Teologia pública da cidadania

Sumário

1 Cidadania entre o céu e a terra

2 O conceito de cidadania

3 Uma teologia da cidadania como teologia pública

3.1 Bases de uma teologia da cidadania

3.2 Teologia trinitária para a cidadania

4 Uma teologia pública: contextual e católica

Referências bibliográficas

1 Cidadania entre o céu e a terra

A cidadania é uma questão central da convivência humana. Ela ocupa um lugar proeminente no terceiro livro da Política, do filósofo grego Aristóteles, em que define o cidadão (polites) da cidade (polis) com sua constituição específica (politeia). O apóstolo Paulo insiste que ele é “judeu, natural de Tarso, cidade importante da Cilícia” (Atos 21,39) e reivindica, ao mesmo tempo, ser cidadão romano (Atos 16,38; 22,25-28), invocando direitos e privilégios específicos implícitos. O autor da carta aos Efésios enfatiza que vale para os judeus e os gregos em Cristo: “(…) já não sois estrangeiros nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e familiares de Deus” (Ef 2,19). O autor da carta aos Hebreus sublinha o caráter precário da cidadania terrena: “Na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas estamos à procura da que está por vir” (Hb 13.14). A visão do livro do Apocalipse é uma cidade, a Jerusalém celestial, curiosamente uma cidade sem templo (Ap 21,22). No fim dos tempos, o profano e o espiritual, o secular e o religioso coincidem na presença de Deus. Agostinho escreveu proeminentemente sobre a relação entre a cidade de Deus e a cidade terrena. Assim, pode-se afirmar que a cidadania é um tema cristão que está presente desde os primórdios do cristianismo. A cidade humana é sempre precária, mas é a localização adequada dos cristãos em sua vida. Os cristãos são fiéis à cidade de Deus, que deve ser revelada e instalada em sua plenitude, e que já está presente na cidade humana com todas as suas ambiguidades.

Na atualidade, as questões da cidadania nacional, e especialmente a luta pela inclusão em um sentido mais amplo pela moradia, pelo “direito de ter direitos” (ARENDT, 2012, p.296), de pertencer a algum espaço e deter propriedade desse lugar são questões autênticas e centrais. Também se pode mencionar aqui os fluxos de migrantes e refugiados que o mundo acompanha e enfrenta hoje. Estas realidades mostram o desafio do desarraigamento e do deslocamento. Cristãos sabem que nunca estão totalmente “em casa” neste mundo, e sua fidelidade não pode ficar ininterrupta com relação a um lugar específico, um povo específico, uma nação específica. O Evangelho transcende os limites estabelecidos pelos seres humanos. No entanto, pessoas cristãs são chamadas a dar sua contribuição precisamente em um contexto e num momento específicos, para ajudar seus pares a se sentirem em casa onde quer que estejam. Isso implica que devam trabalhar para os direitos da cidadania para todas as pessoas em todos os lugares. Na medida em que a teologia reflete sobre seu devido lugar e sua incidência na sociedade, na esfera pública, trata-se de uma teologia pública, que aqui formulamos como uma teologia pública da cidadania.

2 A conceito de cidadania

“Cidadania” denota antes um campo conceitual do que de um conceito claramente definido, devido à crescente multiplicidade de assuntos, questões, objetivos e políticas relacionados. Foi historicamente forjado no Ocidente, tendo como referência inicial Atenas e Roma e passando pelas revoluções do século XVIII nos Estados Unidos e na França. No entanto, não se deve esquecer que a primeira pessoa a falar de “direitos humanos” foi Bartolomé de Las Casas (1484-1566), que desencadeou uma importante discussão sobre o status humano dos povos indígenas.

Thomas Janoski define a cidadania como “ser membro passivo e ativo de indivíduos em um Estado-Nação com direitos e obrigações universais em um nível específico de igualdade” (1998, p.9). Muitos autores referem-se às três categorias de direitos do sociólogo britânico Thomas H. Marshall (1893-1981) – civis, políticos e sociais –, conquistados nesta ordem entre os séculos XVIII e XX (cf. CARVALHO, 2001). O advogado brasileiro Darcísio Corrêa introduz sua definição destacando aspectos econômicos e sociais da cidadania: “A cidadania (…) significa a realização democrática de uma sociedade, compartilhada por todos os indivíduos ao ponto de garantir a todos o acesso ao espaço público e condições de sobrevivência digna, tendo como valor-fonte a plenitude da vida”(2006, p.217). É evidente que tal definição ultrapassa a questão dos direitos (e deveres) previstos na lei, introduzindo uma dimensão utópica e escatológica quando se fala da “plenitude da vida” (ver João 10,10, texto frequentemente citado por movimentos sociais e ONGs ligadas a igrejas). “Acesso ao espaço público” aponta para as necessárias garantias a serem providenciadas pelo sistema político e jurídico, bem como para a esfera pública como espaço discursivo, de formação de uma opinião pública, enquanto a “sobrevivência digna” indica que as necessidades básicas devem ser adequadamente atendidas.

O uso frequente, na literatura e advocacia brasileiras, de “conquista”, “participação”, “emancipação” e “cidadania ativa” indicam a esperança e, de fato, a expectativa de muitas pessoas ativas na sociedade civil para construir uma sociedade nova, uma sociedade “de baixo”, com mais ênfase dada ao social do que ao individual. Para o sociólogo Pedro Demo, a cidadania é “um processo histórico de conquista popular, pelo qual a sociedade adquire, progressivamente, condições de se tornar um sujeito histórico consciente e organizado, com capacidade para conceber e tornar efetivo um projeto próprio” (1992, p. 17).

 Um exemplo disso pode ser o chamado Orçamento Participativo, uma invenção brasileira hoje praticada em muitas partes do mundo e que faz parte desta nova visão: parte da execução do orçamento municipal é decidida em assembleias populares, sendo as prioridades estabelecidas para a aplicação do orçamento público pela participação popular e democrática. As consultas populares são outro meio de uma “cidadania ativa” (BENEVIDES, 2003) previstas na Constituição de 1988 (Art. 14), mas ainda pouco utilizadas, ao menos enquanto voto oficial. Seriam outro avanço importante da participação popular na política. Contudo, como sempre na democracia, o voto da maioria precisa ser contracenado com a garantia dos direitos humanos e, especialmente, a proteção de minorias. Questões como a pena de morte sabiamente não foram postas à votação, porque o direito à vida é um direito fundamental (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988, Art. 5º, inciso XLVII) que, por princípio, não está sujeito a mudanças. De acordo com pesquisas de opinião, no entanto, é bastante provável que uma votação popular encontraria uma maioria a favor.

No sentido de formação para a cidadania e exercício de participação do povo de Deus, as igrejas podem exercer um papel de escolas de democracia, onde são testadas formas de relacionar a motivação, a análise e a ação a uma discussão e ação participativa, tanto para dentro quanto para fora dos muros das igrejas. Isto pode ser o caso mesmo onde estruturas hierárquicas e patriarcais, a princípio, não dão muito espaço para a participação e liderança cidadã. Mesmo em tais ambientes, capacitações importantes como a de mulheres como lideranças comunitárias podem ocorrer e incidir sobre a vida comunitária da igreja e da comunidade local. Além disto, motivações cidadãs podem ocorrer mesmo em igrejas com autoridade centralizadora. Mais amplamente falando, a cultura cívica, ou seja, o significado atribuído à cidadania e às atitudes de (des)crença dos cidadãos em relação à sua cidadania, tem influência direta no grau em que a cidadania pode ser efetiva e participativa, principalmente porque o poder e o trabalho na máquina pública também são realizados por pessoas cidadãs e suas deficiências refletem o seu potencial e as suas limitações.

Em suma, a cidadania não pode ser reduzida a direitos e deveres em um Estado nacional. Por um lado, a lei escrita precisa basear-se em algo que é anterior a ela, ao qual as pessoas, pelo menos, concordam e se sentem comprometidas. A moral e a normatividade entram aqui, assim como os direitos humanos, que, por definição, ultrapassam as fronteiras nacionais. Em segundo lugar, a lei é inútil, a menos que esteja efetivamente disponível para as pessoas, que implica tanto como é tratada pelas autoridades instituídas quanto como é percebida pelos cidadãos. Em terceiro lugar, a cidadania é moldada pelo discurso e a prática na esfera pública, em que a sociedade civil (inclusive as igrejas que, hoje, pertencem a esta esfera) tem uma tarefa específica como a parte organizada baseada, como eu defino, na iniciativa privada envolvida na promoção da cidadania na esfera pública para promover o bem comum para toda a sociedade. É na esfera pública nacional que as pessoas podem efetivamente lutar pela melhoria de suas vidas e por maior participação. Ainda assim, é preciso destacar que a sociedade civil está interagindo em redes no todo o mundo, a exemplo do Fórum Social Mundial que começou em Porto Alegre/RS. Existem realidades e concepções de uma cidadania global. Uma economia globalizada, bem como meios de comunicação cada vez mais rápidos, parecem não fazer sentido em relação às fronteiras nacionais. Mas a fragmentação, as questões étnicas, a migração com reações frequentes de xenofobia, e o fechamento das fronteiras também criaram novas fronteiras e reforçaram antigas. Em todo caso, é a configuração nacional que coloca em prática direitos concretos e direitos de livre manifestação.

Volto ao papel de igrejas na luta pela cidadania. Não há dúvida de que as igrejas contribuíram e continuam contribuindo de forma importante para a democracia e a cidadania (cf. SINNER, 2012a; 2018; 2019). No Brasil, notadamente a Igreja Católica Romana tornou-se amplamente reconhecida por fornecer uma espécie de incubadora para a sociedade civil emergente no final dos anos 1960 e 1970. A contribuição e presença das igrejas protestantes históricas, entre elas a Igreja Evangélica da Confissão Luterana no Brasil, é menos visível. Muitas vezes essa foi criticada por seu quietismo ou até mesmo por dar apoio indireto ao regime militar. Contudo, vem desenvolvendo importantes trabalhos educacionais e diaconais, além de ter se pronunciado, desde 1970, acerca de temáticas candentes na sociedade (SINNER, 2019, p.111-133). Já igrejas pentecostais como as Assembleias de Deus, o segmento de igrejas de mais rápido crescimento no Brasil, bem como na América Latina, África e partes da Ásia, são, muitas vezes, eficazes no estabelecimento de um sentido mais importante da dignidade humana entre os seus crentes (MARIZ, 1994; CORTEN, 1996; MAJEWSKI, 2008). Elas promovem a autoestima, proporcionando oportunidades para qualificação pessoal e profissional, e o resgate de muitos prisioneiros e pessoas viciadas em drogas. Ao mesmo tempo, muitas igrejas do segmento pentecostal e neopentecostal “nomeiam” e apoiam candidatos específicos para cargos políticos, buscando influência pública e até hegemonia. No geral, a imagem desse setor é bastante ambígua, o que ficou especialmente visível nas eleições brasileiras de 2018 e no governo que as seguiu.

Quatro aspectos parecem ser particularmente importantes em relação a uma potencial contribuição de igrejas cristãs para a cidadania: (1) a prática das igrejas; (2) seu papel pedagógico; (3) sua ação no espaço público e (4) sua reflexão teológica. Explico essas quatro dimensões brevemente e, como indicado acima, alerto pela enorme diversidade de igrejas, posições e práticas em relação à cidadania.

1) A prática das igrejas: a forma como se dá a prática de fé nas igrejas, seja na adoração, na catequese, nos retiros, nos grupos de leitura da Bíblia, nos programas sociais e similares, refletirá sobre como irão se comportar os cidadãos conscientes de seus direitos e deveres. Tal prática abrange as atividades desenvolvidas pelas igrejas e pode incluir membros da igreja ou até mesmo a população além de sua membresia. As atividades, em muitos lugares, contam com membros batizados e não batizados, contribuintes e não contribuintes, até porque muitas igrejas não possuem um sistema de registro confiável. De uma ou outra forma, as igrejas contribuem para o bem-estar da população em geral baseadas em sua fé, independentemente da afiliação religiosa ou ausência dela.

2) O papel pedagógico das igrejas: em muitos lugares, as igrejas alcançam mais pessoas do que qualquer outra organização, tendo uma capilaridade incomparável. Muitas de suas atividades incluem algum tipo de educação, seja diretamente – através de sermões, palestras, catequese, retiros – ou indiretamente, através do desenvolvimento das habilidades práticas, organizacionais e de lideranças. De forma explícita ou implícita, as questões da cidadania podem ser parte de tais processos educacionais. Outro ponto são as escolas vinculadas às igrejas, já que muitas delas são consideradas as melhores escolas dentre as privadas – embora muitas vezes exclusivas – em vários países, e também existem universidades confessionais com excelentes padrões de ensino.

3) A ação das igrejas na esfera pública: as igrejas, através de seus membros e/ou suas lideranças, congregações, mídias ou organizações e ministérios específicos, colaboram com a sociedade civil e com o governo em todos os níveis e fazem suas contribuições críticas e construtivas através da busca de soluções. Dada a crescente competição entre igrejas em muitos lugares, contudo, não são apenas parte da solução, mas também do problema, em termos de tendências corporativas e concorrentes que refletem na sua forma de ser e o desenvolvimento de suas ações. Além do grande desgaste da imagem pública das igrejas, que torna difícil ou quase impossível a colaboração entre diferentes igrejas, muito mais ainda entre diferentes religiões, embora existam exemplos do contrário. A crescente busca por formação e qualificação por parte das igrejas mais recentes oferece uma chance ímpar de superar a competição e descobrir possíveis sinergias.

4) Reflexão teológica: embora nem sempre sejam explícitas, as reflexões teológicas sustentam a ação das igrejas, tanto ad intra como extra, às vezes chamadas de teologia confessional e teologia pública, respectivamente (cf. SOARES; PASSOS, 2011). Os documentos oficiais das igrejas geralmente carregam com eles um fundamento teológico de seu argumento, mesmo que seja afirmado, em vez de desenvolvido, ou implícito e não explícito. Ao mesmo tempo, eles se relacionam com questões do debate mais amplo sobre democracia, cidadania, política, espaço público, pobreza e outros.

Assim, não há dúvida de que as igrejas desenvolvem, de fato, um papel público. Isso se dá por sua presença numérica, sua influência na vida das pessoas, bem como, no sistema político, nas inúmeras instituições e projetos educacionais e sociais, gozando ainda de notável confiança entre a população. Veremos o que impulsiona igrejas a exercerem tal papel também por princípio.

3 Uma teologia da cidadania como teologia pública

3.1 Bases de uma teologia da cidadania

Como dito anteriormente, a cidadania celestial das pessoas cristãs em sua relação com a cidadania mundana é uma questão que vem acompanhando o cristianismo desde o seu surgimento. Minha intenção aqui, no contexto brasileiro e latino-americano, é explorar o patrimônio da Teologia da Libertação e suas recentes inovações. Um dos ensaios mais desafiadores da Teologia da Libertação na década de 1990 foi um artigo do teólogo católico romano e professor de educação Hugo Assmann (1933-2007). Assmann reivindicou precisamente a continuação da Teologia da Libertação como uma “teologia da cidadania e da solidariedade”. Sua crítica à Teologia da Libertação clássica incluiu a falta de percepção de quem são os pobres e de que ela tenha mantido uma visão idealizada destes como sujeitos de sua própria libertação enquanto não percebeu seus genuínos desejos. Assim, ele conta entre os desafios pendentes “uma teologia do direito a sonhar, ao prazer, à fraternura, ao criativiver, à felicidade” (ASSMANN, 1994, p.30 et seq.), resumida na noção de corporeidade. Ao mesmo tempo, como os pobres tornaram-se perfeitamente dispensáveis ​​para o capitalismo de mercado neoliberal dominante, eles são vistos apenas por aqueles “convertidos à solidariedade” (ASSMANN, 1994, p.31). Assim, o autor trabalhou consistentemente na educação para a solidariedade, insistindo que é necessário “conjugar valores solidários com direitos efetivos de cidadania” (ASSMANN, 1994, p.33). Pressupondo a presença duradoura de uma economia de mercado, há necessidade de compensar a lógica dos efeitos da exclusão, combinando medidas de mercado e sociais por instituições instaladas democraticamente. Assmann critica a ênfase exagerada dada pelos cristãos aos relacionamentos comunitários, como se fossem suficientes para tornar a solidariedade efetiva em sociedades grandes, complexas e urbanizadas. Há necessidade de um (novo) pacto social que não fique apenas na retórica. Denuncia Assmann que “(…) há um perigoso descuido do uso da lei como arma dos mais fracos (…), sobretudo um falacioso viés anti-institucional” (1994, p.33). Enquanto Assmann situa seu argumento mais na esfera econômica, pode-se acrescentar que a situação democrática pós-regime militar permitiu novas formas de participação política, o que tornou necessário e oportuno um novo tipo de teologia, precisamente uma teologia centrada na cidadania. Isto é válido mesmo com os retrocessos recentes, com uma política de direita que não valoriza os direitos humanos. Enquanto o sistema democrático se mostrar estável, pode – e deve – se utilizar os espaços existentes para articulação e participação política. Sem dúvida isto significa, mais do que nunca, uma situação conflitiva e de resistência, mas não de abstinência.

O teólogo metodista Clovis Pinto de Castro (2000) dedicou um estudo importante ao tema da cidadania, no qual reivindicou uma pastoral da cidadania (“ação pastoral para a cidadania”) como “dimensão pública da igreja”. Seu conceito central é o de uma “cidadania ativa e emancipada”, que ele desenvolve com base no conceito de vita activa de Hannah Arendt, nas reflexões da filósofa política brasileira Marilena Chauí sobre o mito fundacional do Brasil – que promoveu o paternalismo e o messianismo, ao contrário de uma noção democrática e participativa de cidadania ) e na crítica de Pedro Demo, de uma cidadania paternalista (cidadania tutelada, como em um estado liberal) ou de assistência social (cidadania assistida, como em um estado de bem-estar), a favor de uma cidadania emancipada, na qual a participação efetiva das pessoas é fundamental para a democracia.

Teologicamente, Castro baseia a pastoral da cidadania em Deus como aquele que ama a justiça e o direito, no mandamento de amar o próximo, na prática de boas obras e na justiça de acordo com o testemunho do Novo Testamento; também no conceito de shalom (“paz”) como bem-estar abrangente e, finalmente, na perspectiva do Reino de Deus. A partir daí, ele deduz o mandato da igreja de viver não só no privado, mas na sua dimensão pública (pastoral), orientada para os seres humanos em sua vida diária e real, e não apenas para os seus membros. A fé consciente da cidadania (fé cidadã) é orientada pelas três dimensões da fé – como confissão (conhecer Deus), como confiança (amar Deus) e como ação (servir a Deus). O último inclui a formação de assuntos de cidadania (sujeito cidadão) e participação de cristãos na administração democrática das cidades.

A cidadania, portanto, passou pelo menos de forma inicial pela teologia. Vejo isso como uma possível e pertinente recontextualização de ideias centrais da Teologia da Libertação, especialmente a opção preferencial pelos pobres e a importância teológica da práxis. Uma insistência semelhante pode ser identificada em outros contextos (cf. BUTTELLI; LE BRUYNS; SINNER, 2014; SINNER, 2017). Koopman, do ponto de vista de um diálogo Sul-Sul entre a África do Sul e o Brasil, insiste que

Sociedades estão famintas por pessoas de virtude pública e cívica: sabedoria pública em contextos de complexidade, ambivalência, ambiguidade, paradoxalidade, tragédia e aporia (becos sem saída); justiça pública em contexto de desigualdades e injustiças nos níveis local e mundial; temperança pública em contexto de ganância e consumismo em meio à pobreza e à alienação; valentia pública em situações de impotência e inércia; fé pública em meio a sentimentos de desorientação e de desarraigo nas sociedades contemporâneas; esperança pública em meio a situações de desespero e melancolia; amor público em sociedades onde a solidariedade pública e a compaixão estão ausentes. (KOOPMAN, 2015, p. 434; tradução própria)

Agora é minha tarefa cavar ainda mais nos fundamentos teológicos de uma teologia pública da cidadania. Como mencionado, Nico Koopman relaciona a cidadania teologicamente às marcas tradicionais da igreja, em direção a uma cidadania católica e inclusiva, unida e pedindo justiça, santa, virtuosa, apostólica e responsável. No entanto, ele também expandiu a Trindade no âmbito de uma teologia pública, abordando a teologia planetária de Sallie McFague (2001) e insistindo na “dimensão pública da fé trinitária” (KOOPMAN, 2015, p.243) que relacione Deus e o mundo.

3.2 Teologia trinitária para a cidadania

Na sua conferência inaugural realizada na Universidade Stellenbosch em 2009, Koopman (2009) defendeu uma “antropologia teológica da relacionalidade, vulnerabilidade e interdependência que se baseia principalmente no chamado pensamento trinitário econômico”. Enfatizar a Trindade econômica permitiu que Koopman discuta a antropologia “em relação a desafios públicos concretos, como pessoas com deficiência, relações de gênero, discursos ubuntu, identidade social, dignidade humana e violência” (KOOPMAN, 2009, p.6).

Em suas teologias trinitárias, Jürgen Moltmann e Leonardo Boff assumiram uma posição crítica em relação ao que eles chamam de “monoteísmo” – em vez disso, deveria ser o monarquismo – na compreensão de Deus que, segundo eles, deu lugar a possíveis analogias do tipo “um Deus – um Império – um Imperador”, uma linha de pensamento que Erik Peterson denunciou notoriamente em uma tese histórica como crítica contemporânea contra o nazismo crescente na Alemanha. Positivamente, eles sugeriram uma analogia social da Trindade através da pericorese (interconexão) que poderia sustentar uma comunhão igualitária tanto dentro da igreja como na sociedade. Boff, além disso, apresenta a visão de uma comunidade planetária da natureza e da humanidade, dos humanos entre si, da humanidade e de Deus; para ele, a cidadania é cidadania (nacional), cocidadania e cidadania da Terra.

A questão é como essa “inspiração” trinitária pode ser aplicada à formação de estruturas na sociedade e na igreja. O próprio Boff não vai além de reivindicar, em termos gerais, a necessidade de uma “democracia fundamental”:

A democracia fundamental visa a maior igualdade possível entre as pessoas mediante processos cada vez mais abrangentes de participação em tudo o que concernir à existência humana pessoal e social. Além da igualdade e participação intenciona a comunhão com os valores transcendentes, aqueles que definem o sentido supremo da vida e da história (BOFF, 1987, p.190).

Tentando combinar a função crítica e construtiva de uma doutrina trinitária pericorética e os desafios da sociedade brasileira, gostaria de enfatizar quatro aspectos que considero serem aspectos fundamentais para a contribuição das igrejas motivadas pela fé para a democracia.

Um primeiro aspecto central é a alteridade. A pluralidade implica a diversidade e a comunidade, em uma democracia, é impensável sem reconhecer a singularidade de cada membro da sociedade. Portanto, o respeito à alteridade, o reconhecimento da diferença e o direito de ser diferente é essencial. Na teologia latino-americana, isso se originou entre aqueles que estavam em contato direto com os povos indígenas, mas recebeu uma atenção mais ampla nos últimos tempos. Uma hermenêutica sensível do outro é necessária para preservar a singularidade de cada pessoa e seu direito à diferença, incluindo a diferença religiosa. A alteridade preserva o mistério e busca a compreensão, como acontece na teologia tentando desvendar e, ao mesmo tempo, respeitar o mistério de Deus como tri-uno, unidade na diferença.

Um segundo aspecto é a participação. Este conceito é fundamental para o discurso sobre a cidadania. O aspecto da participação efetiva do cidadão vem à tona, assim como a cultura política pela qual essa participação é encorajada ou prejudicada. As igrejas, como parte da sociedade civil, têm um papel importante a desempenhar nesse encorajamento da participação cidadã, e de fato, de maneiras diferentes, como apontei acima. Em muitos lugares, as igrejas podem contar com participação muito maior de pessoas do que outros tipos de organizações de voluntários. Em termos de teologia trinitária, o aspecto da participação constitui uma analogia apropriada da ideia de interconexão, pericorese.

Um terceiro aspecto é a necessidade de confiança. Numa sociedade democrática, torna-se necessário confiar nas pessoas de forma bastante abstrata, porque nunca conheço a maioria dos meus concidadãos. Para que a democracia funcione, tenho que pressupor que outros tenham um interesse semelhante no funcionamento da democracia. Se esse interesse comum não pode ser dado por certo, e se um bom número de cidadãos, especialmente aqueles que detêm mais poder do que eu, falhar na confiança, é necessário um motivo mais profundo para ainda estar pronto para investir na confiança. Essa razão pode ser dada pela fé, que essencialmente significa confiança – não em si mesmo, mas em Deus.

Especialmente pessoas cristãs luteranas estão acostumadas a pensar no ser humano como simultaneamente justo e pecador. Elas sabem que os seres humanos não podem confiar em si mesmos e uns aos outros por seu próprio bem e mérito, mas pelo amor e mérito de Deus, porque ele prova ser confiável, mesmo na ambiguidade da vida. Deus visto como tri-uno preserva a continuidade em meio a situações históricas diferentes, altamente ambíguas, onde ele se manifesta, mais centralmente na cruz em Gólgota, mas também na criação e na presença do Espírito, e capacita as pessoas para viverem suas vidas.

Finalmente, um quarto elemento necessário é a coerência: ter um projeto para toda a sociedade e não apenas para si próprio ou para o grupo de pares, ou mesmo para a igreja. Isso depende de uma percepção específica da sociedade e da fé, sendo necessária uma hermenêutica de coerência. O mercado religioso altamente competitivo emergente em muitos lugares do mundo, especialmente na África e na América Latina, com uma diversidade cada vez maior de igrejas e movimentos religiosos, está dando um testemunho muito triste dessa (in)coerência. Teologicamente falando, insistir em Deus como Trindade pode ajudar a prevenir mal-entendidos restritivos, como se Deus fosse somente o Espírito Santo e não apenas o Filho, feito humano em Jesus Cristo e Pai, como criador. Este equilíbrio de unidade e diversidade em Deus é propenso a promover a koinonia, a palavra ecumênica para a comunidade entre os diferentes membros do Corpo de Cristo. Em termos da sociedade como um todo, essa integração da unidade e da diversidade poderia, se bem-sucedida, ser uma importante contribuição das igrejas para uma sociedade pluralista. Isso pressupõe que os cristãos e as igrejas não busquem principalmente obter vantagens para as respectivas igrejas, mas ver sua missão como testemunho de serviço (diakonia) para toda a sociedade.

4 Uma teologia pública da cidadania: contextual e católica

O debate sobre teologia pública, como desenvolvido no Brasil e, internacionalmente, na Rede Global de Teologia Pública e seu periódico International Journal of Public Theology, mostra a diversidade de entendimentos e implicações do conceito (cf. SINNER, 2012b). Já as primeiras questões da revista trataram explicitamente do projeto geral e as implicações do conceito. Vários autores afirmaram que a teologia pública não era uniforme nem monolítica, não tinha um único significado e que não havia uma teologia pública universal. No entanto, existe uma articulação global em torno do termo. Eu chamaria isso de “conceito agregador”, isto é, uma maneira de expressar uma dimensão intrínseca à igreja, ao mesmo tempo em que incorpora uma diversidade de aspectos e focos. É mais uma dimensão do que uma linha de pensamento específica, além de denotar um campo – a esfera pública. Embora isso ofereça uma ampla abertura para a contextualização, mostra certa imprecisão e flexibilidade do conceito.

No contexto brasileiro, uma – note-se o consciente uso do artigo indefinido – teologia pública pode ser adequadamente qualificada como teologia da cidadania (cf. ZEFERINO, 2018), o que mostra concretamente como as igrejas – e a teologia que sobre sua prática reflete – contribuem para uma dimensão profundamente necessária e ainda desejável da vida humana. Não se trata de um simples oportunismo, mas posturas e ações arraigadas em suas convicções teológicas. Uma teologia pública insiste em formas de comunicação além das igrejas, na esfera pública. Como bem disse David Tracy, a pessoa teóloga atende à igreja, à academia e à sociedade, cada uma com seus discursos e linguajar específicos. É, portanto, uma teologia desenvolvida de dentro para fora, comunicando a missão da igreja na fé, na vida e na ação (catolicidade). Ao mesmo tempo, é desenvolvida a partir e dentro de um contexto específico, com seus públicos e sua esfera pública específicos (contextualidade). Isso torna necessária uma análise apurada e um diálogo interdisciplinar. Metodologicamente, portanto, tanto a contextualidade quanto a catolicidade da teologia pública devem sempre ser levadas em consideração e explicitadas quanto ao seu significado específico.

 Rudolf von Sinner, PUC Paraná, Brasil (colaboração do doutorando Ezequiel Hanke, Faculdades EST, texto original português.

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