Espiritualidade cósmica e holística

Sumário

Introdução

1 Religião sem culpas

2 O tempo sem tempo do amor

3 Cosmologias e espiritualidades

4 Do determinismo à indeterminação

5 Realidades excludentes e, no entanto, complementares

6 Espiritualidade cósmica e holística

7 Uma visão holística do real, onde diferença não coincide com divergência

8 Resgate quântico do sujeito histórico

9 A era da mística

10 Espiritualidade na pós-modernidade

11 Diafania

Referências bibliográficas

Introdução

No século XX, a arte cinematográfica nos introduziu em um novo conceito de tempo. Não mais o conceito linear, histórico, que perpassa a Bíblia e, também, as obras de Aleijadinho ou Sagarana, de Guimarães Rosa. No filme, predomina a simultaneidade. Suprimem-se as barreiras entre tempo e espaço. O tempo adquire caráter espacial e, o espaço, caráter temporal. No cinema, no vídeo e demais recursos da era imagética, o olhar da câmara e do espectador passa, com toda a liberdade, do presente ao passado e, deste, ao futuro. Não há continuidade ininterrupta.

A TV, cujo advento oficial ocorreu em 1939, levou isso ao paroxismo. Frente à simultaneidade de tempos distintos, a única âncora é o aqui-e-agora do (tele)espectador. Não há durabilidade nem direção irreversível. A linha de fundo da historicidade – na qual se apoiam o relato bíblico e os paradigmas da modernidade, incluindo um de seus frutos diletos, a psicanálise – dilui-se no coquetel de eventos onde todos os tempos se fundem. Elis Regina, Gonzaguinha e Tom Jobim aparecem mortos e, sobre seus caixões, os clipes os exibem vivos, interpretando seus êxitos musicais.

Assim, aos poucos, o horizonte histórico se apaga, como as luzes de um palco após o espetáculo. A utopia sai de cena, o que permitiu Fukuyama vaticinar: “O fim da história” (FUKUYAMA, 1992). Ao contrário do que adverte Coélet, no Eclesiastes 3, não há mais tempo para construir e tempo para destruir; tempo para amar e tempo para odiar; tempo para fazer a guerra e tempo para estabelecer a paz. O tempo é agora. E nele se sobrepõem construção e destruição, amor e ódio, guerra e paz.

A felicidade, que em si resulta de um projeto temporal, reduz-se então ao mero prazer instantâneo derivado, de preferência, da dilatação do ego (poder, riqueza, projeção pessoal etc.) e dos “toques” sensitivos (ótico, epidérmico, gustativo etc). Ela resulta, supostamente, da soma de prazeres (BETTO; BOFF; CORTELLA, 2016).  A utopia é privatizada. Resume-se ao êxito pessoal. A vida já não se move por valores e ideais nem se justifica pela nobreza das causas abraçadas. Basta ter acesso ao consumo que propicia segurança e conforto: o apartamento de luxo, a casa na praia ou na montanha, o carro novo, o kit eletrônico de comunicações (telefone celular, computador etc), as viagens de lazer. Uma ilha de prosperidade e paz imune às tribulações circundantes de um mundo movido a violência. Enquanto a Igreja prega o Céu além da vida nesta Terra, o consumismo acena com o Céu na Terra – é o que prometem a publicidade, o turismo, o novo equipamento eletrônico, o banco, o cartão de crédito etc. O novo aforismo pós-moderno é “consumo, logo existo” (LIPOVETSKY, 2008).

Nem a fé escapa à subtração da temporalidade. O Reino de Deus deixa de situar-se “lá na frente” para ser esperado “lá em cima”. Nessa perspectiva, como mero consolo subjetivo a fé é reduzida à esperança de salvação individual.

Impelido pelas novas tecnologias da era imagética, agora o tempo está confinado ao caráter subjetivo. Experimentá-lo é ter consciência tópica do presente. Se na Idade Média o sobrenatural banhava a atmosfera que se respirava e, no Iluminismo, era a esperança de futuro que justificava a fé no progresso, agora o que importa é o presente imediato. Busca-se, avidamente, a eternização do presente. Michael Jackson era eternamente jovem, e multidões malham o corpo como quem sorve o elixir da juventude. Morreremos todos saudáveis e esbeltos…

Pulverizam-se os projetos, mesmo porque, na cabeça de muitos, o tempo é cíclico. No mesmo rio corre sempre a mesma água. Outrora, havia namoro, noivado e casamento. Agora, fica-se. Após anos de casado, pode-se voltar ao tempo de namoro e, de novo, ao de casado. Ganha espaço, na cultura ocidental, a crença na reencarnação. Tudo é passível de recomeço.

1 Religião sem culpas

A destemporalização da existência e a desistorização do tempo aliam-se à desculpabilização da consciência. Este o segredo dos templos eletrônicos: não há culpa pessoal ou social. Cercados de anjos por todos os lados, somos amados por um Deus que já não exige mudanças ou conversões, comunidades e doutrinas. Basta a emoção de saber-se amado por ele.

Uma mesma pessoa vive diferentes experiências sem se perguntar por princípios morais ou religiosos, políticos ou ideológicos. Não há pastores e bispos corruptos? Não há utopias que resultaram em opressão? A TV não mostra o honesto ontem e vigarista hoje fazendo gestos humanitários? Onde reside a fronteira entre o bem e o mal, o certo e o errado, o passado e o futuro? “Tudo que é sólido se desmancha no ar” (ARANTES, 1998).

Ar irrespirável desse início de século, cuja temporalidade fragmenta-se em cortes e dissolvências, close-ups e flash-backs, com muitas nostalgias e poucas utopias. Enquanto as Igrejas tentam chegar à modernidade, o mundo naufraga sob os ventos da pós-modernidade (LOVELOCK, 1991).

2 O tempo sem tempo do amor

Há, contudo, algo de positivo nessa simultaneidade, nesse aqui-e-agora que se nos impõe como negação do tempo. É a busca da interioridade. Do tempo místico como tempo absoluto. Tempo síntese/supressão de todos os tempos. Kairós. Eis que irrompe a eternidade – eterna idade. Pura fruição. Onde a vida é terna.

O período medieval suscitou uma espiritualidade de submissão meritória, baseada na obediência àqueles que representavam Deus no mundo – papas, reis, abades e príncipes. Os crentes viviam enclausurados nesta Terra considerada o centro do Universo (GUITTON, 1992).

A modernidade deslocou o eixo da Terra para o Sol, estabeleceu distância entre o ser humano e o conjunto da natureza, e instaurou a espiritualidade da conquista e – no resgate do classicismo grego – do herói capaz de escalar montanhas através dos degraus das virtudes.

Agora, a pós-modernidade restaura a comunhão holística entre o ser humano e a natureza, e nos convida a uma espiritualidade sem mediações institucionais, centrada na subjetividade aberta ao Transcendente (RUMI, 1993). Isso porque descobrimos que não fomos caprichosamente criados pelas mãos de Javé. Somos filhos de símios, e o nosso corpo é tecido de átomos produzidos há 13,7 bilhões de anos no calor das estrelas. A Terra em que habitamos é apenas um diminuto ponto na periferia de uma estrela de quinta grandeza, o Sol – uma entre as 100 bilhões de estrelas que iluminam a Via Láctea, galáxia que se espalha pelo espaço cósmico em companhia de mais de 200 bilhões de galáxias semelhantes a ela (BETTO, 2012).

Estaremos perdidos, sem eira nem beira? Sim, caso busquemos o nosso eixo em algum ponto geográfico, “em Jerusalém ou no monte Garizim”, como indagou de Jesus a mulher samaritana (João 4). E ele respondeu que, agora, trata-se de adorar “em espírito e verdade”. A dimensão subjetiva (despojamento) e a dimensão objetiva (coerência).

Portanto, não há risco de ficarmos perdidos se acreditamos, como disse Santo Agostinho, que “Deus é mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos” (AGOSTINHO, 2017). E a teoria da relatividade vem em nossa ajuda para precisar que o centro do Universo é sempre o ponto em que se encontra o observador. Assim, de uma cosmologia geocêntrica, passou-se a uma cosmologia heliocêntrica e, agora, vivemos o advento de uma mundividência antropocêntrica. Isso traz consequências importantes para a espiritualidade. Aquela criança de rua, babenta, raquítica, é o centro do Universo. E, segundo o Evangelho, morada viva de Deus (João 14,23).

3 Cosmologias e espiritualidades

Cada vez que muda a cosmologia, muda a nossa ideia de mundo, de ser humano e de Deus. Assim ocorreu quando a modernidade abandonou a concepção geocêntrica de Ptolomeu para abraçar a concepção heliocêntrica de Copérnico. Michelangelo, em seu afresco no teto da Capela Sistina, bem retratou essa passagem do teocentrismo para o antropocentrismo. Javé, coberto de mantos e barbas, estende o dedo ao Adão nu magneticamente atraído em direção à Terra, e Adão se esforça, também com o dedo estendido, em não perder contato com a fonte originária.

O Deus inefável e pleno de atributos gregos do tomismo cedeu lugar ao Deus amoroso cantado como “O Amado” por Teresa de Ávila e João da Cruz e, pouco antes, pelo anônimo inglês de A Nuvem do Não-Saber (ANÔNIMO, 1998). Como em Elias, o fogo que abalava os alicerces do mundo foi suplantado pela brisa suave (1 Reis 19,10-15).

Agora, somos contemporâneos de uma nova mudança de paradigmas cosmológicos. A mecânica celeste da física de Newton, que muito bem explica o infinitamente grande, cede lugar à teoria da relatividade de Einstein e, sobretudo, à física quântica de Planck, Bohr e Heinseberg, para melhor explicar o infinitamente pequeno. Teilhard de Chardin teria gostado de presenciar a confirmação científica de suas intuições quanto ao coração do Universo e ao estofo da matéria (BETTO, 2011).

Universo, matéria e espírito são um só tecido feito de linhas atômicas, nas quais os místicos decifram o desenho do rosto de Deus. É le milieu divin, o meio divino, centrado no Ponto Ômega, o eixo magnético que banha de energia divina toda a Criação (CHARDIN, 1980).

4 Do determinismo à indeterminação

Os paradigmas da modernidade sustentam-se na filosofia de Descartes e na física de Newton. Racionalismo e determinismo seriam as chaves para se chegar ao conhecimento científico, livre de interferências subjetivas, preconceitos e superstições. Levada ao paroxismo, a mecânica clássica – que descreve as leis determinísticas que regem o macrocosmo – sugeriu ao pensamento marxista a ideia, tida como inelutável e científica, de que o determinismo histórico regeria as sociedades para formas mais perfeitas de convivência humana. Assim, o materialismo histórico explicaria o avanço do feudalismo ao capitalismo e, deste, ao socialismo, sem indícios de retrocessos substanciais.

Ora, o Muro de Berlim caiu também sobre essa transposição da mecânica clássica às ciências sociais, soterrando o determinismo histórico e, com ele, os paradigmas que davam uma aparente consistência à modernidade. Para salvar-nos das hipotéticas teorias do caos e do acaso, a formulação de novos paradigmas deve levar em conta dois parâmetros fundamentais, derivados da física quântica (que trata do microcosmo ou das partículas – quanta – existentes no interior do átomo): o princípio da indeterminação ou da incerteza, de Werner Heisenberg, e o princípio da complementaridade, de Niels Bohr (HEISENBERG, 1961).

A carteira de identidade química do átomo encontra-se no número de prótons contidos em seu núcleo. São eles que determinam a carga elétrica do núcleo que, por sua vez, fornece o número de elétrons em órbita em torno do núcleo. Um átomo simples de hidrogênio possui um único próton – que é também o seu núcleo – cercado por um elétron. Os átomos mais pesados possuem mais prótons e nêutrons, e também mais elétrons que coroam o núcleo.

Medir a localização e a trajetória de bilhões de partículas e, com os resultados, prever o movimento dos prótons, é física clássica. Heisenberg pretendeu demonstrar que jamais poderemos conhecer tudo sobre os movimentos de uma partícula. Mesmo conscientes de que em ciência todo resultado é provisório, não se pode deixar de admitir que o princípio da indeterminação revolucionou a visão que a física newtoniana tinha do mundo. Agora, a física quântica desafia a nossa lógica. Quando um fóton – que é um quantum – atinge um átomo e obriga o elétron a passar instantaneamente da órbita inferior à superior, o elétron, qual um acrobata, o faz sem atravessar o espaço intermediário. É o que se chama salto quântico que, além de desafio científico, é também um problema filosófico. É essa mesma incerteza quântica que explica a colisão de próton com próton no seio das estrelas – o que, à luz da física clássica, parece tão impossível quanto um boi voar (ZOHAR, 1991).

É mais fácil acreditar no boi voador que acolher sem interrogações a teoria quântica. O próprio Einstein, um dos pioneiros desta teoria e que formulou a hipótese do fóton como quantum de luz, chegou a afirmar que estava intimamente persuadido de que os físicos não poderiam se contentar por muito tempo com essa “descrição insuficiente da realidade”. Discordou da interpretação probabilística da mecânica quântica. Só que, em geral, a insuficiência não está na natureza, e sim em nossas cabeças, o que não significa que possamos alimentar a pretensão de penetrar todos os segredos da natureza. Moça pudica, ela preservará para sempre certos mistérios, como argumenta a Escola de Copenhague ao demonstrar que certos acessos não estão permitidos pela própria natureza (DAVIES, 1994).

Entretanto, quando Aristarco afirmou, dezessete séculos antes de Copérnico, que a Terra gira em torno do Sol, os gregos apelaram para o bom senso e convocaram os nossos sentidos como testemunhas fidedignas de que a Terra não se move, mesmo porque, se tal ocorresse, os habitantes de Atenas seriam atirados pela ventania em direção ao Leste, e os atletas de Olímpia dariam um salto maior que as pernas. Séculos depois, a mesma lógica foi aplicada, em vão, para tentar descartar as teorias de Copérnico e Galileu.

5 Realidades excludentes e, no entanto, complementares

A ruptura decisiva da física quântica com a física clássica ocorreu em 1927, quando Heisenberg estabeleceu o princípio da indeterminação – pode-se conhecer a posição exata de uma partícula – um elétron, por exemplo – ou a sua velocidade, mas não as duas coisas ao mesmo tempo (HEISENBERG, 1961).

Impossível saber, simultaneamente, onde um elétron se encontra e para onde ele se dirige. Pode-se saber onde ele se encontra, mas jamais captar, ao mesmo tempo, a sua velocidade. Pode-se medir sua trajetória, nunca sua localização exata.

Numa câmara úmida podemos observar a direção na qual um próton se move, até que ele passe pelo vapor d’água, quando sua desaceleração impedirá que saibamos onde se encontra. A alternativa é irradiar o próton, tomando uma foto dele, mas a luz ou qualquer outra radiação usada em fotografia o desviará de sua trajetória, de modo que jamais saberemos qual seria seu percurso se não tivesse sido incomodado pelo cientista-paparazzo.

Ao contrário do que supunha Einstein, Deus parece jogar dados com o Universo. As imutáveis e previsíveis leis da natureza em sua dimensão macroscópica não se aplicam à dimensão microscópica – eis a descoberta fundamental da física quântica.

Na esfera do infinitamente pequeno, segundo o princípio quântico da indeterminação, o valor de todas as quantidades mensuráveis – velocidade e posição, momento e energia, por exemplo – está sujeito a resultados que permanecem no limite da incerteza. Isso significa que jamais teremos pleno conhecimento do mundo subatômico, onde os eventos não são, como pensava Newton, determinados necessariamente pelas causas que os precedem. Todas as respostas que, naquela dimensão, a natureza nos fornece, estarão inelutavelmente comprometidas por nossas perguntas.

Essa limitação do conhecimento não estaria atualmente condicionada pelos recursos tecnológicos de que dispomos? Não se poderia criar, no futuro, um aparelho capaz de acompanhar o movimento do próton sem interferir na sua trajetória? A incerteza quântica não depende da qualidade técnica dos equipamentos utilizados na observação do mundo subatômico. Esta é uma limitação absoluta (CAPRA, 1996).

No mundo quântico, a natureza é, portanto, dual e dialógica. Dual, e não dualista, no sentido platônico, mas sim, como ressaltava o físico dinamarquês Niels Bohr, numa interação de complementaridade. Foi também em 1927 que Niels Bohr formulou o princípio da complementaridade. No interior do átomo, a matéria apresenta-se com aparente dualidade, ora comportando-se como partículas, que possuem trajetórias bem definidas, ora comportando-se como onda, interagindo sobre si mesma. Ela é ser e não ser, a ponto de os físicos tomarem emprestado conceitos da espiritualidade oriental para tentar definir os novos dados científicos (ZOHAR, 1991).

De fato, no mundo quântico onda e partícula não são excludentes, embora o sejam à luz de nossa linguagem que ainda não consegue se desprender dos parâmetros da física clássica. Ao estabelecer o princípio da complementaridade, Bohr articulou duas concepções que, à luz da física clássica, são contraditórias.

Bohr demonstrou que a noção de complementaridade pode ser aplicada a outras áreas do conhecimento, como a psicologia, que revela a complementaridade entre razão e emoção; a linguagem (entre o uso prático de uma palavra e sua definição etimológica); ética (entre justiça e compaixão) etc. Em suma, há mais conexões do que exclusões entre fenômenos que o racionalismo cartesiano pretende distintos e contraditórios. Eis o advento da holística! (BOHR, 1995).

Se um elétron se apresenta ora como onda, ora como partícula, energia e matéria, Yin e Yang, isso significa que cessa a autonomia do reino da objetividade: há uma interrelação entre observador e observado. Desmorona-se, assim, o dogma da imaculada concepção da neutralidade científica (JAPIASSU, 1975). A natureza responde às questões que levantamos. A consciência do observador influi na definição e, até mesmo, na existência do objeto observado. Entre os dois reina um único e mesmo sistema. Olho o olho que me olha.

Em 1926, em conversa com Heisenberg, Einstein disse-lhe: “Observar significa que construímos alguma conexão entre um fenômeno e a nossa concepção do fenômeno”. Assim, a física quântica afirma que não é possível separar cartesianamente, de um lado, a natureza e, de outro, a informação que se tem sobre ela. Em última instância, predomina a interação entre o observado e o observador. É dessa interação sujeito-objeto que trata o princípio da indeterminação. E, sobre ele, ergue-se a visão holística do Universo: há uma íntima e indestrutível conexão entre tudo o que existe – das estrelas ao sorvete saboreado por uma criança, dos neurônios de nosso cérebro aos neutrinos no interior do Sol. Meu eu é constituído pela mesma energia primordial do Tudo. Portanto, tudo que existe pré-existe, subsiste e coexiste (BRANDÃO, 1991).

6 Espiritualidade cósmica e holística

Para os Atos dos Apóstolos, “nele vivemos, nos movemos e existimos” (17,28). O Deus de Jesus é o mesmo Deus criador e libertador. A física quântica nos permite saber que, no interior do átomo, matéria é energia e energia é matéria. Como percebeu Teihard de Chardin, todo o Universo é expressão sensível de uma profunda densidade espiritual (CHARDIN, 1963).  Toda a matéria que tece o estofo da natureza não passa de energia condensada. Não se trata, pois, de ceder ao panteísmo e crer que todas as coisas são deuses. Melhor o panenteísmo, ou seja, Deus se manifesta em todas as coisas, conforme capta o olhar do místico.

Talvez haja uma única tristeza, a de não fazer do Amor a única religião. O que mais importa? Não há nada substancialmente importante além desse movimento ascendente engendrado no útero da natureza, lá onde o caos foi fecundado pela luz, capaz de congregar a matéria infinitesimal e agregá-la em quarks, elétrons, prótons, átomos, moléculas e células.

Essa emergência, tão bem celebrada por Teilhard de Chardin em seus textos, torna a natureza grávida de história, com seu ventre farto ofertando todas as formas possíveis de vida, e confirmando a intuição primordial de que todo o Universo não busca outra coisa além do Amor (CHARDIN, 1962).

Não faz diferença se o movimento parte da mônada que estremece em contato com a água ou da mulher que geme sob o corpo rígido do amado. Há, em todo esse percurso, uma sede insaciável de fusão, de comunhão, que nos faz sentir uma compulsiva atração pela beleza, pela unidade, por tudo isso que nos devolve a harmonia interior e exterior.

No entanto, o Amor sempre nos escapa, como se quiséssemos segurar com as mãos a água nutriente da fonte. E, ao escapar, abre fissuras em nosso ser e em nossa convivência social. A nostalgia do Amor gera desilusão e, com ela, esta forma atenuada de desespero que consiste em querer institucionalizar a fluidez encantadora da vida. Já que não podemos voar e nem sabemos apreciar o voo livre dos pássaros, fabricamos gaiolas. Elas contêm pássaros, mas nos impedem de apreciar a beleza do voo (CARDENAL, 1989).

Assim ocorre nas relações contaminadas pela rotina, onde o dever substitui o prazer e o beijo é sempre despedida, nunca encontro. Ou nas Igrejas que acreditam aprisionar nos sacrários a força revolucionária da presença de Jesus. Ora, a pujante ascendência da vida rompe necessariamente todos os limites impostos pela razão implacável, indócil frente à impossibilidade de produzir, dentro da gaiola, a curva sincronizada do voo que risca de infinito o horizonte.

O rosto da criança nunca corresponde ao sonho dos pais e não há dois pães, feitos pelas mesmas mãos, com igual sabor. No ato verdadeiramente criativo há um ponto de ruptura com o projeto inicial: é quando jorra e se expande o que há de divino em cada criador, não importa se a luz branca que envolve de silente sossego o restaurante La Sirene, no traço de Van Gogh, ou o feto que adquire forma no ventre materno.

É esse salto que tanto assusta a razão institucionalizada (COX, 1974).

Podemos aplicar tais princípios à história das religiões. Outrora, não se tinha consciência da interação entre os fenômenos da natureza. O mundo era uma realidade fragmentada. A luz do dia se opunha às trevas da noite, assim como tempestades e relâmpagos, terremotos e vulcões eram tidos como manifestações da ira dos deuses. Princípios antagônicos regiam a morada dos vivos. Esse aparente antagonismo entre forças contrárias da natureza criou o caldo de cultura favorável ao politeísmo e à multiplicidade de divindades gregas.

A fé monoteísta de Abraão corresponde a uma nova visão do Universo. Fecha-se o leque. Agora, tudo depende de um princípio único – Javé. É ele o criador de todas as coisas que, através de sua palavra, surgem na sucessão paradigmática dos sete dias da Criação. Na cultura semita, 7 significa “muitos”, como o símbolo matemático ∞ significa “infinito”. Por isso os nossos pecados serão perdoados “setenta vezes sete…” O relato do Gênesis preconiza a evolução da natureza que a ciência constataria muitos séculos depois (HAWKING, 1988).

Embora a crença em um Deus único e criador nos induza a perceber a correlação entre todas as coisas criadas, a razão instrumental abriu uma cisão entre a natureza e o ser humano. Ao contrário dos povos indígenas ainda tribalizados, não vemos a natureza como sujeito, mas como objeto. A Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, simboliza esse distanciamento do ser humano em relação à natureza. Nas pinturas medievais, as figuras humanas aparecem inseridas na paisagem. Súbito, vemos um rosto de mulher, o da Mona Lisa, retratada por Leonardo da Vinci, sem que sequer apareça o resto do corpo. Inicia-se o processo que desembocaria no Cogito ergo sum de Descartes, que rompe os vínculos que unem mundo interior e mundo exterior. Fora da razão, capaz de desvendar o mundo exterior sem apoiar-se em superstições e crendices, não há salvação, proclamaram os pais da modernidade.

7 Uma visão holística do real, onde diferença não coincide com divergência

Para Descartes, o mundo era uma máquina, da qual os seres humanos são mestres e proprietários. A física de Newton permitirá o conhecimento científico dessa máquina, basta desmontá-la em suas partes constituintes. Francis Bacon dirá que devemos “arrancar pela tortura os segredos da natureza” (1653). Assim, a ruptura entre um dado da natureza – o ser humano – e o conjunto da Criação, fez com que se perdesse a apreensão qualitativa da natureza, prevalecendo sua dimensão quantitativa, mensurável (WEBER, 1991). Deus tornou-se um fabricante de máquinas. O Relojoeiro Invisível de Newton, capaz de dotar o Universo de leis tão lógicas quanto o mundo de sociedades tão perfeitas como, supostamente, a instituição eclesiástica…

Para o princípio da indeterminação – que supõe o da complementaridade – há uma intrínseca conexão entre consciência e realidade. Assim como se chega à plenitude espiritual também pela abstinência, renunciando ao império dos sentidos, não é possível entender a teoria quântica sem abdicar do conceito tradicional de matéria como algo sólido e palpável.

Nos umbrais desse novo paradigma – que um dia também será velho – devemos deixar para trás ideias que, no decorrer de gerações, foram tidas como universais e imutáveis.

Segundo os pais da teoria quântica, Heisenberg e Bohr, na esfera subatômica, conceitos sensatos como distância e tempo, e a divisão entre consciência e realidade, deixam de existir. De modo que os cientistas são obrigados a abrir mão da simetria que tanto os seduz para se dobrarem à imposição da natureza, pois quem governa o átomo não é a mecânica newtoniana, mas a mecânica quântica.

Na esfera do infinitamente pequeno, a ciência é obrigada a ingressar no imprevisível e obscuro reino das probabilidades. O princípio da indeterminação revoluciona nossa percepção da natureza e da história. E nos faz tomar consciência de que, na natureza, a incerteza quântica não se faz presente apenas nas partículas subatômicas. Bilhões de anos após a predominância quântica no alvorecer do Universo, um estranho e inteligente fenômeno despontaria dotado de imprevisibilidade inerente a seu livre-arbítrio: os seres humanos (CHARDIN, 1955).

8 Resgate quântico do sujeito histórico

O princípio da indeterminação aplica-se também à história. A liberdade humana é um reduto quântico. Muitas vezes observamos pessoas que poderíamos qualificar de “partículas”, como os políticos, e outras que mais parecem “ondas”, como os artistas. Em cada um de nós essa dimensão dual também se manifesta, sobrepondo-se, como análise e intuição, razão e coração, inteligência e fé. Uma expressão humana tipicamente quântica é o jazz, onde cada músico improvisa dentro das leis da harmonia, interpretando com o seu instrumento a sua própria melodia. Não se pode prever exatamente a intensidade e o ritmo de cada improviso e, no entanto, o resultado é sempre harmônico.

Não há leis ou cálculos que prevejam o que fará um ser humano, ainda que seja um escravo. Lá no núcleo central de nossa liberdade – a consciência – ninguém pode penetrar. Nem mesmo à aceitação da verdade o ser humano pode ser obrigado. Tomás de Aquino, que nada entendia de física quântica, mas muito sabia da condição humana, chega a afirmar que é “ilícito até mesmo o ato de fé em Cristo feito por quem, por absurdo, estivesse convencido de agir mal ao fazê-lo” (LIMA VAZ, 1999).

O resgate da liberdade humana pela ótica quântica e, por conseguinte, o abandono dos velhos esquemas deterministas, reinstaura o ser humano como sujeito histórico, superando toda tentativa de atomização e realçando a sua inter-relação com a natureza e com os seus semelhantes. Essa visão holística descarta também as tentativas de encarcerar o indivíduo em um mundo sem história, ideais e utopias, restrito aos meios de sobrevivência e submisso às implacáveis leis do mercado.

Toda síntese incomoda a quem se situa num dos extremos. A reintrodução da subjetividade na esfera da ciência mexe com bloqueios emocionais arvorados em profundas raízes históricas. Em nome da fé – uma experiência subjetiva – inúmeros cientistas, taxados de hereges ou bruxos, foram condenados à fogueira da Inquisição. Em pleno Renascimento, Giordano Bruno morreu queimado e Galileu viu-se obrigado a retratar-se. Com o Iluminismo, no século XVIII, os cientistas assumiram a hegemonia do saber e o controle das universidades, identificando criatividade e liberdade com objetividade, e relegando à subjetividade tudo que parecesse irracionalidade e intolerância (EINSTEIN, 1981).

Na prática, ainda estamos longe do resgate da unidade. No Ocidente, as universidades continuam fechadas a métodos de conhecimento e vivência simbólica como a intuição, a premonição, a astrologia, o tarô, o I Ching e, no caso da América Latina, às religiões e aos ritos e mitos de origem indígena e africana. Tais “superstições” são ignoradas pelos currículos acadêmicos, embora haja teólogos que leem as mãos e frequentam terreiros e mães-de-santo, bem como professores e alunos que consultam o I Ching, as cartas do Zodíaco e os búzios.

Por sua vez, nas escolas de formação religiosa ou teológica ainda não há espaço para a atualização científica, nem se olha o céu pelas lentes da astronomia ou a intimidade da matéria pelas equações quânticas. A pluridisciplinaridade, rumo à epistemologia holística, permanece como desafio e meta. Porém, há razões para otimismo quando se constata a abertura cada vez maior da cartesiana medicina ocidental à acupuntura e o interesse de renomados cientistas pela sabedoria contida nas culturas da Índia e da China. E há razões para júbilo quando se lê na encíclica socioambiental Laudato Si, do papa Francisco, que “todo o Universo material é uma linguagem do amor de Deus, de seu ilimitado carinho para conosco. O Sol, a água, as montanhas, tudo é carícia de Deus” (LS 84).

A teologia ensina que há três fontes de revelação divina: a Bíblia, o magistério e a tradição da Igreja. O papa Francisco ousa incluir uma quarta, a natureza: “Junto à Revelação propriamente dita, contida na Sagrada Escritura, ocorre uma manifestação divina quando brilha o sol e quando cai a noite” (LS 85).

Na política fala-se cada vez mais em ética e, nas religiões, recupera-se a dimensão mística. A ecologia reumaniza a relação entre os seres humanos e a natureza, e as comunicações reduzem o mundo a uma aldeia global. Resta enfrentar o grande desafio de fazer com que o capital – na forma de dinheiro, tecnologia e saber – esteja a serviço da felicidade humana, rompendo as barreiras das discriminações raciais, sociais, étnicas e religiosas. Então, reencontraremos as veredas que conduzem ao jardim do Éden.

9 A era da mística    

André Malraux sugeriu que o século XXI seria a era da mística. O teólogo Karl Rahner previu que o homem do futuro será místico, alguém que experimenta algo, ou não poderá ser religioso. Como dizia Newman, uma fé passiva, de herança familiar, corre o risco de desembocar, nas pessoas cultas, em indiferença; nas pessoas simples, em superstição.

Deus se comunica conosco através das fontes de sua revelação e de seu Espírito. Nós nos comunicamos com Deus mediante os sacramentos, a oração, a abertura à sua graça. Isso é religiosidade. Uma comunicação intensa transforma-se em comunhão. Isso é mística.

Deus é, na experiência fundante de Elias, uma brisa suave (1 Rs 19,10-15). Para Jesus, o Espírito divino é como o vento que sopra onde quer; ouvimos o seu ruído, mas ninguém sabe de onde ele vem nem para onde ele vai (Jo 3,8).

Espiritualidade é fazer a experiência desse Ser. Portanto, a espiritualidade exige algo mais do que a adesão da inteligência às verdades reveladas. Exige abertura ao Transcendente e, nas relações pessoais, prática do amor, inclusive ao inimigo (Mt 5,43-44); e, nas relações sociais, partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano. Raiz e fruto não podem estar separados.

A tradição religiosa oferece-nos um vasto leque de espiritualidades: hinduísta, judaica, cristã, islâmica; e, dentro do cristianismo, católica, ortodoxa, protestante; e, dentro do catolicismo, beneditina, franciscana, dominicana, jesuítica, carmelitana, vicentina etc. O que identifica essas diversas espiritualidades é abrir aos seres humanos a possibilidade de transformarem o coração de pedra em coração de carne, livrarem-se de medos e egoísmos, tornarem-se melhores, mais compassivos e solidários, despojados dos apegos e das ilusões que dificultam uma existência marcada pela prevalência do espiritual. Por sua vez, o que caracteriza a espiritualidade cristã é tudo isso centrado no seguimento de Jesus (BETTO, 2015).

Ao entrar em uma livraria católica, encontramos uma seção de espiritualidade. Ali, estampas exibem fotos de montanhas ao alvorecer, lagos paradisíacos, bosques outonais cobertos de folhas e atravessados por raios dourados do Sol. Assim também costumam ser as capas dos livros de espiritualidade cristã. O que aquelas imagens sugerem é que estaremos tanto mais próximos de Deus quanto mais distantes do mundo.

Ao observar aquelas fotos, penso nos trabalhadores e desempregados que durante anos assessorei na Pastoral Operária do ABC paulista. A considerar as tribulações de suas vidas, sempre ameaçadas pela pobreza, só presenteando-os com uma passagem à Suíça para que possam se aproximar de Deus…

Felizmente, aquelas sugestões monásticas pouco têm a ver com o paradigma da espiritualidade cristã: Jesus de Nazaré. O que o Evangelho nos comunica está mais próximo das fotos de Sebastião Salgado. Jesus é aquele que viveu a espiritualidade do conflito. A conflitividade marcou toda a sua existência, da fase pré-natal, devido à desconfiança de adultério de Maria, à morte como maldito na cruz. Portanto, enganam-se os que buscam uma espiritualidade desencarnada em nome do Verbo encarnado.

As pautas da espiritualidade de Jesus estão muito bem demarcadas no Sermão da Montanha, em especial nas Bem-Aventuranças, no capítulo 25 de Mateus, e nos capítulos 13 a 17 de João. Dois aspectos as caracterizam: a abertura àqueles que necessitam dos dons imprescindíveis à vida, e a intimidade com Deus, sobretudo em momentos especialmente reservados para orar a sós (Lucas 6,12; 9,18). Jesus deixa-se permanentemente desinstalar pelo próximo e pelo Pai. O Espírito de Deus não cabe nos limites geométricos de nossos apegos e projetos, já que, no caminho que conduz de Jerusalém a Jericó, há sempre alguém que requer a nossa mudança de rota.

Todos os pedidos que Jesus ouve se resumem a dois: “Senhor, o que devo fazer para merecer a vida eterna?” Esta primeira indagação jamais sai da boca de um pobre. É o que perguntam aqueles que já têm assegurada a vida terrena – Nicodemos, Zaqueu, o homem rico e o doutor da lei na parábola do Bom Samaritano. A esses Jesus responde com desagrado e ironia.

O segundo pedido é o que brota da boca dos pobres: Senhor, minha mão está seca e preciso trabalhar; minha filha agoniza e a quero viva; meu servo está enfermo e quero vê-lo com saúde; meu olho está cego e desejo enxergar etc. A esses, que pedem vida nesta vida, Jesus responde com compaixão e carinho. Porque ele veio “para que todos tenham vida e vida em plenitude” (Jo 10,10).

10 Espiritualidade na pós-modernidade

Nós, homens e mulheres da modernidade, somos filhos de pais separados: a cultura semita, não dualista, e a cultura grega, dualista, cujo casamento foi abençoado por Santo Agostinho. A leitura da Bíblia pelos óculos gregos favoreceu uma espiritualidade onde a adesão a um catálogo de verdades predominava sobre a conversio cordis e a conversio morum: mudança de valores, hábitos e atitudes.

Platão havia situado as ideias em um mundo à parte, avesso à nossa sensibilidade. Aristóteles teve o mérito de encarná-las no coração da matéria. Não há ideias senão pela porta dos sentidos. Ora, não haveria algo de platônico numa espiritualidade que pretende prescindir dos sentidos? A ascética medieval, influenciada por Plotino, criou o antagonismo entre Céu e Terra, sobrenatural e natural, corpo e espírito e, em consequência, Igreja e mundo. O racionalismo moderno delimitou campos entre o profano e o sagrado, a religião e a política, a Igreja e o Estado. A Deus o que é de Deus, e a César o que é de César…

A pós-modernidade faz a experiência religiosa desbordar dos limites das instituições religiosas e irromper nos meios científicos e políticos. O mundo se reencanta, suprimindo as mediações entre o humano e o sagrado. Físicos buscam ávidos o que há na mente de Deus, e políticos, como Gandhi, Luther King e Mandela, extraem de suas experiências e convicções religiosas a ética que norteia suas atividades políticas.

Como o jogo de busca de Wally, hoje ninguém mais dá ouvidos ao anúncio de Nietzsche, de que Deus está morto, e todos perguntam: Onde está Deus? (BETTO, 2013).

Há uma multiplicidade de respostas. A Nova Era apressa-se a sugerir movimentos religiosos sem Igrejas, sem mandamentos, sem Deus, bem adequados ao individualismo que marca a sociedade atual. Haveria uma espécie de conspiração universal, cósmica, que faz convergir energias positivas através da ioga, da meditação transcendental, da medicina alternativa, da alimentação macrobiótica. A relação entre os seres humanos e a natureza deixa de ser conflitiva; a serenidade favorece o amor; a paz interior torna-se o bem maior.

Tudo isso é bom, desde que não se caia na cilada do sistema de dominação, que visa isolar em ilhas de utopias aquelas energias que poderiam convergir para transformá-lo. Modifico meus hábitos, mas não transformo o mundo. Salvo as baleias, mas não me empenho em libertar da fome as crianças da África subsaariana. Busco a minha serenidade, sem ameaçar as estruturas sociais que perpetuam desigualdades e engendram violência.

O sistema não é indiferente a tais manifestações. Por isso, procura cooptá-las. O consumismo ergue shopping-centers com linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; transfere os ícones para os objetos de consumo; faz do mercado um templo; e os índices da Bolsa e as oscilações do dólar tornam-se os oráculos que decidem a nossa salvação ou perdição.

Na falta de utopias e alternativas históricas, é a experiência religiosa que imprime sentido à vida das pessoas. Ainda que essa experiência venha invertidamente contida no valor agregado a uma mercadoria: o carro que me torna mais importante; a roupa de griffe que me faz mais notável; os hábitos de consumo que me introduzem no estreito círculo dos que, em vida, são canonizados pelo status que desfrutam.

A religião, hoje, tem que ser uma eleição do sujeito, o que implica certa experiência. Já não se nasce religioso. Adere-se a uma das propostas do mercado da credulidade. Adota-se um estilo de religiosidade deliberadamente sincretista, com elementos oriundos de múltiplas tradições. Converte-se a comunidades capazes de configurar entre si seus sistemas de crenças, práticas, atitudes e ritos, que se constituem no corpo de mediações de cada religião. A era da subjetividade desloca o centro da religião para a experiência pessoal – o que exige o fator místico, como personalização da experiência religiosa.

O desafio, agora, é resgatar a dimensão cósmica e histórica da revelação judaico-cristã e romper o dualismo entre Marta e Maria. Nosso Deus não é um deus qualquer. Tem marca histórica, currículo, é o “Deus de Abraão, Isaac e Jacó”. É o Deus de Jesus e dos apóstolos. É o Deus criador. Por sua vez, a ação tem que surgir da contemplação e a contemplação abastecer a ação. “Marta e Maria devem estar juntas para hospedar o Senhor…” (Teresa de Ávila, Moradas 4, 12).

Temos que aprender com os místicos a relativizar as mediações que nos conduzem à união com Deus. O templo não é melhor do que a rua; a vida religiosa não é melhor que a profana; a liturgia não é melhor que o trabalho; o bosque banhado pelo alvorecer não é melhor do que as fábricas do ABC paulista. O encontro com Deus não se faz por arroubos ou emoções piedosas. Faz-se pelo caminho do samaritano, quando damos de comer ao faminto e de beber ao sedento. Dá-se pelo sentido histórico que nos conduz ao lá na frente – o Reino de Deus.

11 Diafania

Identificar o ideal de vida cristã com a figura tradicional do místico, do anacoreta, do monge, é propor ao povo de Deus uma dedicação ao universo religioso e uma radicalidade ascética incompatível com a vida atual, a família, a profissão. É cindir a vida cristã entre um pequeno grupo de seletos chamados à perfeição e os demais, obrigados a contentarem-se com uma vida medíocre. Rahner falava em “mística da cotidianidade” e “experiência intensa da Transcendência”. J.B. Metz enfatiza a “mística dos olhos abertos”. Levinas ressaltava o caráter ético da espiritualidade ao afirmar que “a voz de Deus é o rosto do próximo” (RAHNER, 1969).

Temos, pois, que aprender com Jesus a conciliar a proclamação do Reino em meio à multidão e os momentos de intimidade solitária com o Pai. Oração e ação como faces da mesma moeda. Assim, se formos capazes de reconhecer o caráter sacramental da natureza e encontrar o tesouro escondido na face daquele que se identificou com os condenados da Terra (Mt 25,31), então teremos encontrado a Água Viva que brota de nosso próprio poço (BETTO, 2019).

Tudo o que está dito acima me parece resumido neste texto de A missa sobre o mundo, que Teilhard de Chardin escreveu na China, em 1923, no deserto de Ordos:

“Cristo glorioso, influência secretamente difusa no seio da Matéria e Centro deslumbrante em que se ligam todas as fibras inúmeras do Múltiplo; Potência implacável como o Mundo e quente como a Vida; Vós que tendes a fronte de neve, os olhos de fogo, os pés mais irradiantes que o ouro em fusão; Vós cujas mãos aprisionam as estrelas; Vós que sois o primeiro e o último, o vivo, o morto e o ressuscitado; Vós que reunis em vossa unidade todos os encantos, todos os gostos, todas as forças, todos os estados: é por Vós que meu ser chama com um desejo mais vasto do que o Universo – Vós sois verdadeiramente meu Senhor e meu Deus!”

“Senhor, encerrai-me no mais profundo das entranhas de vosso Coração. E, quando aí me tiverdes, abrasai-me, purificai-me, inflamai-me, sublimai-me, até a satisfação perfeita de vossos gostos, até a mais completa aniquilação de mim mesmo.”

“Toda minha alegria e meu êxito, toda a minha razão de ser e meu gosto de viver, meu Deus, estão suspensos a essa visão fundamental de vossa conjunção com o Universo. Que outros anunciem os esplendores de vosso puro Espírito! Para mim, dominado por uma vocação que penetra até ás últimas fibras de minha natureza, eu não quero, não posso dizer outra coisa que os inúmeros prolongamentos de vosso Ser encarnado através da matéria – jamais poderia pregar senão o mistério de vossa Carne, ó Alma que transpareceis em tudo o que nos rodeia!”

“Ao vosso corpo em toda a sua extensão, ao Mundo tornado por vosso poder e por minha fé o crisol magnífico e vivo em que tudo aparece para renascer, eu me entrego para dele viver e dele morrer, ó Jesus!” (CHARDIN, 1994).

Muitos séculos antes de Teilhard de Chardin, o apóstolo Paulo nos assegurou:

A própria natureza criada será libertada do cativeiro da degeneração em que se encontra, recebendo a gloriosa liberdade outorgada aos filhos de Deus. Sabemos que toda a Criação geme e sofre como que dores de parto até o presente dia. E não somente ela, mas igualmente nós, que temos os primeiros frutos do Espírito, também gememos em nosso íntimo, esperando, com ansiosa expectativa, por nossa adoção como filhos, e a redenção do nosso corpo.” (Rm 8, 21-23).

Frei Betto é(Carlos Alberto Libanio Christo) frade dominicano e escritor, assessor de movimentos pastorais e sociais. Texto original português.

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