concordância a respeito do elenco de 27 livros de origem cristã a serem lidos nas atividades litúrgicas (MANNUCCI, 1983, p.204). A Carta 39 de Atanásio, escrita em 367, define um cânon detalhado do NT (EB 15). O Sínodo de Roma, em 382, com o Decretum Damasi, manifesta um cânon pormenorizado idêntico. Ele consta dos quatro evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, dos Atos dos Apóstolos, as catorze cartas paulinas identificadas uma a uma e com a Carta aos Hebreus, o Apocalipse de João, Primeira e Segunda Carta de Pedro, uma Carta de Tiago, as três Cartas de João e uma Carta de Judas (DH 180). A ordem das cartas católicas ou universais (de Tiago, Pedro, João e Judas) segue a ordem dos apóstolos elencada por Paulo em Gl 2,9 – onde Tiago, Pedro e João, nessa sequência, são referidos como “as colunas da Igreja” –, sendo a carta do apóstolo Judas Tadeu inserida depois (AUWERS; DE JONGE, 2003, p.574). O Sínodo de Hipona, em 393, estabelece o mesmo elenco de livros (EB 17), que o 3o Sínodo de Cartago, em 397, repete à letra (DH 186).

Outros exemplos seguem-se ao longo do século V. Em 405, a carta do Papa Inocêncio I a Exupério, bispo de Toulouse, além de elencar os 27 livros do cânon do NT, põe de sobreaviso contra escritos não genuínos que circulavam com os nomes de apóstolos como Matias, Tiago Menor, Pedro, João e Tomé (DH 213). O Códice Alexandrino, da primeira metade do século V, apresenta os 27 livros do NT mais a Primeira e Segunda Carta de Clemente de Roma (BROWN; COLLINS, 1990, p.1050). No final do século V, o Decretum Gelasii menciona um a um os 27 livros do NT (EB 27).

Ao longo do século IV as Igrejas latinas e gregas se encaminhavam, portanto, a um processo de aceitação do cânon neotestamentário de 27 livros. Nesses âmbitos, tal aceitação estaria consumada no final desse período (BROWN; COLLINS, 1990, p.1050). Tal não era, entretanto, a situação das Igrejas na Síria, que usavam um cânon de 17 livros. Neste, os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João eram substituídos pelo Diatéssaron de Taciano, que compunha numa única obra a harmonização dos quatro evangelhos. Faziam-se também presentes os Atos dos Apóstolos e um corpus paulinum de 15 obras, com a Carta aos Hebreus e uma Terceira Carta aos Coríntios. Só ao longo do século V foi que as Igrejas na Síria substituíram o Diatéssaron pelos quatro evangelhos, suprimiram a Terceira Carta aos Coríntios e recuperaram a Carta de Tiago, a Primeira Carta de Pedro e a Primeira Carta de João, mas permaneceram sem a Segunda Carta de Pedro, a Segunda e a Terceira Carta de João, a Carta de Judas e o Apocalipse. Em situação análoga estava a Igreja de Antioquia (MANNUCCI, 1983, p.205). A Igreja Copta tinha um cânon que incluía a Primeira e a Segunda Carta de Clemente de Roma, como no Códice Alexandrino. A Igreja Etíope tinha essas duas cartas e mais oito decretos, num total de 35 livros. “Essas considerações devem deixar claro para o estudante o quanto se está generalizando ao se falar de um cânon neotestamentário na Igreja dos primeiros séculos” (BROWN; COLLINS, 1990, p.1051).

No segundo milênio, com o predomínio do modelo coisificante de revelação, já se atesta o cânon como é conhecido hoje. Essa é a situação em 1441, no Concílio de Florença, que elenca o cânon do NT com 27 livros (DH 1335). No Concílio de Trento (1546), esta lista foi retomada e confirmada (DH 1503), o mesmo se dando no Vaticano I (1870), que ratifica o cânon de Trento, mas sem enumerar os livros individuais (DH 3006 e 3029). Algo parecido se deu em 1965, no Concílio Vaticano II (Dei Verbum n. 20).

O âmbito da Reforma protestante geralmente manteve o cânon do NT com 27 livros. A Bíblia de Lutero traduzida para o alemão e publicada integralmente em 1534 elenca e traz esses 27 livros. Na Inglaterra, a edição da Bíblia em inglês autorizada pelo rei Henrique VIII, em 1539, intitulada a Grande Bíblia, tinha o número e a sequência hoje usuais para o NT. Esse procedimento continua hoje em dia, quando uma típica edição da Bíblia protestante traz na mesma ordem os mesmos 27 livros do NT de uma Bíblia católica. A diferença está na ótica utilizada para acessar os textos do cânon. Na Reforma, tal ótica é o paradigma coisificado de revelação em que esta é compreendida como sola Scriptura. A única revelação divina que se encontra disponível ao fiel antes de sua morte é o texto bíblico que o leitor tem diante de si, como um imenso depósito de palavras divinamente reveladas.

Conclusão

A revelação judaico-cristã, desde sua mais remota origem, teve o caráter do paradigma personalista, segundo o qual o que é revelado é, sobretudo, Alguém que na plenitude daquele processo revelativo mostrou-se na pessoa de Jesus de Nazaré. Esse era o paradigma de revelação do próprio Cristo e dos apóstolos. É esse Alguém – Christus praesens, Cristo presente – que continua se revelando posteriormente e no tempo atual, embora o que de si venha agora a mostrar já tenha sido revelado anteriormente no tempo da revelação fundamental. A Sagrada Escritura definida em base a um cânon é o registro dessa revelação fundamental culminada em Cristo. Ela é o registro que guia e orienta com segurança o encontro atual com o próprio Cristo vivo. Incertezas eventuais sobre alguns de seus trechos não depõem contra seu caráter sagrado. Antes, atestam que a Bíblia, enquanto Palavra de Deus subordinada, encontra-se numa relação de total dependência em relação àquele Alguém que é a Palavra de Deus por excelência, Jesus de Nazaré.

O estudo do cânon da Sagrada Escritura ganha em qualidade ao ser deixado de lado o paradigma coisificado de revelação, segundo o qual aquilo que Deus teria feito passar do âmbito divino para o humano seriam palavras exatas contendo seus textos revelados em uma precisa grafia e fraseologia. Ainda que o estudo dos manuscritos antigos demonstre que os textos da Sagrada Escritura não sofreram mudanças fundamentais desde a Antiguidade, ele demonstra também que havia diferentes versões dos textos sagrados utilizadas pelos judeus no período do Segundo Templo (entre 520 aC e 70 dC), bem como entre os cristãos do primeiro século. Os textos daquela época nem sempre são absolutamente idênticos a textos posteriores como o texto massorético e os pergaminhos gregos. Alguns são mais próximos do texto grego presente na Bíblia dos Setenta, e mesmo do Pentateuco samaritano. Tais diferenças, longe de serem tidas como erros, falsificações ou invenções de copistas ou tradutores, apenas indicam a inadequação do paradigma coisificado de revelação. É a concepção plasmada por tal paradigma – que não era aquele de Cristo e dos apóstolos – que exigiria um absoluto rigor de letras, grafias e fraseologias determinadas pelo cânon de livros sagrados.

César Andrade Alves SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Belo Horizonte, Brasil. Texto original em português.

Referências

AGOSTINHO DE HIPONA. De doctrina christiana. Paris, 1845, col. 15-122. (Migne Patrologiae Cursus Completus, PL 34).

AUWERS, J.-M.; DE JONGE, H. (orgs.). The Biblical Canons. Leuven: Leuven University, 2003.

BROWN, R.; COLLINS, R. Canonicity. In: BROWN, R. et al. (org.). The New Jerome Biblical Commentary. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1990. p.1034-1054.

CAMPENHAUSEN, H. F. V. La formation de la Bible chrétienne. Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1971.

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dei Verbum. Roma, 1965. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index.htm. Acesso em: 4 nov 2019.

DH = DENZINGER, H.; HÜNERMANN, P. (orgs.). Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2007.

EB = ENCHIRIDION BIBLICUM. Documenti della Chiesa sulla Sacra Scrittura. 2.ed. Bologna: EDB, 1994.

EUSÉBIO. Historiae Ecclesiasticae. Paris, 1857, col. 9-906. (Migne Patrologiae Cursus Completus. PG 20).

FIALOVA, R. Scripture and the Memoirs of the Apostels. Justin Martyr and His Bible. In: DUŠEK, J; ROSKOVEC, J. (orgs.). The Process of Authority. Berlin: De Gruyter, 2016. p.165-178.

GIBERT, P.; THEOBALD, C. (orgs.). La réception des Écritures inspirées. Exégèse, histoire et théologie. Paris: Bayard, 2007.

GONZAGA, W. Compêndio do Cânon Bíblico. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2019.

JERÔNIMO. Commentaria in Epistolam ad Galatas. Paris, 1845, col. 307-438. (Migne Patrologiae Cursus Completus. PL 26).

______. Commentaria in Epistolam ad Ephesios. Paris, 1845, col. 439-554. (Migne Patrologiae Cursus Completus. PL 26).

______. Praefatio in Librum Tobiae. Paris, 1846, col. 23-26. (Migne Patrologiae Cursus Completus. PL 29).

JUSTINO. Apologia I pro christianis. Paris, 1857, col. 327-442. (Migne Patrologiae Cursus Completus, PG 6).

______. Dialogus cum Thryphone. Paris, 1857, col. 471-800. (Migne Patrologiae Cursus Completus, PG 6).

LOHFINK, N. Über die Irrtumslosigkeit und die Einheit der Schrift. Stimmen der Zeit, n.174, p. 161-181, 1964.

MANNUCCI, V. Bibbia come Parola di Dio. Introduzione generale alla Sacra Scrittura. 2.ed. Brescia: Queriniana, 1983.

MURPHY-O’CONNOR, J. The Second Letter to the Corinthians. In: BROWN, R. et al. (org.). The New Jerome Biblical Commentary. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1990. p.816-829.

O’COLLINS, G. Teologia Fundamental. São Paulo: Loyola, 1991.

PERANI, M. Il processo di canonizzazione della Bibbia ebraica. Nuove prospettive metodologiche. Rivista Biblica, n.48, p.385-400, 2000.

SCHNIEDEWIND, W. Como a Bíblia tornou-se um livro. São Paulo: Loyola, 2011.

THEOBALD, C. (org.). Le canon des Écritures. Paris: Cerf, 1990.

WICKS, J. Cânon bíblico. In: LATOURELLE, R.; FISICHELLA, R. (org.). Dicionário de Teologia Fundamental. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2017. p.115-120.

WYCLIFFE, J. De veritate Sacrae Scripturae. 3v. London: Trübner, v.1, 1905. v.2, 1906. v.3, 1907.

Inspiração e Inerrância da Sagrada Escritura  

Sumário

Introdução

1 Etimologia

2 Paradigma de revelação

3 O cristocentrismo do conceito teológico de inspiração

4 O cristocentrismo da verdade bíblica

5 O cristocentrismo da inerrância da Escritura

6 A normatividade da intenção divina

7 Autoria divina

8 O tempo dos apóstolos

9 Autoria humana

10 O testemunho da Igreja

Conclusão

Referências

Introdução

A fé cristã e católica professa como elementos importantes que os livros da Sagrada Escritura tiveram origem divina mediante um carisma denominado inspiração, e gozam de uma qualidade denominada inerrância. Trata-se de dois elementos muito antigos da fé eclesial e que permanecem indispensáveis a ela. Inspiração e inerrância são temas tradicionalmente abordados pela Teologia Fundamental e é nessa perspectiva que se desenvolve a presente exposição.

O conceito teológico de inspiração e a inerrância bíblica estiveram sob especial escrutínio nos últimos séculos. Em tal período, a origem divina e a inerrância da Escritura tornaram-se questionadas especialmente por descobertas propiciadas pela Ciência moderna. Frente a tais contraposições, o ponto de partida adotado para mostrar a natureza da origem divina e da verdade da Bíblia não pode ser o próprio texto bíblico. Valer-se da Escritura para demonstrar a inspiração e a inerrância seria uma petição de princípio na qual a conclusão que se pretende apresentar (que a Bíblia é inspirada e inerrante) já vem assumida como premissa (que a Bíblia possui tal autoridade para fundamentar a demonstração). Mesmo assim tal caminho do autotestemunho foi adotado pelo documento Inspiração e verdade, da Pontifícia Comissão Bíblica (2014, n.6).

Ao contrário, o ponto de partida aqui é a adesão àquilo que precede cronológica e teologicamente o texto bíblico: o ato de fé dos autores humanos da Bíblia e o objeto da revelação (Deus revelado plenamente em Jesus Cristo). Trata-se de ponto de partida inerente ao método teológico, que procede dentro da confissão religiosa e não “em cima do muro”. Tal ponto de partida é mais consistente para o estudo da inspiração e inerrância (ALVES, 2012, p.375). Nossa exposição examinará primeiramente a etimologia da palavra “inspiração”. Em seguida, inspiração e inerrância serão apresentadas de modo sistemático mediante nove elementos.

1 Etimologia

Os atuais termos teológicos inspirare e inspiratio derivam da passagem paulina de 2Tm 3,16, segundo o texto latino da Vulgata, que é a tradução que Jerônimo fez da Sagrada Escritura no final do século IV. Naquela passagem do apóstolo Paulo, o trecho original grego diz: “Ρᾶσα γραφὴ θεόπνευστος” (“Pása graphé theópneustos”). Esse texto grego foi assim traduzido para o latim por Jerônimo: “Omnis Scriptura divinitus inspirata est”. A passagem pode ser traduzida deste modo numa formulação mais à letra: “Toda a Escritura é soprada dentro [de seres humanos] por Deus”. Nas traduções atuais, a formulação é menos literal: “Toda a Escritura é divinamente inspirada”.

Θεόπνευστος (“theópneustos”) é o termo grego traduzido por Jerônimo quase à letra como divinitus inspirata e significa, em nossa língua, também à letra: “soprada dentro [de seres humanos] por Deus”. O termo grego é a justaposição de dois outros. Um é o substantivo θεός (“theós”, Deus); outro, o verbo πνέω (“pnéo”, soprar) que aparece em sentido literal em Mt 7,25: “Os ventos sopraram”. A passagem de 2Tm 3,16 utiliza o verbo “soprar” em sentido figurado, como analogia para expressar a ideia de uma realidade invisível aos olhos que gerou efeito concreto no mundo real.

Θεόπνευστος (“theópneustos”) pode ter tanto um sentido ativo (“sopra, exala Deus”), como passivo (“é soprada por Deus”). A forma ativa é pouco comum. Bem mais frequente é a forma passiva, em consonância com as concepções tanto pagã como hebraico-cristã de subordinação dos seres humanos à divindade. A religião pagã grega atribuía às pitonisas de templos como o de Apolo, em Delfos, a faculdade de serem passivamente tomadas pela divindade quando se encontravam sob o efeito de gases naturais. Contudo, no Antigo e Novo Testamento é recorrente a ideia de que, sem perder a consciência, o ser humano está sujeito ao influxo divino. Ali, quem procede em nome de Deus é a pessoa consciente e que pelo Espírito Santo vem “soprada por dentro” ou insuflada. Nessa forma passiva, θεόπνευστος (“theópneustos”) pode ser encontrado na literatura helenista em autores como Plutarco e Pseudo-Focílides (século I) e Vettius Vallens (século II) (BEA, 1954, p.2-5).

O verbo latino inspirare deriva de duas outras palavras: o prefixo in- (“dentro” ou “para dentro”) e o verbo spirare (“respirar”). Segundo o uso linguístico no século I, o resultado assim justaposto – inspirare – significa “soprar dentro” entendido em sentido físico. Inspirare, nesse sentido, aparece na literatura pagã no sentido literal de “soprar”, como por exemplo na obra História Natural do autor romano Plínio, o Velho (século I): “in transversas harundines foramen inspirantes” (“soprando dentro da abertura de tubos inclinados”; Naturalis Historia X, 43,3). No uso comum, além do sentido literal, inspirare já tinha também o sentido figurado de instilar uma impressão em outra pessoa, como aparece no poeta romano Virgílio (séculos I e II): “Ut te accipiet Dido, …] occultum inspires ignem, fallasque veneno” (“Quando a [rainha] Dido te receber, […] sopra dentro dela a chama secreta, e ardilosamente o veneno”; Aeneida I, 688).

O termo θεόπνευστος (“theópneustos”) da passagem de 2Tm 3,16 foi palavra seminal que estimulou a reflexão cristã. No que diz respeito ao conceito teológico de inspiração, talvez pelo seu caráter analógico é que aquela passagem de Paulo foi bem mais influente que 2Pd 1,20-21. Esta compõe a outra referência do Novo Testamento que indica a origem divina da Escritura. A ação divina na composição da Bíblia é expressa ali pelo verbo φέρο (“féro”; levar, mover):

Nenhuma profecia da Escritura é objeto de explicação pessoal, visto que jamais uma profecia foi proferida por vontade humana. Ao contrário, seres humanos falaram da parte de Deus levados [φερόμενοι; ferómenoi] pelo Espírito Santo. (2Pd 1,20-21)

2 Paradigma de revelação

O modo de conceber a inspiração e a inerrância bíblica é poderosamente influenciado pelo paradigma de revelação que se adota. Num contexto em que quase não se fala mais disso, a indicação da importância de se explicitar tal paradigma é  de extrema relevância (ALVES, 2012, p.153-154). Consideramos aqui dois paradigmas cujos títulos derivam de uma passagem de uma obra clássica nesse campo. A revelação, “antes que manifestação de alguma coisa, é manifestação de Alguém a alguém. É Yahweh ao mesmo tempo sujeito e objeto da revelação” (LATOURELLE, 1972, p.37-38). Daí os títulos dados a seguir a esses dois modos de se conceber a revelação: um paradigma coisificado (a manifestação apenas de coisas) e um paradigma personalista (a manifestação sobretudo de Alguém).

O paradigma coisificado de revelação concebe aquilo que é mostrado por Deus como apenas “algo”, que pode ser (embora não em todos os tempos) palavras, um novo conhecimento ou luz de julgamento. Na história da Teologia, um marco nesse paradigma é representado pela Teologia escolástica, da qual Tomás de Aquino é um exemplo (LATOURELLE, 1972, p.169-204). Segundo esse paradigma, aquilo que Deus revelou foram unicamente coisas, na maior parte das vezes palavras que compõem frases. Por isso tal paradigma pode também ser designado de verbalista ou “palavrista”. Trata-se de uma concepção de revelação vigorosa desde a Antiguidade e que assinalaria esferas em outros aspectos díspares entre si como o Islã, a Teologia escolástica, a Reforma protestante, os Concílios de Trento e do Vaticano I e a Teologia evangélica norte-americana.

Nessa concepção, a revelação consistiria na passagem, do âmbito divino para o humano, de um imenso conjunto de palavras que foi colocado por escrito. O processo dessa passagem já estaria terminado. No caso das correntes cristãs mencionadas, uma parte prévia daquele “algo” foi transmitida pelos profetas do Antigo Testamento, e a parte principal foi confiada a Cristo. Tal imenso conjunto de frases reveladas foi então entregue aos apóstolos e à Igreja. A partir daí, na concepção da Teologia escolástica, de Trento e do Vaticano I, a Igreja transmitiu esse imenso conjunto de palavras por escrito (a Bíblia) e também oralmente (as tradições não escritas).

Com essa concepção de revelação, também foi redigido o esquema pré-conciliar De fontibus revelationis, apresentado aos bispos no início do Concílio Vaticano II e rejeitado pela maioria conciliar. Já na concepção da Teologia protestante, tal transmissão teria se dado apenas por escrito. Segundo esse paradigma, Palavra de Deus é apenas “algo”, um imenso conjunto de frases postas por escrito. Tal concepção de revelação permeia a compreensão contemporânea (generalizada entre católicos e protestantes) de que “Palavra de Deus” é um equivalente estrito de “Bíblia”. Nesse caso, inspiração e inerrância consistiriam na origem divina e na infalibilidade desse imenso conjunto de frases reveladas num processo já encerrado.

Não era esse, contudo, o paradigma de revelação do “depósito da fé”, isto é, do Israel do Antigo Testamento, de Cristo e dos apóstolos, que era o paradigma personalista. Tal paradigma foi também aquele da Igreja nos primeiros séculos. Segundo essa concepção, o que é revelado continuamente por Deus é, sobretudo, “Alguém”, a saber, o próprio Deus. Em relação à revelação, Deus não só é o autor, mas também o objeto. Acima de tudo, o que se dá a descobrir, num processo permanente que prossegue até hoje, é o próprio Deus transcendente. No antigo Israel começou e se desenvolveu até o ponto máximo esse paradigma revelativo divino sui generis. “Agradou a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar a si mesmo [seipsum] e manifestar o mistério da sua vontade” (Dei Verbum n.2). Mais do que revelação de palavras que compõem frases, é o próprio Alguém divino – Seipsum – que se apresenta (LATOURELLE, 1972, p.11-85).

Esse processo revelativo singular atingiu seu maior grau possível no evento de Jesus Cristo. Dá-se a descobrir Alguém num processo contínuo que já atingiu no passado o maior grau possível (por isso é o “depósito da fé”) que pode se dar neste âmbito em que vivemos antes da morte, e que continua no presente. No período pós-apostólico, nada de novo sobre Deus será revelado que já não tenha sido revelado em Cristo. A revelação, contudo, continua a acontecer no encontro sem intermediários entre Deus e a criatura humana. Para os indivíduos das gerações pós-apostólicas, essa revelação representará novidade, pois tal encontro significa “nascer do alto” (Jo 3,3). Isso, porém, não constituirá novidade revelativa quando considerado o conjunto das gerações compreendidas desde o tempo bíblico até hoje. No paradigma personalista de revelação, “Palavra de Deus” é sobretudo “Alguém”, o próprio Cristo (Jo 1,1.14). É Jesus a “Palavra de Deus por excelência” (LOHFINK, 1964, p.172; MARTINI, 1980, p.57), em sentido absoluto e que se revela contínua e pessoalmente a cada geração. A esse Alguém é que o “algo” – o livro da Bíblia – se encontra subordinado e dele recebe por analogia o epíteto de “Palavra de Deus”. Nesse caso, inspiração e inerrância da Escritura dizem respeito a esse Alguém, a pessoa de Cristo, da qual a Bíblia é o registro escrito insuperável. O conceito teológico de inspiração e o tema da inerrância da Escritura se concebem essencialmente na sua relação com Cristo e com o processo revelativo que já atingiu o seu cume em Jesus e que continua no presente.

No campo da inspiração e da inerrância estará truncada a reflexão que seguir o paradigma coisificado de revelação segundo o qual a revelação é meramente “algo”: as palavras da Bíblia. Uma reflexão assim estaria privada da parte mais essencial da revelação mesma que aconteceu no “depósito da fé”, cujo núcleo último não é “algo”, mas Alguém, Cristo. Uma parte da história teológica das reflexões sobre a inspiração e a inerrância, contudo, foi de fato feita com o paradigma coisificado de revelação, o que constitui para tais estudos um handicap. A história das reflexões indica como é crucial resgatar o paradigma personalista de revelação na consideração da inspiração e da inerrância bíblica. O paradigma personalista permite elevar a reflexão sobre a inspiração e inerrância a um patamar mais condizente com o núcleo último da revelação cristã.

3 O cristocentrismo do conceito teológico de inspiração

O conceito teológico de inspiração possui um vínculo essencial com a pessoa de Jesus de Nazaré. No Concílio Ecumênico Vaticano II isso vem evidenciado no fato que a doutrina sobre a inspiração da Escritura está inserida no quadro maior da Constituição Dogmática Dei Verbum, cujo tema é a revelação divina. Jesus Cristo está no centro daquela exposição sobre a revelação. Por isso ele deve estar também no centro dos assuntos secundários ali presentes, como a inspiração e a inerrância.

Já a encíclica Divino afflante Spiritu, de Pio XII, em 1943, havia mencionado que, além de se buscar, mediante os gêneros literários, o sentido do texto bíblico que os autores humanos inspirados haviam intencionado, era necessário também considerar outro sentido bíblico inspirado: “o [sentido] espiritual, desde que este tenha sido legitimamente posto [no momento da inspiração] por Deus. Esse sentido espiritual [spiritualis sensus] só Deus o conhecia e nos pode revelar” (DH 3828). Trata-se de um sentido que, na ocasião da inspiração que gerou os textos bíblicos, foi “intencionado e posto pelo próprio Deus [a Deo ipso intentum et ordinatum]” (DH 3828). A encíclica adverte que se deve ter “cuidado, porém, para não confundir esse sentido espiritual, intencionado e posto [no momento da composição da Escritura] por Deus, com os sentidos metafóricos das coisas” (DH 3828), chamados um pouco atrás, naquela encíclica, de “místicos” (DH 3827).

Na reflexão teológica pré-conciliar, esse “sentido espiritual” passou a ser chamado de sensus plenior. Tal sentido inspirado mais profundo do texto bíblico foi intencionado pelo autor divino no momento da redação da Bíblia, situava-se em geral além daquilo que os autores humanos tinham consciência e visava manifestar Jesus Cristo e a salvação. O recurso aos gêneros literários muitas vezes é insuficiente para identificar tal sentido mais profundo. Ainda assim, ele é sentido, inspirado, intencionado por Deus, que dá unidade e coesão à Bíblia inteira, tendo seu foco em Cristo e na salvação divina ali prometida e realizada.

Entre os muitos autores que examinaram a questão, os principais foram Joseph Coppens, François Braun, Raymond Brown e Pierre Benoit (ALVES, 2012, p.77-83).

Esse senso mais profundo é praticado desde o início pela Igreja. […] Se não vinha indicado por um nome especial, era um discernimento então deficiente que hoje fazemos melhor […], capaz de exprimir o cumprimento de todas as expectativas na pessoa e nas obras de Cristo. […] É uma das conquistas da nossa moderna ciência bíblica. (BENOIT, 1960, p.194)

À luz desse sentido bíblico mais profundo, a inspiração divina que plasmou a Bíblia o fez de modo totalmente relativo a Cristo. O conceito teológico de inspiração não diz respeito meramente a um livro. Ao contrário, “o fato constituído por Cristo é […] como uma chave escrita no início da partitura e que determina tudo” (LOHFINK, 1964, p.172). A inspiração que produziu a Bíblia, “algo”, teve total subordinação a alguém que está fora da Escritura, Cristo. A razão de ser da totalidade da Escritura inspirada é exatamente registrar e professar que a revelação plena de Deus e da salvação se encontram fora dela em Alguém, Jesus de Nazaré. Seria um contrassenso no conceito teológico de inspiração considerar o elemento subordinado (o livro) sem o elemento subordinante e principal, Jesus. Conceber a inspiração da Escritura sem tomar na devida consideração aquele que é o motivo da inspiração significa entender a Bíblia por si mesma, como imenso aglomerado divinamente inspirado de páginas escritas. Ignorar Cristo é entender mal o conceito teológico de inspiração (ALVES, 2012, p.385-386).

No número 11 da Constituição Dei Verbum do Concílio Ecumênico Vaticano II, esse elemento essencial do conceito teológico de inspiração permaneceu subentendido, não foi explicitado. Naquele número do documento conciliar o nome de Cristo não aparece nem uma vez sequer, mas é sempre tido como implícito em virtude daquelas reflexões sobre a inspiração e inerrância bíblica serem desenvolvidas em tal documento claramente cristocêntrico sobre a revelação divina.

4 O cristocentrismo da verdade bíblica

Também no que diz respeito à verdade do Livro Sagrado, concebê-la sem levar apropriadamente em conta sua subordinação àquele que é tal verdade pessoal – Cristo – significa entender de maneira equivocada a natureza da verdade daquelas páginas. Tratar-se-ia de uma compreensão do elemento relativo (o livro inspirado) por si mesmo, como uma imensa massa precisa e exata de afirmações divinas. Ignorar Cristo é entender mal a verdade inteira da Bíblia (ALVES, 2012, p.384-386). Jesus é, no conjunto de sua pessoa, a revelação divina definitiva, a verdade e a salvação, que são os objetos centrais da mensagem da Bíblia inteira. Ele é o objeto formal de toda a Sagrada Escritura, mesmo quando não é seu objeto material. Tal distinção entre “objeto formal” e “objeto material” é clássica na história da Teologia. Ela já aparecia numa obra importante publicada em 1870 pelo cardeal Johannes Baptist Franzelin:

Referimo-nos aqui com a palavra formal a tudo aquilo de que um determinado livro é constituído e sem o qual ele não atinge o que o autor quer como objetivo do livro. Chamamos de material aquilo que poderia encontrar-se em modo diverso, sem que o livro deixasse de atingir o que o autor quer como objetivo. (FRANZELIN, 1870, p.297)

Por objeto material da Bíblia entende-se aquilo que se vê com os olhos naquelas páginas, as proposições verbais do texto bíblico. Por objeto formal da Sagrada Escritura entende-se o sentido, aquilo que constitui o propósito intencionado pelo autor (no caso, o autor divino). A pergunta pela verdade bíblica extrapola o objeto material e dirige-se ao objeto formal, o sentido intencionado por Deus. O Espírito Santo quis revelar Jesus Cristo. Por isso o que se deve procurar na Bíblia toda é Cristo, verdade e salvação bíblicas. “A Bíblia tem um só autor, Deus, e um único objeto central, a revelação da salvação em Jesus Cristo. Portanto todas as suas afirmações estão ligadas entre si e convergem na direção de um único centro” (MARTINI, 1969, p.250). A importância disso não é pequena para o estudo da inspiração e da inerrância da Sagrada Escritura, pois reflete uma consciência que tinham o próprio Cristo, os apóstolos e a Igreja do tempo dos apóstolos.

Qual é, portanto, a natureza da verdade bíblica? Em primeiro lugar, a natureza da verdade bíblica é Alguém, e nesse sentido é uma verdade pessoal, Cristo, e não as informações de cunho científico, como as geográficas, cosmológicas ou botânicas. Deus quis indicar na Sagrada Escritura sobretudo essa verdade pessoal, ao invés de um grande apanhado de verdades abstratas.

Na Constituição Dei Verbum do Concílio Ecumênico Vaticano II isso vem afirmado desde o início e precisa ser tido como pressuposto ao se estudar o que esse concílio apresentou a respeito da inspiração e da inerrância: “a verdade profunda, tanto a respeito de Deus como da salvação do ser humano […] resplandece para nós em Cristo” (Dei Verbum, n.2). Pelo fato da verdade da Bíblia ser Cristo é que a Sagrada Escritura – algo – pode por analogia ser chamada de “Palavra de Deus”, já que é totalmente subordinada àquele Alguém que é a Palavra de Deus por excelência.

5 O cristocentrismo da inerrância da Escritura

O vínculo essencial do conceito teológico de inspiração com a pessoa de Jesus Cristo traz três consequências para a compreensão mais aprofundada e justa da inerrância bíblica.

a) A atitude de Deus em relação ao erro

A primeira consequência da vinculação entre conceito teológico de inspiração e Cristo é a de permitir vislumbrar, de um modo mais fiel à revelação cristã, o modo pelo qual o Deus único, infalível e suma verdade se relaciona de fato com o erro humano. As atitudes de Deus são reveladas plenamente nas atitudes de Cristo, e aquilo que Deus no fundo é foi revelado em plenitude só em Jesus de Nazaré: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Portanto a relação de Deus com o erro só é compreendida adequadamente na pessoa de Cristo, na sua vida e no seu jeito de ser. Conceber a inerrância da Bíblia sem tomar na devida consideração aquele que é a revelação plena da atitude de Deus em relação ao erro significa não entender direito a inerrância. Ignorar Cristo é entender mal a inerrância da Sagrada Escritura (ALVES, 2012, p.387). Nesse ponto, é necessário purificar pré-compreensões a respeito da relação de Deus com o erro (ALVES, 2012, p.362-367).

Jesus Cristo mostrou a autêntica relação de Deus com o erro no seu desenvolvimento como ser humano e nas suas atitudes em relação aos demais seres humanos. Na encarnação da Palavra de Deus por excelência – segunda pessoa da Santíssima Trindade – Jesus: 1) excluiu do seu próprio agir o erro que é pecado e 2) incluiu erros humanos não pecaminosos, como aqueles que acontecem ao aprender a falar e andar, por exemplo. Sempre chamando os seres humanos a uma santidade radical de vida como a dele próprio, Jesus: 3) convidou os que erram, os fracos e os pecadores com seus pecados a fazer parte do seu corpo místico. Isso se vê nos relatos da sua Paixão e também em outros momentos essenciais dos Evangelhos, como o episódio da mulher adúltera, a parábola do filho pródigo e a instituição dos doze, entre os quais “Judas Iscariotes, aquele que o traiu” (Mc 3,19; Mt 10,4). Pelos pecadores Cristo deu a própria vida (Rm 5,8).

Deus, que é suma verdade e santidade, tem eternamente essa conduta amorosa em relação ao erro, atitude só plenamente revelada em Cristo. “Com esse modo de agir Deus criou o universo e o mantém, e com esse mesmo eterno modo de agir inspirou integralmente a Sagrada Escritura” (ALVES, 2012, p.372). Por isso há erros e imperfeições materiais no texto sagrado. Eles não envilecem a autoridade da Bíblia. Pelo contrário, são indícios da pedagogia divina em relação a essas coisas (SEGUNDO, 2000, p.137-144).

b) A natureza da inerrância bíblica

A segunda consequência de se vincular o conceito teológico de inspiração a Cristo é permitir ver, de modo mais fiel à revelação cristã, a natureza da inerrância. Essa diz respeito à substância da mensagem intencionada por Deus ao originar a Bíblia: precisamente Cristo. Em toda a Escritura, aquilo que Deus teve de fato a intenção de anunciar de modo infalível é Jesus Cristo. Tal intenção divina, concretizada na Escritura de maneira inerrante, verificava-se mesmo naquelas ocasiões em que os autores humanos – sempre fazendo uso de suas faculdades e forças – não tinham consciência de tal intenção divina (pensa-se aqui particularmente nos hagiógrafos do Antigo Testamento).

Durante o Concílio Ecumênico Vaticano II, o abade beneditino Christopher Butler foi quem quantitativamente mais contribuiu para a redação do número 11 da Constituição Dei Verbum no qual vem exposta a doutrina conciliar acerca da inspiração e inerrância. Após o concílio, ele escreveu a respeito: “Em resumo, o que a Bíblia ensina fielmente e sem erro é Cristo e o que se refere diretamente a ele” (BUTLER, 1968, p.101).

c) Motivo de a providência divina indicar-nos erros materiais na Sagrada Escritura

A terceira consequência de vincular o conceito teológico de inspiração com a pessoa de Jesus Cristo é trazer à luz o motivo pelo qual a providência divina concede-nos modernas ferramentas de análise que evidenciam a presença de inexatidões da informação histórico-científica na Bíblia. Já São Jerônimo era capaz de manifestar ali a presença de erros materiais. Ao comentar a carta de Paulo aos Efésios, ele afirma: “Este [Paulo], portanto, que comete solecismos nas palavras, que não pode produzir hipérbatos [elegantes] nem fechar [elegantemente] frases, reivindica corajosamente a sabedoria” (JERÔNIMO, 1845, II:3,1-4, c.478). Solecismos são erros de concordância, regência e construção frasal. O reconhecimento de Jerônimo da existência de erros desse gênero em Paulo era relevante num contexto no qual os adversários da revelação cristã argumentavam que tais erros da Bíblia indicavam que ela não poderia ter origem divina. Jerônimo mostrava com isso que a inerrância precisava ser mais bem compreendida.

A identificação de erros materiais na Sagrada Escritura tornou-se muito acentuada nos séculos XIX e XX. Tais erros materiais consistiam daquilo que, na compreensão moderna, são inexatidões da informação histórico-científica. Isso levou à frequente impressão de que o cristianismo sustentaria que a Bíblia não contivesse erros de informação histórico-científica. Nesse caso o termo “erro” adquiriu ambiguidade e assumiu um sentido não desejado na origem divina do texto sagrado. Durante o Concílio Ecumênico Vaticano II, o abade inglês Christopher Butler chamava a atenção para a ambiguidade indevida que tal vocábulo havia adquirido na compreensão moderna e que dificultava a compreensão da inerrância:

O uso da palavra “erro”, mesmo que nós compreendamos o que ela significa, só traz confusão às pessoas de hoje. Elas conhecem, nas descrições da Escritura, muitas coisas que contradizem a história científica e as ciências naturais. Nós conseguimos contornar essa dificuldade. Mas, para os que são pequeninos no assunto, a palavra “erro” é causa de tropeço. (ALVES, 2012, p.211)

No Concílio Vaticano II, houve apelos para que se manifestasse com precisão o sentido da palavra “erro” ao se afirmar a inerrância bíblica. Os bispos de expressão alemã manifestaram nesse sentido:

Ninguém que examine as afirmações do Magistério eclesial de Leão XIII a Pio XII ousaria negar que a Sagrada Escritura é absolutamente isenta de qualquer erro. Mas – para que o esquema tenha, na realidade, um caráter verdadeiramente pastoral, isto é, tendo em conta tanto a mentalidade como as dificuldades de nosso tempo – pode-se desejar ao menos uma breve explicação do que se deve entender aqui com a palavra erro. […] As pessoas de hoje, que falando com sua própria terminologia encontram erros na Sagrada Escritura, dificilmente podem ser persuadidas a mudar de opinião a este respeito. (ALVES, 2012, p. 156)

Durante o mesmo evento, pela primeira vez na história da Igreja foram apresentados a um concílio ecumênico trechos bíblicos concretos para que ele se pronunciasse a respeito do tema da inerrância da Escritura. Os mesmos bispos de expressão alemã apresentaram exemplos de inexatidões da informação histórico-científica que se encontram na Bíblia e pediram:

Para que a autoridade da Sagrada Escritura não sofra nenhum dano, deve-se falar delas lealmente e sem ambiguidade, e não artificialmente e com receio. […] Mc 2,26 conta o que aconteceu durante uma visita de Davi ao templo de Jerusalém no período em que Abiatar era sumo sacerdote. Mas 1Sm 21,1-7 afirma que era Abimelec, pai de Abiatar. Mt 27,9-10 cita uma passagem do AT e a atribui ao profeta Jeremias, mas na verdade é uma passagem do profeta Zacarias (Zc 11,12-13). Dn 1,1 afirma que Nabucodonosor cercou Jerusalém no terceiro ano do reinado de Joaquim, mas as crônicas do rei da Babilônia achadas em escavações arqueológicas mostram que isso só pode ter acontecido três anos depois. (ALVES, 2012, p.212)

Naquela mesma ocasião, o bispo brasileiro Dom João Batista da Mota e Albuquerque acrescentou outros exemplos nessa linha:

A genealogia de Cristo em Mt 1,1-17 afirma que, entre Abraão e Jesus, houve três séries de 14 gerações. A história mostra que isso não é verdade. […] É só [também] recordarmos a cosmologia antiga: o movimento do sol ao redor da Terra, a massa das águas que se acreditava acima dos céus. Não são gêneros literários, ou certo modo de falar. Na verdade, os antigos acreditavam firmemente nessa cosmologia. (ALVES, 2012, p.212-213)

Em passagens bíblicas desse tipo, com inexatidões da informação histórico-científica, o termo “erro” assume um sentido não desejado na origem divina da Escritura a partir do Espírito Santo. O que então Deus, que é único, infalível e suma verdade, quer mostrar de Si quando, mediante sua divina providência, concede-nos ferramentas de análise que identificam erros desse tipo na Bíblia? Precisamente que a sua completa e amorosa atitude em relação ao erro humano é muito mais rica e complexa do que a mera exclusão de erros por arrogância ou dureza de coração, como se tais erros consistissem em impurezas das quais Ele deveria se manter apartado por ser desprovido de condescendência, misericórdia e compaixão incondicionais.

De que esse Deus único e suma-verdade quer tornar a Igreja mais consciente ao conceder tais instrumentos de análise que evidenciam esses erros de informação histórico-científica na Bíblia? Ele quer torná-la mais consciente de sua divina intenção original, a saber, que a substância da mensagem da Sagrada Escritura inteira é Cristo, e que nisso a totalidade da Bíblia é imune a erro (ALVES, 2012, p.384-385). Santo Agostinho já alertava para o risco de se perder o foco a esse respeito:

Tem-se o costume de se perguntar qual a forma e estrutura do céu em que devemos acreditar segundo nossas Escrituras. Muitos, de fato, polemizam a respeito dessas coisas […] que não têm utilidade para uma vida feliz e, o que é pior, ocupam tempo muito precioso que devia ser ocupado com os assuntos da salvação. Que importância tem [na Bíblia] se o céu se estende como uma esfera com a terra equilibrada no meio, ou se recobre esta como a um disco só pela parte de cima? Trata-se aqui da credibilidade da Escritura […]. O Espírito de Deus, que falava mediante eles [os autores humanos da Bíblia], não quis ensinar aos seres humanos esse tipo de coisa que não tem utilidade para a salvação. (AGOSTINHO, 1845, II,9,20, c.270)

6 A normatividade da intenção divina

Outro elemento que o conceito teológico de inspiração inclui é o caráter normativo da intenção divina quando, mediante a ação do Espírito Santo, atuou de maneira direta na composição do texto sagrado. A inspiração bíblica acarretou um caráter de normatividade para esses textos que é expresso mediante um adjetivo especial: Sagrada Escritura. Tal normatividade da intenção divina manifestou-se como parte da intenção divina mais ampla de gerar o Israel do Antigo Testamento e a Igreja.

A normatividade, contudo, não é suficiente para caracterizar a intenção divina manifestada durante a composição inspirada da Bíblia. A Igreja possui outros textos normativos posteriormente elaborados, como por exemplo as declarações dos concílios ecumênicos, a lista do cânone dos livros bíblicos e o Código de Direito Canônico. Desses textos pode até mesmo ser dito que, de algum modo, eles tiveram uma certa origem divina na medida em que sua composição contou com a iluminação ou assistência do Espírito Santo (ALVES, 2012, p.376). Eles, contudo, não são sagrados. É necessário então acrescentar um elemento mais específico que explique porque, de todos os textos normativos, só a Bíblia é designada como sagrada.

7 Autoria divina

No conceito teológico de inspiração, para explicitar o elemento que só se pode atribuir ao texto normativo da Bíblia e a nenhum outro mais, uma afirmação clássica é a de que Deus é o autor da Sagrada Escritura. De nenhum outro texto normativo diz-se que Deus foi seu autor. A ação de Deus como autor de um texto verificou-se mediante uma direção especial do Espírito Santo já encerrada na história (O’COLLINS, 1991, p.297). Em Teologia, Deus-autor é uma expressão que, quando aplicada a um texto, só é aplicada à Bíblia e em estreita vinculação com o conceito teológico de inspiração.

A inspiração bíblica é, portanto, o fenômeno cuja origem é a intenção divina normativa com a qual, através do Espírito Santo, Deus produziu e estabeleceu como autor o texto normativo e definitivo que registrou a revelação de Alguém – Ele próprio, Deus – acontecida num processo de automanifestação cuja plenitude deu-se na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, segunda pessoa da Santíssima Trindade e Palavra de Deus por excelência que existia antes de todos os tempos. Nenhum outro texto pode honrar-se em ter Deus como autor (ALVES, 2012, p.376).

8 O tempo dos apóstolos

O conceito teológico de inspiração implica um elemento clássico de Teologia Fundamental: há uma diferença essencial entre, por um lado, a fase da Igreja do tempo dos apóstolos e do Israel do Antigo Testamento e, por outro lado, a fase da Igreja pós-apostólica (O’COLLINS, 1991, p.125-127). A inspiração bíblica é um fenômeno que corresponde apenas à primeira fase (O’COLLINS, 1991, p.283). Nos textos teológicos do Magistério isso transparece no fato que, desde a encíclica Providentissimus Deus, em 1893, os termos inspirare e inspiratio são empregados apenas no sentido limitado à composição da Bíblia. A intenção divina inspiradora manifestou-se apenas naquela primeira fase, que era normativa. Essa é a tese central do célebre texto de Karl Rahner sobre a inspiração bíblica (RAHNER, 1956, p.150-160).

Por isso não se deve confundir o conceito teológico de inspiração com o emprego ordinário da palavra “inspiração”. Na vida cotidiana essa palavra pode ser efetivamente empregada para descrever ações do nosso tempo. Porém o conceito teológico de inspiração designa um termo técnico que possui um sentido técnico limitado à Igreja do tempo dos apóstolos e do Israel do Antigo Testamento. Houve uma relação qualitativamente única de Deus com o antigo Israel e a Igreja do tempo dos apóstolos na qual, mediante o carisma da inspiração bíblica que se encontra encerrado, a intenção divina gerou a Escritura como elemento normativo e permanente para a Igreja das épocas posteriores (ALVES, 2012, p.83-85). A utilização na linguagem cotidiana do termo “inspiração” não possui esse limite. Um texto teológico sobre inspiração bíblica que não leva em consideração o sentido técnico exclusivo do conceito teológico de inspiração indica uma lacuna no campo da Teologia da revelação e em Teologia Fundamental, mais do que inova na reflexão sobre a inspiração bíblica (ALVES, 2012, p.377). Tal falta de distinção mais atrapalha que ajuda, pois gera falta de clareza sobre algo que é qualitativamente restrito ao primeiro período (aquele do “depósito da fé”) enquanto normatizador para o segundo período, o nosso.

Será que tal distinção qualitativa entre os dois períodos significaria que houve uma interrupção na revelação, que esta deixou de ser contemporânea às gerações pós-apostólicas e que não se conta mais com a criatividade destas (GIBERT; THEOBALD, 2007, p. 280)? Será que o Espírito Santo não se encontra mais atuante nos seres humanos? As respostas são negativas. A revelação no período pós-apostólico continua acontecendo e significando novidade para cada geração. Deus dá-se a descobrir como “Alguém” num processo contínuo que já atingiu no passado o maior grau possível nesta realidade em que vivemos antes da morte e que continua no presente. O Espírito Santo continua vivo e atuante. Se no período pós-apostólico nada de novo sobre Deus será revelado que já não tenha sido revelado em Israel e em Cristo (o “depósito da fé”), contudo a revelação permanece acontecendo no encontro sem intermediários entre Deus e a criatura humana. Para os indivíduos das gerações pós-apostólicas, essa revelação representará novidade e envolverá criatividade, pois tal encontro pessoal significa “nascer do alto” (Jo 3,3). O Espírito Santo continua a tornar presente Deus já plenamente revelado em Cristo. Isso não será, contudo, novidade revelativa se considerado o conjunto de todas as gerações desde o tempo dos apóstolos até hoje.

Há de fato uma linha de reflexão que tomou rumo diverso e que não limita o conceito teológico de inspiração ao tempo dos apóstolos. Ela aparece com frequência na reflexão feita após o Concílio Vaticano II. Em 1964 – antes, portanto, da Constituição Dei Verbum – o biblista jesuíta Luis Alonso Schökel terminou a obra seminal A Palavra inspirada, que marcaria a reflexão pós-conciliar sobre a inspiração num grau não menor que o próprio documento do Vaticano II. O subtítulo do livro – A Bíblia à luz da Ciência da linguagem – anunciava sua originalidade: trabalhar o tema da inspiração bíblica segundo o ponto de vista dessa ciência. No prólogo da edição de 1986, o autor diz que sua intenção foi a de transpor o tratado da inspiração do campo do conhecimento para o campo da linguagem. Schökel repensa ali a reflexão sobre a inspiração como carisma de linguagem e o faz mediante categorias linguísticas: as funções da linguagem e seus níveis. Ele centra seu estudo a respeito da inspiração da Bíblia sobre “algo”, isto é, a obra literária concreta da Sagrada Escritura, ao invés de fazê-lo precisamente sobre “Alguém”, a pessoa de Jesus Cristo. Isso leva o autor a um ponto de partida que se tornaria comum nas décadas seguintes: os próprios livros inspirados (SCHÖKEL, 1992, p. 84). Outro elemento relevante é o da vinculação entre escrever e ler, que é refletida mediante a categoria de “círculo hermenêutico”. Com base em tal vínculo é utilizado na obra o sentido que o termo “inspiração” tem na linguagem ordinária cotidiana. Isso levou Schökel a pensar a inspiração não só na formação do texto sagrado, mas também na atividade dos leitores dos séculos posteriores: os leitores litúrgicos e o leitor que medita a Sagrada Escritura (SCHÖKEL, 1992, p. 249).

A partir de então, o fascínio da Ciência da linguagem e o emprego do sentido ordinário da palavra “inspiração” assinalam em geral os estudos pós-conciliares no campo da inspiração da Escritura. Nesse campo tornou-se comum designar também como inspiração a ação do Espírito Santo sobre o leitor da Bíblia. Empregada nesse sentido, tornou-se cômoda a frase “A Bíblia não é apenas inspirada, mas também inspirante” (IZQUIERDO, 2002, p. 79.130). No tempo pós-apostólico, o leitor da Bíblia poderia “fazer a experiência da inspiração” (GIBERT; THEOBALD, 2007, p. 293). Expressão dessa atual linha da reflexão é o documento Inspiração e verdade da Sagrada Escritura da Pontifícia Comissão Bíblica, publicado em 2014.

Claro que o Espírito Santo é responsável pelo texto bíblico tanto no “escrever”, durante a composição da Sagrada Escritura, como no “ler”, em ocasião de sua leitura no período pós-apostólico. Sendo, contudo, atividades diferentes, também a ação do Espírito Santo será diferente (ALVES, 2012, p.359). A doutrina da inspiração bíblica ensina que o Espírito Santo era atuante como inspirador apenas na composição da Bíblia. Uma maneira teologicamente já consagrada de expressar isso é dizer que esse é o único escrito que tem Deus como autor. Tal ação divina exclusiva durante a composição da Bíblia refletia uma intenção divina já encerrada e que representa o “depósito da fé”. Na segunda atividade (o “ler” no período pós-apostólico, atividade diversa de “escrever” o texto bíblico), o mesmo Espírito Santo permanece ativo, mas de modo diverso e que pode ser denominado assistência, iluminação, moção ou impulso do Espírito.

Tal distinção entre conceito teológico de inspiração e assistência ou iluminação não representa obstáculo porque não há oposição ou contradição entre as duas ações diferentes do mesmo Espírito Santo, mas apenas a distinção qualitativa mencionada. Em ambas a viva revelação divina continua contemporânea de cada geração e chamando-as à criatividade inerente a quem se insere em tal diálogo revelativo com base no que Cristo revelou definitivamente pela primeira vez no evento de sua vida, morte e ressurreição, o núcleo do “depósito da fé”. Longe de representar obstáculo, a denominação diferenciada para referir as ações do Espírito Santo no “escrever” a Bíblia no passado e no “ler” hoje o mesmo texto sagrado evita a confusão de qualidade entre os dois períodos.  Isso talvez não seja pouco, pois convida à humildade em relação ao período em que vivemos e contribui para uma mais justa compreensão da importante diferença qualitativa presente na intenção divina historicamente manifestada.

9 Autoria humana

O conceito teológico de inspiração integra pelo menos três elementos acerca dos seres humanos. Primeiro, a Sagrada Escritura inspirada teve verdadeiros autores humanos. O Magistério designa os hagiógrafos como autores desde a encíclica Providentissimus Deus, de Leão XIII. em 1893 (ALVES, 2012, p.38). No Concílio Ecumênico Vaticano II, o número 11 da Constituição Dei Verbum chama-os de “verdadeiros autores”, no sentido de verdadeiros escritores do texto que elaboraram. Nesse mesmo sentido, desde a encíclica Divino afflante Spiritu, de Pio XII, em 1943, o Magistério havia abandonado o termo dictare para expressar a autoria divina da Sagrada Escritura. No século XX, por aparecer traduzido nas línguas modernas no sentido de “ditar”, tal termo havia adquirido um significado mecânico incompatível com a autoria humana da Bíblia. Pela mesma razão, durante o Concílio Vaticano II o Magistério abandonou nesse campo as categorias aristotélico-tomistas de causalidade eficiente, que levavam a chamar o hagiógrafo de autor-instrumental e a Deus de autor-principal da Escritura. O termo “instrumento” aplicado ao hagiógrafo mais escondia que patenteava o papel do ser humano como verdadeiro autor do texto sagrado.

Segundo, a quantidade desses verdadeiros autores humanos da Bíblia foi muito grande. Hagiógrafos, ou autores humanos da Escritura, foram todos aqueles que de fato tomaram parte na redação dos textos bíblicos. Dois extremos devem ser evitados: por um lado, que a ação divina teria se espalhado indistintamente sobre todos os membros do povo de Israel, e por outro lado, que a inspiração divina teria sido coisa que aconteceu apenas no último redator que interveio no texto.

Terceiro, a psicologia dos autores humanos durante a inspiração não era caracterizada por um estado fenomenológico interno que teria sido exclusivo, distinto dos estados internos nos quais a inspiração bíblica não se manifestava. O número 11 da Constituição Dei Verbum utilizou a esse respeito termos aptos a descrever também outras ações divinas sobre o ser humano: “Deus escolheu homens dos quais se valeu – fazendo, estes, uso de suas faculdades e forças, e agindo Ele próprio neles e através deles – a fim de que colocassem por escrito” (Dei Verbum n.11). O elemento distintivo da inspiração da Bíblia não se encontra no nível da experiência subjetiva do hagiógrafo inspirado. “Aqui a Teologia deve fazer-se particularmente modesta” (GIBERT; THEOBALD, 2007, p. 69). Aquilo que dá ao conceito teológico de inspiração seu caráter específico, único e irrepetível encontra-se na intenção de Deus, e não no estado mental do autor humano inspirado (ALVES, 2012, p.378).

10 O testemunho da Igreja

Enfim, a inspiração e a inerrância bíblicas incluem a prova dessas coisas: é dada pelo testemunho da Igreja que remonta ao tempo dos apóstolos. Não convém prová-las mediante o próprio texto bíblico, pois seria petição de princípio. No Concílio Vaticano II, o número 11 da Constituição Dei Verbum recorre três vezes ao testemunho da Igreja. Duas vezes refere-a pelo nome: “a santa mãe Igreja” e “Igreja”. Uma vez o faz indicando algo que se deve tomar como profissão de fé: “portanto […] deve-se professar” (“inde […] profitendi sunt”. A inspiração e a inerrância bíblicas são garantidas com base no testemunho eclesial. É tal testemunho com base na fé da Igreja (que remonta ao tempo dos apóstolos) que prova e garante a origem divina e a inerrância da Sagrada Escritura (ALVES, 2012, p.379).

Conclusão

O estudo da inspiração e da inerrância ganha em qualidade ao ser deixado de lado o paradigma coisificado de revelação, segundo o qual aquilo que Deus faria passar do âmbito divino ao humano seriam palavras exatas contendo seus textos revelados em uma precisa grafia e fraseologia. Esse estudo só obtém tal ganho de qualidade à luz da Teologia Fundamental quando é inserido no quadro mais amplo da revelação judaico-cristã em seu caráter de paradigma personalista segundo o qual o que é revelado é sobretudo Alguém, cuja plenitude revelativa deu-se em Jesus de Nazaré. Esse era o paradigma de revelação do próprio Cristo e dos apóstolos. Cristo presente continua se revelando no tempo atual, embora o que de si venha agora a mostrar já tenha sido revelado anteriormente no tempo da revelação fundamental. A Bíblia, inspirada e inerrante à luz dessas reflexões, é o registro da revelação fundamental já culminada e guia com segurança o encontro atual com Cristo vivo.

César Andrade Alves SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Belo Horizonte, Brasil. Texto original português

Referências

AGOSTINHO DE HIPONA. De Genesi ad litteram. Paris: 1845, col. 246-486. (Migne Patrologiae Cursus Completus, PL 34).

ALVES, C. A. Ispirazione e verità. Genesi, sintesi e prospettive della dottrina sull’ispirazione biblica del Concilio Vaticano II (DV 11). Roma: Armando, 2012.

BEA, A. De inspiratione et inerrantia Sacrae Scripturae. Roma: PIB, 1954.

BENOIT, P. La plénitude de sens des Livres Saints. Revue Biblique, n.67, p. 161-196, 1960.

BUTLER, C. Revelation and Inspiration. In: ______. The Theology of Vatican II. London: Darton, Longman & Todd, 1967, p. 28-58.

______. The inspiration of the Bible. The Tablet, n.222, p. 100-101, 1968.

COLLINS, R. Inspiration. In: BROWN, R. et al. (orgs.). The New Jerome Biblical Commentary. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1990, p. 1023-1033.

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dei Verbum. Roma, 1965. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index.htm. Acesso em: 12 set 2019.

DH = DENZINGER, H.; HÜNERMANN, P. (org.). Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2007.

FISICHELLA, R. Inspiração. In: LATOURELLE, R,; FISICHELLA, R. (orgs.). Dicionário de Teologia Fundamental. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 407-410.

FRANZELIN, J. B. Tractatus de Divina Traditione et Scriptura. Roma: Sacra Congregatio de Propaganda Fide, 1870.

GIBERT, P.; THEOBALD, C. (orgs.). La réception des Écritures inspirées. Exégèse, histoire et théologie. Paris: Bayard, 2007.

IZQUIERDO, A. (org.), Scrittura ispirata. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 2002.

JERÔNIMO. Commentaria in Epistolam ad Ephesios. Paris: 1845, col. 439-554. (Migne Patrologiae Cursus Completus, PL 26).

LATOURELLE, R. Teologia da revelação. São Paulo: Paulinas, 1972.

LOHFINK, N. Über die Irrtumslosigkeit und die Einheit der Schrift. Stimmen der Zeit, n.174, p. 161-181, 1964.

MARTINI, C. Ispirazione e verità nella Sacra Scrittura. La Civiltà Cattolica, n.120, p. 4/241-4/251, 1969.

_______. La Parola di Dio alle origini della Chiesa. Roma: PUG, 1980.

O’COLLINS, G. Teologia Fundamental. São Paulo: Loyola, 1991.

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. Inspiração e verdade da Sagrada Escritura. São Paulo: Paulinas, 2014.

RAHNER, K. Über die Schriftinspiration. Zeitschrift für katholische Theologie, n.78, p. 137-168, 1956.

SCHÖKEL, L. A. A Palavra inspirada. A Bíblia à luz da Ciência da Linguagem. São Paulo: Loyola, 1992.

SEGUNDO, J. L. Inspiração e inerrância. In: ______. O dogma que liberta. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 119-144.

.

Teologia pública da cidadania

Sumário

1 Cidadania entre o céu e a terra

2 O conceito de cidadania

3 Uma teologia da cidadania como teologia pública

3.1 Bases de uma teologia da cidadania

3.2 Teologia trinitária para a cidadania

4 Uma teologia pública: contextual e católica

Referências bibliográficas

1 Cidadania entre o céu e a terra

A cidadania é uma questão central da convivência humana. Ela ocupa um lugar proeminente no terceiro livro da Política, do filósofo grego Aristóteles, em que define o cidadão (polites) da cidade (polis) com sua constituição específica (politeia). O apóstolo Paulo insiste que ele é “judeu, natural de Tarso, cidade importante da Cilícia” (Atos 21,39) e reivindica, ao mesmo tempo, ser cidadão romano (Atos 16,38; 22,25-28), invocando direitos e privilégios específicos implícitos. O autor da carta aos Efésios enfatiza que vale para os judeus e os gregos em Cristo: “(…) já não sois estrangeiros nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e familiares de Deus” (Ef 2,19). O autor da carta aos Hebreus sublinha o caráter precário da cidadania terrena: “Na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas estamos à procura da que está por vir” (Hb 13.14). A visão do livro do Apocalipse é uma cidade, a Jerusalém celestial, curiosamente uma cidade sem templo (Ap 21,22). No fim dos tempos, o profano e o espiritual, o secular e o religioso coincidem na presença de Deus. Agostinho escreveu proeminentemente sobre a relação entre a cidade de Deus e a cidade terrena. Assim, pode-se afirmar que a cidadania é um tema cristão que está presente desde os primórdios do cristianismo. A cidade humana é sempre precária, mas é a localização adequada dos cristãos em sua vida. Os cristãos são fiéis à cidade de Deus, que deve ser revelada e instalada em sua plenitude, e que já está presente na cidade humana com todas as suas ambiguidades.

Na atualidade, as questões da cidadania nacional, e especialmente a luta pela inclusão em um sentido mais amplo pela moradia, pelo “direito de ter direitos” (ARENDT, 2012, p.296), de pertencer a algum espaço e deter propriedade desse lugar são questões autênticas e centrais. Também se pode mencionar aqui os fluxos de migrantes e refugiados que o mundo acompanha e enfrenta hoje. Estas realidades mostram o desafio do desarraigamento e do deslocamento. Cristãos sabem que nunca estão totalmente “em casa” neste mundo, e sua fidelidade não pode ficar ininterrupta com relação a um lugar específico, um povo específico, uma nação específica. O Evangelho transcende os limites estabelecidos pelos seres humanos. No entanto, pessoas cristãs são chamadas a dar sua contribuição precisamente em um contexto e num momento específicos, para ajudar seus pares a se sentirem em casa onde quer que estejam. Isso implica que devam trabalhar para os direitos da cidadania para todas as pessoas em todos os lugares. Na medida em que a teologia reflete sobre seu devido lugar e sua incidência na sociedade, na esfera pública, trata-se de uma teologia pública, que aqui formulamos como uma teologia pública da cidadania.

2 A conceito de cidadania

“Cidadania” denota antes um campo conceitual do que de um conceito claramente definido, devido à crescente multiplicidade de assuntos, questões, objetivos e políticas relacionados. Foi historicamente forjado no Ocidente, tendo como referência inicial Atenas e Roma e passando pelas revoluções do século XVIII nos Estados Unidos e na França. No entanto, não se deve esquecer que a primeira pessoa a falar de “direitos humanos” foi Bartolomé de Las Casas (1484-1566), que desencadeou uma importante discussão sobre o status humano dos povos indígenas.

Thomas Janoski define a cidadania como “ser membro passivo e ativo de indivíduos em um Estado-Nação com direitos e obrigações universais em um nível específico de igualdade” (1998, p.9). Muitos autores referem-se às três categorias de direitos do sociólogo britânico Thomas H. Marshall (1893-1981) – civis, políticos e sociais –, conquistados nesta ordem entre os séculos XVIII e XX (cf. CARVALHO, 2001). O advogado brasileiro Darcísio Corrêa introduz sua definição destacando aspectos econômicos e sociais da cidadania: “A cidadania (…) significa a realização democrática de uma sociedade, compartilhada por todos os indivíduos ao ponto de garantir a todos o acesso ao espaço público e condições de sobrevivência digna, tendo como valor-fonte a plenitude da vida”(2006, p.217). É evidente que tal definição ultrapassa a questão dos direitos (e deveres) previstos na lei, introduzindo uma dimensão utópica e escatológica quando se fala da “plenitude da vida” (ver João 10,10, texto frequentemente citado por movimentos sociais e ONGs ligadas a igrejas). “Acesso ao espaço público” aponta para as necessárias garantias a serem providenciadas pelo sistema político e jurídico, bem como para a esfera pública como espaço discursivo, de formação de uma opinião pública, enquanto a “sobrevivência digna” indica que as necessidades básicas devem ser adequadamente atendidas.

O uso frequente, na literatura e advocacia brasileiras, de “conquista”, “participação”, “emancipação” e “cidadania ativa” indicam a esperança e, de fato, a expectativa de muitas pessoas ativas na sociedade civil para construir uma sociedade nova, uma sociedade “de baixo”, com mais ênfase dada ao social do que ao individual. Para o sociólogo Pedro Demo, a cidadania é “um processo histórico de conquista popular, pelo qual a sociedade adquire, progressivamente, condições de se tornar um sujeito histórico consciente e organizado, com capacidade para conceber e tornar efetivo um projeto próprio” (1992, p. 17).

 Um exemplo disso pode ser o chamado Orçamento Participativo, uma invenção brasileira hoje praticada em muitas partes do mundo e que faz parte desta nova visão: parte da execução do orçamento municipal é decidida em assembleias populares, sendo as prioridades estabelecidas para a aplicação do orçamento público pela participação popular e democrática. As consultas populares são outro meio de uma “cidadania ativa” (BENEVIDES, 2003) previstas na Constituição de 1988 (Art. 14), mas ainda pouco utilizadas, ao menos enquanto voto oficial. Seriam outro avanço importante da participação popular na política. Contudo, como sempre na democracia, o voto da maioria precisa ser contracenado com a garantia dos direitos humanos e, especialmente, a proteção de minorias. Questões como a pena de morte sabiamente não foram postas à votação, porque o direito à vida é um direito fundamental (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988, Art. 5º, inciso XLVII) que, por princípio, não está sujeito a mudanças. De acordo com pesquisas de opinião, no entanto, é bastante provável que uma votação popular encontraria uma maioria a favor.

No sentido de formação para a cidadania e exercício de participação do povo de Deus, as igrejas podem exercer um papel de escolas de democracia, onde são testadas formas de relacionar a motivação, a análise e a ação a uma discussão e ação participativa, tanto para dentro quanto para fora dos muros das igrejas. Isto pode ser o caso mesmo onde estruturas hierárquicas e patriarcais, a princípio, não dão muito espaço para a participação e liderança cidadã. Mesmo em tais ambientes, capacitações importantes como a de mulheres como lideranças comunitárias podem ocorrer e incidir sobre a vida comunitária da igreja e da comunidade local. Além disto, motivações cidadãs podem ocorrer mesmo em igrejas com autoridade centralizadora. Mais amplamente falando, a cultura cívica, ou seja, o significado atribuído à cidadania e às atitudes de (des)crença dos cidadãos em relação à sua cidadania, tem influência direta no grau em que a cidadania pode ser efetiva e participativa, principalmente porque o poder e o trabalho na máquina pública também são realizados por pessoas cidadãs e suas deficiências refletem o seu potencial e as suas limitações.

Em suma, a cidadania não pode ser reduzida a direitos e deveres em um Estado nacional. Por um lado, a lei escrita precisa basear-se em algo que é anterior a ela, ao qual as pessoas, pelo menos, concordam e se sentem comprometidas. A moral e a normatividade entram aqui, assim como os direitos humanos, que, por definição, ultrapassam as fronteiras nacionais. Em segundo lugar, a lei é inútil, a menos que esteja efetivamente disponível para as pessoas, que implica tanto como é tratada pelas autoridades instituídas quanto como é percebida pelos cidadãos. Em terceiro lugar, a cidadania é moldada pelo discurso e a prática na esfera pública, em que a sociedade civil (inclusive as igrejas que, hoje, pertencem a esta esfera) tem uma tarefa específica como a parte organizada baseada, como eu defino, na iniciativa privada envolvida na promoção da cidadania na esfera pública para promover o bem comum para toda a sociedade. É na esfera pública nacional que as pessoas podem efetivamente lutar pela melhoria de suas vidas e por maior participação. Ainda assim, é preciso destacar que a sociedade civil está interagindo em redes no todo o mundo, a exemplo do Fórum Social Mundial que começou em Porto Alegre/RS. Existem realidades e concepções de uma cidadania global. Uma economia globalizada, bem como meios de comunicação cada vez mais rápidos, parecem não fazer sentido em relação às fronteiras nacionais. Mas a fragmentação, as questões étnicas, a migração com reações frequentes de xenofobia, e o fechamento das fronteiras também criaram novas fronteiras e reforçaram antigas. Em todo caso, é a configuração nacional que coloca em prática direitos concretos e direitos de livre manifestação.

Volto ao papel de igrejas na luta pela cidadania. Não há dúvida de que as igrejas contribuíram e continuam contribuindo de forma importante para a democracia e a cidadania (cf. SINNER, 2012a; 2018; 2019). No Brasil, notadamente a Igreja Católica Romana tornou-se amplamente reconhecida por fornecer uma espécie de incubadora para a sociedade civil emergente no final dos anos 1960 e 1970. A contribuição e presença das igrejas protestantes históricas, entre elas a Igreja Evangélica da Confissão Luterana no Brasil, é menos visível. Muitas vezes essa foi criticada por seu quietismo ou até mesmo por dar apoio indireto ao regime militar. Contudo, vem desenvolvendo importantes trabalhos educacionais e diaconais, além de ter se pronunciado, desde 1970, acerca de temáticas candentes na sociedade (SINNER, 2019, p.111-133). Já igrejas pentecostais como as Assembleias de Deus, o segmento de igrejas de mais rápido crescimento no Brasil, bem como na América Latina, África e partes da Ásia, são, muitas vezes, eficazes no estabelecimento de um sentido mais importante da dignidade humana entre os seus crentes (MARIZ, 1994; CORTEN, 1996; MAJEWSKI, 2008). Elas promovem a autoestima, proporcionando oportunidades para qualificação pessoal e profissional, e o resgate de muitos prisioneiros e pessoas viciadas em drogas. Ao mesmo tempo, muitas igrejas do segmento pentecostal e neopentecostal “nomeiam” e apoiam candidatos específicos para cargos políticos, buscando influência pública e até hegemonia. No geral, a imagem desse setor é bastante ambígua, o que ficou especialmente visível nas eleições brasileiras de 2018 e no governo que as seguiu.

Quatro aspectos parecem ser particularmente importantes em relação a uma potencial contribuição de igrejas cristãs para a cidadania: (1) a prática das igrejas; (2) seu papel pedagógico; (3) sua ação no espaço público e (4) sua reflexão teológica. Explico essas quatro dimensões brevemente e, como indicado acima, alerto pela enorme diversidade de igrejas, posições e práticas em relação à cidadania.

1) A prática das igrejas: a forma como se dá a prática de fé nas igrejas, seja na adoração, na catequese, nos retiros, nos grupos de leitura da Bíblia, nos programas sociais e similares, refletirá sobre como irão se comportar os cidadãos conscientes de seus direitos e deveres. Tal prática abrange as atividades desenvolvidas pelas igrejas e pode incluir membros da igreja ou até mesmo a população além de sua membresia. As atividades, em muitos lugares, contam com membros batizados e não batizados, contribuintes e não contribuintes, até porque muitas igrejas não possuem um sistema de registro confiável. De uma ou outra forma, as igrejas contribuem para o bem-estar da população em geral baseadas em sua fé, independentemente da afiliação religiosa ou ausência dela.

2) O papel pedagógico das igrejas: em muitos lugares, as igrejas alcançam mais pessoas do que qualquer outra organização, tendo uma capilaridade incomparável. Muitas de suas atividades incluem algum tipo de educação, seja diretamente – através de sermões, palestras, catequese, retiros – ou indiretamente, através do desenvolvimento das habilidades práticas, organizacionais e de lideranças. De forma explícita ou implícita, as questões da cidadania podem ser parte de tais processos educacionais. Outro ponto são as escolas vinculadas às igrejas, já que muitas delas são consideradas as melhores escolas dentre as privadas – embora muitas vezes exclusivas – em vários países, e também existem universidades confessionais com excelentes padrões de ensino.

3) A ação das igrejas na esfera pública: as igrejas, através de seus membros e/ou suas lideranças, congregações, mídias ou organizações e ministérios específicos, colaboram com a sociedade civil e com o governo em todos os níveis e fazem suas contribuições críticas e construtivas através da busca de soluções. Dada a crescente competição entre igrejas em muitos lugares, contudo, não são apenas parte da solução, mas também do problema, em termos de tendências corporativas e concorrentes que refletem na sua forma de ser e o desenvolvimento de suas ações. Além do grande desgaste da imagem pública das igrejas, que torna difícil ou quase impossível a colaboração entre diferentes igrejas, muito mais ainda entre diferentes religiões, embora existam exemplos do contrário. A crescente busca por formação e qualificação por parte das igrejas mais recentes oferece uma chance ímpar de superar a competição e descobrir possíveis sinergias.

4) Reflexão teológica: embora nem sempre sejam explícitas, as reflexões teológicas sustentam a ação das igrejas, tanto ad intra como extra, às vezes chamadas de teologia confessional e teologia pública, respectivamente (cf. SOARES; PASSOS, 2011). Os documentos oficiais das igrejas geralmente carregam com eles um fundamento teológico de seu argumento, mesmo que seja afirmado, em vez de desenvolvido, ou implícito e não explícito. Ao mesmo tempo, eles se relacionam com questões do debate mais amplo sobre democracia, cidadania, política, espaço público, pobreza e outros.

Assim, não há dúvida de que as igrejas desenvolvem, de fato, um papel público. Isso se dá por sua presença numérica, sua influência na vida das pessoas, bem como, no sistema político, nas inúmeras instituições e projetos educacionais e sociais, gozando ainda de notável confiança entre a população. Veremos o que impulsiona igrejas a exercerem tal papel também por princípio.

3 Uma teologia da cidadania como teologia pública

3.1 Bases de uma teologia da cidadania

Como dito anteriormente, a cidadania celestial das pessoas cristãs em sua relação com a cidadania mundana é uma questão que vem acompanhando o cristianismo desde o seu surgimento. Minha intenção aqui, no contexto brasileiro e latino-americano, é explorar o patrimônio da Teologia da Libertação e suas recentes inovações. Um dos ensaios mais desafiadores da Teologia da Libertação na década de 1990 foi um artigo do teólogo católico romano e professor de educação Hugo Assmann (1933-2007). Assmann reivindicou precisamente a continuação da Teologia da Libertação como uma “teologia da cidadania e da solidariedade”. Sua crítica à Teologia da Libertação clássica incluiu a falta de percepção de quem são os pobres e de que ela tenha mantido uma visão idealizada destes como sujeitos de sua própria libertação enquanto não percebeu seus genuínos desejos. Assim, ele conta entre os desafios pendentes “uma teologia do direito a sonhar, ao prazer, à fraternura, ao criativiver, à felicidade” (ASSMANN, 1994, p.30 et seq.), resumida na noção de corporeidade. Ao mesmo tempo, como os pobres tornaram-se perfeitamente dispensáveis ​​para o capitalismo de mercado neoliberal dominante, eles são vistos apenas por aqueles “convertidos à solidariedade” (ASSMANN, 1994, p.31). Assim, o autor trabalhou consistentemente na educação para a solidariedade, insistindo que é necessário “conjugar valores solidários com direitos efetivos de cidadania” (ASSMANN, 1994, p.33). Pressupondo a presença duradoura de uma economia de mercado, há necessidade de compensar a lógica dos efeitos da exclusão, combinando medidas de mercado e sociais por instituições instaladas democraticamente. Assmann critica a ênfase exagerada dada pelos cristãos aos relacionamentos comunitários, como se fossem suficientes para tornar a solidariedade efetiva em sociedades grandes, complexas e urbanizadas. Há necessidade de um (novo) pacto social que não fique apenas na retórica. Denuncia Assmann que “(…) há um perigoso descuido do uso da lei como arma dos mais fracos (…), sobretudo um falacioso viés anti-institucional” (1994, p.33). Enquanto Assmann situa seu argumento mais na esfera econômica, pode-se acrescentar que a situação democrática pós-regime militar permitiu novas formas de participação política, o que tornou necessário e oportuno um novo tipo de teologia, precisamente uma teologia centrada na cidadania. Isto é válido mesmo com os retrocessos recentes, com uma política de direita que não valoriza os direitos humanos. Enquanto o sistema democrático se mostrar estável, pode – e deve – se utilizar os espaços existentes para articulação e participação política. Sem dúvida isto significa, mais do que nunca, uma situação conflitiva e de resistência, mas não de abstinência.

O teólogo metodista Clovis Pinto de Castro (2000) dedicou um estudo importante ao tema da cidadania, no qual reivindicou uma pastoral da cidadania (“ação pastoral para a cidadania”) como “dimensão pública da igreja”. Seu conceito central é o de uma “cidadania ativa e emancipada”, que ele desenvolve com base no conceito de vita activa de Hannah Arendt, nas reflexões da filósofa política brasileira Marilena Chauí sobre o mito fundacional do Brasil – que promoveu o paternalismo e o messianismo, ao contrário de uma noção democrática e participativa de cidadania ) e na crítica de Pedro Demo, de uma cidadania paternalista (cidadania tutelada, como em um estado liberal) ou de assistência social (cidadania assistida, como em um estado de bem-estar), a favor de uma cidadania emancipada, na qual a participação efetiva das pessoas é fundamental para a democracia.

Teologicamente, Castro baseia a pastoral da cidadania em Deus como aquele que ama a justiça e o direito, no mandamento de amar o próximo, na prática de boas obras e na justiça de acordo com o testemunho do Novo Testamento; também no conceito de shalom (“paz”) como bem-estar abrangente e, finalmente, na perspectiva do Reino de Deus. A partir daí, ele deduz o mandato da igreja de viver não só no privado, mas na sua dimensão pública (pastoral), orientada para os seres humanos em sua vida diária e real, e não apenas para os seus membros. A fé consciente da cidadania (fé cidadã) é orientada pelas três dimensões da fé – como confissão (conhecer Deus), como confiança (amar Deus) e como ação (servir a Deus). O último inclui a formação de assuntos de cidadania (sujeito cidadão) e participação de cristãos na administração democrática das cidades.

A cidadania, portanto, passou pelo menos de forma inicial pela teologia. Vejo isso como uma possível e pertinente recontextualização de ideias centrais da Teologia da Libertação, especialmente a opção preferencial pelos pobres e a importância teológica da práxis. Uma insistência semelhante pode ser identificada em outros contextos (cf. BUTTELLI; LE BRUYNS; SINNER, 2014; SINNER, 2017). Koopman, do ponto de vista de um diálogo Sul-Sul entre a África do Sul e o Brasil, insiste que

Sociedades estão famintas por pessoas de virtude pública e cívica: sabedoria pública em contextos de complexidade, ambivalência, ambiguidade, paradoxalidade, tragédia e aporia (becos sem saída); justiça pública em contexto de desigualdades e injustiças nos níveis local e mundial; temperança pública em contexto de ganância e consumismo em meio à pobreza e à alienação; valentia pública em situações de impotência e inércia; fé pública em meio a sentimentos de desorientação e de desarraigo nas sociedades contemporâneas; esperança pública em meio a situações de desespero e melancolia; amor público em sociedades onde a solidariedade pública e a compaixão estão ausentes. (KOOPMAN, 2015, p. 434; tradução própria)

Agora é minha tarefa cavar ainda mais nos fundamentos teológicos de uma teologia pública da cidadania. Como mencionado, Nico Koopman relaciona a cidadania teologicamente às marcas tradicionais da igreja, em direção a uma cidadania católica e inclusiva, unida e pedindo justiça, santa, virtuosa, apostólica e responsável. No entanto, ele também expandiu a Trindade no âmbito de uma teologia pública, abordando a teologia planetária de Sallie McFague (2001) e insistindo na “dimensão pública da fé trinitária” (KOOPMAN, 2015, p.243) que relacione Deus e o mundo.

3.2 Teologia trinitária para a cidadania

Na sua conferência inaugural realizada na Universidade Stellenbosch em 2009, Koopman (2009) defendeu uma “antropologia teológica da relacionalidade, vulnerabilidade e interdependência que se baseia principalmente no chamado pensamento trinitário econômico”. Enfatizar a Trindade econômica permitiu que Koopman discuta a antropologia “em relação a desafios públicos concretos, como pessoas com deficiência, relações de gênero, discursos ubuntu, identidade social, dignidade humana e violência” (KOOPMAN, 2009, p.6).

Em suas teologias trinitárias, Jürgen Moltmann e Leonardo Boff assumiram uma posição crítica em relação ao que eles chamam de “monoteísmo” – em vez disso, deveria ser o monarquismo – na compreensão de Deus que, segundo eles, deu lugar a possíveis analogias do tipo “um Deus – um Império – um Imperador”, uma linha de pensamento que Erik Peterson denunciou notoriamente em uma tese histórica como crítica contemporânea contra o nazismo crescente na Alemanha. Positivamente, eles sugeriram uma analogia social da Trindade através da pericorese (interconexão) que poderia sustentar uma comunhão igualitária tanto dentro da igreja como na sociedade. Boff, além disso, apresenta a visão de uma comunidade planetária da natureza e da humanidade, dos humanos entre si, da humanidade e de Deus; para ele, a cidadania é cidadania (nacional), cocidadania e cidadania da Terra.

A questão é como essa “inspiração” trinitária pode ser aplicada à formação de estruturas na sociedade e na igreja. O próprio Boff não vai além de reivindicar, em termos gerais, a necessidade de uma “democracia fundamental”:

A democracia fundamental visa a maior igualdade possível entre as pessoas mediante processos cada vez mais abrangentes de participação em tudo o que concernir à existência humana pessoal e social. Além da igualdade e participação intenciona a comunhão com os valores transcendentes, aqueles que definem o sentido supremo da vida e da história (BOFF, 1987, p.190).

Tentando combinar a função crítica e construtiva de uma doutrina trinitária pericorética e os desafios da sociedade brasileira, gostaria de enfatizar quatro aspectos que considero serem aspectos fundamentais para a contribuição das igrejas motivadas pela fé para a democracia.

Um primeiro aspecto central é a alteridade. A pluralidade implica a diversidade e a comunidade, em uma democracia, é impensável sem reconhecer a singularidade de cada membro da sociedade. Portanto, o respeito à alteridade, o reconhecimento da diferença e o direito de ser diferente é essencial. Na teologia latino-americana, isso se originou entre aqueles que estavam em contato direto com os povos indígenas, mas recebeu uma atenção mais ampla nos últimos tempos. Uma hermenêutica sensível do outro é necessária para preservar a singularidade de cada pessoa e seu direito à diferença, incluindo a diferença religiosa. A alteridade preserva o mistério e busca a compreensão, como acontece na teologia tentando desvendar e, ao mesmo tempo, respeitar o mistério de Deus como tri-uno, unidade na diferença.

Um segundo aspecto é a participação. Este conceito é fundamental para o discurso sobre a cidadania. O aspecto da participação efetiva do cidadão vem à tona, assim como a cultura política pela qual essa participação é encorajada ou prejudicada. As igrejas, como parte da sociedade civil, têm um papel importante a desempenhar nesse encorajamento da participação cidadã, e de fato, de maneiras diferentes, como apontei acima. Em muitos lugares, as igrejas podem contar com participação muito maior de pessoas do que outros tipos de organizações de voluntários. Em termos de teologia trinitária, o aspecto da participação constitui uma analogia apropriada da ideia de interconexão, pericorese.

Um terceiro aspecto é a necessidade de confiança. Numa sociedade democrática, torna-se necessário confiar nas pessoas de forma bastante abstrata, porque nunca conheço a maioria dos meus concidadãos. Para que a democracia funcione, tenho que pressupor que outros tenham um interesse semelhante no funcionamento da democracia. Se esse interesse comum não pode ser dado por certo, e se um bom número de cidadãos, especialmente aqueles que detêm mais poder do que eu, falhar na confiança, é necessário um motivo mais profundo para ainda estar pronto para investir na confiança. Essa razão pode ser dada pela fé, que essencialmente significa confiança – não em si mesmo, mas em Deus.

Especialmente pessoas cristãs luteranas estão acostumadas a pensar no ser humano como simultaneamente justo e pecador. Elas sabem que os seres humanos não podem confiar em si mesmos e uns aos outros por seu próprio bem e mérito, mas pelo amor e mérito de Deus, porque ele prova ser confiável, mesmo na ambiguidade da vida. Deus visto como tri-uno preserva a continuidade em meio a situações históricas diferentes, altamente ambíguas, onde ele se manifesta, mais centralmente na cruz em Gólgota, mas também na criação e na presença do Espírito, e capacita as pessoas para viverem suas vidas.

Finalmente, um quarto elemento necessário é a coerência: ter um projeto para toda a sociedade e não apenas para si próprio ou para o grupo de pares, ou mesmo para a igreja. Isso depende de uma percepção específica da sociedade e da fé, sendo necessária uma hermenêutica de coerência. O mercado religioso altamente competitivo emergente em muitos lugares do mundo, especialmente na África e na América Latina, com uma diversidade cada vez maior de igrejas e movimentos religiosos, está dando um testemunho muito triste dessa (in)coerência. Teologicamente falando, insistir em Deus como Trindade pode ajudar a prevenir mal-entendidos restritivos, como se Deus fosse somente o Espírito Santo e não apenas o Filho, feito humano em Jesus Cristo e Pai, como criador. Este equilíbrio de unidade e diversidade em Deus é propenso a promover a koinonia, a palavra ecumênica para a comunidade entre os diferentes membros do Corpo de Cristo. Em termos da sociedade como um todo, essa integração da unidade e da diversidade poderia, se bem-sucedida, ser uma importante contribuição das igrejas para uma sociedade pluralista. Isso pressupõe que os cristãos e as igrejas não busquem principalmente obter vantagens para as respectivas igrejas, mas ver sua missão como testemunho de serviço (diakonia) para toda a sociedade.

4 Uma teologia pública da cidadania: contextual e católica

O debate sobre teologia pública, como desenvolvido no Brasil e, internacionalmente, na Rede Global de Teologia Pública e seu periódico International Journal of Public Theology, mostra a diversidade de entendimentos e implicações do conceito (cf. SINNER, 2012b). Já as primeiras questões da revista trataram explicitamente do projeto geral e as implicações do conceito. Vários autores afirmaram que a teologia pública não era uniforme nem monolítica, não tinha um único significado e que não havia uma teologia pública universal. No entanto, existe uma articulação global em torno do termo. Eu chamaria isso de “conceito agregador”, isto é, uma maneira de expressar uma dimensão intrínseca à igreja, ao mesmo tempo em que incorpora uma diversidade de aspectos e focos. É mais uma dimensão do que uma linha de pensamento específica, além de denotar um campo – a esfera pública. Embora isso ofereça uma ampla abertura para a contextualização, mostra certa imprecisão e flexibilidade do conceito.

No contexto brasileiro, uma – note-se o consciente uso do artigo indefinido – teologia pública pode ser adequadamente qualificada como teologia da cidadania (cf. ZEFERINO, 2018), o que mostra concretamente como as igrejas – e a teologia que sobre sua prática reflete – contribuem para uma dimensão profundamente necessária e ainda desejável da vida humana. Não se trata de um simples oportunismo, mas posturas e ações arraigadas em suas convicções teológicas. Uma teologia pública insiste em formas de comunicação além das igrejas, na esfera pública. Como bem disse David Tracy, a pessoa teóloga atende à igreja, à academia e à sociedade, cada uma com seus discursos e linguajar específicos. É, portanto, uma teologia desenvolvida de dentro para fora, comunicando a missão da igreja na fé, na vida e na ação (catolicidade). Ao mesmo tempo, é desenvolvida a partir e dentro de um contexto específico, com seus públicos e sua esfera pública específicos (contextualidade). Isso torna necessária uma análise apurada e um diálogo interdisciplinar. Metodologicamente, portanto, tanto a contextualidade quanto a catolicidade da teologia pública devem sempre ser levadas em consideração e explicitadas quanto ao seu significado específico.

 Rudolf von Sinner, PUC Paraná, Brasil (colaboração do doutorando Ezequiel Hanke, Faculdades EST, texto original português.

Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

 ASSMANN, Hugo. Teologia da Solidariedade e da Cidadania. In: ______. Crítica à Lógica da Exclusão. São Paulo: Paulus, 1994. p.13-36.

 BENEVIDES, Maria Vitória de Mesquita. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo: Ática, 2003.

 BOFF, Leonardo. A Trindade e a sociedade. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

 BUTTELLI, Felipe Gustavo Koch; LE BRUYNS, Clint; SINNER, Rudolf von. Teologia pública no Brasil e na África do Sul: Cidadania, Interculturalidade, HIV/AIDS (Teologia pública v.4). São Leopoldo: Sinodal; EST, 2014.

 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

 CASTRO, Clóvis Pinto de. Por uma fé cidadã. A dimensão pública da igreja. Fundamentos para uma pastoral da cidadania. São Bernardo do Campo: Ciências da Religião; São Paulo: Loyola, 2000.

 CORRÊA, Darcísio. A construção da cidadania: reflexões histórico-políticas. Ijuí: Unijuí, 2006.

 CORTEN, André. Os pobres e o Espírito Santo: o pentecostalismo no Brasil. Trad. Mariana Nunel Ribeiro Echalar. Petrópolis: Vozes, 1996.

 DEMO, Pedro. Cidadania menor. Algumas indicações quantitativas de nossa pobreza política. Petrópolis: Vozes, 1992.

 JANOSKI, Thomas. Citizenship and Civil Society. New York: Cambridge University Press, 1998.

 KOOPMAN, Nico. For God so Loved the World: Some Contours of Public Theology in South Africa. Inaugural Lecture delivered on 10 March, 2009. Stellenbosch: Sunprint, 2009.

 _____. Citizenship in South Africa Today: some insights from Christian ecclesiology. Missionalia, p.425-37, 2015.

 MARIZ, Cecília Mareto. Coping with Poverty. Pentecostals and Christian Base Communities in Brazil. Philadelphia: Temple University Press, 1994.

 MAJEWSKI, Rodrigo Gonçalves. Pentecostalismo e reconciliação: uma análise do discurso teológico popular das Assembleias de Deus do Brasil a partir de suas revistas de escola dominical. Dissertação (Mestrado em Teologia). Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 2008.

 McFAGUE, Sallie. Life Abundant: Rethinking Theology and Economy for a Planet in Peril. Minneapolis: Fortress Press, 2001.

 SOARES, Afonso Maria Ligório; PASSOS, João Décio (Orgs.). Teologia pública. Reflexões sobre uma área de conhecimento e sua cidadania acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2011.

 SINNER, Rudolf von. The Churches and Democracy in Brazil: Towards a Public Theology Focused on Citizenship. Eugene, Or.: Wipf & Stock, 2012a.

 _____. Teologia pública no Brasil: um primeiro balanço. In: JACOBSEN, Eneida; SINNER, Rudolf von; ZWETSCH, Roberto E. (Orgs.). Teologia pública: desafios éticos e teológicos. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2012b. p.13-38. Teologia Pública v.3.

 ____. Public Theology as a Theology of Citizenship. In: KIM, Sebastian; DAY, Katie (Orgs.). A Companion to Public Theology. Leiden; Boston: Brill, 2017. p.231-250.

 _____. Teologia pública num estado laico: ensaios e análises. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2018. Teologia pública v.7.

 _____. Paz no meio da violência: subsídios para a compreensão e o exercício da cidadania cristã. São Leopoldo: Sinodal, 2019.

 ZEFERINO, Jefferson. Karl Barth e a teologia pública: contribuições ao discurso teológico público na relação entre clássicos teológicos e res publica no horizonte da teologia da cidadania. Tese (doutorado em Teologia). Programa de Pós-Graduação em Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, 2018.

Segunda Carta aos Coríntios

Sumário

Introdução

1 Relevância da carta

2 Canonicidade, autenticidade e unidade

3 Local e data

4 Ocasião e finalidade

5 Estrutura, temas e destaque teológico

Referências bibliográficas

Introdução

No livro dos Atos dos Apóstolos, ao instruir o discípulo Ananias acerca do chamado de Paulo, o Senhor Jesus afirma: “Pois eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome” (At 9,16). Ao longo do cumprimento de sua missão, diante de seu empenho em tornar visível o Evangelho, o apóstolo se deparou com o sofrimento em formas e intensidades variadas. Embora suas cartas indiquem episódios de angústia e tribulação, é na Segunda Carta aos Coríntios que Paulo descreve especificamente a natureza dos sofrimentos enfrentados. “É notavelmente em 2 Coríntios que o alcance e a seriedade de seu sofrimento recebem a sua expressão mais clara” (DUNN, 2003, p.562).

Paulo defende sua autoridade apostólica diante de seus oponentes na comunidade e destaca o sofrimento como elemento distintivo do verdadeiro apostolado. Além disto, ao se considerar participante nos sofrimentos de Cristo, o apóstolo se identifica com seu Senhor, discernimento que se estende a todos os cristãos (MURPHY-O’CONNOR, 2000, p.318).

Contudo, é também na Segunda Carta aos Coríntios que Paulo evidencia a eficácia do consolo divino sobre as agruras sofridas no ministério. É no contexto de suas aflições que o poder da consolação proveniente de Deus se faz visível. Portanto, ele estabelece, já de início na carta, uma teologia da consolação (2Co 1,3-7) e oferece um exemplo concreto de seu dinamismo a partir do relato de seu encontro com Tito na Macedônia (2Co 7,4-13), tendo como pano de fundo a conflituosa relação com a comunidade coríntia. É curioso que, de todas as ocorrências no Novo Testamento da terminologia parakaleō/paraklēsis no sentido de consolo-encorajamento, a maior parte se concentre em 2 Coríntios.

1 Relevância da carta

A Segunda Carta aos Coríntios faz parte da interação entre Paulo e a comunidade cristã da Acaia e, ainda que com lacunas de informações acerca dos acontecimentos, mostra a atitude do apóstolo diante dos desafios enfrentados no relacionamento com os fiéis de Corinto (THRALL, 2004, p.1). Essa carta permite que se perceba o encorajamento e angústia, o consolo e a indignação do apóstolo na relação com os coríntios. É nessa correspondência que Paulo descreve com maior intensidade suas dores e alegrias, temores e convicções, força e fraqueza (FURNISH, 2005, p.3). Paulo, em seu ministério, não é imune a críticas, oposições e adversidades, mas reage a elas a partir de seu relacionamento com Deus em Cristo.

Embora 2 Coríntios seja a carta mais pessoal do apóstolo Paulo, não seria adequado interpretá-la apenas a partir da perspectiva autobiográfica, pois a defesa que ele faz de si mantém como foco o apostolado cristão (LAMBRECHT, 1999, p.1). Sua importância reside na reflexão significativa que Paulo faz do ministério apostólico. Portanto, “não é exagero ver nela a mais desenvolvida reflexão de fé sobre o ‘ministério’ (diakonia) eclesial no Novo Testamento” (BARBAGLIO, 1993a, p.135).

2 Canonicidade, autenticidade e unidade

No que diz respeito aos testemunhos sobre a canonicidade de 2 Coríntios, destaca-se o catálogo que Marcião, aproximadamente no ano 150, redigiu acerca das cartas paulinas e em cujo elenco se encontram as correspondências destinadas à comunidade de Corinto (1Co e 2Co). Elas também estão presentes nas dez epístolas paulinas mencionadas no Papiro 46, aproximadamente do ano 200, bem como no fragmento publicado por A. Muratori em 1740, redigido em latim e datado provavelmente do final do segundo século (BARBAGLIO, 1993b, p.224-225; FURNISH, 2005, p.29).

As indicações mais claras da presença de 2 Coríntios no corpus paulinum são da metade do segundo século. Mesmo que não haja, anterior a este período, evidência de que 2 Coríntios fosse conhecida pela Igreja, isto não implica o questionamento da autenticidade da carta. Ela é um escrito paulino em forma, estilo e conteúdo (FURNISH, 2005, p.30).

Entretanto, sua leitura e interpretação estão ligadas às soluções propostas aos problemas de crítica literária colocados pela própria carta (CINEIRA, 2002, p.249). As decisões tomadas a este respeito trazem consigo implicações referentes à exegese do texto (THRALL, 2004, p.2). A questão-chave que se impõe diante de 2 Coríntios é: estamos diante de um escrito paulino unitário destinado aos fiéis de Corinto ou de várias cartas para tal comunidade que foram reunidas e unificadas por volta do fim do primeiro século? (BARBAGLIO, 1993a, p.119). A integridade literária de 2 Coríntios é uma questão complexa, na qual as respostas têm que se apoiar, de alguma forma, na especulação (FURNISH, 2005, p.34; BARBAGLIO, 1993a, p.126).

Existem interrupções da narrativa, mudanças de vocabulário e tom da argumentação que sugerem que a ordem presente em 2 Coríntios pode não representar uma única carta, mas um compilado de fragmentos de outras cartas. Os pontos principais que suscitam questionamentos entre os estudiosos são:

a) Em 2Co 2,14-7.4, Paulo apresenta uma defesa do ministério apostólico que interrompe o fluxo da narração sobre os acontecimentos em Trôade e Macedônia, e estes são retomados a partir de 7.5;

b) O trecho de caráter judaico em 2Co 6,14-7,1;

c) Os dois capítulos sobre a coleta para Jerusalém em 8 e 9;

d) A mudança de tom na defesa do apostolado nos capítulos 10-13.

Além destes pontos, em 2Co 2,3-4 e 7,8, o apóstolo menciona uma carta escrita entre lágrimas, provavelmente fruto de um incidente desagradável ocorrido em uma de suas visitas à comunidade. Esta carta, cujo objetivo era provar a obediência dos coríntios (2,9), e que entristecera os destinatários, também faz parte dos debates sobre a unidade de 2 Coríntios. Alguns acreditam que a chamada “carta entre lágrimas” se perdeu e outros defendem que ela esteja parcial ou integralmente inserida em 2 Coríntios nos capítulos 10–13. Por exemplo, os comentaristas Thrall, Furnish e Lambrecht acreditam que não temos mais esta carta. Barbaglio, em sua obra São Paulo, afirma o mesmo. No entanto, em sua obra 1-2 Coríntios, ele concorda com R. Pesch que a identifica, sem endereço e introdução, nos capítulos de 10 a 13.

No que diz respeito à integridade, a maior parte dos exegetas defende que a 2 Coríntios canônica é o resultado da compilação de diversas cartas do apóstolo Paulo aos coríntios. As divergências variam em torno da quantidade de cartas, ou trechos de cartas, presentes na 2 Coríntios conforme conhecemos.

Há um consenso crescente de que ela pode ser dividida em duas cartas, sendo a primeira os capítulos 1–9, e a segunda, de 10–13. Porém, há os que sugerem a compilação de três ou mais cartas. E, além destes, existe uma minoria que sustenta a hipótese de unidade da carta (HAFEMANN, 2008, p.286).

A primeira sugestão de que 2 Coríntios seja resultado da combinação de diversas cartas paulinas distintas procede de J. S. Semler em 1776 (THRALL, 2004, p.4). Ele parte da análise dos capítulos 8 e 9 que tratam da coleta e defende que Paulo não abordaria o mesmo assunto duas vezes na mesma carta, utilizando praticamente os mesmos argumentos. Portanto, ele conjectura que 2 Coríntios conteria diversas cartas mais curtas enviadas por Paulo a outras cidades da Acaia. Dessa forma, o esquema de Semler comporta três cartas em 2 Coríntios assim divididas: primeira carta de 1–8 + 13,11-13; segunda carta, capítulo 9; terceira carta, 10–13.

Furnish, por sua vez, também parte do trabalho de Semler e sustenta a hipótese de que 2 Coríntios resulte da união das partes majoritárias de duas cartas distintas: primeiramente os capítulos 1–9 e, mais tarde os capítulos 10–13.

Barbaglio, na obra São Paulo, sugere a existência de três ou cinco cartas em 2 Coríntios, dependendo da hipótese adotada quanto aos capítulos 8 e 9: em primeiro lugar, encontra-se a carta apologética (2,14-7.4) em resposta à ação dos oponentes que tentavam minar a autoridade apostólica paulina juntos aos fiéis de Corinto; em seguida, diante do agravamento deste conflito tem-se a carta polêmica com tom mais austero (10,1–13.10); posteriormente, tendo em vista as boas notícias trazidas por Tito sobre a reação da comunidade coríntia, Paulo escreve a carta de reconciliação (1,1–2,13 + 7,5-16); e, finalmente, após a reconciliação ou simultaneamente, o apóstolo envia as duas cartas acerca da coleta, uma para Corinto (8) e outra para as igrejas da Acaia (9). Desta forma, a 2 Coríntios, conforme se conhece, seria fruto de um trabalho posterior de unificação desse intercâmbio realizado entre os anos 54 e 55. Porém, na obra 1-2 Coríntios, Barbaglio (1-2) adere ao argumento de R. Pesch que atribui o capítulo 8 à carta apologética e o 9 à carta de reconciliação, optando pela presença de três cartas em 2 Coríntios. Ele afirma que a hipótese de Pesch “evita multiplicar sem necessidade as cartas paulinas reunidas pelo compilador em nossa 2 Coríntios” (BARBAGLIO, 1993a, p.126).

Dentre os comentaristas, Lambrecht (1999, p.2) se encontra entre os que tratam a carta como texto unitário, embora reconheça as dificuldades que ela impõe pelas questões já mencionadas, pela falta de informação precisa sobre o que de fato aconteceu na relação entre o apóstolo e a comunidade, e também pelo tom emocional que dificulta seguir sua linha de argumentação. Hafemann (2008, p.286) que também adota em seu comentário a hipótese da unidade da carta, afirma que esta posição costuma ser sustentada, entre outros argumentos, a partir de uma noção de heterogeneidade presente na igreja de Corinto. Assim, os capítulos 1–9 seriam dirigidos à maior parte da igreja que havia se reconciliado com Paulo. E os capítulos 10–13 destinados aos oponentes que insistiam em atacar o apóstolo e tentar influenciar a comunidade. Estes dois “públicos” explicariam as mudanças de tema e tom.

Quanto à data, segundo Lambrecht, a 2 Coríntios situa-se entre a segunda e a terceira visita de Paulo a Corinto, após a “carta entre lágrimas”, aproximadamente no ano 54, de acordo com o esquema abaixo:

Primeira visita de Paulo a Corinto (49-51)
           (A) Carta prévia (53)
           (B) 1 Coríntios (primavera de 54; cf. 16.8)
Segunda visita: a visita dolorosa (54)
            (C) Carta entre lágrimas (54)
            (D) 2 Coríntios (54)
Terceira visita (54-55)

Lambrecht acredita que nem a “carta entre lágrimas” mencionada em 2 Coríntios e nem a “carta prévia” citada em 1Co 5,9 chegaram até nós.

3 Local e data

Paulo esteve primeiramente em Corinto quando da fundação desta comunidade por volta de 49-51. O relato de 2Co 1,23-2,1 pressupõe uma segunda visita que acabou por se tornar dolorosa em função de um conflito, motivando a chamada “carta entre lágrimas” (2,3.4.9; 7,8.12) que foi levada por Tito aos Coríntios (LAMBRECHT, 1999, p.9).

Desta forma, a 2 Coríntios canônica seria posterior à carta que Paulo menciona ter sido escrita em meio à aflição, angústia de coração e entre lágrimas. Nos versículos 2,12-13, o apóstolo relata ter chegado a Trôade. No entanto, mesmo com a promissora oportunidade missionária naquele local, a inquietude de Paulo à espera de informações o conduziu à Macedônia. Portanto, é desta região que ele teria escrito 2 Coríntios após o recebimento das boas notícias trazidas por Tito sobre a reação da comunidade (7,5-16; 9,4), provavelmente no outono de 54.

4 Ocasião e finalidade

No final da Primeira Carta aos Coríntios, Paulo declara seus planos de viagem (16,5-9). Entretanto, pelas explicações que ele presta na Segunda Carta, pode-se perceber que o planejamento não aconteceu conforme o esperado (1,15-2,1). Houve, em sua segunda visita aos coríntios, um incidente desagradável no qual Paulo foi ofendido. Embora não existam dados suficientes para precisar quem foi o ofensor e a natureza da ofensa, sabemos que Paulo lhes enviou uma “carta entre lágrimas” (2,3-4).

Mais tarde, diante da chegada de Tito com o relato positivo acerca da reação dos coríntios à referida carta, o apóstolo escreve a 2 Coríntios. E mesmo que Paulo tenha demonstrado otimismo com as notícias (7,4-16), é possível pensar que a reconciliação não tenha sido unânime, ainda existia oposição. Isto explicaria a ambivalência de sua atitude na carta, em que ora elogia, ora exorta com dureza. É por isto que ele justifica seu itinerário de viagem e os motivos de não ter voltado a Corinto como prometera (1,15-17 e 1,23-2,1); e também defende seu ministério diante dos opositores que questionam a legitimidade de seu apostolado (2,14–3,6; 4,1-16; 5,11-12; 6,4-10). O desejo de Paulo parece ser o de “fortalecer os que se arrependeram e reconquistar a minoria recalcitrante” (HAFEMANN, 2008, p.286).

Assim, o tom apologético em 2 Coríntios pode refletir a busca pela reconciliação com os coríntios que tinham cedido à influência dos adversários. No empenho pela restauração do relacionamento com a comunidade, Paulo se dirige a eles como um pai a seus filhos. No entanto, não deixa de marcar, em tom severo, a diferença entre o verdadeiro e o falso apóstolo, de forma que a comunidade possa identificar e assumir posição ao seu lado. E assim o faz na esperança de que os coríntios mudem de atitude antes de sua terceira visita, a fim de que ele não tenha que usar com rigor a autoridade que Deus lhe conferiu (13,10).

5 Estrutura, temas e teologia

O esquema estrutural a seguir é proposto por Lambrecht (1999, p.10):

Saudação aos santos (1,1-2)

Bendição a Deus (1,3-11)

I. Credibilidade de Paulo (1,12-2,13)

II. Apostolado de Paulo (2,14-7,4)

III. Retorno de Tito (7,5-16)

IV. Coleta (8-9)

V. Autodefesa de Paulo (10,1-13,10)

Exortação final, saudações e benção (13,11-13)

O tema relacionado à defesa do apostolado permeia 2 Coríntios, sendo mais evidente em dois momentos: o primeiro no trecho 2,14-7,4, no qual há uma apologia em tom mais brando; e depois nos capítulos 10–13, nos quais o apóstolo se defende de maneira mais severa, opondo-se aos ataques de seus adversários.

            A defesa do apostolado traz consigo o tema do serviço e, dentro dele, o contraste “fraqueza humana/poder divino” (BARBAGLIO, 1993, p.175). Ele apresenta com mais detalhes as circunstâncias que envolvem a identidade apostólica: os sofrimentos enfrentados, a oposição contínua e a pressão interna sofrida em função do cuidado com as comunidades (LAMBRECHT, 1999, p.1).

Outro tema que se destaca em 2 Coríntios é a “relação entre o sofrimento e a glória, a forma como a experiência apostólica paulina determina e exemplifica esta relação” (HAFEMANN, 2008, p.288). E tendo os argumentos baseados em sua escatologia e cristologia, Paulo demonstra que seu sofrimento não é algo que deponha contra sua legitimidade, antes é a plataforma que evidencia a manifestação do poder de Deus em seu ministério (2Cor 12,10).

O destaque teológico se refere a este último tema e é introduzido na carta com a teologia da consolação. Como Paulo apresenta nesta carta seus sofrimentos provenientes de várias fontes, especialmente de seus opositores na comunidade (CINEIRA, 2002), ele mostra como responde a eles por meio do consolo divino. Além disto, demonstra que o sofrimento não o desautoriza como apóstolo, é a plataforma que evidencia o poder de Deus.

A teologia da consolação pode ser sintetizada a partir das três dimensões que ela contempla: teológica, cristológica e soteriológica. O título dado a Deus logo no início da carta “Deus de toda consolação” marca o agente primário por trás do consolo. Deus está na origem da consolação experimentada em meio ao sofrimento, mesmo que a instrumentalidade humana esteja presente. A ação humana que redunda na consolação é, em última instância, uma intervenção iniciada nele. Deus consola tendo em vista as suas misericórdias em face das aflições a que seus filhos estão sujeitos. O Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo é bendito, e todos os que são por ele consolados também são convidados a bendizê-lo.

A teologia da consolação tem sua razão de ser no contexto da aflição, pois esta é a situação que confronta o cristão com sua fraqueza e necessidade do poder de Deus, além de apontar para uma expectativa quanto à consolação definitiva. Portanto, o sofrimento é a circunstância a partir da qual a consolação se destaca, ressaltando a ação divina e não poder humano na superação dos reveses. A consolação é o contraponto do sofrimento que é parte integrante da existência cristã.

Todavia, a consolação divina não é uma abstração misteriosa, mas ganha concretude nos indicadores que a tornam visível e promovem alívio na dimensão externa ou interna do cristão, conforme ilustra Paulo nos perigos e confrontos que passou. Porém, a consolação não significa apenas o alívio ou cessar imediato da situação aflitiva, mas está orientada para a perseverança (2 Co 1.6) (FURNISH, 2005, p.121).

O Deus que oferece consolação emprega o princípio da reciprocidade, isto é, os consolados são capacitados a estender consolação a outros aflitos. A consolação compartilhada é coerente com o Evangelho que leva cada cristão a viver além de si mesmo, e também contribui para aumentar o coro daqueles que bendizem a Deus e declaram seu poder em meio ao sofrimento.

Entrando na dimensão cristológica, merece destaque a forma com a qual Paulo enfrenta os sofrimentos, pois ela oferece um paradigma aos cristãos. A constatação de que o cristão também participa nos sofrimentos de Cristo se conecta à consolação e amplia a perspectiva daquele que sofre. Pois se o sofrimento é uma realidade inescapável, a consolação também o é. A compreensão destes dois lados da moeda também abre espaço para o entendimento do processo de morte e vida que ocorre na experiência do seguidor de Cristo.

Por esta lógica, entende-se que Paulo não questiona a legitimidade de seu apostolado por causa dos sofrimentos nele presentes, pois não os concebia como elementos estranhos ao seu chamado ou que indicassem ausência da ação divina, mas justamente o oposto (HAFEMANN, 2008, p.1180). Paulo sofre as circunstâncias próprias da existência e também do desempenho de seu ministério, mas convida cada cristão a viver na certeza de que a participação na consolação, por meio de Cristo, é tão abundante quanto a participação nos sofrimentos de Cristo. Portanto, da mesma forma que Paulo, cada cristão participa da consolação, assim como do sofrimento.

A dimensão cristológica da teologia da consolação logo abre espaço para a soteriológica, pois a consolação não tem em mira apenas o sofrimento terreno, mas está situada no arco que compreende o presente e o futuro. O processo de salvação envolve esta tensão escatológica. Paulo tanto se refere à consolação presente quanto à definitiva ao explicitar o efeito que a consolação divina deseja produzir no cristão: perseverança. O horizonte escatológico permite continuidade não obstante o sofrimento, como afirma Lambrecht, “em meio à fraqueza há força, já no presente, antes da morte física. A despeito da aflição, perplexidade, perseguição e ataques sem fim, graças a Deus não há desespero e nem destruição total” (1999, p.60).

Refletindo sobre a função da teologia da consolação na Segunda Carta aos Coríntios, percebe-se que essa correspondência se encontra marcada por um movimento de força na fraqueza, perseverança na adversidade. A realidade da consolação é importante na visão paulina da existência cristã, é a partir dela que se compreende o desgaste do homem exterior, mas a renovação diária do homem interior (cf. 2Co 4.16-18). Em vez de negar sua fraqueza em resposta às acusações de seus oponentes, Paulo desenvolve a teologia da consolação justamente partindo dela, pois são os abatidos que precisam de consolação. O sofrimento não é incompatível com o serviço apostólico nem com a vida cristã.

Karina Garcia Coleta, Belo Horizonte, Brasil – Texto original português.

Referências

BARBAGLIO, Giuseppe. 1-2 Coríntios. São Paulo: Paulinas, 1993a.

______. São Paulo: o homem do evangelho. Petrópolis: Vozes, 1993b.

CINEIRA, D. Álvarez. Los adversários paulinos en 2 Corintios. Estudio Agustiniano, v.32, p.249-274, 2002.

DUNN, James. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003.

FURNISH, Victor. II Corinthians. The Anchor Bible. v.32A. New York: Doubleday, 2005.

HAFEMANN, S. J. Cartas aos Coríntios. In: HAWTHORNE et al. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas Cartas. São Paulo: Vida Nova; Paulus; Loyola, 2008. p.270-289.

LAMBRECHT, Jan. Second Corinthians. Sacra Pagina Series. v.8. Minnesota: The Liturgical Press, 1999.

MURPHY-O’CONNOR, Jerome. Paulo: biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000.

THRALL, Margaret. The Second Epistle to the Corinthians. The international critical commentary.v.1. New York: T&T Clark International, 2004.

Reconciliação

Sumário

Introdução

1 Reconciliação: condição para a perfeita integração do ser humano consigo mesmo, com Deus, com a comunidade eclesial, com a sociedade e com o cosmos

2 A experiência da reconciliação na Sagrada Escritura

2.1 Pecado – misericórdia – conversão, no Antigo Testamento

2.2 Pecado – misericórdia – conversão, no Novo Testamento

3 A experiência da reconciliação na prática da Igreja

3.1 Séculos I-VI: reconciliação mediante penitência canônica

3.2 Séculos VII-XI: reconciliação mediante penitência tarifada / privada

3.3 Séculos XI-XX: reconciliação mediante penitência de confissão

4 A experiência da reconciliação proposta no Ritual da Penitência de 1973 e seus desafios pastorais

4.1 O Ritual da Penitência de 1973

4.1.1 Destaques teológico-litúrgicos

4.1.2 Avanços e limites

4.2 Celebrar a reconciliação hoje: pistas de ação

Referências

Introdução

A abordagem sobre o sacramento da reconciliação dar-se-á a partir dos seguintes pontos: 1) A reconciliação como condição para a perfeita integração do ser humano consigo mesmo, com Deus, com a comunidade eclesial, com a sociedade e com o cosmos; 2) A experiência da reconciliação na Sagrada Escritura; 3) A experiência da reconciliação na prática da Igreja (abordagem histórico-teológica); 4) A experiência da reconciliação proposta no novo ritual da penitência e seus desafios pastorais.

1 Reconciliação: condição para a perfeita integração do ser humano consigo mesmo, com Deus, com a comunidade eclesial, com a sociedade e com o cosmos

Dentre as questões existenciais postas pelo ser humano, ao longo da história, talvez a que mais o inquiete seja a da busca pela paz. Dentre as múltiplas formas de comportamento, tanto em nível pessoal como social, há aquelas que geram sérias rupturas que extrapolam o âmbito das relações humanas, a ponto de pôr em risco até a viabilidade da vida no planeta. Parece que as divisões e tensões no mundo tendem a se desenvolver em círculos concêntricos, ou seja, desde simples conflitos interpessoais e familiares até grandes impasses gerados por interesses políticos de povos e nações. O papa Francisco, em sua Constituição Apostólica Veritatis Gaudium, enfoca, com lucidez, aspectos dessa questão:

Tanto mais que, hoje, não vivemos apenas uma época de mudanças, mas uma verdadeira e própria mudança de época, caracterizada por uma “crise antropológica” e “socioambiental” global, em que verificamos de dia para dia cada vez mais “sintomas dum ponto de ruptura, por causa da alta velocidade das mudanças e da degradação, que se manifestam tanto em catástrofes naturais regionais como em crises sociais ou mesmo financeiras”. Em última análise, trata-se de “mudar o modelo de desenvolvimento global” e de “redefinir o progresso” (VG n.3).

Essa mudança e redefinição de modelo comportamental a que o Papa se refere pode ser vinculada à palavra “reconciliação”, tão cara à tradição bíblico-litúrgica. É sabido que o ser humano, na sua essência, aspira por um mundo melhor, justo, fraterno, reconciliado. A concretização de tal aspiração exige da pessoa de boa vontade a decisão de colocar-se num contínuo processo de metanoia, de mudança radical de seu pensar, agir e sentir. Isso porque o ser humano “não é nem um ‘não’, nem um ‘já’, mas um ‘ainda não’, um ser inacabado chamado a se aperfeiçoar, que deve ser criativo e deve se sentir chamado a lutar e avançar” (BOROBIO, 2009, p.298).

A reconciliação é condição sine qua non para que se estabeleça a perfeita integração do ser humano consigo mesmo, com Deus, com a comunidade eclesial, com a sociedade e com o próprio cosmos. Esse processo se dá, em primeira instância, no reconhecimento das limitações e fraquezas que induzem o ser humano a práticas ilícitas e injustas.

É falsa, portanto, a reconciliação daquele que fecha os olhos para a realidade e faz como se não existisse; ou a do que começa desculpando-se a si mesmo de modo total; ou a de quem pretende se reconciliar aniquilando o contrário; ou a de quem renuncia a todo esforço de reconciliação dizendo a si mesmo: “Não há nada a fazer”. Esses caminhos são falsos porque negam, em princípio, a condição básica para a reconciliação: aceitar os dois polos ou realidades que devem ser reconciliados. (BOROBIO, 2009, p.297)

A reconciliação é, portanto, fruto de contínuo processo de conversão que perpassa todo o agir humano, desde a simples tarefa de cumprir o dever cotidiano até ações de maior vulto como: solidariedade, correção fraterna, perdão mútuo, compromisso com a justiça, engajamento na defesa da vida no planeta etc. Portanto, essa compreensão de “conversão” e a consequente “reconciliação” suplantarão a mentalidade de que o perdão de Deus se limita tão somente ao momento celebrativo do sacramento da reconciliação.

2 A experiência da reconciliação na Sagrada Escritura

A história de Israel é marcada pela intervenção constante daquele que é “paciente e misericordioso”, que não leva em conta as faltas e pecados desse povo (Sl 130,3). Esse agir salvífico do Eterno perpassa toda a Sagrada Escritura. Embora admitindo haver outras possibilidades de enfoque do tema em questão, para o escopo deste texto, optamos por tecer alguns apontamentos sobre a experiência da reconciliação a partir da tríade: pecado – misericórdia – conversão (cf. NOCENT, 1989, p.149-154).

2.1 Pecado – misericórdia – conversão, no Antigo Testamento

a) O pecado remonta às origens, ou seja, a partir do momento em que o ser humano ambiciona tomar o lugar do próprio Deus. Por causa desse pecado das origens, fomos gerados na culpa (Sl 51,7). O pecado está relacionado com a Aliança. É, pois, apostasia da fidelidade a Deus. Há diversos tipos de pecado, sendo o mais comum e mais grave o da idolatria. Em virtude dessas “infidelidades”, o povo de Israel é submetido a “castigos” e experimenta a alegria do “retorno” a Deus. Embora sendo de responsabilidade de todos, inclusive de reis, o pecado é também responsabilidade individual. O pecado é escravidão e, por isso mesmo, atrai o castigo de Deus. Esse castigo é, muitas vezes, interpretado como um tipo de remédio dado por Deus para corrigir seus filhos e filhas do pecado.

b) A misericórdia de Deus é largamente cantada nos textos sagrados, pois ele é, desde sempre, misericórdia (Dt 4,31). No livro dos salmos, por exemplo, encontramos eloquentes vozes que cantam esse agir de Deus: “Ele perdoa todas as tuas iniquidades e cura todas as tuas doenças” (Sl 103,3); “Perdoaste a maldade do teu povo, encobriste todos os seus pecados” (Sl 85,3); “Não age conosco segundo nossos pecados, e não nos retribui segundo nossas iniquidades” (Sl 103,10); “Dai graças ao Senhor, porque ele é bom: sua misericórdia é para sempre” (Sl 136,1).

c) A conversão é experimentada como dom do próprio Deus. Ele, em pessoa, ou através dos profetas, convida seu povo à conversão: “Filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado? Para que amais a vaidade e procurais a mentira?” (Sl 4,3); “Não endureçais os vossos corações como em Meriba, como no dia de Massa, no deserto” (Sl 95,8); “Cada qual volte atrás do seu mau caminho. Melhorai vossa conduta e vossas obras” (Jr 18,11); “Vinde, voltemos ao Senhor” (Os 6,1). Enfim, o salmo 51 sintetiza, de forma eloquente, a teologia da culpa, da conversão e da misericórdia de Deus no Primeiro Testamento.

2.2 Pecado – misericórdia – conversão, no Novo Testamento

a) O pecado, bem como todas as suas implicações, deve ser abordado à luz do mistério de Cristo. Conforme o apóstolo Paulo, o pecado entrou no mundo por um só homem (Rm 5,12) e por um só homem a morte será vencida (1Cor 15,21). Portanto, o pecado advém do início do mundo e todos os seres humanos estão implicados nele: “Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós” (1Jo 1,8); “Quem dentre vós não tiver pecado atire a primeira pedra!” (Jo 8,7).

Em geral, nos escritos neotestamentários, o pecado consiste na recusa da Palavra (Mt 13,22), na negação do Verbo e da luz (Jo 3,19), no não reconhecimento da própria cegueira (Jo 9,41), na recusa de Cristo (Jo 1,11), na prática da iniquidade (1Jo 2,14-17). Enfim, do “pecado” brotam os pecados, como bem aponta o apóstolo Paulo em uma de suas listas: “libertinos, idólatras, adúlteros, sodomitas, ladrões, gananciosos, beberrões, maldizentes, estelionatários (…)” (1Cor 6,9-10).

b) A misericórdia caracteriza o Deus dos cristãos. Os fiéis são o objeto dessa misericórdia divina: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7). Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. “Quando se completou o tempo previsto, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei, para resgatar os que eram sujeitos à Lei, e todos recebermos a dignidade de filhos” (Gl 4,4-5). O evangelista Lucas é, certamente, quem melhor reúne os diversos comportamentos de Jesus que manifestam a misericórdia. A parábola do pai e dos dois filhos é paradigmática: o pai, tomado de compaixão, vai às pressas ao encontro do filho que retorna e, depois de tê-lo acolhido afetuosamente (com abraços e beijos), de ter ouvido a sua “confissão”, o conduz para o banquete (Lc 15,11-32). Aliás, a atitude de Jesus de se mostrar amigo dos pecadores, marginalizados, doentes, atribulados – e que foi motivo de escândalo para fariseus e até alguns de seus discípulos! – decorre de sua missão primordial, que é revelar a misericórdia do Pai.

Enfim, misericórdia

é condição da nossa salvação; é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade; é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro; é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que se encontra no caminho da vida; é o caminho que une Deus e o homem” (MV n.2).

c) A conversão é meio eficaz para a obtenção da misericórdia e se processa sob duas vertentes: o desejo humano de uma mudança radical de vida (metanoia) e o auxílio divino para sua plena realização. No entanto, vale a ressalva de que a iniciativa é sempre de Deus, como bem expressa o apóstolo Paulo, Cristo foi enviado não quando estávamos decididos a nos converter, mas quando estávamos em plena situação de pecado (cf. Rm 5,6s).

A escuta da Palavra de Deus e a consequente adesão a ela nos reposicionam na trilha do seguimento de Cristo, pois ele nos perdoa o pecado, e nos torna criaturas novas, graças ao mistério de sua morte e ressurreição. Em outras palavras, trata-se de levar a efeito, em nossas vidas, a dinâmica do mistério pascal de Cristo.

3 A experiência da reconciliação na prática da Igreja  

A Igreja, ao longo de sua história, conheceu modalidades diversas quanto à compreensão teológica e à prática celebrativa da reconciliação. Para o escopo deste texto, a abordagem histórico-teológica dar-se-á a partir dos seguintes períodos: a) séculos I-VI (mediante penitência canônica); b) séculos VII-XI (reconciliação mediante penitência tarifada / privada); c) séculos XI-XX (reconciliação mediante penitência de confissão).

3.1 Séculos I-VI: reconciliação mediante penitência canônica

Nos dois primeiros séculos da era cristã, há poucos registros alusivos à prática penitencial dos cristãos. A título de exemplo, citamos a Didaqué, a Carta de Barnabé, a Primeira Carta de Clemente de Roma aos Coríntios e O Pastor de Hermas (cf. NOCENT, 1989, p.165-169).

a) A Didaqué (séc. I), na esteira dos escritos neotestamentários, elenca alguns pecados graves, correspondentes aos mandamentos (cap. 2). Fala, igualmente, da “confissão” dos pecados à assembleia (cap. 4) e impõe condições (confissão dos pecados) para a participação plena na mesa do Senhor (cap. 14). Vale o alerta de que tal “confissão” seja, possivelmente, uma espécie de reconhecimento público dos próprios pecados, tipo “ato penitencial”, de nossas celebrações eucarísticas.

b) A Primeira carta de Clemente de Roma aos Coríntios (séc. I) traz algo mais concreto: “Vós que inspirastes a revolta, submetei-vos aos presbíteros e aceitai o castigo como vossa penitência, dobrando os joelhos do vosso coração” (57,1).

c) A Carta de Barnabé (séc. II), além de listar uma série de vícios a serem evitados, traz advertências de cunho escatológico: “O Senhor está perto, com o seu salário” (cap. 19).

d) O Pastor de Hermas (séc. II) aborda a questão penitencial sob os aspectos da perspectiva escatológica, da conversão e da única possibilidade de receber o perdão da Igreja.

A partir do século III, verifica-se com mais clareza a prática penitencial. Estabelece-se a “penitência “canônica” ou “pública”, concedida uma única vez na vida para os pecados mais graves. Trata-se de uma disciplina rigorosa de expiação, que terminava com a reconciliação eclesial, através do ministério do bispo. Constava, basicamente, de três momentos bem distintos: a) a confissão secreta do pecado, ao bispo. Este admitia a pessoa ao grupo dos “penitentes”; b) o tempo necessário para a realização das obras de penitência, ou seja: jejuns prolongados, restrições alimentares, uso de vestes penitenciais e de cilício, oração de joelhos etc. Ao penitente cabia, ainda, a tarefa de pedir aos membros da comunidade de fé que orassem em seu favor; c) a reconciliação ou a paz. Trata-se do momento celebrativo em que o bispo e os presbíteros presentes impunham as mãos sobre os penitentes, concedendo-lhes a remissão dos pecados e sua readmissão na assembleia eclesial.

Enfim, ninguém duvida do valor pedagógico dessa prática antiga de penitência, respaldada pela consciência de sua estreita vinculação com o sacramento do batismo. Este é, na verdade, a “penitência primeira”. O sacramento da reconciliação, por sua vez, era tido como um segundo batismo. No entanto, o rigor extremo e o fato de ser concedido somente uma vez na vida e de ter consequências para toda a vida contribuíram para que as pessoas adiassem, o quanto possível, o acesso ao sacramento da reconciliação. Disso decorreram efeitos colaterais como: o afastamento progressivo da comunhão eucarística e a transformação da reconciliação em sacramento de idosos e moribundos.

3.2 Séculos VII-XI: reconciliação mediante penitência tarifada / privada

O século VII é tido como um divisor de águas em matéria de disciplina penitencial. Dá-se uma ruptura com a antiga prática, ou seja: a reconciliação pode realizar-se privadamente e ser repetida. Essa prática disciplinar, utilizada por monges irlandeses e escoceses, fora também estendida às comunidades paroquiais. O fato de a maioria dos bispos serem também monges contribuiu para a expansão dessa “novidade”. Daí surgiram os célebres “livros penitenciais”. Nesses livros se encontram tabelas e listas de pecados e a pena correspondente (tarifa) a ser imposta ao penitente, por cada pecado cometido. O prazo de duração do cumprimento dessas penas variava, conforme a gravidade do pecado, podendo estender-se em dias, semanas, meses, anos de jejum etc. Em contrapartida, continuava em vigor o princípio: “Para pecado grave e oculto, penitência secreta; para pecado grave e público, penitência pública”.

Na prática, a penitência tarifada provocou impasses, tipo: como solucionar casos de, numa única confissão, a pessoa se ver obrigada a reparar muitos anos de penitência? Diante disso, criaram-se as chamadas comutações ou resgates da ação penitencial. Tais comutações podiam ser feitas conforme cálculos previstos, por exemplo: a) ação penitencial de longa duração: podia ser substituída por outra mais breve, porém mais dura; b) ação penitencial trocada por dinheiro: a quantia variava conforme a pena; c) ação penitencial substituída pela missa: encomendava-se certo número de missas como pagamento da penitência imposta; d) ação penitencial resgatada por meio de outra pessoa: valia-se do preceito evangélico de uns suportarem as cargas dos outros (cf. BAÑADOS, 2005, p.217).

Embora o acesso reiterado ao sacramento tenha sido um dado positivo na história da Penitência, no que tange à prática pastoral, houve limites consideráveis, por exemplo, à “mercantilização” das penas. Isso, além de acentuar o caráter individual e mágico do sacramento, reforçou o binômio confissão-absolvição, relativizando a penitência como tal.

3.3 Séculos XI-XX: reconciliação mediante penitência de confissão

Mesmo ainda existindo a penitência pública reservada a pecados públicos, tidos como escandalosos, a confissão auricular ocupou, gradativamente, seu espaço, a ponto de tornar-se a única forma de celebrar o sacramento. Desencadeia-se um tipo de “confissão devocional”, caracterizada pela acusação dos pecados (da parte do penitente) e a absolvição imediata (da parte do ministro ordenado). Essa “confissão” foi, aos poucos, tornando-se um condicionante para a comunhão eucarística, mesmo que uma vez ao ano, como propôs o Concílio de Latrão (1215). Enfim, a reconciliação que, nos primeiros séculos, era concedida uma vez na vida – pois este sacramento era tido como um segundo batismo, ou “batismo laborioso” –, agora torna-se obrigatória uma vez ao ano. Essa prática se estendeu até o Concílio de Trento (séc. XVI).

Na época do Concílio de Trento, o problema teológico e disciplinar do sacramento da penitência era complexo não só por causa da Reforma e da sua atitude para com o sacramento, mas também pela complexidade do problema, da disciplina do sacramento e da própria Igreja. Com efeito, do ponto de vista da disciplina do sacramento verificavam-se várias divergências nas suas aplicações (NOCENT, 1989, p.204).

Limitando-se a dar uma resposta de cunho dogmático aos ataques dos reformadores, o Concílio de Trento tratou o sacramento da penitência em si mesmo, e quando o considera em relação à eucaristia, o faz sob o aspecto da dignidade necessária para comungar e também para salientar que a eucaristia não pode substituir a absolvição no caso de pecado grave. Da doutrina sobre o sacramento da penitência ensinada por Trento, vale destacar: a) a afirmação sobre a instituição do sacramento por Cristo e sua necessidade por direito divino, para a salvação aos que caíram depois do batismo; b) o ensinamento de que a confissão só se faz ao sacerdote e é secreta; c) o apelo para a necessidade de se confessar todos os pecados, inclusive os veniais, ao menos uma vez por ano.

Trento enfatiza a estreita relação entre indivíduo e confessor: da parte do indivíduo é exigida uma atitude de profunda contrição, seguida da declaração de todos os pecados (confissão) e a satisfação das penas; ao confessor, representante de Deus e juiz, caberá a absolvição dos pecados do penitente.

Vale destacar, ainda, o ensinamento de Trento sobre a diferença entre o sacramento da penitência e o sacramento do batismo:

É evidente que este sacramento é diferente do batismo por muitas razões. Pois além de serem muitíssimo diferentes a matéria e a forma que perfazem a essência do sacramento, consta também que o ministro do batismo não deve ser juiz, porque a Igreja não exerce jurisdição sobre a pessoa que não tenha primeiro entrado pela porta do batismo. (…) O mesmo não se dá com os que são da família da fé, os que o Cristo Senhor, com o banho do batismo, fez uma vez por todas membros de seu corpo. Com efeito, se estes se contaminarem depois de algum delito, devem, segundo a sua vontade, purificar-se, não por um novo batismo, o que de nenhum modo é lícito na Igreja católica, mas comparecendo como réus diante deste tribunal da penitência, a fim de poderem, pela sentença do sacerdote, libertar-se, não apenas uma vez, mas todas as vezes que, arrependidos de seus pecados, recorrerem a ele (DENZINGER-HÜNERMANN, 2007, n.1671).

Nos séculos seguintes (pós-tridentinos), a teologia e a prática pastoral do sacramento da penitência percorrem a trilha traçada por Trento e não apresentam mudanças substanciais, apesar de acaloradas discussões em torno da intensidade da “contrição”. A “satisfação” imposta após a absolvição, além de levar o penitente à aceitação da pena (cura das sequelas do pecado cometido), torna-o mais cauteloso e vigilante no futuro. Também sobressaem nesse período reiterados apelos à “confissão individual”, quase sempre tida como condição para se receber dignamente a eucaristia. A confissão frequente de todos os pecados (inclusive os veniais) torna-se obsessão da parte do clero.

4 A experiência da reconciliação proposta no Ritual da Penitência de 1973 e seus desafios pastorais

Esta última seção se ocupará, em primeiro lugar, do estudo do Ritual da Penitência de 1973, buscando destacar nele sua teologia. Em seguida, serão apresentadas três pistas de ação, tendo em vista uma consciente, ativa e frutuosa participação dos fiéis na celebração da reconciliação.

4.1 O Ritual da Penitência de 1973

Atendendo ao pedido expresso do Concílio Vaticano de que “o rito e as fórmulas da Penitência sejam revistos de tal forma que exprimam mais claramente a natureza e o efeito deste sacramento” (SC n.72), a Sagrada Congregação para o Culto Divino publicou, em Roma, no dia 2 de dezembro de 1973, o novo Ritual da Penitência (RP).

Esse ritual é composto de uma “Introdução geral”, de um “Rito para a reconciliação individual dos penitentes”, de um “Rito para a reconciliação de vários penitentes com confissão e absolvição individuais”, de um “Rito para a reconciliação de vários penitentes com confissão e absolvição geral”; de um amplo “Lecionário”; e de três “Apêndices”, a saber: a) absolvição de censuras e de dispensa de irregularidade; b) exemplos de celebrações penitenciais: Quaresma, Advento, Celebrações ordinárias para crianças, para jovens, para enfermos; c) esquema para exame de consciência.

4.1.1 Destaques teológico-litúrgicos

A “Introdução geral” do RP, afinada com a Sacrosanctum Concilium, inicia-se com a abordagem do ministério da reconciliação no âmbito da história da Salvação: o Pai, desde sempre, manifestou sua misericórdia e reconciliou o mundo consigo. Esse plano divino atingiu seu ápice no mistério pascal de Cristo. Desde então, a Igreja jamais deixou de convocar homens e mulheres à conversão, mediante a celebração do sacramento da reconciliação. A este sacramento associa-se o batismo, “pelo qual o velho homem é crucificado com Cristo para que, destruído o corpo do pecado, já não sirvamos o pecado, mas, ressuscitados com Cristo, vivamos para Deus”, e a eucaristia, que edifica a Igreja e faz de seus membros “um só corpo e um só espírito” (RP n.1-2).

A segunda seção discorre sobre a reconciliação dos penitentes na vida da Igreja: Cristo amou a Igreja e por ela se entregou para santificá-la, unindo-a a si como esposa. Essa, por sua vez, nem sempre lhe é fiel e, por isso mesmo, necessita de contínua purificação e renovação. No sacramento da reconciliação, “os fiéis obtêm da misericórdia divina o perdão da ofensa feita a Deus e, ao mesmo tempo, são reconciliados com a Igreja, que eles feriram pelo pecado e que colabora para sua conversão com a caridade, o exemplo e as orações” (LG n.11).

Ainda nesta seção, vêm apresentadas as partes constitutivas do sacramento da reconciliação, a saber:

a) A contrição. Da contrição interior depende a autenticidade da penitência. A conversão deve atingir intimamente o ser humano para iluminá-lo cada dia, com maior intensidade, e configurá-lo cada vez mais ao Cristo.

b) A confissão exige do penitente a vontade de abrir seu coração ao ministro de Deus; e da parte deste, um julgamento espiritual pelo qual, agindo em nome de Cristo, pronuncia, em virtude do poder das chaves, a sentença da remissão ou da retenção dos pecados.

c) A satisfação das culpas é expressão concreta da verdadeira conversão, ou seja, da reparação do dano causado. É necessário, por conseguinte, que a satisfação imposta seja realmente remédio para o pecado e, de algum modo, renovação de vida. Assim, o penitente, esquecendo o que passou (Fl 3,13), integra-se de novo no mistério da salvação lançando-se para frente.

d) A absolvição. Pela confissão sacramental, Deus concede perdão mediante o sinal da absolvição, e assim realiza o sacramento da reconciliação. Por este sacramento, o Pai acolhe o seu filho que regressa; Cristo coloca sobre os ombros a ovelha perdida, reconduzindo-a ao redil; e o Espírito Santo santifica de novo seu templo ou passa a habitá-lo mais plenamente. Isso se manifesta plenamente na participação frequente ou mais fervorosa na mesa do Senhor, havendo grande júbilo na Igreja de Deus pela volta do filho distante (cf. RP n.6).

Vale observar que a satisfação aparece antes da absolvição, ou seja, a ordem ideal da estrutura do sacramento fora restabelecida.

Quanto à reiteração do sacramento, dentre outras recomendações, o RP esclarece que

não se trata de mera repetição ritual, nem de uma espécie de exercício psicológico, mas de um esforço assíduo para aperfeiçoar a graça do batismo, a fim de que, trazendo em nosso corpo a mortificação de Cristo, a vida de Jesus se manifeste cada vez mais em nós. (…) A celebração deste sacramento é sempre uma ação pela qual a Igreja proclama sua fé, dá graças a Deus pela liberdade com que Cristo nos libertou, e oferece sua vida como sacrifício espiritual para o louvor da glória de Deus, enquanto se apressa ao encontro de Cristo (RP n.7).

A terceira seção versa sobre as funções e ministérios na reconciliação dos penitentes. Além de destacar o papel de toda a comunidade na celebração da reconciliação, recorda que a Igreja está envolvida e age na reconciliação; salienta a responsabilidade do bispo e dos presbíteros (que agem em comunhão com o bispo) na remissão dos pecados; lembra que “o fiel, enquanto experimenta e proclama em sua vida a misericórdia de Deus, celebra junto com o ministro ordenado a liturgia de uma Igreja que continuamente se renova” (RP n.8-11).

A quarta seção, por sua vez, descreve as três modalidades de celebração do sacramento da reconciliação, buscando mostrar sua importância na vida dos fiéis; ressalta a teologia da fórmula da absolvição, nestes termos:

A fórmula da absolvição mostra que a reconciliação do penitente procede da misericórdia do Pai; indica o nexo entre a reconciliação do pecador e o mistério pascal; exalta a ação do Espírito Santo no perdão dos pecados, e finalmente evidencia o aspecto eclesial do sacramento, uma vez que a reconciliação com Deus é solicitada e concedida pelo ministério da Igreja (RP n.19).

A quinta seção fala das “Celebrações penitenciais”. Quanto à natureza e estrutura, essas celebrações são

reuniões do povo de Deus para ouvir sua Palavra, que convida à conversão e à renovação de vida, proclamando também nossa libertação do pecado pela morte e ressurreição de Cristo. Sua estrutura é a mesma das celebrações da Palavra, proposta no “Rito para reconciliação de vários penitentes”. (RP n.36)

Quanto à utilidade e importância, as “Celebrações penitenciais” fomentam o espírito de penitência da comunidade cristã; ajudam os fiéis a prepararem a confissão que cada um poderá fazer oportunamente; educam as crianças a adquirirem, gradualmente, a consciência do pecado na vida humana e da libertação do pecado por Cristo; ajudam os catecúmenos em sua conversão. Além disso, onde não houver nenhum ministro ordenado disponível para conceder a absolvição sacramental, as celebrações penitenciais são utilíssimas por despertar nos fiéis uma contrição perfeita, nascida da caridade, pela qual, com o desejo de receber mais tarde o sacramento da reconciliação, possam conseguir a graça de Deus (cf. RP n.37).

A última seção da “Introdução geral” do RP discorre sobre as “Adaptações do Rito às diversas regiões e circunstâncias”. Tais adaptações poderão ser feitas pelas conferências episcopais (RP n.38), pelo bispo diocesano (RP n.39) e pelo ministro (RP n.40).

4.1.2 Avanços e limites

Para tecer algum juízo sobre o RP de 1973, é necessário levar em conta que este ritual é fruto de um laborioso trabalho articulado pelo Consilium. A. Bugnini, em sua antológica obra A reforma litúrgica, assim se expressa: “A revisão dos ritos da Penitência passou por um caminho bastante longo e difícil. Foram necessários sete anos para pôr em prática as poucas linhas que a Constituição litúrgica dedica a esse assunto” (2018, p.551).

Grandes questões foram discutidas, algumas delas, de forma “acalorada”, já na primeira etapa dos trabalhos (1966-1969), como o aspecto social e comunitário do pecado e da reconciliação, a questão de uma possível celebração comunitária da reconciliação, com absolvição geral, sem prévia confissão individual, uma nova fórmula sacramental de absolvição e a possibilidade de fórmulas sacramentais facultativas etc.

Foi a partir desse contexto que se elaborou o novo RP. As três modalidades de celebração da reconciliação, propostas nesse ritual, constituem um bom exemplo disso. O célebre liturgista A. Nocent, numa análise crítica do RP, reconhece como positivas essas modalidades, sob três aspectos: a) a tentativa de restabelecer a unidade entre Palavra e sacramento; b) a intervenção, ao menos parcial, da comunidade eclesial; c) a apresentação de formulário de absolvição dogmaticamente mais rico, e que corrige o aspecto jurídico. Por outro lado, lamenta que nenhuma das três modalidades é realmente satisfatória e adequada às circunstâncias atuais, nestes termos:

O primeiro ritual, aquele relativo ao penitente que se encontra com o confessor, não se realiza facilmente: supõe contato humano e espiritual para diálogo, une ao sacramento breve liturgia da Palavra, mas falta-lhe a visibilidade da comunidade e sobretudo dificilmente se pode realizar em paróquia ou grupo de pessoas que se apresentam juntas; e isso impossibilita a prática prevista pelo ritual.

O segundo ritual acentua a preparação comunitária para a confissão, coisa que não tem nenhuma base na tradição, mas que de fato constitui enriquecimento. Mas no momento em que o ritual sacramental deveria acentuar o aspecto comunitário do sacramento, a absolvição, sem a licença do Ordinário, permanece individual. É comunitária só a preparação para o sacramento, enquanto o sacramento mesmo continua visivelmente individual.

O terceiro ritual, a absolvição sem confissão prévia, não encontra nenhum apoio na tradição, pelo fato de que a antiguidade considerava a absolvição coroamento da conversão. Aqui, ao contrário, a absolvição é posta em plano jurídico, sem nenhum controle sobre o modo como o penitente tenciona converter-se. Contudo, é forçoso reconhecê-lo, vivemos em situações novas, que a Igreja antiga não conheceu (NOCENT, 1989, p. 215-216).

4.2 Celebrar a reconciliação hoje: pistas de ação

Celebrar a reconciliação nas comunidades, hoje, continua sendo um grande desafio. Mesmo assim, ousamos apontar três exigências que julgamos fundamentais no incremento da pastoral da reconciliação. Ei-las:

a) Promover uma formação teológico-litúrgica sobre a sacramento da reconciliação para o clero e o povo, em geral. Uma vez que esse sacramento seja “um alegre encontro do ser humano com Deus, pela mediação da Igreja”, tal formação poderá ser realizada, a partir do tripé:

Deus: aquele que promove e torna possível a plena reconciliação;

A Igreja: aquela que colabora e torna visível o encontro de reconciliação;

O penitente: a pessoa que aceita e participa ativamente na reconciliação (BOROBIO, 2009, p.324).

b) Promover as celebrações penitenciais. Essas celebrações, previstas no RP, ainda carecem de especial atenção da parte dos párocos e lideranças das comunidades eclesiais. A liturgista I. Buyst nos dá boas razões para o incremento de tais celebrações (cf. BUYST, 2008, p.54-66):

– As celebrações penitenciais poderão facilitar a passagem de uma concepção individualista, legalista, formalista, para uma mentalidade mais bíblica e comunitário-eclesial da reconciliação. Não tendo de preocupar-se com confissão e absolvição, as pessoas estão mais dispostas a concentrar-se na Palavra de Deus e deixar-se transformar por ela. E ainda: com o fato de a presidência dessas celebrações não se restringir ao ministro ordenado, torna-se mais evidente a responsabilidade da comunidade e de cada pessoa como ministra da penitência.

– A comunidade poderá privilegiar momentos propícios para as celebrações penitenciais, como: nos tempos da Quaresma e do Advento, nas festas dos padroeiros, nos encontros de romarias, em momentos pontuais da caminhada eclesial, sobretudo em situações de desencontros, desentendimentos, rixas etc.

– As celebrações penitenciais poderão ajudar as comunidades na compreensão de que a reconciliação é um itinerário espiritual que dura toda a vida e que seu objetivo primordial é o “homem novo”.

– Uma vez que as celebrações penitenciais são “reuniões do povo de Deus para ouvir sua Palavra, que o convida à conversão e à renovação de vida, proclamando também nossa libertação do pecado pela morte de Cristo” (RP n.36), seu incremento na vida da comunidade propiciará aos fiéis a experiência da eficácia da Palavra proclamada que, pela ação do Espírito, faz acontecer a conversão e a renovação da vida.

c) Atentar-se para o horizonte aberto de possíveis “adaptações”. Como vimos anteriormente, a “Introdução geral” do RP propõe adaptações do rito às diversas regiões e circunstâncias, abrangendo os níveis da conferência episcopal, do bispo diocesano e do ministro (RP n.38-40).

Para os dois primeiros níveis (da conferência episcopal e do bispo diocesano), excetuando a exigência explícita de que se deva conservar a fórmula sacramental na sua integralidade, todo o restante do ritual poderá ser adaptado, inclusive com a composição de novos textos.

No nível do ministro, principalmente os párocos, fica aberta a possibilidade de adaptar o rito às circunstâncias concretas dos penitentes, desde que se conserve sua estrutura essencial e a integralidade da fórmula de absolvição. Recomenda-se, também, o uso frequente de celebrações penitenciais ao longo do ano.

Portanto, no RP, há um vasto campo de possibilidades de adaptações do rito. Isso propiciará à comunidade de fé celebrar de forma mais consciente, ativa e frutuosa a reconciliação.

Concluímos este texto com uma observação sobre o título do ritual. A. Bugnini assim o justifica:

O título geral do volume é Ordo Paenitentiae, porque contém indicações para os ritos quer sacramentais, quer não sacramentais.

Para a ação litúrgica sacramental é preferido, nos capítulos individuais do Ordo, o termo Reconciliatio. Ele indica melhor que a penitência sacramental é, a um tempo, ação de Deus e do homem, ao passo que “Penitência” enfatiza mais a ação do homem. (…) Reconciliatio é mais propriamente usado pela Igreja antiga para o ato sacramental. (…) Esta terminologia serve também para chamar a atenção e aprofundar um aspecto fundamental para a compreensão e a renovação da penitência sacramental (2018, p.560-561).

Em suma, a reconciliação é ação de Deus, é iniciativa de Deus, como bem expressa o Apóstolo:

Tudo vem de Deus, que, por Cristo, nos reconciliou consigo e nos confiou o ministério da reconciliação. Sim, foi o próprio Deus que, em Cristo reconciliou o mundo consigo, não levando em conta os delitos da humanidade, e foi ele que pôs em nós a palavra da reconciliação (2Cor 5,18-19).

Joaquim Fonseca, OFM – Instituto Santo Tomás de Aquino. (texto original português)

Referências

BAÑADOS, C. P. Penitência e reconciliação. In: CELAM. A celebração do mistério pascal; os sacramentos: sinais do mistério pascal. São Paulo: Paulus, 2005. Manual de liturgia, v. III, p.205-238.

 BOROBIO, D. Celebrar para viver; liturgia e sacramentos da Igreja. São Paulo: Loyola, 2009.

 BUGNINI, A. A reforma litúrgica (1948-1975). São Paulo: Paulus; Paulinas; Loyola, 2018.

 BUYST, I. As celebrações penitenciais. In: CNBB. Deixai-vos reconciliar. São Paulo: Paulus, 2008, p. 49-66. Estudos da CNBB, n.96.

 DENZINGER – HÜNERMANN. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas / Loyola, 2007.

 FRANCISCO. Veritatis Gaudium. Sobre as universidades e as faculdades eclesiásticas. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_constitutions/documents/papa-francesco_costituzione-ap_20171208_veritatis-gaudium.html Acesso em: 12 set 2019.

 ______. Misericordiae Vultus. O rosto da misericórdia. Bula de proclamação do jubileu extraordinário da misericórdia. São Paulo: Paulus, 2015.

 NOCENT, A. O sacramento da penitência e da reconciliação. In: NOCENT, A. et al. Os sacramentos; teologia e história da celebração. São Paulo: Paulinas, 1989, p.143-221. Anamnesis, 4.

 VISENTIN, P. Penitência. In: VV.AA. Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus, 1992. p. 920-937.

Santa Teresa de Jesus  

Sumário

Preâmbulo

1 Contexto e biografia de Santa Teresa de Jesus

1.1 Vida em família: 1515-1535

1.2 Carmelita no mosteiro da Encarnação: 1535-1562

1.3 Escritora e fundadora do novo Carmelo: 1562-1582

2 Obras de Santa Teresa de Jesus

2.1 Livro da Vida

2.2. Caminho de Perfeição

2.3 Castelo Interior ou Moradas

2.4 Fundações, Cartas e escritos menores

3 Eixos principais da mística teresiana

3.1 A oração como amizade

3.2 O recolhimento

3.3 A centralidade da “sagrada humanidade” de Cristo

3.4 A presença de Deus na pessoa humana

3.5 Mística e amor concreto 

4 Santa Teresa e os pobres

Conclusão

Referências

Preâmbulo

Santa Teresa de Jesus, ou Santa Teresa de Ávila, carmelita espanhola, é uma das grandes figuras da Igreja e da mística cristã do Ocidente. Destaca-se pela experiência intensa e humanizadora do amor de Deus, fonte de uma vida e obra que se tornaram luz e sabedoria das coisas divinas e das coisas humanas. Mulher atuante no seu tempo histórico, empenhou-se na reforma do Carmelo e na fundação dos Carmelitas Descalços. Propôs um estilo de vida cristã simples, comprometido e orante, baseado na amizade com Deus. Escreveu obras literárias de gêneros diversos, tanto doutrinais quanto autobiográficas, históricas, legislativas e poéticas, além de um espetacular epistolário. Sua influência irradia para além do âmbito do cristianismo ocidental. Em 1970, o papa Paulo VI conferiu-lhe o título de Doutora da Igreja. Foi a primeira mulher a ter recebido este título.

A seguir serão tratados os temas: contexto e biografia de Santa Teresa de Jesus; suas obras; os principais eixos da mística teresiana; e Santa Teresa de Jesus e os pobres.

1 Contexto e biografia de Santa Teresa de Jesus

O século XVI espanhol é considerado o “século de ouro”. Dá-se a inserção da Espanha unificada na Europa, expansão através da conquista da América – Índias, guerras vencidas e manifestações culturais extraordinárias, especialmente de caráter filosófico e literário. Poder político e econômico. Mas, como toda realidade, é um século de luzes e sombras, com perseguições inquisitoriais, conflitos entre correntes de espiritualidades, quebra da cristandade conhecida, guerras de religião. Para Santa Teresa, com sua lucidez esperançada, eram tempos recios, difíceis. Os males na Igreja a levam a dizer que “o mundo está sendo tomado pelo fogo” (SANTA TERESA, C 1,5, 1995, p.303)[1]; ela denuncia a situação social e eclesial das mulheres como de submissão, desqualificação e “encurralamento” (SANTA TERESA, CE 4,1, 1994, p.531); tece críticas ao sistema de poder estruturado sobre o dinheiro e a honra (SANTA TERESA, V 20,26, 1995, p.135). Afirma que, naqueles tempos, “são necessários amigos fortes de Deus para sustentar os fracos” (SANTA TERESA, V 15,5, 1995, p.99). Abertura crítica à realidade, oração e ação corajosa a caracterizam (PEDROSA-PÁDUA, 2011a, p.114).

A primeira biógrafa de Santa Teresa é ela mesma. Aos 50 anos de idade, escreverá sua autobiografia, o Livro da Vida, complementada por seu livro Fundações, concluído meses antes de sua morte, aos 67 anos. Também as Cartas fornecem dados autobiográficos de Teresa. Além disso, a autora realiza interpretações e releituras do que ela viveu (ALVAREZ, 2000a, p.188). Tudo isso, aliado a outros registros históricos, faz com que se tenha dados abundantes sobre a vida dessa santa, tanto de sua biografia exterior quanto de sua história interior de oração e relação com Deus.

É possível organizar cronologicamente os principais acontecimentos da vida de Santa Teresa (ALVAREZ, 2000b, p.1302-1326) em três períodos:

1º Vida de Teresa em família: 1515-1535;

2º Carmelita no convento da Encarnação: 1535-1562;

3º Escritora e fundadora do novo Carmelo: 1562-1582.

1.1 Vida em família: 1515-1535

Teresa de Ahumada nasceu em Ávila (Espanha) no dia 28 de março de 1515, filha de D. Alonso Sánchez de Cepeda com sua segunda esposa, D. Beatriz de Ahumada. Foi batizada no dia 4 de abril. Viveu em família numerosa. Eram dois irmãos do primeiro casamento de seu pai e nove (?) do segundo casamento. Seus pais são descritos por ela como “virtuosos e tementes a Deus” (SANTA TERESA, V 1,1, 1995, p.27).

No Livro da Vida, Teresa nos narra que foi despertada pela leitura “com a idade de seis ou sete anos” (V 1,1, p. 27) e lia a vida dos santos, com seu irmão – Rodrigo, poucos anos mais velho. Com ele, decide fugir de casa para a “terra dos mouros”, com o intuito de morrerem mártires e experimentarem a glória eterna do céu. Gostavam de repetir juntos: “para sempre, sempre, sempre!” (V 1,4, p.28). Mais tarde, ao relembrar estes acontecimentos, Teresa identificará a presença de Deus a conduzi-la: “ficava impresso em mim, em tão tenra idade, o caminho da verdade” (V 1,4, p.28).

Adolescente, lia livros de cavalaria com sua mãe e deixava-se absorver por essa leitura (SANTA TERESA, V 2,1, 1995, p.30). A morte de D. Beatriz foi um duro baque. Teresa contava treze anos (embora, num lapso de memória, escreva que tinha doze) e, ao perceber “o que havia perdido” (SANTA TERESA, V 1,7, 1995, p.29), escolhe para si “outra mãe” (SCIADINI, 2015, p.29). Dirige-se a uma imagem de Nossa Senhora, N. Sra. da Caridade, e lhe suplica que fosse ela a sua mãe. Aos 16 anos, após alguns acontecimentos familiares, em que entram em cena uma parenta de caráter duvidoso, mas da qual Teresa passa a gostar para conversas e entretenimentos, e um incipiente amor que poderia “resultar em casamento” (SANTA TERESA, V 2,9, 1995, p.33), seu pai decide interná-la no colégio das freiras agostinianas. Ali, pouco a pouco, a vocação religiosa de Teresa amadurece (SANTA TERESA, V 3,2, 1995, p.34).

Com 18 anos Teresa decide entrar como carmelita no mosteiro da Encarnação, mas, ao dizê-lo a seu pai, recebe forte oposição. Decide esperar um pouco, porém, sem mudar de ideia. No mesmo ano em que seu irmão Rodrigo, grande amigo desde a infância, parte para a América, Teresa leva adiante o seu propósito – sai de casa também ela, “bem de manhã” (SANTA TERESA, V 4,1, 1995, p.37), sem o conhecimento do pai, e entra para a Encarnação. Tinha então 20 anos.

1.2 Carmelita no mosteiro da Encarnação: 1535-1562

Foi na Encarnação, mosteiro da Ordem Carmelita que chegou a ter quase 200 pessoas, que Santa Teresa passou 27 anos, a maior parte de sua vida, dos 20 aos 47 anos de idade. Ali recebeu sua formação como religiosa, sofreu anos de enfermidade e viveu um processo espiritual de lutas e amadurecimento, não isento de incoerências e mediocridade. Ali iniciou a vida mística intensa, com graças extraordinárias e projetou a fundação de um novo Carmelo. Mais tarde, voltará à Encarnação como priora.

Alguns acontecimentos são ressaltados por ela mesma. Contrai grave doença (com cerca de 23 anos), cujo processo de cura levará quase cinco anos. No momento mais grave, após um tratamento doloroso com uma curandeira nas proximidades de Ávila, chegam a lhe abrir uma sepultura no convento da Encarnação. Teresa nos narra como, porém, as irmãs “receberam viva quem esperavam morta; o corpo, no entanto, estava pior do que morto” (SANTA TERESA, V 6,2, 1995, p.47). A partir daí lhe sobrevém grande fraqueza, da qual vai melhorando aos poucos, mas fica “paralítica por quase três anos” (SANTA TERESA, V 6,2, 1995, p.47). Neste tempo, desenvolve grande devoção a São José e sente-se curada graças a ele (SANTA TERESA, V 7,8, 1995, p.50).

A morte do pai lhe sobrevém logo depois, ao final de 1543. D. Alonso morre assistido por Teresa (SANTA TERESA, V 7,16, 1995, p.58).

Segue-se um processo tumultuado na oração e nas buscas por realização, em que Teresa se vê singrando “um mar tempestuoso, caindo e levantando” (SANTA TERESA V 8,2, 1995, p.62). A oração convive com incoerências pessoais e o ambiente na Encarnação não propicia ajuda consistente e solidária para viver as dificuldades espirituais e existenciais.

Na quaresma de 1554, aos 39 anos, Teresa vive uma conversão diante de um “Cristo com grandes chagas” (SANTA TERESA, V 9,1, 1995, p.66), fato que a fortalece por dentro. Inicia-se novo período de vida, com coerência ética e graças místicas. Experimenta grande sentimento da presença de Deus em si mesma e da presença dela, Teresa, em Deus: “não podia duvidar de que o Senhor estivesse dentro de mim ou que eu estivesse toda mergulhada nele” (SANTA TERESA, V 10,1, 1995, p.70). Locuções internas, êxtases, visões se sucedem. A “graça do dardo”, conhecida como transverberação do coração, concede a ela especial experiência do amor de Deus (SANTA TERESA, V 29,13, 1995, p.194). No processo de discernimento das experiências, Teresa sempre dialoga com teólogos e pessoas experientes na oração, de várias ordens religiosas.

As graças místicas acontecem concomitantemente ao nascimento do projeto de fundação de um novo mosteiro, cuja gênese se dá num pequeno grupo de amigas e familiares (SANTA TERESA, V 32,10, 1995, p.217). Teresa vai, firme e decididamente, dando corpo a esse projeto.

Deste tempo é também a redação dos primeiros escritos teresianos: as primeiras Relações e a primeira redação do Livro da Vida, hoje perdida.

1.3 Escritora e fundadora do novo Carmelo: 1562-1582

Este período compreende os últimos 20 anos da vida de Teresa, dos 47 anos de idade até sua morte, aos 67 anos, em sua última viagem. É o tempo da maturidade humana e espiritual de Santa Teresa, em que ela exerce intensa atividade como escritora e empreende a fundação dos Carmelitas Descalços. Tudo o que hoje temos da Santa de Ávila – fundações e obras – foi realizado neste período. Ao fundar o novo Carmelo, adota o nome Teresa de Jesus.

Teresa de Jesus funda dezessete mosteiros, quinze deles pessoalmente: São José de Ávila (1562), onde Teresa permanece cinco anos, “os anos mais calmos da minha vida” (SANTA TERESA, F 1,1, 1995, p. 597); Medina del Campo (1567); Malagón (1568); Valladolid (1568); Toledo (1569); Pastrana (1569); Salamanca (1570); Alba de Tormes (1571); Segovia (1574); Beas (1575); Sevilla (1575); Villanueva de la Jara (1580); Palencia (1580); Soria (1581); Burgos (1582). Outorga a Ana de Santo Alberto a fundação em Caravaca (1576) e, a Ana de Jesus, em Granada (1582). Sonha fundar em Madri, projeto não realizado em vida.

A decisão de fundar inclui também mosteiros masculinos – “eu não parava de pensar nos mosteiros dos frades (…). Resolvi então tratar do caso sigilosamente com o prior de Medina” (SANTA TERESA, F 3,16, 1995, p.609). Para isso, associa São João da Cruz à sua obra.

Cada fundação é envolta em intrincada rede de decisões, providências e circunstâncias. Envolve autorizações eclesiásticas, problemas jurisdicionais, contatos com a população civil, compras e reformas de casas, aquisição de objetos de culto e mobiliários. Há dificuldade de transporte nas viagens, condições climáticas adversas, relações humanas facilitadoras, conflitos comunitários – para exemplificar alguns dos desafios encontrados pela fundadora. Grande parte desta grande empreitada está registrada no Livro da Vida (fundação do Carmelo de São José) e, particularmente, em Fundações. Escrita sempre com vida, graça e riqueza de detalhes. Em sua atividade fundadora, Teresa “percorre os caminhos de Castela, La Mancha e Andaluzia. Associa Frei João da Cruz à sua obra. Amplia sua rede de relações humanas nos diversos estratos da vida social. (…) Enfrenta corajosamente situações conflitivas” (ALVAREZ, 2000b, p.1310). A vida de Teresa de Jesus se desdobra em missão.

Concomitantemente à atividade fundadora, Teresa de Jesus redige seus livros e cartas (vide abaixo).

No retorno de sua última fundação, Burgos, em direção a Ávila, é obrigada a passar por Alba de Tormes. Em sua última eucaristia exclama: “é chegada a hora, esposo meu, de que nos vejamos” (ALVAREZ, 2000b, p.1325).  Ali morre, no Carmelo de Alba, no dia 4 de outubro de 1582, aos 67 anos. Segundo a reforma gregoriana do calendário, o dia seguinte é 15 de outubro – dia em que a Igreja celebra a grande Santa.

Em 24 de abril de 1614, Teresa de Jesus é beatificada pelo papa Paulo V; em 12 de março de 1622, canonizada na Basílica de São Pedro, em Roma, pelo papa Gregório XV.

Em 27 de setembro de 1970, o papa Paulo VI proclama Santa Teresa de Jesus Doutora da Igreja (PAULUS PP VI, 1970).

2 Obras de Santa Teresa de Jesus

Teresa é verdadeira escritora. Possuiu bagagem teológica e literária adquiridas por leituras, liturgias e diálogos frequentes com teólogos. Ela mesma escreve que, na adolescência, “se não tivesse um livro novo, em mais nada encontrava contentamento” (SANTA TERESA, V 2,1, 1995, p.30). A isso se soma sua observação sensível do cotidiano, da vida, das pessoas e da natureza. É escritora com forte estilo pessoal e pluralidade de gêneros, segundo o contexto concreto das redações. Grande parte de seu êxito editorial deve-se à persuasão de sua linguagem, rica em beleza e elegância, criativa em símbolos, estimulante sem ser moralista e fina em bom humor.

Mas é a experiência de Deus que determina a urgência profética da sua escrita, suas inspirações mais profundas, o discernimento dos conteúdos e a linguagem mística, sempre aquém da realidade sobrenatural experimentada, em si mesma inefável (PEDROSA-PÁDUA, 2011b, p.33-34). A ação da graça na interioridade humana, nas relações e no cosmos – isto é o que Santa Teresa tenta comunicar. Ela é profeta dos “segredos de Deus” (SANTA TERESA, 5M 1,4, 1995, p.489).

A seguir, são apresentadas suas principais obras.

2.1 Livro da Vida

O Livro da Vida é o primeiro grande livro de Santa Teresa, escrito provavelmente em 1565, tendo a autora 50 anos de idade e estando no Mosteiro de São José. Há informações sobre uma redação anterior, que não chegou a nós. É escrito em primeira pessoa, rico em dados autobiográficos e, por isso, também conhecido como sua autobiografia. Nele, narra o processo de sua vida mística e o começo de sua atividade fundadora.

Trata-se de uma autobiografia pouco convencional, em que o objetivo de Teresa de Jesus não é propriamente narrar sua vida. Sequer são mencionados os nomes dos seus pais e irmãos. São exceções, referidas explicitamente, São Francisco de Borja – jesuíta, citado como “Padre Francisco, que era duque de Gandia” (SANTA TERESA, V 24,3, 1995, p.157) e São Pedro de Alcântara – franciscano, referido como “santo homem de grande espírito, Frei Pedro de Alcântara” (SANTA TERESA, V 27,3, 1995, p.173), com os quais Teresa se encontrou pessoalmente; no Prólogo, cita São João de Ávila, como o “Padre Mestre Ávila” (SANTA TERESA, 1995, p.291).

O objetivo principal de Santa Teresa ao escrever o livro é narrar a história de seu encontro com Deus pela oração e os dinamismos que esse encontro provoca. Trata-se do relato de sua vida enquanto história pessoal de salvação e envio em missão. Este é o cerne da existência e da obra teresiana. O encontro com Deus se dá como uma aventura que se inicia na infância, atravessa a adolescência e passa à vida adulta, com buscas, desencontros, anos em luta pela coerência entre oração e vida, momentos dramáticos de discernimento, entrada na vida mística intensa e profunda, com experiências sobrenaturais purificadoras – locuções, êxtases, visões, a transverberação do coração e o encontro com a humanidade de Cristo, “livro vivo” (SANTA TERESA, V 26,5, 1995, p.171). Trata-se de um encontro dinamizador de seu próprio ser mulher e de seu envio na missão escritora e fundadora.

Em meio à narrativa de sua vida, a autora discorre alguns temas doutrinais, sendo os mais importantes: os graus da oração, em que Teresa utiliza o símbolo da alma como um jardim e da oração como forma de regá-lo (capítulos 11 a 21); a centralidade da sagrada humanidade de Cristo em todos os graus da vida mística (capítulo 22).

2.2. Caminho de Perfeição

Caminho de Perfeição foi redigido duas vezes. Ambas as redações são conservadas e sua leitura é acessível ao leitor contemporâneo. A primeira, o códice de El Escorial, encontra-se na Biblioteca do Real Monastério de El Escorial. Trata-se de um livro mais espontâneo, com linguagem familiar. O primeiro leitor censurou o autógrafo teresiano com cerca de 50 rasuras ou observações. Teresa preferiu reescrever o livro, ao invés de simplesmente acertar a primeira redação (MAROTO, 1978, p.269-310). Assim temos o códice de Valladolid, conservado nas Carmelitas Descalças na cidade de Valladolid. Trata-se de uma redação mais cuidada, pensada para um público maior. A redação das duas versões foi feita, provavelmente, no ano de 1566, estando Teresa de Jesus no mosteiro de São José.

O livro é escrito em perspectiva pedagógica e endereçado àquelas e àqueles que se determinam a levar uma vida de oração. Neste livro ecoam as vicissitudes da Reforma e o sentido militante e eclesial do novo Carmelo: “Decidi-me então a fazer o pouco que posso (…) ajudaríamos no que pudéssemos a esse Senhor meu” (SANTA TERESA, C 1,2, 1995, p.302). Com relação às mulheres, Caminho denuncia a situação subordinada em que se encontravam e traça forte defesa teológica da sua dignidade (SANTA TERESA, CE 4,1, 1994, p.531).

Alguns temas doutrinais merecem destaque: os pressupostos existenciais e éticos para ser uma pessoa de oração: uma vida pautada pelo amor, pelo desapego e pela humildade (capítulos 4 a 15); a defesa da oração de recolhimento e vários conselhos para colocar-se no caminho dessa oração (capítulos 19 a 26); o comentário à oração do Pai Nosso (capítulos 27 a 42).

2.3 Castelo Interior ou Moradas

Castelo Interior é o livro da maturidade humana e espiritual de Teresa de Jesus e completa a trilogia doutrinal da Santa: Livro da Vida, Caminho de Perfeição, Castelo Interior ou Moradas. É também um livro síntese de suas grandes convicções. Foi escrito em 1577, quando a autora contava 62 anos.

O título já contém a natureza, autora e destinatárias do livro. Tudo de próprio punho: “Este tratado, chamado Castelo Interior, foi escrito por Teresa de Jesus, monja de Nossa Senhora do Carmo, para suas irmãs e filhas, as monjas carmelitas descalças” (SANTA TERESA, 1995, p.438). Apesar desta dedicatória familiar, o livro é, como ela mesma o chama, um “tratado” de teologia espiritual e mística, e desde o início foi cercado de interesse por parte de teólogos e pessoas de outras áreas do conhecimento, como a literatura. Castellano Cervera o considera um modelo indutivo de antropologia teológica (1981, p.117-131).

No símbolo do castelo interior se articulam quem é a pessoa humana diante de Deus, quem é o Deus que a habita e o desenvolvimento da dinâmica do encontro entre “Deus e a alma” (SANTA TERESA, 1M 1,3, 1995, p.442). Esta dinâmica é narrada em termos de graus de intensidade ou moradas, sendo a primeira a mais exterior e a sétima a mais interior. Nessa última, encontramos a experiência, ainda não acontecida quando da redação das grandes obras anteriores, do matrimônio espiritual, como união forte e permanente com Deus, através de Jesus Cristo (SANTA TERESA, 7M 2,1, 1995, p.570). A sétima morada é a culminância da dinâmica já presente nas moradas anteriores. Nela há, simultaneamente, maior experiência e conhecimento de Deus e da sagrada humanidade de Cristo, profundo autoconhecimento, conversão ética e desenvolvimento das capacidades de amor e serviço.

Símbolo menos abrangente, porém de grande importância no livro, é o da metamorfose do bicho-da-seda numa “borboletinha branca” (SANTA TERESA, 5M 2,7, 1995, p.495), indicando a vida nova em Cristo.

2.4 Fundações, Cartas e escritos menores

O livro das Fundações é iniciado em 1570, quando Teresa de Jesus empreende sua segunda fundação, e finalizado no ano de sua morte, 1582. Ali estão registradas as motivações e as principais circunstâncias que envolvem o trabalho fundacional de Teresa. Mas não só isso, também a narração de histórias das pessoas envolvidas, nomes em profusão, gestão das questões financeiras, acontecimentos eclesiásticos, vicissitudes trazidas pelo sol, chuvas e neve naquelas difíceis estradas. A obra adquire características de novela e crônica. Na narrativa há doutrina, há humor, há interesse pelas pessoas e pelas coisas de Deus. É possível acompanhar o processo de discernimento, espiritual e prático, necessário para levar a cabo cada fundação teresiana.

As Cartas acompanham todo o processo das fundações e a redação dos demais livros. As edições modernas trazem em torno de 450 cartas escritas pela Santa, no período de 1561 até menos de um mês antes de sua morte, em 1582. Sabemos que elas podem ter chegado a 15.000 ou mais. O teor destas cartas começou a ser valorizado apenas no século XX, em que as pequenas coisas, como o cotidiano, o afeto, as relações, a saúde e os negócios, passaram a ser consideradas fonte importante de conhecimento histórico e antropológico. Para a espiritualidade, esta valorização significou uma formidável virada teológica em direção à ação de Deus no prosaico da vida. A santidade é resgatada como vivência do amor concreto e vocação de todos, vivida no interior das relações humanas. O epistolário teresiano oferece um excelente material para o conhecimento da pessoa de Teresa, de sua santidade no cotidiano, além de ser um testemunho do contexto histórico em que ela viveu.

Além desses livros, Teresa se dedica a textos sobre sua experiência de Deus, como Exclamações da alma a Deus, Conceitos do amor de Deus (Meditação sobre o Cântico dos Cânticos) e Relações. Em Certame e Resposta a um desafio sobressaem o bom humor e a habilidade de Teresa em estabelecer articulação entre as pessoas. As Poesias são escritas por motivos variados, da experiência profunda de Deus à recreação em festas litúrgicas e circunstâncias da vida conventual. Há também textos legislativos, como Constituições e Modo de visitar os Conventos.

Enfim, os escritos de Santa Teresa de Jesus são o testemunho de alguém que viveu intensamente a intimidade com Deus e que, como os profetas, necessita falar para que outros e outras pessoas possam também vivê-la.

3 Eixos principais da mística teresiana

Aqui são tratados os seguintes eixos: a oração como amizade; o recolhimento; a centralidade da “sagrada humanidade” de Cristo; a presença de Deus na pessoa humana; mística e amor concreto.

3.1 A oração como amizade

Santa Teresa dá uma contribuição original ao magistério sobre a oração, ao afirmá-la como relação e amizade. O texto do Livro da Vida condensa essa noção de oração: “(…) é tratar de amizade – estando muitas vezes tratando a sós – com quem sabemos que nos ama” (SANTA TERESA, V 8,5, 1995, p 63). A oração-amizade é uma prática oracional que deve ser cultivada “a sós” e de maneira frequente; é também uma forma de vida em permanente relação dialógica com Deus, fonte de vida e amor. Cristo faz-se companheiro de caminho: “juntos andemos, Senhor; por onde fordes, terei de ir; por onde passardes, terei de passar” (SANTA TERESA, C 26,6, 1995, p.376). Por isso, a oração como amizade é encontro pessoal, transformante e dinâmico (HERRAIZ GARCIA, 2002, p.55).

3.2 O recolhimento

A oração-amizade se realiza através do recolhimento, ou entrada dentro de si mesmo para o encontro com o Cristo mestre e amigo. “Chama-se recolhimento, porque a alma recolhe todas as faculdades e entra em si mesma com seu Deus; seu divino Mestre vem ensiná-la…” (SANTA TERESA, C 28,4, 1995, p.381). A contemplação perfeita do Mestre é uma dádiva (SANTA TERESA, C 25,2, 1995, p.373) que sinaliza o desejo de Deus em estar e se comunicar com a pessoa. Este dom deve ser acolhido e cultivado na prática habitual do recolhimento, em que acontece a educação progressiva do olhar, da escuta e do falar interiormente com Cristo (SANTA TERESA, C 26,3 et seq., 1995, p.375).

Ao mesmo tempo, há a necessidade de cultivo das atitudes primordiais: a humildade, o desapego e o amor concreto. Elas são a base do caminho do recolhimento e, sem elas, a oração não encontra terreno sólido (SANTA TERESA, C 4,4, 1995, p.312).

3.3 A centralidade da “sagrada humanidade” de Cristo

A experiência de Cristo é central na mística teresiana. É diante da imagem de Cristo, com grandes chagas, que se dá a conversão definitiva de Santa Teresa à vida de oração e à coerência de vida (SANTA TERESA, V 9,1, 1995, p.66). Cristo se manifesta a ela como um “livro vivo” (SANTA TERESA, V 26,5, 1995, p.171) e a relação com Deus implica uma experiência cada vez mais profunda com o Cristo dos Evangelhos. Culmina numa união inseparável, o “matrimônio espiritual”, que significa entrega a Cristo em amor concreto e servidor (SANTA TERESA, 7M 2,1, 1995, p.570). Na doutrina teresiana, a humanidade de Cristo, Filho encarnado, deve ser considerada em toda a vida espiritual, mesmo no auge da contemplação. É pela vida, morte e ressurreição de Cristo que o amor de Deus se revela, Cristo é o caminho para Deus. Além disso, há uma razão antropológica para a centralidade da sagrada humanidade na vida espiritual: “não somos anjos, pois temos um corpo” (SANTA TERESA, V 22,10, 1995, p.145). Apenas na sagrada humanidade o místico encontra apoio concreto para o pensamento, para a oração e para a própria dinâmica da vida e do amor. A encarnação possibilita a valorização do corpo e das realidades corpóreas e uma mística de integração entre corpo e alma, para além da linguagem frequentemente dualista da época de Santa Teresa (PEDROSA-PÁDUA, 2015, p.239 e 317).

O desenvolvimento doutrinal sobre a centralidade da sagrada humanidade de Cristo, Filho de Deus encarnado, encontra-se em dois capítulos centrais da obra teresiana: o capítulo 22 do Livro da Vida e o capítulo sétimo das sextas Moradas.

3.4 A presença de Deus na pessoa humana

A presença de Deus na pessoa humana é o núcleo experiencial e doutrinal que dá sentido e unifica a mística teresiana. A partir dela, Santa Teresa conhece um Deus próximo, presente, amigo, transformante e que se revela cada vez mais como Deus comunhão e comunicação – trinitário. No início deste processo, escreve ela no Livro da Vida, acontecia que, estando em oração, colocando-se mentalmente ao lado de Cristo, outras vezes lendo, vinha-lhe um “sentimento da presença de Deus” (SANTA TERESA, V10,1, 1995, p.70). A experiência da presença de Deus foi tão importante que será repetida em Caminho de Perfeição, Moradas e outros escritos. Em Moradas, a pessoa humana é apresentada como um castelo de diamante ou de um cristal muito transparente e Deus, como o sol, está presente no centro irradiando sua luz (SANTA TERESA, 1M 1,1, 1995, p.441). Para Santa Teresa, o Deus vivo e comunicante se faz perceber e sentir na alma, e essa é como “uma esponja que se embebe de água” (SANTA TERESA, R 45, 1995, p.830).

Pouco a pouco esta presença de Deus no interior humano vai se revelando como presença trinitária (SANTA TERESA, R 54, 1995, p.833). Na experiência mística teresiana, Deus habita o humano, é amor que se comunica pessoalmente, através das pessoas divinas. Teresa de Jesus é “trinificada” (CUARTAS, 2008, p.163). O aprofundamento no conhecimento de si mesma é, ao mesmo tempo, abertura à alteridade de Deus, do mundo, do próximo (SANCHO, 2012, p.75).   Deus, comunidade de pessoas que se amam, comunicam e conhecem, volta-se à pessoa humana para fazê-la participar desta comunidade pelo conhecimento, comunicação-experiência, amor e serviço (PEDROSA-PÁDUA, 2015, p.175).

3.5 Mística e amor concreto  

A inter-relação entre a mística e o amor concreto, vivida na prática, é clara na doutrina de Santa Teresa. O amor concreto é critério da verdadeira mística: “é nos efeitos posteriores que se conhecem essas verdades na oração, pois eles são o melhor crisol para prová-las” (SANTA TERESA, 4M 2,8, 1995, p.479). Por outro lado, a mística tem por objetivo a prática do amor concreto. A verdadeira união com Deus é o amor a Deus e ao próximo, afirma Teresa nas quintas Moradas, em suas grandiosas páginas sobre a pedagogia do amor cristão (SANTA TERESA, 5M 3,7, 1995, p.501 et seq.). Tanto o itinerário da experiência ordinária do seguimento de Cristo, quanto o itinerário da experiência mística da união com Cristo, no matrimônio espiritual, desembocam no imperativo do serviço e das obras, como fica claro nas sétimas Moradas: “Pois isto é oração, filhas minhas; para isto serve este matrimônio espiritual: para fazer nascer obras, sempre obras” (SANTA TERESA, 7M 4,6, 1995, p.583). Mais adiante: “Desejo, irmãs minhas, que procuremos alcançar exatamente esse alvo. Apreciemos a oração e ocupemo-nos dela, não para nos deleitar, mas para ter essas forças para servir”. E acrescenta: “Marta e Maria devem andar sempre juntas” (SANTA TERESA, 7M 4,12, 1995, p.584-585).

4 Santa Teresa e os pobres            

A contemplação e o seguimento de Cristo realizam em Teresa uma conversão progressiva aos pobres e à vivência da pobreza evangélica. Trata-se de um caminho espiritual, enraizado em sua experiência cristã.

A vida de Cristo se radicaliza em sua vida. Encontramos em seus escritos um testemunho que se assemelha ao de São Francisco: “Sinto em mim uma grande lástima e desejo de remediar a sua situação [dos pobres], a ponto de, se seguisse a minha vontade, dar-lhes minha própria roupa. Nenhum asco tenho deles; trato com eles e os toco” (SANTA TERESA, R 2,4, 1995, p.783). Uma solidariedade lhe brota de dentro, de um coração que passa a sentir diferente e uma mente que passa a pensar diferente. Vive uma verdadeira conversão, metanoia, cuja fonte é Deus: “vejo que é um dom de Deus” (SANTA TERESA, R 2,4, 1995, p.783).

Não apenas isso. A pobreza torna-se para ela um compromisso de novas relações, pautadas na igualdade e na solidariedade. Atualizando esta exigência para o seu contexto histórico e eclesial, institui em suas comunidades uma forma de vida não pautada pela diferença que vem das origens familiares e de riqueza: “Quem tiver a linhagem mais nobre deve ter o nome do pai menos vezes na boca”. Teresa advoga a igualdade: “todas devem ser iguais” (SANTA TERESA, C 27,6, 1995, p.380). A vida comunitária era caracterizada por estrita pobreza: “a pobreza que Santa Clara institui em seus mosteiros também está presente neste (…)” (SANTA TERESA, V 33,13, 1995, p.228).

Temos assim um caminho iluminador para a mística latino-americana: abertura ao dom do Cristo crucificado, compromisso de viver a pobreza, transformação concreta das relações pautadas na discriminação e dominação de uns sobre os outros. Não se trata de assistencialismo, nem de compromisso exterior, mas de um caminho espiritual e concreto.

Conclusão

A vida e a obra de Santa Teresa de Jesus fazem dela uma mística que transpõe os muros do cristianismo e mesmo das religiões. Sua “sabedoria das coisas divinas e sabedoria das coisas humanas” (PAULO VI, 1970) é valorizada de forma universal, por outras religiões, por agnósticos e mesmo por ateus.

Os eixos da mística teresiana tratados acima – oração como amizade, prática do recolhimento, centralidade da sagrada humanidade de Cristo, presença de Deus no interior humano e inter-relação entre mística e amor – manifestam que o mistério de Deus se faz inseparável do mistério humano. A mística dinamiza o interior humano e suas relações na Igreja, na sociedade e no próprio cosmos. Leva à vida nova em Cristo, com novas relações, amor concreto e serviço. De forma particular, a experiência teresiana na interação com o seu contexto e com os pobres inspira a teologia e o caminho espiritual latino-americanos.

Lúcia Pedrosa-Pádua, PUC Rio, Brasil – (texto original em português)

Referências

ALVAREZ, T. Biografía de Teresa. In: ALVAREZ, T. Diccionario de Santa Teresa de Jesús. Burgos: Monte Carmelo, 2000a. p. 187-194.

______. Teresa de Jesús. In: ALVAREZ, T. Diccionario de Santa Teresa de Jesús. Burgos: Monte Carmelo, 2000b. p.1302-1326.

CASTELLANO CERVERA, J. Guiones de doctrina teresiana. Castellón: Centro de Espiritualidad Santa Teresa, 1981.

CUARTAS LONDOÑO, R. El otro cielo. La presencia de Dios en el hombre según la experiência de Santa Teresa. Burgos: Monte Carmelo, 2008.

HERRAIZ GARCIA, M. Oração, história de amizade. 2.ed. São Paulo: Carmelitanas/Loyola, 2002.

MAROTO, D. P. Camino de Perfección. In: BARRIENTOS, Alberto (dir.). Introducción a la lectura de Santa Teresa. Madrid: Editorial de Espiritualidad, 1978. p.269-310.

PAULO VI. Homilia na Proclamação de Santa Teresa de Jesus Doutora da Igreja, 27 de Setembro de 1970. Disponível em: <http://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/homilies/1970/documents/hf_p-vi_hom_19700927.html> Acesso em: 6 nov 2019.

PAULUS PP VI, Litterae Apostolicae ‘Multiformis Sapientia Dei’, 27 Sept. 1970. Disponível em: < http://www.vatican.va/content/paul-vi/la/apost_letters/documents/hf_p-vi_apl_19700927_multiformis-sapientia.html> Acesso em: 4 nov 2019.

PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa de Ávila. Dez retratos de uma mulher “humana e de Deus”. In: ______; CAMPOS, M. B. (Orgs.). Santa Teresa. Mística para o nosso tempo. São Paulo/Rio de Janeiro: Reflexão/PUC-Rio, 2011. p.103-129.

_____. Santa Teresa de Jesus. Vida e significado de Santa Teresa de Jesus. In: ______; CAMPOS, M. B. (Orgs.). Santa Teresa. Mística para o nosso tempo. São Paulo/Rio de Janeiro: Reflexão/PUC-Rio, 2011. p.19-53.

_____. Santa Teresa de Jesus. Mística e humanização. São Paulo: Paulinas, 2015.

SANCHO FERMÍN, F. J. El conocimiento de sí en la meditación teresiana. In: ______. (Cord.). La meditación teresiana. Ávila: CITeS-Universidad de la Mística, 2012. p.51-90.

SANTA TERESA DE JESUS. Obras Completas (coord. Frei Patricio Sciadini; trad. texto estabelecido por T. Álvarez). São Paulo: Carmelitanas/Loyola, 1995.

SCIADINI, P. Teresa de Ávila. É tempo de caminhar. São Paulo: Carmelitanas/Loyola, 2015.

[1] As obras teresianas serão indicadas pelas abreviaturas: V – Livro da Vida; C – Caminho de Perfeição; CE – Camino de Perfección (El Escorial); M – Castelo Interior ou Moradas; F – Fundações; R – Relações; P – Poesias. A abreviatura é seguida do número do capítulo e do(s) parágrafo(s). Na citação de Moradas, o número que antecede a abreviatura indica a morada correspondente.

Gênero e Orientação Sexual

Sumário

1 Definições de gênero e orientação sexual

2 Gênero: entre estudos e ideologia

3 A discriminação e seu enfrentamento

4 Judith Butler e a controvérsia sobre gênero

5 Gestos e palavras do papa Francisco

6 Entre bons e maus caminhos a trilhar

Referências

1 Definições de gênero e orientação sexual

Tradicionalmente, gênero é definido como o que identifica e diferencia homens e mulheres. É sinônimo de sexo, referindo-se ao que é próprio do sexo masculino, assim como do feminino. Porém, a partir do ponto de vista das ciências sociais e da psicologia, gênero é entendido como o que diferencia socialmente as pessoas, considerando padrões histórico-culturais atribuídos a homens e a mulheres.

Nas últimas décadas, os estudos de gênero têm se relacionado também com orientação sexual. Não raramente servem de base para um notável ativismo sociopolítico e para a implementação de políticas públicas. São pesquisas e reflexões que evidenciam o papel da cultura e das estruturas sociais na configuração e na relação entre os gêneros, questionam a subalternidade de um gênero a outro e contemplam a realidade da população LGBT+, que recentemente adquiriu ampla visibilidade.

A sigla LGBT+ se refere a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e outros. Para o esclarecimento de alguns termos, travestis são pessoas que vivenciam papéis femininos, mas não se reconhecem como homens e nem como mulheres. O termo deve ser usado sempre no feminino: as travestis. Transexuais, por sua vez, são pessoas que não se identificam com o sexo que lhes é atribuído ao nascerem, e sim com o outro sexo. Pode haver homem transexual, que reivindica o reconhecimento social e legal como homem, e mulher transexual, que reivindica o reconhecimento social e legal como mulher. Tanto travestis como transexuais são transgênero (ou simplesmente trans), isto é, pessoas que não se identificam com o sexo que lhes é atribuído ao nascerem. O contrário de transgênero é cisgênero, que se refere a pessoas identificadas com o sexo atribuído ao nascerem (JESUS, 2012, p.14).

Uma convenção internacional estabeleceu princípios para aplicação da legislação sobre direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. São os chamados Princípios da Yogyakarta, cujas definições foram amplamente aceitas inclusive pela legislação brasileira. Considera-se:

I – Orientação sexual “como uma referência à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas”, e

II – Identidade de gênero como

a profundamente sentida, experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos (Resolução, 2014, Art. 1º).

Com esta classificação, lésbicas, gays, homossexuais, bissexuais ou heterossexuais são conceitos que se referem à orientação sexual. Por sua vez, travestis, transexuais, transgênero e cisgênero se referem a identidade de gênero. Muitos, porém, não aceitam tal classificação. Argumentam que a orientação sexual não define a pessoa e que a inclinação homossexual pode ser uma tendência transitória. Por isso, falam simplesmente de atração pelo mesmo sexo (same-sex attraction). Em ambientes católicos, não raramente os que têm essa atração são encaminhados à “oração de cura e libertação” para eliminá-la ou, ao menos, viverem a continência sexual. Algumas igrejas evangélicas fazem regularmente exorcismo de homossexuais e transgênero. Há países e províncias em que ainda são permitidas terapias de reversão da orientação homossexual e da identidade de gênero, às quais essas pessoas são submetidas.

2 Gênero: entre estudos e ideologia

Em alocução pública, o papa Francisco falou sobre família e a inquietação que lhe trazem os estudos de gênero. Conforme a tradição judaico-cristã, a instituição familiar é um grande dom que Deus deu à humanidade, criando o ser humano homem e mulher e instituindo o sacramento do matrimônio. A diferença sexual está presente em várias formas de vida, mas somente no homem e na mulher essa diferença traz a imagem e a semelhança divina. A sua finalidade não é a oposição ou a subordinação, mas a comunhão e a geração. O ser humano precisa da reciprocidade entre homem e mulher para se conhecer bem e crescer harmonicamente.

Recentemente, prossegue o papa, a cultura abriu novos espaços, liberdades e profundidades que enriquecem a compreensão dessa diferença, mas também trouxe muitas dúvidas e bastante ceticismo. E fez esta interrogação: “pergunto-me se a chamada teoria do gender não é também expressão de uma frustração e resignação, que visa cancelar a diferença sexual porque já não sabe confrontar-se com ela” (FRANCISCO, 2015b). Para ele, corre-se o risco de se dar um passo atrás. A remoção da diferença seria verdadeiramente o problema, não a solução.

As ressalvas do papa sobre os estudos de gênero refletem as manifestações da alta hierarquia católica a este respeito nas últimas décadas. Há um conjunto de proposições consideradas inaceitáveis, para o qual se cunhou a expressão “ideologia de gênero”. O Sínodo dos Bispos sobre a Família reiterou esta oposição, ratificada pelo papa em sua Exortação Pós-sinodal sobre a instituição familiar. Afirma-se que essa ideologia:

(…) nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças de sexo, e esvazia a base antropológica da família. Esta ideologia leva a projetos educativos e diretrizes legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade afetiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e mulher. A identidade humana é determinada por uma opção individualista, que também muda com o tempo. Preocupa o fato de algumas ideologias deste tipo, que pretendem dar resposta a certas aspirações por vezes compreensíveis, procurarem impor-se como pensamento único que determina até mesmo a educação das crianças. É preciso não esquecer que sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender) podem-se distinguir, mas não separar (AL n.56).

Este conjunto de proposições chamado ideologia de gênero não é defendido por um autor específico, mas se trata sim de um agrupamento de afirmações consideradas inaceitáveis, oriundas de mais de um autor. Algo semelhante aconteceu com a condenação do modernismo, feita pela alta hierarquia católica no início do século XX. Não havia um autor que, ao mesmo tempo, defendesse todas as proposições então condenadas sob o título de modernismo.

Na verdade, os estudos de gênero são conhecidos em inglês como gender theory, comumente traduzido como teoria de gênero. Mas, neste caso, teoria não é uma tradução apropriada porque esses estudos são bastante heterogêneos. Não há uma explicação unificadora e abrangente, como é o caso de uma teoria. O que há é um acordo geral em considerar os complexos comportamentos, direta ou indiretamente ligados à esfera sexual, como fruto de dimensões diferentes, não totalmente independentes e, por sua vez, complexas: o sexo anatômico, o reconhecimento de si como homem ou mulher, o papel de gênero e a orientação sexual. Nem sempre há uma coerência necessária entre o sexo atribuído ao nascer, o reconhecimento e a vivência da própria identidade como homem ou mulher, o desejo e a prática sexuais. As diferentes identidades que compõem a sigla LGBT+ mostram isto e expressam a complexa diversidade entre homem e mulher. Tal é o denominador comum dos estudos de gênero. Portanto, como não há propriamente uma teoria, convém se falar de estudos. Não se deve supor que todas as pessoas sejam cisgênero e heterossexuais, como no modelo binário em que só há homem e mulher sem mais especificações. E não se deve tampouco ignorar as diversas formas de discriminação e violência que oprimem e devastam a população LGBT+.

Sobre as suspeitas a respeito da ideologia de gênero, convém considerar que há pesquisas de neurociência indicando que a biologia da sexualidade não se reduz à genitália e à anatomia. O cérebro tem um papel importante na identidade de gênero e na orientação sexual. No caso da pessoa transgênero, o cérebro e a percepção de si não correspondem à genitália e ao restante do corpo. A pessoa se sente homem em um corpo de mulher, ou se sente mulher em um corpo de homem. Com relação à orientação sexual, há odores ligados à masculinidade e à feminilidade, os feromônios, que, quando inalados, são identificados pelo cérebro e influem na percepção e no comportamento. No mundo animal, esses odores são fundamentais na aproximação entre os sexos e no acasalamento. Tomografias especializadas revelam que o cérebro de mulheres homossexuais responde aos feromônios de forma diferente do cérebro de mulheres heterossexuais, e de forma similar ao de homens heterossexuais. Ou seja, tanto as mulheres homossexuais quanto os homens heterossexuais se sentem atraídos por outras mulheres. Experimentos semelhantes com homens homossexuais chegaram a resultados opostos e simétricos. O cérebro destes homens responde aos feromônios de forma diferente do cérebro de homens heterossexuais, e de forma similar ao de mulheres heterossexuais. Ou seja, homens homossexuais e mulheres heterossexuais se sentem atraídos por outros homens (HERCULANO-HUZEL, 2006, p.46-51). Mesmo que haja também fatores psicossociais incidindo nessa realidade, ser LGBT+ não é escolha e nem uma opção individualista.

Nos estudos de gênero, há também perspectivas situadas no horizonte teológico cristão. Giannino Piana, por exemplo, propõe não renunciar à diferença entre homem e mulher e à sua fundamental importância, que tem raiz no sexo anatômico e constitui o arquétipo do qual se origina a humanidade. Que se evidenciem os processos sociais e culturais sem prescindir inteiramente do componente biológico, da estrutura genética e neuronal do sujeito humano. Todavia, que se considere também o papel da cultura e das estruturas sociais, reconhecendo o mérito dos estudos de gênero em captar a relevância das vivências pessoais na definição da identidade de gênero (PIANA, 2014). Isso contribui para a superação de preconceitos causadores de graves discriminações, que levaram e ainda levam à marginalização dos LGBT+.

A posição da Igreja Católica, ainda segundo Piana, tem se caracterizado por uma defesa radical do dado biológico, inserindo-o na ordem da criação. Não raramente a Igreja considerou a crítica a esse dado como um atentado à soberania divina. Não se pode negar nesta posição um aspecto de verdade: o compromisso em defender a base do humano, que ficaria gravemente comprometido pela radical desconstrução da identidade biológica. Mas isto não deve significar recusa à reflexão sobre a natureza humana e sobre a lei natural, que assumiu por muito tempo conotações rigidamente físico-biológicas. A história do pensamento cristão traz valiosas contribuições.

Tomás de Aquino, teólogo escolástico, afirma com clareza que os conceitos de natureza e de lei natural só são aplicados ao ser humano analogicamente. Este tem uma dupla natureza: enquanto animal, que é comum aos outros animais; e enquanto homem, que é própria do homem, na medida em que, segundo a razão, distingue o torpe do honesto. Tal natureza é natura ut ratio (natureza como razão), sendo a razão o dado qualificante (AQUINO, livro V, lição 12, n.1019). Hoje se diria a cultura. Isto introduz a possibilidade de intervenção sobre dinâmicas naturais. Assim, se superou uma visão do pensamento patrístico, herdada do dualismo platônico e do naturalismo estoico, que havia introduzido na moral cristã uma posição absolutista e estática. A escolástica introduziu a atenção ao fator cultural, ao aspecto dinâmico e evolutivo.

Os estudos de gênero, conclui Piana, são uma significativa provocação a tomar consciência da riqueza do humano, a pensar a identidade partindo de uma maior consciência de si e da própria liberdade, considerando a importância de decisões subjetivas e de estilos de vida pessoais. Isto evita formas de achatamento da realidade em torno de paradigmas universalistas, que não respeitam as diversidades individuais. A ética, incluindo a sua vertente de inspiração cristã, deve estar atenta a esta nova interpretação do mundo humano e fundamentar suas orientações em bases mais amplas, levando em conta as complexas dinâmicas que presidem a construção dos comportamentos, ligadas a processos estruturais e culturais da sociedade em que se está imerso (PIANA, 2014).

3 A discriminação e seu enfrentamento

Na educação de crianças e de jovens, delineia-se um ponto de convergência entre a Igreja Católica e os que defendem os LGBT+. É o alerta contra o bullying: prática de atos de violência física ou verbal, intencionais e repetidos, contra uma pessoa indefesa, podendo causar-lhe danos físicos e psicológicos, seja no ambiente escolar ou familiar. A escola deve ser um lugar de inclusão e sadia pluralidade, educando para a cidadania ativa e responsável em que se respeita cada pessoa na sua condição diferente e peculiar. Que ninguém seja vítima de violência, insultos e discriminações (CEC, 2019, n.16; CNBB, 2019, p.24). Os bispos católicos britânicos produziram e divulgaram nas escolas de suas dioceses um bom manual para o enfrentamento do bullying homofóbico, bifóbico e transfóbico (CES, 2017). Isso é muito importante, pois muitas vezes crianças e jovens LGBT+ são duramente oprimidos. Não é raro a escola e até a própria família tornarem-se um inferno para eles e elas.

No ambiente familiar, convém observar que estes atos de violência verbal e física são parte da aversão presente na sociedade, com forte eco na escola. Há pais de família que dizem: “Prefiro um filho morto a um filho gay”! Há mães que dizem: “Prefiro uma filha prostituta a uma filha sapatão”! Não são raros trans, gays e lésbicas expulsos de casa por seus pais. Entre os palavrões mais ofensivos em português, constam a referência à condição homossexual (veado!) e ao sexo anal, comum no homoerotismo masculino. Ou seja, é xingamento. Muitas vezes, quando se diz: “fulano não é homem”, entende-se que é gay; ou “fulana não é mulher”, que é lésbica. Ou seja, ser homem ou mulher supostamente exclui a pessoa homossexual. Esta aversão se enraíza profundamente na cultura e tem consequências determinantes na vida dessas pessoas.

Relatórios da ONU e de organizações de direitos humanos mostram que, em muitos países, são muito frequentes os homicídios, sobretudo de pessoas trans. Muitas destas abandonaram a escola precocemente por causa de bullying e, por falta de opção no mercado de trabalho, foram impelidas à prostituição. Não raramente tais homicídios são cometidos com requintes de crueldade. Há também suicídios de muitos adolescentes que se descobrem LGBT, e mesmo de adultos. Eles chegam a esta atitude extrema por sentirem a hostilidade da própria família, da escola e da sociedade. Calcula-se que o índice de suicídio nessa população é, em média, cinco vezes maior que no restante. Toda esta hostilidade, com inúmeras formas de discriminação, mesmo quando não leva à morte, traz frequentemente tristeza profunda ou depressão.

No enfrentamento da violência e da discriminação, o Estado também tem um papel imprescindível. No Brasil, o governo federal determinou que nos boletins de ocorrência, emitidos pelas autoridades policiais, se incluam os itens “orientação sexual”, “identidade de gênero” e “nome social”. E se considera nome social aquele pelo qual travestis e transexuais se identificam e são identificados pela sociedade. A razão apresentada é a necessidade de dar visibilidade aos crimes violentos contra a população LGBT (Resolução nº11, 2014), e assim favorecer ações e políticas públicas para enfrentá-los.

O Ministério da Educação (MEC) estabeleceu que, na elaboração e implementação de propostas curriculares e projetos pedagógicos, os sistemas de ensino e as escolas de educação básica devem assegurar diretrizes e práticas com o objetivo de “combater quaisquer formas de discriminação em função de orientação sexual e identidade de gênero” (MEC, 2018, Art.1º) de estudantes, professores, gestores, funcionários e respectivos familiares. O objetivo é impedir a evasão escolar, decorrente dos casos de discriminação, assédio e violência nas escolas, pois essa evasão constitui grave atentado contra o direito à educação (MEC, 2018). A isto se soma a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de criminalizar as condutas homofóbicas e transfóbicas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, enquadrando-as na Lei de Racismo (STF, 2019).

Com relação a essas formas de discriminação e ódio, convém refletir sobre a posição da Santa Sé na Organização das Nações Unidas, em 2008, quando a França propôs a descriminalização da homossexualidade em todo o mundo. A proposta incluía o fim da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. A delegação da Santa Sé na ONU manifestou apreço pela proposta francesa de condenar todas as formas de violência contra pessoas homossexuais, e exortou os Estados, inclusive os muçulmanos, a tomarem as medidas necessárias para pôr fim a todas as penas criminais contra elas (INTERVENÇÃO, 2008). Para a Igreja Católica, baseando-se em uma “sã laicidade do Estado”, as relações sexuais livremente consentidas entre pessoas adultas não devem ser consideradas delito pelo poder civil. Contudo, o fim da discriminação por identidade de gênero e orientação sexual não foi aceito por ela. Alegou-se que isso poderia tornar-se um instrumento de pressão contra os que consideram o comportamento homossexual moralmente inaceitável, não reconhecem a união homossexual como família, nem a sua equiparação à união heterossexual, nem o seu direito à adoção e à reprodução assistida (DIFESA, 2008).

Para uma sã laicidade do Estado, que é valor para a Igreja Católica, cabe então considerar o alcance e as implicações da legislação em vigor sobre orientação sexual e identidade de gênero. É pertinente a acusação de ideologia de gênero? A Resolução sobre os boletins de ocorrência quer dar visibilidade a certos crimes para melhor enfrentá-los. A Resolução do MEC tem por objetivo evitar o bulliyng e a evasão escolar. A Decisão do STF esclarece na própria sentença que “não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa”. A fiéis e ministros é assegurado o direito de pregar e de divulgar, bem como o de ensinar segundo sua orientação doutrinária ou teológica, “desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero” (STF, 2019). Portanto, tal legislação não é um instrumento de pressão contra o direito de igrejas ou confissões religiosas ensinarem pacificamente sobre sexualidade, matrimônio e família, mas é uma maneira de defender pessoas vulneráveis que não raramente são humilhadas, hostilizadas e até massacradas. Não cabe aqui, então, a acusação de ideologia de gênero.

4 Judith Butler e a controvérsia sobre gênero

Ao se falar dos defensores da ideologia de gênero, especialmente em instituições católicas bem representativas, cita-se com frequência a filósofa Judith Butler, por propor uma “construção variável da identidade”. Uma de suas afirmações mais controvertidas é que não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero. Essa identidade é performativamente constituída através das expressões tidas como seus resultados. Neste ponto, ela se baseia na suposição de Nietzsche de que não há ser por trás do fazer, do realizar e do tornar-se. O fazedor é uma mera ficção acrescentada à obra. Essa é tudo. Para ela, gênero é um conceito antissubstancialista com o qual se pretende derrotar a metafísica da identidade (CNBB, 2019, p.17-18; BUTLER, 2008, p.47-48).

Por mais questionáveis que sejam essas posições, seu pensamento não se resume a isto. Butler também afirmou que não é necessário imaginar um futuro em que a norma binária – em que todos são necessariamente heterossexuais e cisgênero – tenha se diluído, porque isso de alguma maneira já aconteceu. O desafio para ela é encontrar um melhor vocabulário para maneiras de viver o gênero e a sexualidade que não se encaixe tão facilmente na norma binária. É preciso emitir a palavra em que a complexidade existente possa ser reconhecida, em que o medo da marginalização, da patologização e da violência seja radicalmente eliminado. E arrisca dizer que talvez não seja tão importante produzir novas formulações de gênero, mas sim construir um mundo em que as pessoas possam viver e respirar dentro de sua própria sexualidade e de seu próprio gênero (BUTLER, 2009). O seu pensamento está em construção. Em certo momento recorreu a Nietzsche e a uma perspectiva antimetafísica, mas isso não é tudo.

Ela reconhece a complexidade do gênero, envolvendo natureza, cultura e indivíduo, sem posições taxativas irreconciliáveis com a antropologia de inspiração cristã:

Há entre o homem e a mulher diferenças hormonais, fisiológicas, nos cromossomos. Mas embora trabalhemos com pensamento binário há variações, um continuum entre um e outro. Pesquisas revelam que biologia não é determinação, que o gênero resulta de uma combinação única, em cada um de nós, de fatores biológicos, sexuais, de função social, do autoentendimento, da representação de gênero. Descobriu-se que os hormônios são interativos e há várias maneiras em que podem ser ativados. Inclusive o desenvolvimento dos neurônios está ligado ao ambiente. O que acontece depende em parte da vida que se vive (CASTILHO, 2015).

O pensamento de Butler tampouco rejeita elementos inatos que impregnam a realidade do gênero nas pessoas e na percepção de si, mas é muito cuidadoso em captar a especificidade dos que, por algum motivo, não se enquadram no modelo binário:

Pode-se debater quais aspectos do gênero são inatos ou adquiridos, mas é mais importante reconhecer o efeito involuntário da designação de gênero e a resistência profundamente consolidada [de alguns] a tal designação. (…) Eu aceito que algumas pessoas tenham um sentimento profundo de seu gênero e que isso deva ser respeitado. Eu não sei explicar esse sentimento profundo, mas ele existe para muitos. Pode ser uma limitação para minha análise eu pessoalmente não ter esse sentimento profundo de gênero. Pode ser que essa ausência seja o que motivou minha teoria (BUTLER, 2015).

O seu livro Problemas de gênero (2008) recebeu fortes críticas, bem como sua suposta negação da diferença natural entre os sexos. Suas palestras no Brasil foram alvo de protestos públicos hostis. Butler explicitou suas próprias motivações e comentou:

Algumas pessoas vivem em paz com o gênero que lhes foi atribuído, mas outras sofrem quando são obrigadas a se conformar com normas sociais que anulam o senso mais profundo de quem são e quem desejam ser. Para essas pessoas é uma necessidade urgente criar as condições para uma vida possível de viver. (…) De fato, algo que me preocupa é a frequência com que pessoas que não se enquadram nas normas de gênero e nas expectativas heterossexuais são assediadas, agredidas e assassinadas.

(…) O livro negou a existência de uma diferença natural entre os sexos? De maneira nenhuma, embora destaque a existência de paradigmas científicos divergentes para determinar as diferenças entre os sexos e observe que alguns corpos possuem atributos mistos que dificultam sua classificação. Também afirmei que a sexualidade humana assume formas diferentes e que não devemos presumir que o fato de sabermos o gênero de uma pessoa nos dá qualquer pista sobre sua orientação sexual (BUTLER, 2017).

Não raramente, trechos de Butler são citados de modo a se fazer um recorte reducionista de sua obra. Identificar simplesmente esta autora com ideologia de gênero é desqualificar indevidamente sua pesquisa e reflexão, pois ideologia é uma ideia que toma conta do pensamento das pessoas de maneira acrítica. Ao vincularem Butler à ideologia de gênero, fazem recair sobre ela as seguintes acusações: de querer negar o corpo como legítima expressão da identidade do indivíduo, como capaz de exprimir tal identidade de modo adequado, de querer eliminar todas as diferenças e todas as estruturas sociais, e de querer demolir o fundamento primário da sociedade constituído pela família, conforme se diz em certa publicação (CNBB, 2019, p.27 e 32). Com base em seu pensamento, não cabem estas acusações. Isto é pânico moral. Tal pânico se caracteriza por uma reação coletiva desproporcional de medo diante de demandas por mudança social, frente a uma suposta ameaça percebida como algo que põe em risco um componente crucial da sociedade, que é a própria ordem social.

5 Gestos e palavras do papa Francisco

Ainda que os documentos magisteriais não expressem uma posição mais positiva sobre as pessoas LGBT+, gestos públicos e palavras do papa Francisco no acolhimento destas pessoas têm sido exemplos positivos e inspiradores. No início de 2015, ele recebeu em sua casa a visita do transexual espanhol Diego Neria e de sua companheira Macarena. A história de vida de Diego tornou-se então conhecida, mostrando o preconceito atroz que muitos transexuais sofrem e como se pode enfrentá-lo.

Ele nasceu com genital feminino, mas desde criança sentia-se homem. Seu cérebro e sua autopercepção não correspondiam ao restante do corpo. No Natal, Diego escrevia aos reis magos pedindo como presente tornar-se menino. Ao crescer, resignou-se à sua condição. “Minha prisão era meu próprio corpo, porque não correspondia absolutamente ao que minha alma sentia”, confessa. Ele escondia esta realidade o quanto podia. Sua mãe pediu-lhe que não mudasse o seu corpo enquanto ela vivesse. E ele acatou este desejo até a morte dela. Quando ela morreu, Diego tinha 39 anos. Um ano depois, ele começou o processo transexualizador. Na igreja que frequentava, despertou a indignação de pessoas: “como se atreve a entrar aqui na sua condição? Você não é digno”. Certa vez, chegou a ouvir de um padre em plena rua: “você é filha do diabo”! Mas felizmente teve o apoio do bispo de sua diocese, que lhe deu ânimo e consolo. Isto encorajou Diego a escrever ao papa Francisco e a pedir um encontro com ele. O papa o recebeu e o abraçou no Vaticano, na presença da sua companheira, com palavras que lhe trouxeram grande conforto. Hoje, Diego Neria é um homem em paz (HERNÁNDEZ, 2015).

Nos Estados Unidos, o papa Francisco recebeu na nunciatura apostólica o seu antigo aluno e amigo gay Yayo Grassi, e o companheiro dele. Grassi já tinha apresentado o seu companheiro ao papa dois anos antes. Este relacionamento nunca foi problema na amizade entre Grassi e Francisco. Na viagem do Brasil a Roma, o papa havia dito: “Se uma pessoa é gay, procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la? (…) Não se deve marginalizar estas pessoas por isso” (FRANCISCO, 2013a). Seus exemplos mostram o que é acolher e não julgar, e valem ainda mais que muitas palavras. Se todos os pais e familiares de homossexuais e transgênero seguissem o exemplo do papa, recebendo-os em suas casas com seus respectivos companheiros, vários problemas dessa população seriam resolvidos.

Certa vez, um jornalista perguntou ao papa o que ele diria a uma pessoa transgênero, e se ele como pastor e ministro a acompanharia. O papa respondeu que tem acompanhado pessoas homossexuais e transgênero, lembrando o caso de Diego, e exortou: “as pessoas devem ser acompanhadas como as acompanha Jesus. (…) em cada caso, acolhê-lo, acompanhá-lo, estudá-lo, discernir e integrá-lo. Isto é o que Jesus faria hoje” (FRANCISCO, 2016a). A história de Diego não é exaltação do individualismo liberal, nem busca desenfreada do prazer e nem autossuficiência humana que se rebela contra a obra do Criador. Mas mostra a verdade interior da pessoa que vem à tona, como na vida de tantos LGBT.

6 Entre bons e maus caminhos a trilhar

Os bispos brasileiros também abrem caminho para o acolhimento e a inclusão de pessoas homossexuais, seus companheiros e filhos, ao publicarem um documento sobre a renovação pastoral das paróquias, levando em conta as novas situações familiares. Entre tais situações, afirmam os bispos, há crianças adotadas por pessoas do mesmo sexo, que vivem em união estável. Constata-se que muitos se afastaram e continuam se afastando das comunidades porque se sentiram rejeitados, porque a primeira orientação que receberam consistia em proibições e não em viver a fé em meio à dificuldade. Na renovação paroquial, exortam eles, deve haver conversão pastoral para não se esvaziar a Boa Nova anunciada pela Igreja e, ao mesmo tempo, não deixar de se atender às novas situações da vida familiar. “Acolher, orientar e incluir nas comunidades aqueles que vivem numa outra configuração familiar são desafios inadiáveis” (CNBB, 2014, n. 217-218).

A realidade de pessoas LGBT+, seus conflitos e sofrimentos está ausente em muitos pronunciamentos oficiais da Igreja Católica. No contexto latino-americano, por exemplo, o Documento de Aparecida, ao tratar de pobres, excluídos e dos que sofrem, menciona: migrantes, vítimas da violência, refugiados, vítimas de sequestro e tráfico de pessoas, desaparecidos, portadores de HIV, vítimas de enfermidades endêmicas, toxicodependentes, idosos, meninos e meninas vítimas da prostituição, pornografia, violência ou trabalho infantil, mulheres maltratadas, vítimas de exclusão e exploração sexual, pessoas com deficiência, grandes grupos de desempregados, excluídos pelo analfabetismo tecnológico, moradores de rua em grandes cidades, indígenas, afro-americanos, agricultores sem terra e mineiros (DAp n.402). Infelizmente, falar de LGBT+ ainda é incômodo em muitos ambientes. Não raramente, o sofrimento desta população é ignorado ou silenciado.

Há também casos em que esta mesma população é hostilizada. Lamentavelmente, pessoas como o padre e os fiéis que o transexual espanhol Diego Neria encontrou, considerando-o indigno e diabólico, estão por toda parte. Existem publicações na Igreja Católica, com grande difusão, que caricaturam questões de gênero e de orientação sexual, como o material didático em várias línguas distribuído na Jornada Mundial da Juventude, em 2013. Este trazia o desenho de um homem sentado interrogando-se: “que gênero eu vou escolher para este ano”? Em outra página, o desenho de um garoto nu olhando para o próprio pênis, perguntando-se: “não sou homem? Eu? Então… o que é isto?” (CNPF, 2013, p.68 e 71). Ora, ninguém escolhe ser gay ou lésbica como escolhe para onde viajar nas férias. Nenhum transgênero, quando garoto ou garota, estranhou sua própria anatomia simplesmente por ouvir uma asneira vinda de terceiros. Isso é tripudiar sobre o drama vivido por tantas pessoas. Estas caricaturas são injustas e cruéis. São exemplos de bullying homofóbico e transfóbico, combatido pelo manual dos bispos católicos britânicos.

Um recente documento sobre gênero foi lançado pelo Vaticano, tendo como subtítulo: “para uma via de diálogo sobre a questão do gender na educação” (CEC, 2019). Basicamente reitera ensinamentos tradicionais da Igreja Católica sobre antropologia e sexualidade, incluindo seus temores. Mas, ao mesmo tempo, abre alguns caminhos que podem ser promissores. Uma boa novidade é a distinção que faz entre ideologia e diversas pesquisas sobre gênero realizadas pelas ciências humanas, reconhecendo não faltar investigações procurando aprofundar adequadamente o modo em que se vive, nas diversas culturas, a diferença sexual entre homem e mulher (n.6). Portanto, não há razão para histeria toda vez que se fala de gênero. Como o documento é uma proposta para fomentar o diálogo, e não um pronunciamento definitivo e inquestionável, cabe ouvir os demais parceiros possíveis deste diálogo. Entre eles, estão os diversos pesquisadores e as pessoas sobre as quais se pesquisa: mulheres e homens (heterossexuais e cisgênero), bem como os LGBT+. Sua vivência e sua consciência não podem ser negligenciadas.

Quando a Pontifícia Universidade Católica argentina completou seu centenário, o papa Francisco fez uma exortação aos teólogos que pode ajudar muito no trato de questões de gênero. Ele os exorta a prosseguirem no caminho do Concílio Vaticano II, de releitura do Evangelho na perspectiva da cultura contemporânea. Estudar e ensinar teologia deve significar “viver em uma fronteira”, na qual o Evangelho encontra as necessidades das pessoas às quais deve ser anunciado de maneira compreensível e significativa. Deve-se evitar uma teologia que se esgote em disputas acadêmicas ou que contemple a humanidade a partir de um castelo de cristal. A teologia deve acompanhar os processos culturais e sociais, especialmente as transições difíceis, assumindo os conflitos que afetam todos. “Os bons teólogos, assim como os bons pastores, têm o odor do povo e da rua e, com a sua reflexão, derramam azeite e vinho sobre as feridas dos homens” (FRANCISCO, 2015a), como o bom samaritano do Evangelho.

Na abertura do Concílio, o papa São João XXIII fez uma advertência enérgica contra os profetas da catástrofe que só veem prevaricação e ruína, sempre anunciando acontecimentos infelizes, como se o fim do mundo fosse iminente. Eles repetem que em nossa época, em comparação com as passadas, as coisas só pioraram; e “portam-se como quem nada aprendeu da história” (JOÃO XXIII, 1962, IV, n.2-3). Hoje não faltam profetas da catástrofe, para os quais tudo ameaça destruir a família e a sociedade. Só restaria à Igreja Católica reiterar dogmas, preceitos e proibições.

Ao contrário disso, para ir às fronteiras, reler o Evangelho em novas perspectivas e curar feridas em vez de aumentá-las, é necessário discernir os elementos dos atuais estudos de gênero e orientação sexual que contribuem para o avanço destas questões no campo teológico e pastoral. O bom missionário reconhece a obra do Espírito Santo no coração dos seres humano e das culturas, mesmo em civilizações e religiões não cristãs. O Espírito cuida e faz germinar as sementes do Verbo “presentes nas iniciativas religiosas e nos esforços humanos à procura da verdade, do bem e de Deus” (JOÃO PAULO II, 1990, n.28). O mesmo vale para os estudos de gênero.

O papa Francisco recorda a célebre advertência de seu antecessor sobre os profetas da catástrofe, acrescentando que o olhar de quem crê é capaz de reconhecer a luz do Espírito Santo irradiando na escuridão, de entrever o vinho em que a água pode ser transformada, e de descobrir o trigo que cresce no meio do joio (EG n.84). É chegado o momento de se abrir caminhos que favoreçam a cidadania da população LGBT+ na sociedade e na Igreja. Que todos possam viver e respirar em seu gênero e sexualidade, sem o risco da marginalização, da patologização e da violência.

Luís Corrêa Lima, PUC-Rio – (texto original em português)

7 Referências

AQUINO, Tomás. Comentario de la Ética a Nicómaco. Disponível em: <http://www.servidoras.org.ar/CGI-BIN/om_isapi.dll?clientID=21163308&infobase= etica.nfo&softpage=browse_frame_pg42>. Acesso em: 4 nov 2019.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

______. La invención de la palabra. Entrevista. Pagina 12, 8 mai 2009. Disponível em: <https://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/soy/1-742-2009-05-09.html>. Acesso em: 12 set 2019.

______. Sem medo de fazer gênero: entrevista com a filósofa americana Judith Butler. Entrevista concedida a Úrsula Passos. Folha de São Paulo, edição 20 set 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/09/1683172-sem-medo-de-fazer-genero-entrevista-com-a-filosofa-americana-judith-butler.shtml>. Acesso em: 10 jan 2019.

______. Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido no Brasil. Folha de São Paulo, edição 19 nov 2017. Disponível em: <http://m.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/11/1936103-judith-butler-escreve-sobre-o-fantasma-do-genero-e-o-ataque-sofrido-no-brasil.shtml>. Acesso em: 4 fev 2019.

CASTILHO, Inês. Judith Butler: Queer para um mundo não binário. 16 set 2015. Disponível em: <http://outraspalavras.net/brasil/judith-butler-queer-para-um-mundo-nao-binario>. Acesso em: 13 fev 2019.

CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA (CEC). Homem e mulher os criou: para uma via de diálogo sobre a questão do gender na educação. Vaticano, 2019. Disponível em: <http://www.educatio.va/content/dam/cec/Documenti/19_1000_ PORTOGHESE.pdf>. Acesso em: 6 nov 2019.

CELAM. V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe: Documento Final. Aparecida: 13 a 31 mai 2007. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/cjp/a_pdf/cnbb_2007_documento_de_aparecida.pdf>. Acesso em 12 set 2019.

CATHOLIC EDUCATION SERVICE (CES) et al. Made in God’s image: Challenging homophobic and biphobic bullying in catholic schools. 2017. Disponível em: <https://www.dropbox.com/s/zlf6whj2wxl6iig/58.17%20Attachment%20Made%20in%20God%27s%20Image-%20Challenging%20homophobic%20and%20biphobic%20bullying%20in%20Catholic%20schools.pdf?dl=0>.  Acesso em: 3 jan 2019.

COMISSÃO NACIONAL DE PASTORAL FAMILIAR (CNPF). Manual de bioética: Chaves para a Bioética. Brasília, 2013.

CNBB. Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. Brasília: CNBB, 2014.

______. Homem e mulher os criou: a identidade de gênero na antropologia cristã. Orientações pastorais. Brasília: CNBB, 2019.

Difesa dei diritti e ideologia. L’osservatore romano, edição 19 dez 2008. Disponível em: <https://tuespetrus.wordpress.com/2008/12/19/difesa-dei-diritti-e-ideologia/>. Acesso em: 5 out 2019.

FRANCISCO. Encontro do santo padre com os jornalistas durante o voo de regresso do Brasil, 28 jun 2013a. Disponível em: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2013/july/documents/papa-francesco_20130728_gmg-conferenza-stampa.html. Acesso em: 9 ago 2019.

______. Exortação apostólica Evangelii Gaudium. Roma, 2013. Disponível em: <https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html>. Acesso em: 4 nov 2019.

______. Carta do papa Francisco por ocasião do centenário da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica argentina. 3 mar 2015a. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2015/documents/papa-francesco_20150303_lettera-universita-cattolica-argentina.html>. Acesso em: 27 out 2019.

______. Audiência geral. 15 abr 2015b. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2015/documents/papa-francesco_20150415_udienza-generale.html>. Acesso em: 12 set 2019.

______. Exortação pós-sinodal Amoris Laetitia. Roma, 2016. Disponível em:

https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia.html. Acesso em: 4 out 2019.

______. Conferência de imprensa do santo padre durante o voo Baku-Roma, 2 out 2016a. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/ october/documents/papa-francesco_20161002_georgia-azerbaijan-conferenza-stampa.html>. Acesso em: 4 nov 2019.

HERCULANO-HOUZEL, Suzana. O cérebro homossexual. Mente & cérebro, n.165, p.46-51, 2006.

HERNÁNDEZ, Ana. El bendito encuentro entre Francisco y Diego. Hoy, edição 26 jan 2015. Disponível em: <http://www.hoy.es/extremadura/201501/25/bendito-encuentro-entre-francisco-20150125003218-v.html>. Acesso em: 16 jan 2019.

INTERVENÇÃO DO REPRESENTANTE DA SANTA SÉ, 18 dez 2008. Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/2008/documents/rc_seg-st_20081218_statement-sexual-orientation_po.html>. Acesso em: 13 fev 2019.

JESUS, Jaqueline. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012. Disponível em: <https://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENTA%C3% 87%C3%95ES_POPULA%C3%87%C3%83O_TRANS.pdf?1334065989>. Acesso em: 6 nov 2019.

JOÃO PAULO II. Carta encíclica Redemptoris Missio. 1990. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_07121990_redemptoris-missio.html>. Acesso em: 3 jan 2019.

JOÃO XXIII. Discurso de sua santidade papa João XXIII na abertura solene do SS. Concílio. Roma, 1962. Disponível em: <http://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_spe_19621011_opening-council.html> Acesso em: 17 dez 2019.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). Resolução CNE/CP 1/2018. Diário Oficial da União, Brasília, 22 jan 2018, Seção 1, p.17. Disponível em: <http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/rcp001_18.pdf>. Acesso em 12 set 2019.

PIANA, Giannino. Sexo e gênero: para além da alternativa. Boletim eletrônico IHU, 16 jul 2014. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/533286-sexo-e-genero-para-alem-da-alternativa-artigo-de-giannino-piana>. Acesso em: 4 out 2019.

RESOLUÇÃO Nº 11, de 18 dez 2014. Diário oficial da união, 12 mar 2015, nº 48, Seção 1, p.2. Disponível em: <http://www.lex.com.br/legis_26579640_RESOLUCAO_N_11_DE_18_DE_DEZEMBRO_DE_2014.aspx>. Acesso em:13 fev 2019.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Decisão, 13 jun 2019. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadTexto.asp?id=4848010&ext=RTF>. Acesso em: 17 dez 2019.

Para aprofundar mais:

CONCILIUM. Revista Internacional de Teologia. Gênero na teologia, na espiritualidade e na prática, n. 347, 2012/4.

CONCILIUM. Revista Internacional de Teología (espanhol). Género en teología, espiritualidad, práctica, n. 347, septiembre 2012. Disponível em: <http://www.verbodivino.es/web/concilium/2012/Concilium%20347.pdf>. Acesso em: 9 ago 2019.

CONGRAGACIÓN PARA LA EDUCACIÓN CATÓLICA. Varón y mujer los creó: para una vía de diálogo sobre la cuestión del gender en la educación. Roma, 2019. Disponível em: <http://www.educatio.va/content/dam/cec/Documenti/19_0998_SPAGNOLO.pdf>. Acesso em: 1 set 2019.

LIMA, Luís C. Estudos de gênero versus ideologia: desafios da teologia. Mandrágora, v.21. n.2, p. 89-112, 2015. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/MA/article/view/6117/5074. Acesso em: 12 set 2019.

______. O papa e as questões da família: às voltas com gênero e orientação sexual. Mandrágora, v.23, n.2, p.27-47, 2017. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/MA/article/view/8326/6055>. Acesso em: 18 set 2019.

PIANA, Giannino. Sesso e genere oltre l’alternativa. 9 ago 2014. Disponível em: <https://www.viandanti.org/website/sesso-e-genere-oltre-lalternativa/>. Acesso em: 4 nov 2019.

PIANA, Giannino. Sesso e genere oltre l’alternativa. 9 lug. 2014. Disponível em: <https://www.viandanti.org/website/sesso-e-genere-oltre-lalternativa/>.

Missal de São Pio V

Sumário

1 Terminologia

2 História

3 Controvérsias em torno do Missal de São Pio V

4 Das controvérsias à separação

5 Em busca da reconciliação e da paz litúrgica: Bento XVI e a Summorum Pontificum

6 Desafios que permanecem

7 Referências bibliográficas

1 Terminologia

Os termos “Missal de São Pio V”, “Missal tridentino”, “Missal tradicional”, “Missal de sempre”, “Missal gregoriano”, “Missal romano clássico” e também missal da forma antiquior (da forma mais antiga), do usus antiquior (uso mais antigo) ou do vetus ordo (velho ordo) formam o campo lexical em torno daquela forma de celebração eucarística que Bento XVI designou como “missa segundo a forma extraordinária do rito romano”. Com essa classificação, Bento XVI esclareceu que o Missal Romano, promulgado por Paulo VI em 1969, é a expressão ordinária da lex orandi da Igreja Católica de rito latino. Todavia, desde 2007 e por força do Motu Proprio Summorum Pontificum, abriram-se possibilidades mais amplas da celebração segundo o usus antiquior, consolidada na edição típica do Missal Romano de 1962, sob o pontificado de João XXIII. Não se trata de dois ritos distintos, mas de duas formas diferentes do mesmo rito. Por causa do seu amplo uso e de sua importância histórica, conservaremos nesse verbete a designação “Missal de São Pio V”. Essa designação também é empregada pela Instrução geral do Missal Romano (IGMR n.8).

2 História

Foi a partir do século X que termo “missal” e seus correlatos (liber missalis, missale plenum, missale plenarium) se tornaram frequentes para indicar os livros litúrgicos dotados de todos os textos eucológicos e escriturísticos necessários para a celebração da missa. O termo missal surgiu por motivos de ordem prática que produziram a fusão dos vários textos prescritos para as missas num único volume portátil. Anteriormente, tais textos encontravam-se separados, parte deles nos sacramentários, que também traziam as orações eucarísticas e o rito de comunhão, e as outras partes nos lecionários, saltérios e antifonários.

O crescente desuso e olvido da concelebração eucarística, o fenômeno da multiplicação das “missas privadas” por motivos devocionais, sobretudo o sufrágio dos defuntos, ocasionaram a edição de fascículos com séries de missas (libelli missarum) com numerosas missas quotidianas pelos defuntos e outras missas votivas. A praticidade desses livretos, por dispensarem o manuseio dos volumosos sacramentários e antigos lecionários, caiu no gosto do clero religioso e secular. Dessa forma, já no século XIII estava concluída a transição que estabeleceu a preferência pelo missal como o livro litúrgico do altar.

Coube sobretudo aos franciscanos, em suas atividades missionárias e expansão de fundações conventuais, espalhar por toda a Europa aquele que se tornou o missal mais difundido até então. Trata-se do Missale secundum consuetudinem curiae, ou seja, o missal da Capela Papal que, por sua vez, reproduzia fielmente o missal vigente no pontificado de Inocêncio III (1198-1216). Com o advento da imprensa, este missal recebeu sua primeira edição impressa em 1474 e foi posteriormente a referência fundamental para a elaboração do Missal de São Pio V, em 1570.

O século XVI foi profundamente agitado pelos eventos decorrentes da Reforma Protestante, iniciada por Lutero em 1517. A onda de contestações teológicas também atingiu a práxis litúrgica da Igreja romana. Por outro lado, já existia um consistente movimento de renovação teológica e pastoral no próprio âmbito romano. Tal renovação exigia esclarecimentos doutrinais, aprofundamento espiritual e normas disciplinares em relação aos sacramentos, sobretudo a eucaristia. É nesse contexto que se realiza o Concílio de Trento (1545-1563) e a consequente edição de livros litúrgicos revisados. É desse ambiente que emerge o Missal Romano de São Pio V.

No que se refere à eucaristia, ainda que com matizes variados, o protestantismo nascente questionou a compreensão tradicional sobre a presença de Cristo no sacramento eucarístico e rechaçou o entendimento da missa como atualização do sacrifício do calvário, oferecido de forma incruenta e mística sobre o altar por meio do ministério dos sacerdotes. O Concílio de Trento defendeu e reafirmou a doutrina católica sobre a missa, ressaltando a presença real de Cristo sob as espécies eucarísticas e o caráter sacrifical da missa (DH  1738-1743, 1751-1754). Catalogou-se também uma série de abusos a serem evitados na missa e indicou-se o modo correto de sua celebração (BOROBIO, 1993, p.232-240).

Desde o período medieval, os numerosos abusos litúrgicos constituíam uma dolorosa chaga aberta na vida da Igreja. O concílio tridentino empenhou-se em coibir a irreverência e o descuido bem como punir o sacrilégio, a superstição e a avareza que frequentemente deturpavam os atos litúrgicos (JUNGMANN, 2010, p.145-149). Coube ao papa Pio IV (1499-1565) receber oficialmente a pesada incumbência de uma grande revisão da práxis litúrgica, mas foi o seu imediato sucessor, o papa Pio V (1504-1572) quem efetivamente a realizou.

A finalidade precípua da revisão litúrgica tridentina era a salvaguarda da ortodoxia doutrinal e a eliminação dos abusos. A revisão e edição dos livros litúrgicos reformados foi o caminho escolhido. Buscando realizá-lo, tinha-se como meta restaurar os ritos litúrgicos em conformidade com a antiga norma dos Santos Padres. Os limites da pesquisa, naqueles tempos verdadeiramente difíceis, fizeram com que S. Pio V optasse por conservar aquelas formas históricas da tradição litúrgica às quais tiveram acesso os eruditos de então. Diante dessa tradição litúrgica impugnada pelos reformadores, optou-se também por introduzir o mínimo de modificações nos ritos sagrados. Por isso, “o missal de 1570 pouco difere do primeiro missal impresso em 1474 que, por sua vez, reproduz com fidelidade o do tempo do papa Inocêncio III” (IGMR n.7). A limitação imposta aos liturgistas tridentinos também se referia às fontes pesquisadas: “além disso, os manuscritos da Biblioteca Vaticana, ainda que sugerissem algumas correções, não permitiam que se fosse além dos comentários litúrgicos medievais, na investigação dos antigos e provados autores” (IGMR n.7).  Ponto culminante desse processo se deu em 1570 com a bula Quo primum tempore, em que Pio V promulgou o missal revisado, posteriormente associado ao seu nome.

A compreensão sobre a “norma dos Santos Padres”, isto é, a práxis litúrgica dos Pais da Igreja, foi a diretriz inspiradora da revisão que gerou o Missal de São Pio V. A compreensão da liturgia da Igreja antiga foi grandemente ampliada e enriquecida com o posterior avanço da pesquisa litúrgica. As numerosas edições críticas dos venerandos sacramentários do período patrístico, assim como a redescoberta dos livros litúrgicos hispânicos e galicanos, resgataram do esquecimento eucologias de grande valor espiritual até então ignoradas. Igualmente as tradições dos primeiros séculos, anteriores à formação dos ritos do Oriente e do Ocidente, são agora melhor conhecidas, após a descoberta de numerosos documentos litúrgicos. Além disso, o progresso dos estudos patrísticos lançou sobre a teologia eucarística a luz da doutrina dos Padres mais eminentes da antiguidade cristã (IGMR n.8).

Destarte, “a norma dos Santos Padres” não exige apenas que se conserve o que os nossos antepassados mais recentes nos legaram. Esses “antepassados recentes”, assim compreendeu Paulo VI, são os promotores da grande revisão litúrgica tridentina. É igualmente imperioso que “se assuma e se julgue do mais alto valor todo o passado da Igreja e todas as manifestações de fé, em formas tão variadas de cultura humana e civil como as semitas, gregas e latinas” (IGMR n.9), o que implica uma compreensão integral do que realmente é a Tradição da Igreja e sua relação com os processos naturais de revisão e reforma dos seus ritos litúrgicos: “esta visão mais ampla nos permite perceber como o Espírito Santo concede ao Povo de Deus uma admirável fidelidade na conservação do imutável depósito da fé, apesar da enorme variedade de orações e ritos” (IGMR n.9).

3 Controvérsias em torno do Missal de São Pio V

A promulgação do Missal Romano de Paulo VI, em 1969, tornou-se o ponto de partida de uma controvérsia que se estende até os nossos dias. Controvérsia que opõe não só o Missal de Paulo VI ao Missal de Pio V, mas se desdobra na insólita afirmação de um antagonismo entre o Concílio Vaticano II (1962-1965) e a restante Tradição da Igreja. O ponto inicial dessa controvérsia foi o Breve exame crítico do Novus Ordo Missae, elaborado pelos cardeais Alfredo Ottaviani e Antonio Bacci naquele mesmo ano de 1969. As afirmações contidas nesse exame crítico eram da maior gravidade e projetavam uma tremenda suspeita de heresia em relação ao Missal de Paulo VI. Nele encontramos a chocante acusação de que o novo missal se afasta de maneira impressionante, no conjunto e no particular, da teologia católica da santa missa. Pese ainda mais a condição do principal signatário do exame crítico: o cardeal Alfredo Ottaviani, pró-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé até 1968. O polêmico exame crítico exprimia a opinião de um grupo de teólogos ligados ao arcebispo francês Marcel Lefèbvre (1905-1991), marcado pela rejeição radical tanto do Missal Romano de Paulo VI quanto do Concílio Vaticano II. Os cardeais Ottaviani e Bacci apadrinharam o texto, assumindo-o como próprio. A chamada “intervenção Ottaviani” é, ainda hoje, a fonte privilegiada de argumentações contrárias ao Novus Ordo Missae.

Analisemos brevemente algumas objeções apresentadas pelos que se valem do Missal de São Pio V para rejeitar o Missal de Paulo VI. A primeira delas é referente à perpetuidade da bula Quo primum tempore de São Pio V. Nesse documento, parece que o referido papa fixa uma forma imutável para o Ordo Missae (a forma de celebração da missa) e nessa imutabilidade empenha toda a sua autoridade pontifícia, proibindo quaisquer modificações posteriores nos ritos e cerimônias codificados pelo missal de 1570. Na prática, os tradicionalistas costumam afirmar uma pretensa intangibilidade do Missal de Pio V, canonizada pela Quo primum tempore. Todavia, uma estreita interpretação dessa perpetuidade não se sustenta. Em resposta oficial, datada de 11 de junho de 1999, a Congregação para o Culto Divino esclareceu que nenhum papa pode fixar perpetuamente um rito. Além disso, o próprio Concílio de Trento, ao refletir sobre a administração dos sacramentos, afirmou que a Igreja pode aperfeiçoar as celebrações litúrgicas modificando e estatuindo novos elementos, desde que não se altere a identidade específica dos sacramentos. Pode fazer isso levando em conta a utilidade dos que recebem os sacramentos conforme a variedade das coisas, tempos e lugares (DH 1728). Do ponto de vista canônico, quando um papa escreve perpetuo concedimus, deve-se sempre entender “até que seja ordenado de outro modo”. É próprio da autoridade soberana do Pontífice Romano não ser limitado pelas leis meramente eclesiásticas, muito menos pelas disposições dos seus predecessores. Um papa está limitado, evidentemente, pela imutabilidade das leis divina e natural, além da própria constituição da Igreja (cf. RIFAN, 2007, p.45-46).

Foi essa compreensão que tiveram os vários sucessores do papa Pio V quando modificaram ou introduziram elementos no missal por ele promulgado em 1570. Fizeram isso sem contradizer a bula Quo primum tempore. Assim, a título de exemplificação, em 1604, Clemente VIII aboliu uma oração prescrita para o sacerdote ao entrar na igreja, a palavra omnibus nas duas orações posteriores ao Confiteor e a eventual menção do nome de um imperador no Cânon Romano. Leão XIII acrescentou, ao término da missa, as orações leoninas, e outras adições foram feitas por Pio X, em 1904, e Pio XI, em 1929. Todavia, foi Pio XII que, em 1951 e 1955, empreendeu a maior modificação litúrgica anterior ao Vaticano II com uma notável reforma das celebrações da Semana Santa. Por fim, João XXIII, já nos albores do Concílio, inseriu, em 1960, o nome de São José no Cânon Romano.

Outra objeção frequente que opõe indevidamente o Missal de Pio V ao Missal de Paulo VI é a “questão do ofertório”. No Missal de Pio V, a preparação e a apresentação das oblatas são acompanhadas por longas orações que realçam claramente o caráter sacrifical da missa. O Missal de Paulo VI optou por orações mais breves em que se bendiz Deus pelos dons do pão e do vinho que se tornarão corpo e sangue do Senhor. A objeção tradicionalista afirma que a mudança do ofertório destruiu o caráter sacrifical da missa que, com isso, deixou de ser católica e, portanto, se tornou ilícita ou mesmo inválida. Tal objeção, eivada de preconceitos, é refutada com a constatação de que a principal menção do sacrifício tem seu lugar próprio não no ofertório, mas na anamnese do próprio Cânon. O chamado “ofertório” originalmente era uma singela preparação das oblatas sobre o altar. Até o século X, predominou o gesto realizado em silêncio. Nos séculos seguintes elaboraram-se as orações que posteriormente foram incluídas no Missal de Pio V (BOROBIO, 1996, p.335-338). Após o Concílio Vaticano II, vários liturgistas advogaram a eliminação das palavras desse rito, retomando a simples elevação em silêncio, mas Paulo VI insistiu na recuperação de fórmulas breves e enraizadas nas mais antigas fontes da liturgia cristã e que revelam a verdadeira natureza desse momento: a apresentação das oblatas sobre o altar (TABORDA, 2009, p.142-144).

A chamada “questão do mistério pascal” é provavelmente a mais forte objeção tradicionalista levantada contra o Missal de Paulo VI. Afirmam que o novo missal é heterodoxo, pois sua teologia enfatiza a celebração do mistério pascal de Cristo. Por sua vez, o Missal de Pio V é ortodoxo por conservar e expressar cabalmente a teologia do sacrifício expiatório de Cristo, perpetuado de forma incruenta sobre os altares. O então cardeal Ratzinger classificou como estranha e despropositada a oposição lançada entre as categorias “mistério pascal” e “sacrifício” (RIFAN, 2007, p.53-54). Essa anômala oposição é o argumento central, defendido pela Fraternidade São Pio X, de que existe uma verdadeira ruptura dogmática entre a liturgia renovada a partir do Concílio Vaticano II e a liturgia anterior (FSSPX a, p.55-68). Em outros termos, a acusação de heterodoxia lançada sobre o Missal de Paulo VI se funda no julgamento de que agora tudo se interpreta a partir do mistério pascal, que usurpou o lugar do sacrifício expiatório de Cristo. Tal acusação não se sustenta e é evidente o mal-entendido. A categoria mistério pascal não substitui, abole ou relativiza a importância e a realidade do sacrifício de Cristo. A Páscoa de Cristo é o mistério salvífico em toda a sua amplitude e onde o seu sacrifício verdadeiramente se situa.

 O termo mistério pascal conduz claramente às realidades que se deram entre a quinta-feira santa e a manhã de Páscoa: a ceia como antecipação da cruz, o drama do gólgota e a ressurreição do Senhor. A categoria mistério pascal compreende esses eventos como um acontecimento unitário que manifesta toda a obra de Cristo. Obra salvífica que possui um eminente lugar histórico, mas simultaneamente o transcende. Uma vez que esse acontecimento único e transcendente é o mais perfeito culto prestado a Deus, pode se tornar culto divino e estar presente em todos os instantes da história pois foi assumido pelo próprio Deus em seu mistério de salvação. A teologia pascal do Novo Testamento dá a entender isso: o episódio aparentemente profano da crucificação de Cristo é um sacrifício de expiação, um ato reconciliador realizado pelo Deus feito homem. A teologia da páscoa é uma teologia da redenção, uma liturgia do sacrifício expiatório situado no centro do mistério pascal (RIFAN, 2007, p.54). Demonstra-se assim que a oposição entre o sacrifício e mistério pascal é artificial e inconsistente.

4 Das controvérsias à separação

A polêmica em torno do Missal de Pio V conheceu um crescendo de tensões e rupturas, sobretudo em torno da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), fundada pelo arcebispo francês Marcel Lefèbvre. Esta fraternidade foi aprovada em 1970 pelo bispo de Lausanne (Suíça) e recebeu uma carta laudatória da Congregação para o Clero em 1971. O posicionamento extremamente crítico em relação ao Concílio Vaticano II e a rejeição do novo rito da missa, pejorativamente taxada como “missa nova”, ocasionou um afastamento progressivo de Lefèbvre e seus seguidores em relação a Roma.

Suas declarações programáticas são incisivas. A FSSPX adere “de todo o coração, de toda a alma, à Roma católica, guardiã da Fé católica e das tradições necessárias à manutenção desta Fé, à Roma eterna, mestra da sabedoria e da verdade”. Mas recusa, “ao contrário, e sempre [se recusará] a seguir a Roma de tendência neomodernista e neoprotestante que se manifestou claramente durante o Concílio Vaticano II e, após o Concílio, em todas as reformas que dele se originaram” (FSSPX a). Tamanho distanciamento culminou com Dom Marcel Lefèbvre sendo suspenso a divinis, em 1976, por insistir em formar e ordenar padres dentro dessa perspectiva de rejeição ao Vaticano II. Posteriormente, em 1988, a situação se agravou com a sua excomunhão latae sententiae em virtude da ordenação de quatro bispos sem o necessário mandato pontifício, evento que ficou conhecido como o “cisma tradicionalista”.

A Missa de São Pio V tornou-se, desde então, uma verdadeira bandeira de luta. A sua conservação, defesa e expansão converteu-se não somente na razão da existência da FSSPX, mas em verdadeiro princípio operativo em relação à Igreja atual, sempre avaliada negativamente e reconhecida como inclinada ao modernismo apóstata. Dessa forma, não se trata apenas de conservar a missa tridentina, mas de se engajar num programa de restauração da Igreja a partir do paradigma compreendido pela FSSPX como a “autêntica Tradição da Igreja”. O retorno à tradição conformada ao modelo tridentino é assumido como o único caminho de superação da profunda crise da Igreja. As palavras do padre Davide Pagliarini, Superior da FSSPX, são significativas e reveladoras; “devemos ter a coragem de reconhecer que mesmo uma boa postura doutrinária não será suficiente, se não vier acompanhada de uma vida pastoral, espiritual e litúrgica coerente com os princípios que queremos defender” (FSSPX b). A missa tradicional pedirá uma reconfiguração da Igreja a partir do modelo supostamente tridentino e interpretado como a melhor expressão da Tradição. Prossegue Pagliarini: “concretamente, é preciso que passemos para a missa tridentina e a tudo o que ela significa; é preciso irmos à missa católica e tirar dela todas as consequências” (FSSPX b). Estas consequências abrangem todo o conjunto da vida eclesial contemporânea e formam um verdadeiro programa de restauração: “não se trata de restaurar a missa tridentina porque é a melhor opção teórica; é uma questão de restaurá-la, de vivê-la e de defendê-la até o martírio, porque somente a Cruz de Nosso Senhor pode tirar a Igreja da situação catastrófica em que ela se encontra” (FSSPX b). Compreendido dessa forma, o pretendido retorno à tradição implica em rompimento com numerosas realidades tidas como as grandes conquistas do último Concílio. Tais conquistas são interpretadas como grandes males que devem ser expurgados. As consequências lógicas dessa restauração seriam a rejeição total da reforma litúrgica pós-conciliar, a suspensão da caminhada ecumênica, a reinterpretação da liberdade religiosa, o questionamento da colegialidade episcopal e das conferências episcopais, a suspeita generalizada em relação ao magistério e sínodos pós-conciliares, a recuperação da teologia escolástica e da “filosofia perene”, a postura combativa e apologética diante do mundo contemporâneo e da secularização. Em suma: uma mudança radical da cosmovisão católica existente desde o Concílio Vaticano II. O instaurare omnia in Christo, interpretado dentro dessa lógica, tem esse escopo radical. O polo irradiador dessa restauração é a Missa de São Pio V com todas as consequências que se tiram dela nesse horizonte de compreensão. Começa-se pela liturgia tradicional e conclui-se com o derrube do Vaticano II.

Todavia, nem todos os adeptos da liturgia tradicional se sentiram identificados com o radicalismo dessa proposta, sobretudo a ampla e veemente rejeição do Concílio Vaticano II. O risco por eles antevisto era não só de uma mentalidade reacionária e cismática, mas também das piores formas de sectarismo e isolamento voluntário, promovendo uma equivocada defesa e a preservação da fé católica. Daí o surgimento de várias iniciativas de diálogo com Roma e de acolhida e inclusão dos fiéis tradicionalistas na plena comunhão eclesial.

Em 1984, João Paulo II concedeu que, mediante um indulto e sob condições específicas, o Missal de São Pio V pudesse ser usado regularmente. Através do Motu Proprio Ecclesia Dei afflicta (1988) o mesmo papa normatizou a recepção dos tradicionalistas que romperam com Dom Marcel Lefèbvre em virtude da excomunhão em que esse arcebispo e os bispos por ele ordenados incorreram. Tal fato mergulhou a FSSPX numa complicada situação canônica que perdura até hoje, apesar da retirada da excomunhão em 2009. É de 1988 o surgimento da Fraternidade Sacerdotal São Pedro, fundada a partir de egressos da fraternidade lefebvriana, e vinculada diretamente à Santa Sé, dedicando-se ao apostolado junto aos fiéis tradicionalistas que desejaram manter a plena comunhão com Roma. Também nessa perspectiva surgem outras agremiações centradas no uso exclusivo da liturgia tradicional: o Instituto Cristo Rei e Sumo Sacerdote (1990) e o Instituto Bom Pastor (2006). Com a proximidade do Grande Jubileu do ano 2000, intensificaram-se os diálogos e as tratativas de vários grupos tradicionalistas com a Santa Sé. No Brasil, este movimento de superação da ruptura resultou na criação de uma circunscrição eclesiástica que possui bispo próprio em plena comunhão com Roma e conserva para o seu clero e fiéis a liturgia romana tradicional. É Administração Apostólica São João Maria Vianney, erigida em 2001 e sediada em Campos dos Goytacazes, RJ.

O “mundo tradicionalista” não é uniforme e monolítico, mas amplo e diversificado. Abriga em si desde as posições mais radicais de oposição e rejeição ao Concílio Vaticano II até posturas mais abertas ao diálogo e à interação. Seu ponto de convergência é o Missal de Pio V. Seu eixo de tensão, conflito e dispersão passa pela hermenêutica do Vaticano II.

5 Em busca da reconciliação e da paz litúrgica: Bento XVI e a Summorum Pontificum

Dentro do processo acima delineado, já no pontificado de Bento XVI, merece especial destaque a Carta Apostólica sob a forma de Motu Proprio Summorum Pontificum, sobre o uso da liturgia romana anterior à reforma realizada em 1970. Partindo da afirmação de que o Missal de Paulo VI é a expressão ordinária da lex orandi da Igreja Católica de rito latino, admite-se o Missal de São Pio V (em sua edição de 1962) como a expressão extraordinária da mesma lex orandi. Em seu venerável e antigo uso deve gozar da devida honra, mas sem que tal disposição gere a divisão da liturgia da Igreja pois são dois usos (ordinário e extraordinário) do único rito romano (SP n.1). Assim, Bento XVI estabeleceu que “é lícito celebrar o Sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano promulgada pelo Bem-Aventurado João XXIII, em 1962, e nunca ab-rogada como forma extraordinária da liturgia da Igreja” (SP n.1). Estabelece também que todo sacerdote católico, nas missas celebradas sem o povo e excetuados os dias do tríduo pascal, pode celebrar conforme esse missal sem necessidade de nenhuma permissão da Sé Apostólica ou do seu Ordinário (SP n.2).  Os religiosos, em suas comunidades individuais ou como institutos ou sociedades, podem ter tais celebrações frequente, habitual ou permanentemente, mediante aprovação dos superiores maiores e seguindo as normas do direito e as leis e estatutos particulares (SP n.3). Fiéis podem ser admitidos às celebrações desde que o peçam espontaneamente e sejam observadas as normas do direito (SP n.4). Nas paróquias onde haja um grupo estável de fiéis que prefira a forma extraordinária, que os párocos ou reitores de igrejas acolham tal pedido, harmonizando o bem desses fiéis com a atenção ordinária da paróquia, sob a direção do bispo, porém “evitando a discórdia e favorecendo a unidade de toda a Igreja” (SP n.5 §1). Se tal grupo de fiéis não obter o que pede, informe o bispo diocesano sobre o fato. “Pede-se vivamente que o bispo satisfaça o desejo deles. Se ele não puder prover tal celebração, seja o assunto referido à Pontifícia Comissão Ecclesia Dei” (SP n.7). Da mesma forma, o pároco pode conceder licença para o uso do ritual mais antigo na administração dos sacramentos do batismo, matrimônio, penitência e unção dos enfermos “se requer o bem das almas” (SP n.9 §1). “Aos Ordinários concede-se a faculdade de celebrar a Confirmação usando o Pontifical Romano antigo” (SP n.9 §2) e aos clérigos é igualmente lícito usar o Breviário Romano promulgado em 1962 (SP n.9 §3). O Ordinário do lugar, se considerar oportuno, pode erigir uma paróquia pessoal “para as celebrações, segundo a forma mais antiga do Rito Romano, ou nomear um capelão” (SP n.10).

Junto da Summorum Pontificum, Bento XVI enviou uma “Carta aos Bispos”, também datada de 7 de julho de 2007, pormenorizando as razões de sua decisão, esclarecendo pontos controversos e estimulando uma generosa acolhida mediante a caridade pastoral e a justa prudência. Nessa carta ao episcopado, Bento XVI reconheceu que diante de sua iniciativa “há reações muito divergentes entre si que vão de uma entusiasta aceitação até uma férrea oposição a um projeto cujo conteúdo na realidade não era conhecido”. Ressaltou que deve ser afastado o temor de uma negação da autoridade do Concílio Vaticano II e de uma de suas decisões essenciais que é a reforma litúrgica, porque o Missal de Paulo VI permanece como a forma normal ou ordinária da liturgia eucarística. Afirmou que o Missal de São Pio V nunca foi ab-rogado e juridicamente sempre continuou permitido. Aludiu também à divisão causada pelo arcebispo Lefèbvre em que “a fidelidade ao missal antigo apareceu como um sinal distintivo externo, mas as razões da divisão, que então nascia, encontravam-se em maior profundidade”. Por essa razão, “muitas pessoas que aceitavam claramente o caráter vinculante do Concílio Vaticano II e eram fiéis ao papa e aos bispos, mas desejavam reaver a forma que lhes era cara da Sagrada Liturgia”. Isto aconteceu, principalmente, porque em muitos lugares não se celebrava mais de maneira fiel às normas do novo missal, o que levou frequentemente a deformações da liturgia no limite do suportável. De forma autobiográfica, acrescenta Bento XVI: “falo por experiência, porque também eu vivi aquele período com todas as suas expectativas e confusões. E vi como foram profundamente feridas, pelas deformações arbitrárias da liturgia, pessoas que estavam totalmente radicadas na fé da Igreja”.

 Nessa mesma Carta aos Bispos, após uma série de ponderações canônicas e pastorais, Bento XVI vislumbra a possibilidade de uma fecunda interação das duas formas, o que chamou de mútuo enriquecimento. “As duas formas do Rito Romano podem enriquecer-se mutuamente. No missal antigo poderão e deverão ser inseridos novos santos e alguns dos novos prefácios”. Por outro lado, “na celebração da missa segundo o Missal de Paulo VI, poder-se-á manifestar, de maneira mais intensa do que frequentemente tem acontecido até agora, aquela sacralidade que atrai muitos para o uso antigo”. A garantia mais segura de que o Missal de Paulo VI una as comunidades paroquiais e seja amado por elas é a sua celebração “com grande reverência em conformidade com as rubricas; isso torna visíveis a riqueza espiritual e a profundidade teológica desse missal”. Portanto, concluiu Bento XVI, não existe nenhuma contradição entre uma edição e outra do Missal Romano, pois na história da liturgia há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura.

6 Desafios que permanecem

O caminho proposto por Bento XVI na Summorum Pontificum corresponde perfeitamente a um dos eixos do seu magistério, isto é, a “hermenêutica da continuidade”. Porém, os movimentos de ruptura no campo litúrgico existiram e continuam existindo. De um lado, a postura negacionista do tradicionalismo de corte lefebvriano que não concede qualquer valor à reforma litúrgica pós-conciliar e advoga a ruptura mais drástica com o seu completo banimento da vida da Igreja. De outro lado, os defensores do legado litúrgico oriundo do Vaticano II, conscientes de suas conquistas e avanços, mas firmemente decididos a não recuar nem ceder em nada (ISNARD, 2008, p.20). Posições extremas, por vez vezes carregadas de paixão pelas respectivas bandeiras, resultando num clima tenso que agrava as divisões existentes.

Ainda permanece desafiante e dificultosa a via do crescimento e progresso na liturgia, mas sem rupturas, tal como idealizou Bento XVI. Mais do que formas litúrgicas e peculiaridades dos seus ritos, existe uma realidade mais profunda antecedendo a todas essas questões. Trata-se da tensão conflitante entre duas formas de compreensão da Igreja e do seu posicionamento diante do mundo contemporâneo. O debate e as polêmicas em torno do uso do Missal de São Pio V apenas manifestam um drama e uma luta muito mais profundos e que estão ainda longe de uma resolução pacífica e integradora.

A década que transcorreu após a Summorum Pontificum merece ser melhor analisada. Posturas e opiniões razoavelmente tolerantes e dialogantes se tornaram mais frequentes em ambos lados, mas os núcleos duros de crítica e rejeição seja em relação à missa tradicional seja em relação à Missa de Paulo VI permanecem intactos tanto nos vários grupos tradicionalistas quanto nos seguidores da renovação litúrgica pós-conciliar. As entrevistas e escritos de seus expoentes ou defensores atesta esse fato abundantemente (KWASNIEWSKI, 2018, p.133-144; GRILLO, 2007, p.103-120).

Não se pode falar de uma vitória tradicionalista após a Summorum Pontificum (KWASNIEWSKI, 2018, p.223-231). A liturgia de Paulo VI não foi ab-rogada como ainda almejam os mais extremados e inexiste a possibilidade próxima ou remota de tal ab-rogação acontecer. Por sua vez, o papa Francisco não cancelou o caminho aberto por Bento XVI em relação aos seguidores da liturgia tradicional nem se fechou ao diálogo com a Fraternidade São Pio X. Permanece, porém, o impasse em relação à valoração e significado do Concílio Vaticano II. Um possível acordo teológico sobre este Concílio, simultaneamente aceitável por Roma e pelos lefebvrianos, é condição indispensável para a regularização canônica da fraternidade tradicionalista. Tal acordo ainda não foi alcançado apesar de todo esforço de Bento XVI e das demonstrações de acolhimento e benevolência no pontificado de Francisco, com a concessão de faculdades canônicas em relação aos sacramentos do matrimônio e da penitência ministrados pelo clero da Fraternidade São Pio X. Reação extrema diante dessa aproximação inicial entre Roma e os tradicionalistas da FSSPX se deu com a clamorosa saída do bispo Richard Williamson, um dos sagrados por Dom Marcel Lefèbvre em 1988. Williamson interpretou a incipiente aproximação com Roma como traição à causa da Tradição. Quando o assunto é o Concílio Vaticano II só se trabalha com a perspectiva de sua rejeição. Por isso, rompeu violentamente com a FSSPX em 2012, levando consigo um certo número de padres e leigos e fundando uma nova vertente tradicionalista. Desde 2015, por ter ordenado bispos sem mandato pontifício, reincidiu na excomunhão latae sententiae. Os partidários de Williamson no Brasil ligam-se ao Mosteiro da Santa Cruz em Nova Friburgo, RJ. Reabriu-se assim a ferida cismática de outro tradicionalismo fora da plena comunhão eclesial.

Longe de qualquer conduta cismática, é reveladora a situação do catolicismo tradicional nos Estados Unidos, país onde a Summorum Pontificum encontrou grandes entusiastas. Poderia se pensar num notável avanço tradicionalista nesse país, mas não é o que se constata em termos de realidade. Pesquisas revelam que o catolicismo tradicionalista avançou nos Estados Unidos, não de forma generalizada, mas pontual e restrita. Dos mais de 70 milhões de católicos estadunidenses, frequentam a missa tradicional somente uns 0,3%. A expressiva maioria do clero de rito romano (95%) celebra exclusivamente segundo o Novus Ordo. Num artigo em que se analisa a mencionada pesquisa, encontramos o testemunho interpelante do monsenhor Charles Pope sobre esse retumbante fracasso pastoral:

Em minha própria Arquidiocese, apesar de oferecermos a missa tradicional em cinco lugares diferentes, nunca fomos capazes de atrair mais que mil pessoas. Isso é somente metade do 1% do número total de católicos que assistem à missa nesta Diocese a cada domingo. Isso não convence os bispos de que a missa nova não é a liturgia do futuro e que o retorno da missa tradicional é o melhor caminho a seguir. Se nós que amamos a missa tradicional pensamos que a missa faria sozinha a sua própria evangelização, estamos equivocados. Ela é bela e digna de Deus de muitas maneiras, mas num mundo de prazeres e diversões instantâneas, nós devemos demonstrar o valor perene de uma liturgia tão bela. A verdade do assunto é que uma liturgia antiga, falada num idioma antigo e, a maior parte do tempo, falada em sussurros, não é algo que a maioria da gente moderna apreciaria de forma imediata (BANKE, 2019).

Os ambientes constituídos em torno da missa tradicional também têm os seus grandes desafios. Provavelmente o maior deles se refere à mentalidade de gueto, de grupo seleto, de constituição dos únicos lugares onde é possível subsistir o verdadeiro catolicismo. Na prática, essa mentalidade se perverteu em isolamento em relação aos demais membros do corpo eclesial, quase sempre avaliados pejorativamente. Um isolamento em que, por causa de um certo “espírito de elite”, é muito frequente a crítica amarga e os posicionamentos ofensivos, carregados de desprezo por tudo que se relacione com a Igreja pós-conciliar. Tal perversão gera antipatias e resistências e acentua ainda mais o fracasso pastoral acima aludido.

 Por sua vez, avalia-se que a Summorum Pontificum não logrou efetivar suficientemente a hermenêutica da continuidade no âmbito litúrgico. Pelo contrário, abriu espaço para um estado anômalo de contradição na práxis celebrativa da Igreja com a coexistência de duas formas do mesmo rito cujos adeptos nem sempre primam pela harmonia fraterna. Na opinião do teólogo Andrea Grillo, há um “efeito perigosamente desorientador” desse documento que paira sobre todos. Segundo Grillo (2011), por meio de uma “ficção jurídica”, tornam-se artificialmente contemporâneas duas formas diferentes de celebração da missa. Por ser objeto de escolha, “cria-se uma situação híbrida e anômala, que logo revela ser uma confusão, com a qual se introduz uma grave descontinuidade na tradição do rito romano”. O que é mais paradoxal e mais grave é a “absoluta liberdade” concedida ao padre ou ao bispo, na “celebração sem povo”, que agora podem escolher entre a forma ordinária ou extraordinária, sem ter que prestar contas a ninguém. O resultado é que “a reforma litúrgica se torna, assim, um mero ‘opcional’ da própria identidade ministerial. Isso também é um monstruum inédito com relação à Tradição da Igreja”. E conclui: “Surpreende que o papa Bento XVI tenha assumido uma teoria tão inconsistente no plano jurídico e com consequências tão incontroláveis no plano litúrgico, eclesial e espiritual”. Em suma: “uma pretensão de paralelismo ritual que instaura uma convivência entre o rito ordinário e o rito extraordinário, o que – já à primeira vista – se revela incoerente, ineficaz e gravemente perigoso para a comunhão eclesial” (GRILLO, 2011).

Com a pretensão de permitir uma dupla vigência de formas diferentes e não harmônicas do mesmo rito romano, determina-se progressivamente um conflito indomável entre tempos, espaços, hábitos, ritos, calendários, ministérios, códigos, competências diversas. A extensão refere-se tanto às habilitações subjetivas ao rito, ou seja, os critérios com que os sujeitos podem reivindicar direitos a respeito, quanto às finalidades objetivas do rito, que, mais explicitamente, são definidas como “pastorais”. Na realidade, esse documento, apesar das boas intenções, corre o risco de tornar impossível qualquer pastoral litúrgica, já que tem um efeito perigosamente desorientador sobre todos: principalmente sobre os bispos, que perdem o controle das dioceses, depois sobre os padres e, enfim, também sobre os leigos, pelo fato de subtrair da reforma a sua necessidade (GRILLO, 2011).

A relativização e até o menosprezo da reforma litúrgica oriunda do Vaticano II foi um dos efeitos não desejados por Bento XVI ao publicar a Summorum Pontificum. Abusando da hermenêutica da continuidade emergiram críticas tão radicais que até a reforma da Semana Santa realizada por Pio XII, na década de 1950, passou a ser questionada. Não só questionada, mas nalguns lugares retomou-se a celebração da Semana Maior, como no tempo de São Pio V. Tais fatos revelam até onde o grau de rigidez litúrgica pode chegar, paradoxalmente tomando como ponto de partida a Summorum Pontificum.

Esse quadro preocupante manifesta a necessidade de aprofundarmos a compreensão sobre a verdadeira identidade da tradição litúrgica. O Missal de Paulo VI, fruto eminente da reforma litúrgica, longe de apartar-se da verdadeira Tradição, aproximou a celebração eucarística das suas origens que são eminentemente bíblicas e patrísticas. A reforma litúrgica pós-conciliar ampliou notavelmente o acesso à Palavra de Deus, enfatizou o protagonismo do Espírito Santo na ação eucarística e ressaltou a natureza ministerial e a participação ativa de toda a Igreja em oração.

Quando analisadas mais detidamente as duas formas do rito romano, os estudiosos constatam que o Missal de Paulo VI é efetivamente mais tradicional que o seu antecessor tridentino. O missal vigente manifesta com maior evidência sua vinculação com a “norma dos Santos Padres”, tão valorizada por São Pio V e seus contemporâneos, mas não totalmente acessível a eles no século XVI.  Daí o surpreendente reconhecimento de que o rito tridentino é um rito moderno quando situado no contexto mais amplo da longa história da liturgia romana (CASSINGENA-TRÉVEDY, 2007, p.89-95).

A passagem dessa primeira forma moderna do rito romano à segunda forma, pós-conciliar, comunitária, relacional, simbólico-ritual, aconteceu por meio de um Concílio e de uma longa fase de reforma, que foi causada pelos limites, pelas lacunas, pelas unilateralidades do rito tridentino, dos quais a Igreja havia se dado conta progressivamente, a partir do século XIX. A passagem que a reforma quer promover refere-se ao sujeito que celebra (do padre individual à relação assembleia/ministros), ao rito (que não é mais só para ser observado por um indivíduo, mas deve ser celebrado por uma comunidade), à relação com Deus (que, de monológica, se torna dialógica), à Palavra de Deus (que agora tem espaço, visibilidade sacramental e riqueza muito mais significativa), ao papel da comunhão (que agora é feita por todos como uma ação ritual da missa e não mais como devoção privada) (GRILLO, 2011).

A evolução histórica do rito romano é verificada mediante a passagem dos seus diversos estágios. Nessa passagem há uma evolução pautada pela fidelidade criativa, como bem explicou Paulo VI na Constituição Apostólica Missale Romanum e no proêmio da Instrução Geral do Missal Romano. As duas formas só podem ser corretamente compreendidas em sua continuidade se situadas numa sucessão diacrônica (GRILLO, 2011). Porém, quando formas diferentes se tornam artificialmente contemporâneas e objeto de livre escolha, com o agravante de um contexto de velhas incompreensões e preconceitos não superados, o que se tem é o grande o risco de descontinuidade e ruptura litúrgica e graves ameaças à própria unidade eclesial.

Na verdade, os maiores desafios ultrapassam os limites da práxis litúrgica. São desafios da própria vida eclesial, assinalada por tensões e esperanças, conflitos e possibilidades de crescimento e recuo. A liturgia é “o cume para o qual tende a ação da Igreja” e, ao mesmo tempo, é “a fonte de onde emana toda a sua força” (SC n.10). Ocupando essa posição central e vital é evidente que tudo o que a Igreja vive se manifeste também, sob variadas formas, em sua liturgia. Inclusive seus desencontros e impasses.

Luiz Antônio Reis Costa, Instituto de Teologia São José, Mariana, MG – (texto original português).

7 Referências

AILLER, Marc. The Old Mass and the New. Explaining the Motu Proprio Summorum Pontificum of Pope Benedict XVI. San Francisco: Ignatius Press, 2010.

BANKE, Dan. Reality Check: No, the Latin Mass Is Not Taking Over. Disponível em: https://onepeterfive.com/reality-check-latin-mass/ Acesso em: 28 set 2019.

BENTO XVI. Carta Apostólica sob a forma de Motu Proprio Summorum Pontificum sobre o uso da liturgia romana anterior à reforma de 1970. São Paulo: Paulinas, 2007.

BOROBIO, Dionisio. A Celebração da Igreja. Sacramentos. São Paulo: Loyola, 1993.

BROUARD, Maurice. Eucharistia. Enciclopédia da Eucaristia. São Paulo: Paulus, 2006.

BUX, Nicola. Benedict XVI’s Reform. The liturgy between innovation and Tradition. San Francisco: Igantius Press, 2012.

CASSINGENA-TRÉVEDY. François. Te Igitur. Le Misel de Sainte Pie V. Herméutique et déontologie d’un attachement. Genève: Ad Solem, 2007.

CEKADA, Anthony. Work of Human Hands. A theological critique of the Mass of Paul VI. West Chester: Philothea Press, 2010.

DAVIES, Michael. Cranmer’s Godly Order. The destruction of Catholicism through liturgical change. Fort Collins: Roman Catholic Books, 1995.

DE CHIVRÉ, Bernard-Marie. The Mass of Saint Pius V. Spiritual and theological commentaries. Winona: STAS Editions, 2007.

FRATERNIDADE SACERDOTAL SÃO PIO X. O problema da Reforma Litúrgica. A Missa do Vaticano II e de Paulo VI. Niterói: Permanência, 2001.

______ a. Quem somos. Disponível em: >https://www.fsspx.com.br/sobre-a-fraternidade-sao-pio-x/< Acesso em: 6 out 2019.

______ b. Uma Igreja de pernas para o ar. Disponível em: >https://www.fsspx.com.br/uma-igreja-de-pernas-para-o-ar/< Acesso: em 21 out 2019.

GRILLO, Andrea. Oltre Pio V. La reforma liturgica nel conflito di interpretazioni. Brescia: Queriniana, 2007.

______ . Por uma Ecclesia verdadeiramente Universal. Entrevista. IHU, 28 mai 2011. Disponível em: >http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/43708-por-uma-%60%60ecclesia%60%60-verdadeiramente-%60%60universa%60%60-entrevista-especial-com-andrea-grillo  Acesso em: 10 dez 2019.

INSTRUÇÃO GERAL SOBRE O MISSAL ROMANO. São Paulo: Paulinas, 2007.

ISNARD, Clemente. Reflexões de um bispo sobre as instituições eclesiásticas atuais. São Paulo: Olho d’água, 2008.

JUNGMANN, Josef Andreas. Missarum Solemnia. Origens, liturgia, história e teologia da Missa romana. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2010.

KWASNIEWSKI, Peter. Ressurgente em meio à crise. A liturgia sagrada, a Missa tradicional e a renovação da Igreja. Campinas: Ecclesiae, 2018.

OTTAVIANI, Alfredo; BACCI, Antonio. Breve examen crítico del Novus Ordo Missae. Disponível em >https://adelantelafe.com/download/breve-examen-critico-del-novus-ordo-missae/ < Acesso em 24 set 2019.

RIFAN, Fernando Arêas. Considerações sobre as formas do Rito Romano da Santa Missa. Campos dos Goytacazes: AASJMV, 2007.

TABORDA, Francisco. O memorial do Senhor. Ensaios litúrgico-teológicos sobre a Eucaristia. São Paulo: Loyola, 2009.

Espiritualidade cósmica e holística

Sumário

Introdução

1 Religião sem culpas

2 O tempo sem tempo do amor

3 Cosmologias e espiritualidades

4 Do determinismo à indeterminação

5 Realidades excludentes e, no entanto, complementares

6 Espiritualidade cósmica e holística

7 Uma visão holística do real, onde diferença não coincide com divergência

8 Resgate quântico do sujeito histórico

9 A era da mística

10 Espiritualidade na pós-modernidade

11 Diafania

Referências bibliográficas

Introdução

No século XX, a arte cinematográfica nos introduziu em um novo conceito de tempo. Não mais o conceito linear, histórico, que perpassa a Bíblia e, também, as obras de Aleijadinho ou Sagarana, de Guimarães Rosa. No filme, predomina a simultaneidade. Suprimem-se as barreiras entre tempo e espaço. O tempo adquire caráter espacial e, o espaço, caráter temporal. No cinema, no vídeo e demais recursos da era imagética, o olhar da câmara e do espectador passa, com toda a liberdade, do presente ao passado e, deste, ao futuro. Não há continuidade ininterrupta.

A TV, cujo advento oficial ocorreu em 1939, levou isso ao paroxismo. Frente à simultaneidade de tempos distintos, a única âncora é o aqui-e-agora do (tele)espectador. Não há durabilidade nem direção irreversível. A linha de fundo da historicidade – na qual se apoiam o relato bíblico e os paradigmas da modernidade, incluindo um de seus frutos diletos, a psicanálise – dilui-se no coquetel de eventos onde todos os tempos se fundem. Elis Regina, Gonzaguinha e Tom Jobim aparecem mortos e, sobre seus caixões, os clipes os exibem vivos, interpretando seus êxitos musicais.

Assim, aos poucos, o horizonte histórico se apaga, como as luzes de um palco após o espetáculo. A utopia sai de cena, o que permitiu Fukuyama vaticinar: “O fim da história” (FUKUYAMA, 1992). Ao contrário do que adverte Coélet, no Eclesiastes 3, não há mais tempo para construir e tempo para destruir; tempo para amar e tempo para odiar; tempo para fazer a guerra e tempo para estabelecer a paz. O tempo é agora. E nele se sobrepõem construção e destruição, amor e ódio, guerra e paz.

A felicidade, que em si resulta de um projeto temporal, reduz-se então ao mero prazer instantâneo derivado, de preferência, da dilatação do ego (poder, riqueza, projeção pessoal etc.) e dos “toques” sensitivos (ótico, epidérmico, gustativo etc). Ela resulta, supostamente, da soma de prazeres (BETTO; BOFF; CORTELLA, 2016).  A utopia é privatizada. Resume-se ao êxito pessoal. A vida já não se move por valores e ideais nem se justifica pela nobreza das causas abraçadas. Basta ter acesso ao consumo que propicia segurança e conforto: o apartamento de luxo, a casa na praia ou na montanha, o carro novo, o kit eletrônico de comunicações (telefone celular, computador etc), as viagens de lazer. Uma ilha de prosperidade e paz imune às tribulações circundantes de um mundo movido a violência. Enquanto a Igreja prega o Céu além da vida nesta Terra, o consumismo acena com o Céu na Terra – é o que prometem a publicidade, o turismo, o novo equipamento eletrônico, o banco, o cartão de crédito etc. O novo aforismo pós-moderno é “consumo, logo existo” (LIPOVETSKY, 2008).

Nem a fé escapa à subtração da temporalidade. O Reino de Deus deixa de situar-se “lá na frente” para ser esperado “lá em cima”. Nessa perspectiva, como mero consolo subjetivo a fé é reduzida à esperança de salvação individual.

Impelido pelas novas tecnologias da era imagética, agora o tempo está confinado ao caráter subjetivo. Experimentá-lo é ter consciência tópica do presente. Se na Idade Média o sobrenatural banhava a atmosfera que se respirava e, no Iluminismo, era a esperança de futuro que justificava a fé no progresso, agora o que importa é o presente imediato. Busca-se, avidamente, a eternização do presente. Michael Jackson era eternamente jovem, e multidões malham o corpo como quem sorve o elixir da juventude. Morreremos todos saudáveis e esbeltos…

Pulverizam-se os projetos, mesmo porque, na cabeça de muitos, o tempo é cíclico. No mesmo rio corre sempre a mesma água. Outrora, havia namoro, noivado e casamento. Agora, fica-se. Após anos de casado, pode-se voltar ao tempo de namoro e, de novo, ao de casado. Ganha espaço, na cultura ocidental, a crença na reencarnação. Tudo é passível de recomeço.

1 Religião sem culpas

A destemporalização da existência e a desistorização do tempo aliam-se à desculpabilização da consciência. Este o segredo dos templos eletrônicos: não há culpa pessoal ou social. Cercados de anjos por todos os lados, somos amados por um Deus que já não exige mudanças ou conversões, comunidades e doutrinas. Basta a emoção de saber-se amado por ele.

Uma mesma pessoa vive diferentes experiências sem se perguntar por princípios morais ou religiosos, políticos ou ideológicos. Não há pastores e bispos corruptos? Não há utopias que resultaram em opressão? A TV não mostra o honesto ontem e vigarista hoje fazendo gestos humanitários? Onde reside a fronteira entre o bem e o mal, o certo e o errado, o passado e o futuro? “Tudo que é sólido se desmancha no ar” (ARANTES, 1998).

Ar irrespirável desse início de século, cuja temporalidade fragmenta-se em cortes e dissolvências, close-ups e flash-backs, com muitas nostalgias e poucas utopias. Enquanto as Igrejas tentam chegar à modernidade, o mundo naufraga sob os ventos da pós-modernidade (LOVELOCK, 1991).

2 O tempo sem tempo do amor

Há, contudo, algo de positivo nessa simultaneidade, nesse aqui-e-agora que se nos impõe como negação do tempo. É a busca da interioridade. Do tempo místico como tempo absoluto. Tempo síntese/supressão de todos os tempos. Kairós. Eis que irrompe a eternidade – eterna idade. Pura fruição. Onde a vida é terna.

O período medieval suscitou uma espiritualidade de submissão meritória, baseada na obediência àqueles que representavam Deus no mundo – papas, reis, abades e príncipes. Os crentes viviam enclausurados nesta Terra considerada o centro do Universo (GUITTON, 1992).

A modernidade deslocou o eixo da Terra para o Sol, estabeleceu distância entre o ser humano e o conjunto da natureza, e instaurou a espiritualidade da conquista e – no resgate do classicismo grego – do herói capaz de escalar montanhas através dos degraus das virtudes.

Agora, a pós-modernidade restaura a comunhão holística entre o ser humano e a natureza, e nos convida a uma espiritualidade sem mediações institucionais, centrada na subjetividade aberta ao Transcendente (RUMI, 1993). Isso porque descobrimos que não fomos caprichosamente criados pelas mãos de Javé. Somos filhos de símios, e o nosso corpo é tecido de átomos produzidos há 13,7 bilhões de anos no calor das estrelas. A Terra em que habitamos é apenas um diminuto ponto na periferia de uma estrela de quinta grandeza, o Sol – uma entre as 100 bilhões de estrelas que iluminam a Via Láctea, galáxia que se espalha pelo espaço cósmico em companhia de mais de 200 bilhões de galáxias semelhantes a ela (BETTO, 2012).

Estaremos perdidos, sem eira nem beira? Sim, caso busquemos o nosso eixo em algum ponto geográfico, “em Jerusalém ou no monte Garizim”, como indagou de Jesus a mulher samaritana (João 4). E ele respondeu que, agora, trata-se de adorar “em espírito e verdade”. A dimensão subjetiva (despojamento) e a dimensão objetiva (coerência).

Portanto, não há risco de ficarmos perdidos se acreditamos, como disse Santo Agostinho, que “Deus é mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos” (AGOSTINHO, 2017). E a teoria da relatividade vem em nossa ajuda para precisar que o centro do Universo é sempre o ponto em que se encontra o observador. Assim, de uma cosmologia geocêntrica, passou-se a uma cosmologia heliocêntrica e, agora, vivemos o advento de uma mundividência antropocêntrica. Isso traz consequências importantes para a espiritualidade. Aquela criança de rua, babenta, raquítica, é o centro do Universo. E, segundo o Evangelho, morada viva de Deus (João 14,23).

3 Cosmologias e espiritualidades

Cada vez que muda a cosmologia, muda a nossa ideia de mundo, de ser humano e de Deus. Assim ocorreu quando a modernidade abandonou a concepção geocêntrica de Ptolomeu para abraçar a concepção heliocêntrica de Copérnico. Michelangelo, em seu afresco no teto da Capela Sistina, bem retratou essa passagem do teocentrismo para o antropocentrismo. Javé, coberto de mantos e barbas, estende o dedo ao Adão nu magneticamente atraído em direção à Terra, e Adão se esforça, também com o dedo estendido, em não perder contato com a fonte originária.

O Deus inefável e pleno de atributos gregos do tomismo cedeu lugar ao Deus amoroso cantado como “O Amado” por Teresa de Ávila e João da Cruz e, pouco antes, pelo anônimo inglês de A Nuvem do Não-Saber (ANÔNIMO, 1998). Como em Elias, o fogo que abalava os alicerces do mundo foi suplantado pela brisa suave (1 Reis 19,10-15).

Agora, somos contemporâneos de uma nova mudança de paradigmas cosmológicos. A mecânica celeste da física de Newton, que muito bem explica o infinitamente grande, cede lugar à teoria da relatividade de Einstein e, sobretudo, à física quântica de Planck, Bohr e Heinseberg, para melhor explicar o infinitamente pequeno. Teilhard de Chardin teria gostado de presenciar a confirmação científica de suas intuições quanto ao coração do Universo e ao estofo da matéria (BETTO, 2011).

Universo, matéria e espírito são um só tecido feito de linhas atômicas, nas quais os místicos decifram o desenho do rosto de Deus. É le milieu divin, o meio divino, centrado no Ponto Ômega, o eixo magnético que banha de energia divina toda a Criação (CHARDIN, 1980).

4 Do determinismo à indeterminação

Os paradigmas da modernidade sustentam-se na filosofia de Descartes e na física de Newton. Racionalismo e determinismo seriam as chaves para se chegar ao conhecimento científico, livre de interferências subjetivas, preconceitos e superstições. Levada ao paroxismo, a mecânica clássica – que descreve as leis determinísticas que regem o macrocosmo – sugeriu ao pensamento marxista a ideia, tida como inelutável e científica, de que o determinismo histórico regeria as sociedades para formas mais perfeitas de convivência humana. Assim, o materialismo histórico explicaria o avanço do feudalismo ao capitalismo e, deste, ao socialismo, sem indícios de retrocessos substanciais.

Ora, o Muro de Berlim caiu também sobre essa transposição da mecânica clássica às ciências sociais, soterrando o determinismo histórico e, com ele, os paradigmas que davam uma aparente consistência à modernidade. Para salvar-nos das hipotéticas teorias do caos e do acaso, a formulação de novos paradigmas deve levar em conta dois parâmetros fundamentais, derivados da física quântica (que trata do microcosmo ou das partículas – quanta – existentes no interior do átomo): o princípio da indeterminação ou da incerteza, de Werner Heisenberg, e o princípio da complementaridade, de Niels Bohr (HEISENBERG, 1961).

A carteira de identidade química do átomo encontra-se no número de prótons contidos em seu núcleo. São eles que determinam a carga elétrica do núcleo que, por sua vez, fornece o número de elétrons em órbita em torno do núcleo. Um átomo simples de hidrogênio possui um único próton – que é também o seu núcleo – cercado por um elétron. Os átomos mais pesados possuem mais prótons e nêutrons, e também mais elétrons que coroam o núcleo.

Medir a localização e a trajetória de bilhões de partículas e, com os resultados, prever o movimento dos prótons, é física clássica. Heisenberg pretendeu demonstrar que jamais poderemos conhecer tudo sobre os movimentos de uma partícula. Mesmo conscientes de que em ciência todo resultado é provisório, não se pode deixar de admitir que o princípio da indeterminação revolucionou a visão que a física newtoniana tinha do mundo. Agora, a física quântica desafia a nossa lógica. Quando um fóton – que é um quantum – atinge um átomo e obriga o elétron a passar instantaneamente da órbita inferior à superior, o elétron, qual um acrobata, o faz sem atravessar o espaço intermediário. É o que se chama salto quântico que, além de desafio científico, é também um problema filosófico. É essa mesma incerteza quântica que explica a colisão de próton com próton no seio das estrelas – o que, à luz da física clássica, parece tão impossível quanto um boi voar (ZOHAR, 1991).

É mais fácil acreditar no boi voador que acolher sem interrogações a teoria quântica. O próprio Einstein, um dos pioneiros desta teoria e que formulou a hipótese do fóton como quantum de luz, chegou a afirmar que estava intimamente persuadido de que os físicos não poderiam se contentar por muito tempo com essa “descrição insuficiente da realidade”. Discordou da interpretação probabilística da mecânica quântica. Só que, em geral, a insuficiência não está na natureza, e sim em nossas cabeças, o que não significa que possamos alimentar a pretensão de penetrar todos os segredos da natureza. Moça pudica, ela preservará para sempre certos mistérios, como argumenta a Escola de Copenhague ao demonstrar que certos acessos não estão permitidos pela própria natureza (DAVIES, 1994).

Entretanto, quando Aristarco afirmou, dezessete séculos antes de Copérnico, que a Terra gira em torno do Sol, os gregos apelaram para o bom senso e convocaram os nossos sentidos como testemunhas fidedignas de que a Terra não se move, mesmo porque, se tal ocorresse, os habitantes de Atenas seriam atirados pela ventania em direção ao Leste, e os atletas de Olímpia dariam um salto maior que as pernas. Séculos depois, a mesma lógica foi aplicada, em vão, para tentar descartar as teorias de Copérnico e Galileu.

5 Realidades excludentes e, no entanto, complementares

A ruptura decisiva da física quântica com a física clássica ocorreu em 1927, quando Heisenberg estabeleceu o princípio da indeterminação – pode-se conhecer a posição exata de uma partícula – um elétron, por exemplo – ou a sua velocidade, mas não as duas coisas ao mesmo tempo (HEISENBERG, 1961).

Impossível saber, simultaneamente, onde um elétron se encontra e para onde ele se dirige. Pode-se saber onde ele se encontra, mas jamais captar, ao mesmo tempo, a sua velocidade. Pode-se medir sua trajetória, nunca sua localização exata.

Numa câmara úmida podemos observar a direção na qual um próton se move, até que ele passe pelo vapor d’água, quando sua desaceleração impedirá que saibamos onde se encontra. A alternativa é irradiar o próton, tomando uma foto dele, mas a luz ou qualquer outra radiação usada em fotografia o desviará de sua trajetória, de modo que jamais saberemos qual seria seu percurso se não tivesse sido incomodado pelo cientista-paparazzo.

Ao contrário do que supunha Einstein, Deus parece jogar dados com o Universo. As imutáveis e previsíveis leis da natureza em sua dimensão macroscópica não se aplicam à dimensão microscópica – eis a descoberta fundamental da física quântica.

Na esfera do infinitamente pequeno, segundo o princípio quântico da indeterminação, o valor de todas as quantidades mensuráveis – velocidade e posição, momento e energia, por exemplo – está sujeito a resultados que permanecem no limite da incerteza. Isso significa que jamais teremos pleno conhecimento do mundo subatômico, onde os eventos não são, como pensava Newton, determinados necessariamente pelas causas que os precedem. Todas as respostas que, naquela dimensão, a natureza nos fornece, estarão inelutavelmente comprometidas por nossas perguntas.

Essa limitação do conhecimento não estaria atualmente condicionada pelos recursos tecnológicos de que dispomos? Não se poderia criar, no futuro, um aparelho capaz de acompanhar o movimento do próton sem interferir na sua trajetória? A incerteza quântica não depende da qualidade técnica dos equipamentos utilizados na observação do mundo subatômico. Esta é uma limitação absoluta (CAPRA, 1996).

No mundo quântico, a natureza é, portanto, dual e dialógica. Dual, e não dualista, no sentido platônico, mas sim, como ressaltava o físico dinamarquês Niels Bohr, numa interação de complementaridade. Foi também em 1927 que Niels Bohr formulou o princípio da complementaridade. No interior do átomo, a matéria apresenta-se com aparente dualidade, ora comportando-se como partículas, que possuem trajetórias bem definidas, ora comportando-se como onda, interagindo sobre si mesma. Ela é ser e não ser, a ponto de os físicos tomarem emprestado conceitos da espiritualidade oriental para tentar definir os novos dados científicos (ZOHAR, 1991).

De fato, no mundo quântico onda e partícula não são excludentes, embora o sejam à luz de nossa linguagem que ainda não consegue se desprender dos parâmetros da física clássica. Ao estabelecer o princípio da complementaridade, Bohr articulou duas concepções que, à luz da física clássica, são contraditórias.

Bohr demonstrou que a noção de complementaridade pode ser aplicada a outras áreas do conhecimento, como a psicologia, que revela a complementaridade entre razão e emoção; a linguagem (entre o uso prático de uma palavra e sua definição etimológica); ética (entre justiça e compaixão) etc. Em suma, há mais conexões do que exclusões entre fenômenos que o racionalismo cartesiano pretende distintos e contraditórios. Eis o advento da holística! (BOHR, 1995).

Se um elétron se apresenta ora como onda, ora como partícula, energia e matéria, Yin e Yang, isso significa que cessa a autonomia do reino da objetividade: há uma interrelação entre observador e observado. Desmorona-se, assim, o dogma da imaculada concepção da neutralidade científica (JAPIASSU, 1975). A natureza responde às questões que levantamos. A consciência do observador influi na definição e, até mesmo, na existência do objeto observado. Entre os dois reina um único e mesmo sistema. Olho o olho que me olha.

Em 1926, em conversa com Heisenberg, Einstein disse-lhe: “Observar significa que construímos alguma conexão entre um fenômeno e a nossa concepção do fenômeno”. Assim, a física quântica afirma que não é possível separar cartesianamente, de um lado, a natureza e, de outro, a informação que se tem sobre ela. Em última instância, predomina a interação entre o observado e o observador. É dessa interação sujeito-objeto que trata o princípio da indeterminação. E, sobre ele, ergue-se a visão holística do Universo: há uma íntima e indestrutível conexão entre tudo o que existe – das estrelas ao sorvete saboreado por uma criança, dos neurônios de nosso cérebro aos neutrinos no interior do Sol. Meu eu é constituído pela mesma energia primordial do Tudo. Portanto, tudo que existe pré-existe, subsiste e coexiste (BRANDÃO, 1991).

6 Espiritualidade cósmica e holística

Para os Atos dos Apóstolos, “nele vivemos, nos movemos e existimos” (17,28). O Deus de Jesus é o mesmo Deus criador e libertador. A física quântica nos permite saber que, no interior do átomo, matéria é energia e energia é matéria. Como percebeu Teihard de Chardin, todo o Universo é expressão sensível de uma profunda densidade espiritual (CHARDIN, 1963).  Toda a matéria que tece o estofo da natureza não passa de energia condensada. Não se trata, pois, de ceder ao panteísmo e crer que todas as coisas são deuses. Melhor o panenteísmo, ou seja, Deus se manifesta em todas as coisas, conforme capta o olhar do místico.

Talvez haja uma única tristeza, a de não fazer do Amor a única religião. O que mais importa? Não há nada substancialmente importante além desse movimento ascendente engendrado no útero da natureza, lá onde o caos foi fecundado pela luz, capaz de congregar a matéria infinitesimal e agregá-la em quarks, elétrons, prótons, átomos, moléculas e células.

Essa emergência, tão bem celebrada por Teilhard de Chardin em seus textos, torna a natureza grávida de história, com seu ventre farto ofertando todas as formas possíveis de vida, e confirmando a intuição primordial de que todo o Universo não busca outra coisa além do Amor (CHARDIN, 1962).

Não faz diferença se o movimento parte da mônada que estremece em contato com a água ou da mulher que geme sob o corpo rígido do amado. Há, em todo esse percurso, uma sede insaciável de fusão, de comunhão, que nos faz sentir uma compulsiva atração pela beleza, pela unidade, por tudo isso que nos devolve a harmonia interior e exterior.

No entanto, o Amor sempre nos escapa, como se quiséssemos segurar com as mãos a água nutriente da fonte. E, ao escapar, abre fissuras em nosso ser e em nossa convivência social. A nostalgia do Amor gera desilusão e, com ela, esta forma atenuada de desespero que consiste em querer institucionalizar a fluidez encantadora da vida. Já que não podemos voar e nem sabemos apreciar o voo livre dos pássaros, fabricamos gaiolas. Elas contêm pássaros, mas nos impedem de apreciar a beleza do voo (CARDENAL, 1989).

Assim ocorre nas relações contaminadas pela rotina, onde o dever substitui o prazer e o beijo é sempre despedida, nunca encontro. Ou nas Igrejas que acreditam aprisionar nos sacrários a força revolucionária da presença de Jesus. Ora, a pujante ascendência da vida rompe necessariamente todos os limites impostos pela razão implacável, indócil frente à impossibilidade de produzir, dentro da gaiola, a curva sincronizada do voo que risca de infinito o horizonte.

O rosto da criança nunca corresponde ao sonho dos pais e não há dois pães, feitos pelas mesmas mãos, com igual sabor. No ato verdadeiramente criativo há um ponto de ruptura com o projeto inicial: é quando jorra e se expande o que há de divino em cada criador, não importa se a luz branca que envolve de silente sossego o restaurante La Sirene, no traço de Van Gogh, ou o feto que adquire forma no ventre materno.

É esse salto que tanto assusta a razão institucionalizada (COX, 1974).

Podemos aplicar tais princípios à história das religiões. Outrora, não se tinha consciência da interação entre os fenômenos da natureza. O mundo era uma realidade fragmentada. A luz do dia se opunha às trevas da noite, assim como tempestades e relâmpagos, terremotos e vulcões eram tidos como manifestações da ira dos deuses. Princípios antagônicos regiam a morada dos vivos. Esse aparente antagonismo entre forças contrárias da natureza criou o caldo de cultura favorável ao politeísmo e à multiplicidade de divindades gregas.

A fé monoteísta de Abraão corresponde a uma nova visão do Universo. Fecha-se o leque. Agora, tudo depende de um princípio único – Javé. É ele o criador de todas as coisas que, através de sua palavra, surgem na sucessão paradigmática dos sete dias da Criação. Na cultura semita, 7 significa “muitos”, como o símbolo matemático ∞ significa “infinito”. Por isso os nossos pecados serão perdoados “setenta vezes sete…” O relato do Gênesis preconiza a evolução da natureza que a ciência constataria muitos séculos depois (HAWKING, 1988).

Embora a crença em um Deus único e criador nos induza a perceber a correlação entre todas as coisas criadas, a razão instrumental abriu uma cisão entre a natureza e o ser humano. Ao contrário dos povos indígenas ainda tribalizados, não vemos a natureza como sujeito, mas como objeto. A Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, simboliza esse distanciamento do ser humano em relação à natureza. Nas pinturas medievais, as figuras humanas aparecem inseridas na paisagem. Súbito, vemos um rosto de mulher, o da Mona Lisa, retratada por Leonardo da Vinci, sem que sequer apareça o resto do corpo. Inicia-se o processo que desembocaria no Cogito ergo sum de Descartes, que rompe os vínculos que unem mundo interior e mundo exterior. Fora da razão, capaz de desvendar o mundo exterior sem apoiar-se em superstições e crendices, não há salvação, proclamaram os pais da modernidade.

7 Uma visão holística do real, onde diferença não coincide com divergência

Para Descartes, o mundo era uma máquina, da qual os seres humanos são mestres e proprietários. A física de Newton permitirá o conhecimento científico dessa máquina, basta desmontá-la em suas partes constituintes. Francis Bacon dirá que devemos “arrancar pela tortura os segredos da natureza” (1653). Assim, a ruptura entre um dado da natureza – o ser humano – e o conjunto da Criação, fez com que se perdesse a apreensão qualitativa da natureza, prevalecendo sua dimensão quantitativa, mensurável (WEBER, 1991). Deus tornou-se um fabricante de máquinas. O Relojoeiro Invisível de Newton, capaz de dotar o Universo de leis tão lógicas quanto o mundo de sociedades tão perfeitas como, supostamente, a instituição eclesiástica…

Para o princípio da indeterminação – que supõe o da complementaridade – há uma intrínseca conexão entre consciência e realidade. Assim como se chega à plenitude espiritual também pela abstinência, renunciando ao império dos sentidos, não é possível entender a teoria quântica sem abdicar do conceito tradicional de matéria como algo sólido e palpável.

Nos umbrais desse novo paradigma – que um dia também será velho – devemos deixar para trás ideias que, no decorrer de gerações, foram tidas como universais e imutáveis.

Segundo os pais da teoria quântica, Heisenberg e Bohr, na esfera subatômica, conceitos sensatos como distância e tempo, e a divisão entre consciência e realidade, deixam de existir. De modo que os cientistas são obrigados a abrir mão da simetria que tanto os seduz para se dobrarem à imposição da natureza, pois quem governa o átomo não é a mecânica newtoniana, mas a mecânica quântica.

Na esfera do infinitamente pequeno, a ciência é obrigada a ingressar no imprevisível e obscuro reino das probabilidades. O princípio da indeterminação revoluciona nossa percepção da natureza e da história. E nos faz tomar consciência de que, na natureza, a incerteza quântica não se faz presente apenas nas partículas subatômicas. Bilhões de anos após a predominância quântica no alvorecer do Universo, um estranho e inteligente fenômeno despontaria dotado de imprevisibilidade inerente a seu livre-arbítrio: os seres humanos (CHARDIN, 1955).

8 Resgate quântico do sujeito histórico

O princípio da indeterminação aplica-se também à história. A liberdade humana é um reduto quântico. Muitas vezes observamos pessoas que poderíamos qualificar de “partículas”, como os políticos, e outras que mais parecem “ondas”, como os artistas. Em cada um de nós essa dimensão dual também se manifesta, sobrepondo-se, como análise e intuição, razão e coração, inteligência e fé. Uma expressão humana tipicamente quântica é o jazz, onde cada músico improvisa dentro das leis da harmonia, interpretando com o seu instrumento a sua própria melodia. Não se pode prever exatamente a intensidade e o ritmo de cada improviso e, no entanto, o resultado é sempre harmônico.

Não há leis ou cálculos que prevejam o que fará um ser humano, ainda que seja um escravo. Lá no núcleo central de nossa liberdade – a consciência – ninguém pode penetrar. Nem mesmo à aceitação da verdade o ser humano pode ser obrigado. Tomás de Aquino, que nada entendia de física quântica, mas muito sabia da condição humana, chega a afirmar que é “ilícito até mesmo o ato de fé em Cristo feito por quem, por absurdo, estivesse convencido de agir mal ao fazê-lo” (LIMA VAZ, 1999).

O resgate da liberdade humana pela ótica quântica e, por conseguinte, o abandono dos velhos esquemas deterministas, reinstaura o ser humano como sujeito histórico, superando toda tentativa de atomização e realçando a sua inter-relação com a natureza e com os seus semelhantes. Essa visão holística descarta também as tentativas de encarcerar o indivíduo em um mundo sem história, ideais e utopias, restrito aos meios de sobrevivência e submisso às implacáveis leis do mercado.

Toda síntese incomoda a quem se situa num dos extremos. A reintrodução da subjetividade na esfera da ciência mexe com bloqueios emocionais arvorados em profundas raízes históricas. Em nome da fé – uma experiência subjetiva – inúmeros cientistas, taxados de hereges ou bruxos, foram condenados à fogueira da Inquisição. Em pleno Renascimento, Giordano Bruno morreu queimado e Galileu viu-se obrigado a retratar-se. Com o Iluminismo, no século XVIII, os cientistas assumiram a hegemonia do saber e o controle das universidades, identificando criatividade e liberdade com objetividade, e relegando à subjetividade tudo que parecesse irracionalidade e intolerância (EINSTEIN, 1981).

Na prática, ainda estamos longe do resgate da unidade. No Ocidente, as universidades continuam fechadas a métodos de conhecimento e vivência simbólica como a intuição, a premonição, a astrologia, o tarô, o I Ching e, no caso da América Latina, às religiões e aos ritos e mitos de origem indígena e africana. Tais “superstições” são ignoradas pelos currículos acadêmicos, embora haja teólogos que leem as mãos e frequentam terreiros e mães-de-santo, bem como professores e alunos que consultam o I Ching, as cartas do Zodíaco e os búzios.

Por sua vez, nas escolas de formação religiosa ou teológica ainda não há espaço para a atualização científica, nem se olha o céu pelas lentes da astronomia ou a intimidade da matéria pelas equações quânticas. A pluridisciplinaridade, rumo à epistemologia holística, permanece como desafio e meta. Porém, há razões para otimismo quando se constata a abertura cada vez maior da cartesiana medicina ocidental à acupuntura e o interesse de renomados cientistas pela sabedoria contida nas culturas da Índia e da China. E há razões para júbilo quando se lê na encíclica socioambiental Laudato Si, do papa Francisco, que “todo o Universo material é uma linguagem do amor de Deus, de seu ilimitado carinho para conosco. O Sol, a água, as montanhas, tudo é carícia de Deus” (LS 84).

A teologia ensina que há três fontes de revelação divina: a Bíblia, o magistério e a tradição da Igreja. O papa Francisco ousa incluir uma quarta, a natureza: “Junto à Revelação propriamente dita, contida na Sagrada Escritura, ocorre uma manifestação divina quando brilha o sol e quando cai a noite” (LS 85).

Na política fala-se cada vez mais em ética e, nas religiões, recupera-se a dimensão mística. A ecologia reumaniza a relação entre os seres humanos e a natureza, e as comunicações reduzem o mundo a uma aldeia global. Resta enfrentar o grande desafio de fazer com que o capital – na forma de dinheiro, tecnologia e saber – esteja a serviço da felicidade humana, rompendo as barreiras das discriminações raciais, sociais, étnicas e religiosas. Então, reencontraremos as veredas que conduzem ao jardim do Éden.

9 A era da mística    

André Malraux sugeriu que o século XXI seria a era da mística. O teólogo Karl Rahner previu que o homem do futuro será místico, alguém que experimenta algo, ou não poderá ser religioso. Como dizia Newman, uma fé passiva, de herança familiar, corre o risco de desembocar, nas pessoas cultas, em indiferença; nas pessoas simples, em superstição.

Deus se comunica conosco através das fontes de sua revelação e de seu Espírito. Nós nos comunicamos com Deus mediante os sacramentos, a oração, a abertura à sua graça. Isso é religiosidade. Uma comunicação intensa transforma-se em comunhão. Isso é mística.

Deus é, na experiência fundante de Elias, uma brisa suave (1 Rs 19,10-15). Para Jesus, o Espírito divino é como o vento que sopra onde quer; ouvimos o seu ruído, mas ninguém sabe de onde ele vem nem para onde ele vai (Jo 3,8).

Espiritualidade é fazer a experiência desse Ser. Portanto, a espiritualidade exige algo mais do que a adesão da inteligência às verdades reveladas. Exige abertura ao Transcendente e, nas relações pessoais, prática do amor, inclusive ao inimigo (Mt 5,43-44); e, nas relações sociais, partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano. Raiz e fruto não podem estar separados.

A tradição religiosa oferece-nos um vasto leque de espiritualidades: hinduísta, judaica, cristã, islâmica; e, dentro do cristianismo, católica, ortodoxa, protestante; e, dentro do catolicismo, beneditina, franciscana, dominicana, jesuítica, carmelitana, vicentina etc. O que identifica essas diversas espiritualidades é abrir aos seres humanos a possibilidade de transformarem o coração de pedra em coração de carne, livrarem-se de medos e egoísmos, tornarem-se melhores, mais compassivos e solidários, despojados dos apegos e das ilusões que dificultam uma existência marcada pela prevalência do espiritual. Por sua vez, o que caracteriza a espiritualidade cristã é tudo isso centrado no seguimento de Jesus (BETTO, 2015).

Ao entrar em uma livraria católica, encontramos uma seção de espiritualidade. Ali, estampas exibem fotos de montanhas ao alvorecer, lagos paradisíacos, bosques outonais cobertos de folhas e atravessados por raios dourados do Sol. Assim também costumam ser as capas dos livros de espiritualidade cristã. O que aquelas imagens sugerem é que estaremos tanto mais próximos de Deus quanto mais distantes do mundo.

Ao observar aquelas fotos, penso nos trabalhadores e desempregados que durante anos assessorei na Pastoral Operária do ABC paulista. A considerar as tribulações de suas vidas, sempre ameaçadas pela pobreza, só presenteando-os com uma passagem à Suíça para que possam se aproximar de Deus…

Felizmente, aquelas sugestões monásticas pouco têm a ver com o paradigma da espiritualidade cristã: Jesus de Nazaré. O que o Evangelho nos comunica está mais próximo das fotos de Sebastião Salgado. Jesus é aquele que viveu a espiritualidade do conflito. A conflitividade marcou toda a sua existência, da fase pré-natal, devido à desconfiança de adultério de Maria, à morte como maldito na cruz. Portanto, enganam-se os que buscam uma espiritualidade desencarnada em nome do Verbo encarnado.

As pautas da espiritualidade de Jesus estão muito bem demarcadas no Sermão da Montanha, em especial nas Bem-Aventuranças, no capítulo 25 de Mateus, e nos capítulos 13 a 17 de João. Dois aspectos as caracterizam: a abertura àqueles que necessitam dos dons imprescindíveis à vida, e a intimidade com Deus, sobretudo em momentos especialmente reservados para orar a sós (Lucas 6,12; 9,18). Jesus deixa-se permanentemente desinstalar pelo próximo e pelo Pai. O Espírito de Deus não cabe nos limites geométricos de nossos apegos e projetos, já que, no caminho que conduz de Jerusalém a Jericó, há sempre alguém que requer a nossa mudança de rota.

Todos os pedidos que Jesus ouve se resumem a dois: “Senhor, o que devo fazer para merecer a vida eterna?” Esta primeira indagação jamais sai da boca de um pobre. É o que perguntam aqueles que já têm assegurada a vida terrena – Nicodemos, Zaqueu, o homem rico e o doutor da lei na parábola do Bom Samaritano. A esses Jesus responde com desagrado e ironia.

O segundo pedido é o que brota da boca dos pobres: Senhor, minha mão está seca e preciso trabalhar; minha filha agoniza e a quero viva; meu servo está enfermo e quero vê-lo com saúde; meu olho está cego e desejo enxergar etc. A esses, que pedem vida nesta vida, Jesus responde com compaixão e carinho. Porque ele veio “para que todos tenham vida e vida em plenitude” (Jo 10,10).

10 Espiritualidade na pós-modernidade

Nós, homens e mulheres da modernidade, somos filhos de pais separados: a cultura semita, não dualista, e a cultura grega, dualista, cujo casamento foi abençoado por Santo Agostinho. A leitura da Bíblia pelos óculos gregos favoreceu uma espiritualidade onde a adesão a um catálogo de verdades predominava sobre a conversio cordis e a conversio morum: mudança de valores, hábitos e atitudes.

Platão havia situado as ideias em um mundo à parte, avesso à nossa sensibilidade. Aristóteles teve o mérito de encarná-las no coração da matéria. Não há ideias senão pela porta dos sentidos. Ora, não haveria algo de platônico numa espiritualidade que pretende prescindir dos sentidos? A ascética medieval, influenciada por Plotino, criou o antagonismo entre Céu e Terra, sobrenatural e natural, corpo e espírito e, em consequência, Igreja e mundo. O racionalismo moderno delimitou campos entre o profano e o sagrado, a religião e a política, a Igreja e o Estado. A Deus o que é de Deus, e a César o que é de César…

A pós-modernidade faz a experiência religiosa desbordar dos limites das instituições religiosas e irromper nos meios científicos e políticos. O mundo se reencanta, suprimindo as mediações entre o humano e o sagrado. Físicos buscam ávidos o que há na mente de Deus, e políticos, como Gandhi, Luther King e Mandela, extraem de suas experiências e convicções religiosas a ética que norteia suas atividades políticas.

Como o jogo de busca de Wally, hoje ninguém mais dá ouvidos ao anúncio de Nietzsche, de que Deus está morto, e todos perguntam: Onde está Deus? (BETTO, 2013).

Há uma multiplicidade de respostas. A Nova Era apressa-se a sugerir movimentos religiosos sem Igrejas, sem mandamentos, sem Deus, bem adequados ao individualismo que marca a sociedade atual. Haveria uma espécie de conspiração universal, cósmica, que faz convergir energias positivas através da ioga, da meditação transcendental, da medicina alternativa, da alimentação macrobiótica. A relação entre os seres humanos e a natureza deixa de ser conflitiva; a serenidade favorece o amor; a paz interior torna-se o bem maior.

Tudo isso é bom, desde que não se caia na cilada do sistema de dominação, que visa isolar em ilhas de utopias aquelas energias que poderiam convergir para transformá-lo. Modifico meus hábitos, mas não transformo o mundo. Salvo as baleias, mas não me empenho em libertar da fome as crianças da África subsaariana. Busco a minha serenidade, sem ameaçar as estruturas sociais que perpetuam desigualdades e engendram violência.

O sistema não é indiferente a tais manifestações. Por isso, procura cooptá-las. O consumismo ergue shopping-centers com linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; transfere os ícones para os objetos de consumo; faz do mercado um templo; e os índices da Bolsa e as oscilações do dólar tornam-se os oráculos que decidem a nossa salvação ou perdição.

Na falta de utopias e alternativas históricas, é a experiência religiosa que imprime sentido à vida das pessoas. Ainda que essa experiência venha invertidamente contida no valor agregado a uma mercadoria: o carro que me torna mais importante; a roupa de griffe que me faz mais notável; os hábitos de consumo que me introduzem no estreito círculo dos que, em vida, são canonizados pelo status que desfrutam.

A religião, hoje, tem que ser uma eleição do sujeito, o que implica certa experiência. Já não se nasce religioso. Adere-se a uma das propostas do mercado da credulidade. Adota-se um estilo de religiosidade deliberadamente sincretista, com elementos oriundos de múltiplas tradições. Converte-se a comunidades capazes de configurar entre si seus sistemas de crenças, práticas, atitudes e ritos, que se constituem no corpo de mediações de cada religião. A era da subjetividade desloca o centro da religião para a experiência pessoal – o que exige o fator místico, como personalização da experiência religiosa.

O desafio, agora, é resgatar a dimensão cósmica e histórica da revelação judaico-cristã e romper o dualismo entre Marta e Maria. Nosso Deus não é um deus qualquer. Tem marca histórica, currículo, é o “Deus de Abraão, Isaac e Jacó”. É o Deus de Jesus e dos apóstolos. É o Deus criador. Por sua vez, a ação tem que surgir da contemplação e a contemplação abastecer a ação. “Marta e Maria devem estar juntas para hospedar o Senhor…” (Teresa de Ávila, Moradas 4, 12).

Temos que aprender com os místicos a relativizar as mediações que nos conduzem à união com Deus. O templo não é melhor do que a rua; a vida religiosa não é melhor que a profana; a liturgia não é melhor que o trabalho; o bosque banhado pelo alvorecer não é melhor do que as fábricas do ABC paulista. O encontro com Deus não se faz por arroubos ou emoções piedosas. Faz-se pelo caminho do samaritano, quando damos de comer ao faminto e de beber ao sedento. Dá-se pelo sentido histórico que nos conduz ao lá na frente – o Reino de Deus.

11 Diafania

Identificar o ideal de vida cristã com a figura tradicional do místico, do anacoreta, do monge, é propor ao povo de Deus uma dedicação ao universo religioso e uma radicalidade ascética incompatível com a vida atual, a família, a profissão. É cindir a vida cristã entre um pequeno grupo de seletos chamados à perfeição e os demais, obrigados a contentarem-se com uma vida medíocre. Rahner falava em “mística da cotidianidade” e “experiência intensa da Transcendência”. J.B. Metz enfatiza a “mística dos olhos abertos”. Levinas ressaltava o caráter ético da espiritualidade ao afirmar que “a voz de Deus é o rosto do próximo” (RAHNER, 1969).

Temos, pois, que aprender com Jesus a conciliar a proclamação do Reino em meio à multidão e os momentos de intimidade solitária com o Pai. Oração e ação como faces da mesma moeda. Assim, se formos capazes de reconhecer o caráter sacramental da natureza e encontrar o tesouro escondido na face daquele que se identificou com os condenados da Terra (Mt 25,31), então teremos encontrado a Água Viva que brota de nosso próprio poço (BETTO, 2019).

Tudo o que está dito acima me parece resumido neste texto de A missa sobre o mundo, que Teilhard de Chardin escreveu na China, em 1923, no deserto de Ordos:

“Cristo glorioso, influência secretamente difusa no seio da Matéria e Centro deslumbrante em que se ligam todas as fibras inúmeras do Múltiplo; Potência implacável como o Mundo e quente como a Vida; Vós que tendes a fronte de neve, os olhos de fogo, os pés mais irradiantes que o ouro em fusão; Vós cujas mãos aprisionam as estrelas; Vós que sois o primeiro e o último, o vivo, o morto e o ressuscitado; Vós que reunis em vossa unidade todos os encantos, todos os gostos, todas as forças, todos os estados: é por Vós que meu ser chama com um desejo mais vasto do que o Universo – Vós sois verdadeiramente meu Senhor e meu Deus!”

“Senhor, encerrai-me no mais profundo das entranhas de vosso Coração. E, quando aí me tiverdes, abrasai-me, purificai-me, inflamai-me, sublimai-me, até a satisfação perfeita de vossos gostos, até a mais completa aniquilação de mim mesmo.”

“Toda minha alegria e meu êxito, toda a minha razão de ser e meu gosto de viver, meu Deus, estão suspensos a essa visão fundamental de vossa conjunção com o Universo. Que outros anunciem os esplendores de vosso puro Espírito! Para mim, dominado por uma vocação que penetra até ás últimas fibras de minha natureza, eu não quero, não posso dizer outra coisa que os inúmeros prolongamentos de vosso Ser encarnado através da matéria – jamais poderia pregar senão o mistério de vossa Carne, ó Alma que transpareceis em tudo o que nos rodeia!”

“Ao vosso corpo em toda a sua extensão, ao Mundo tornado por vosso poder e por minha fé o crisol magnífico e vivo em que tudo aparece para renascer, eu me entrego para dele viver e dele morrer, ó Jesus!” (CHARDIN, 1994).

Muitos séculos antes de Teilhard de Chardin, o apóstolo Paulo nos assegurou:

A própria natureza criada será libertada do cativeiro da degeneração em que se encontra, recebendo a gloriosa liberdade outorgada aos filhos de Deus. Sabemos que toda a Criação geme e sofre como que dores de parto até o presente dia. E não somente ela, mas igualmente nós, que temos os primeiros frutos do Espírito, também gememos em nosso íntimo, esperando, com ansiosa expectativa, por nossa adoção como filhos, e a redenção do nosso corpo.” (Rm 8, 21-23).

Frei Betto é(Carlos Alberto Libanio Christo) frade dominicano e escritor, assessor de movimentos pastorais e sociais. Texto original português.

Referências Bibliográficas

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Peguin/Companhia das Letras, 2017.

ANÔNIMO, Autor. A nuvem do não-saber. São Paulo: Paulus, 1998.

ARANTES, Paulo Eduardo. Nem tudo que é sólido se desmancha no ar. Revista Estudos Avançados, vol. 12, número 34, 1998.

BACON, Francis. A escada do entendimento ou o fio do labirinto. Sképsis 3, 197-203, 2008.

BETTO, F. A obra do Artista – uma visão holística do Universo. Rio: José Olympio, 2012.

____. Sinfonia universal – a cosmovisão de Teilhard de Chardin. Petrópolis: Vozes, 2011.

____. Um Deus muito humano – Um novo olhar sobre Jesus. São Paulo: Fontanar, 2015.

____. Oito vias para ser feliz. São Paulo: Planeta, 2014.

____. Fome de Deus – fé e espiritualidade no mundo atual. São Paulo: Paralela, 2013.

____. Fé e Afeto – Sobre vida e práticas espirituais. Petrópolis: Vozes, 2019.

BETTO, Frei; BOFF, Leonardo, CORTELLA, Mario Sérgio. Felicidade foi-se embora? Petrópolis: Vozes, 2016.

BOHR, Nils. Física atômica e conhecimento humano. Rio: Contraponto, 1995.

BRANDÃO, Dênis M.S. e CREMA, Roberto (org.). O novo paradigma holístico. São Paulo: Summus, 1991.

CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 1990.

____. O Tao da Física, São Paulo: Cultrix, 1989.

CARDENAL, Ernesto. Cântico Cósmico. Manágua: Nueva Nicarágua, 1989.

CHARDIN, Teilhard de. L’activation de l’énergie. Paris: Seuil, 1963.

_____. L’ènergie humaine. Paris: Seuil, 1962.

_____. Meu Universo e a energia humana. São Paulo: Loyola, 1980.

_____. O fenômeno humano. São Paulo: Herder, 1955.

_____.  Hino do universo: a missa sobre o mundo, três histórias no estilo Benson, a potência espiritual da matéria, pensamentos escolhidos por Fernande Tardivel. São Paulo: Paulus, 1994.

COX, Harvey. A festa dos foliões. Petrópolis: Vozes, 1974.

DAVIES, Paul. A Mente de Deus, a ciência e a busca do sentido último. Rio: Ediouro, 1994.

_____. Os Três Últimos Minutos – conjeturas sobre o destino final do Universo. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Rio: Nova Fronteira, 1981 (9ª ed.).

_____. Escritos da maturidade. Rio: Nova Fronteira, 1994.

FUKUYAMA, FrancisO fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

GUITTON, Jean; Bogdanov, Grichka e Igor. Deus e a Ciência. Rio: Nova Fronteira, 1992

HAWKING, Stephen W. Uma breve história do tempo, Rocco: Rio, 1988.

HEISENBERG, Werner. Physique et philosophie – la sciense moderne em révolution. Paris: Albin Michel, 1961.

HEISENBERG, Werner. Panghysique et philosophie – la science moderne en révolution. Paris: Albin Michel, 1961.

JAPIASSU, Hilton. O mito da neutralidade científica. Rio: Imago, s/d.

LIMA VAZ, H. C. Escritos de filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica 1. São Paulo: Loyola; 1999.

LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal – ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

LOVELOCK, James. As eras de Gaia. Rio: Campus, 1991.

OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de. Francis Bacon e a fundamentação da ciência como tecnologia, UFMG, Belo Horizonte, 1965.

PRIGOGINE, Ilya e STENGERS, Isabelle. Entre o tempo e a eternidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

RAHNER, Karl. Espiritualidad Antigua y actual, em Escritos de teologia VII. Madri: Taurus,  1969.

RUMI. Fihi-Ma-Fihi – o livro do interior. Rio de Janeiro: Dervish, 1993.

WEBER, Renée. Diálogos com cientistas e sábios – a busca da Unidade. São Paulo: Cultrix, 1991.

ZOHAR, Danah. O Ser Quântico. São Paulo: Best Seller, 1991.