Cânon da sagrada escritura

Sumário

Introdução

1 Etimologia, definição e pressupostos

2 O cânon do Antigo Testamento

2.1 Cânon do Antigo Testamento antes do evento Cristo

2.2 Após o evento Cristo por judeus não cristãos

2.3 Após o evento Cristo por cristãos

3 O cânon do Novo Testamento

3.1 Reconhecimento dos escritos cristãos como sagrados

3.2 A evolução das listas de textos sagrados cristãos

Conclusão

Referências

Introdução

O cânon da Escritura é um tema tradicionalmente abordado pela Teologia Fundamental e compõe assunto clássico desse tratado teológico. Sua abordagem pressupõe a do verbete Inspiração e inerrância. De fato, o estudo do cânon vincula-se ao estudo do conceito teológico de inspiração. Cronologicamente a inspiração da Escritura veio antes da elaboração do cânon bíblico, que está, portanto, vinculado à inspiração dos livros por ele reconhecidos (O’COLLINS, 1991, p.292). Encontram-se no cânon aqueles escritos que tiveram Deus como autor, isto é, que foram divinamente inspirados (GIBERT; THEOBALD, 2007, p.39). Estão fora dele aqueles escritos que, apesar de seu valor espiritual ou histórico, não são inspirados, não tiveram Deus como autor.

Após análise da etimologia da palavra “cânon”, de sua definição como conceito teológico e da explicitação de seus pressupostos, será estudado o cânon bíblico do Antigo e do Novo Testamento.

1 Etimologia, definição e pressupostos

A Sagrada Escritura foi redigida por inúmeros autores humanos ao longo da história do antigo Israel até o século I depois de Cristo. Tais autores compuseram livros que, embora constituam a única Sagrada Escritura, eram distinguidos entre si já na época da origem de cada um. Os diversos livros foram sendo acolhidos como referência de fé por comunidades de crentes seja no antigo Israel, seja no cristianismo. Isso deu-se primeiramente pelo uso, especialmente em âmbito litúrgico. Só posteriormente o acolhimento passou a ser expresso mediante a elaboração formal de listas de escritos. A palavra grega para designar uma lista de escritos desse tipo é κανών (kanón) na sua acepção derivada que significa “regra” ou “norma”. Em sentido próprio, tal termo designava uma vara-padrão utilizada por um pedreiro ou carpinteiro para medir espaços. Trata-se de um vocábulo próximo e relacionado a outro termo grego antigo, κάννα (kánna), que significava “junco”. Na origem remota desse vocábulo está o idioma sumério, que entraria em línguas semíticas com a raiz Qnh (PERANI, 2000, p.390), a qual nessa forma haveria de influenciar línguas como o acádio, o ugarítico, o antigo hebraico e o árabe (BROWN; COLLINS, 1990, p.1035). Em nossa língua, por transliteração, existem com o mesmo sentido as formas “cânon” e “cânone”.

Em Teologia, o cânon é a lista completa dos livros que compõem a Bíblia e que constituem “regra” ou “norma” para a fé. Os escritos sagrados, tanto os que foram produzidos no tempo dos apóstolos como os que eles receberam de sua herança judaica, compõem uma lista que se encontra fechada e que foi formalizada posteriormente no tempo dos apóstolos. A lista completa dos livros é também um reconhecimento de que os demais escritos que ali não se encontram não possuem autoria divina. Por terem neles reconhecida a exclusiva origem divina, os Escritos Sagrados servem aos fiéis de maneira inigualável como guia e instrução no encontro com Jesus Cristo vivo que é a Palavra – Verbum – por excelência de Deus e que dialoga – real e não simbolicamente – com os fiéis de cada geração cristã. Por isso a lista desses livros é “regra” e “norma” para a fé. Os livros que se encontram no cânon da Sagrada Escritura têm para a fé e a vida das pessoas uma autoridade exigente a ser reconhecida de modo definitivo (CAMPENHAUSEN, 1971, p.6).

O primeiro pressuposto do cânon da Escritura é a revelação divina. Tal elemento constitui fundamento hermenêutico no acesso feito pela comunidade de fé aos livros que estão no cânon (AUWERS; DE JONGE, 2003, p.lxxxi). A existência do cânon tem como pressuposto a recepção, por parte da comunidade de fé, daquele processo personalista da revelação do “Alguém” divino verificado em Israel, tendo Cristo como ápice, processo esse que, como evento vivo, transcende e está além do “algo” que é a Bíblia. A adoção, feita com tal pressuposto, de uma determinada lista de livros como medida-padrão foi resultado da consciência, por parte da comunidade de fé, do vivo processo revelativo no qual Deus revelava sobretudo a si mesmo ao longo da história do antigo Israel e que atingiu a máxima profundidade possível no evento de Jesus Cristo.

O cânon, a lista completa de livros que compõem a Sagrada Escritura, não aparece no conteúdo de nenhum dos livros da Bíblia. Por isso, o segundo pressuposto do cânon é a autoridade revelativa extrabíblica que o estabeleceu. A decisão que reconheceu a lista de livros inspirados não é ela mesma garantida pelo carisma da inspiração bíblica (GIBERT; THEOBALD, 2007, p.50).

A elaboração de um cânon com esse sério reconhecimento de fé representou historicamente um processo complexo, cuja consideração fica facilitada ao se examinarem separadamente os processos de reconhecimento das duas grandes partes da Bíblia: Antigo e Novo Testamento.

2 O cânon do Antigo Testamento

A Igreja católica romana e várias Igrejas ortodoxas reconhecem o cânon do Antigo Testamento com 46 livros. As Igrejas reformadas e o judaísmo o aceitam uma versão encurtada de 39 livros, nesse caso dispostos em sequências diferentes e também agrupados diferentemente. A diferença de sete obras entre o cânon de 46 livros e o de 39 verifica-se pelo reconhecimento ou rejeição como textos inspirados dos livros de Tobias, Judite, 1 Macabeus, 2 Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico (Sirácida) e Baruc, mais partes dos livros de Daniel (Dn 3,24-90; 13-14) e de Ester. Nesse último, tal parte reconhecida ou rejeitada corresponde, segundo a numeração da Vulgata, a Est 10,4-16,24. Contudo na numeração da Nova Vulgata essa parte aparece fracionada como: Est 1,1a-1k; 3,13a-13h; 3,15a-15i; 4,17a-17kk; 5,2a-2p; 8,12a-12cc; 9,19a; 10,3a-3k. Os sete livros em questão, mais essas partes dos livros de Daniel e Ester, são denominados pelos católicos de deuterocanônicos e pelos protestantes de apócrifos.

Uma tese clássica para explicar a diferença entre o cânon de 46 livros e o de 39 foi lançada por Herbert Ryle em 1892 na obra The Canon of the Old Testament. Segundo Ryle, no final do século I dC já existiriam no judaísmo duas listas oficiais de livros sagrados. A primeira, o cânon veterotestamentário de 46 livros, seria pré-cristã do século II aC. Tratar-se-ia do cânon de Alexandria, que se encontra na Bíblia dos Setenta ou Septuaginta. A segunda, o cânon veterotestamentário de 39 livros, só teria sido fechada por judeus não cristãos após o evento de Jesus Cristo. Tratar-se-ia do cânon palestinense, com apenas livros em hebraico, estabelecido por rabinos na cidade de Jâmnia após a destruição do Templo de Jerusalém em 70 dC. Praticamente todos os detalhes da tese de Ryle foram submetidos a sérias críticas e modificações (BROWN; COLLINS, 1990, p.1037). O estudo mais acurado da formação do cânon do Antigo Testamento reparte-se em três fases: 1) antes do evento Cristo; 2) após Cristo, mas fora da fé cristã; 3) por cristãos.

2.1 O cânon do Antigo Testamento antes do evento Cristo

Já antes de Jesus Cristo houve esforços por parte do povo hebreu em estabelecer alguma coleção de escritos denominada Sagrada Escritura. A mais antiga definição de um cânon é fornecida pelo antigo tradutor grego do Eclesiástico (Sirácida), originalmente redigido em hebraico (MANNUCCI, 1983, p.191). Em 130 aC, aquele venerando tradutor menciona por três vezes no prólogo do livro os três grupos ou categorias da divisão canônica da Bíblia hebraica: “a Lei, os Profetas e os outros Escritos”, ou ainda na forma “Lei, Profetas e os outros livros” (Eclo, prólogo). Conhecia-se então essa divisão tripartite sem, contudo, que as três categorias já se encontrassem fechadas quanto ao elenco das obras que as compunham (SCHNIEDEWIND, 2011, p.260).

O primeiro grupo era a Lei (Torá) ou Pentateuco, que estava definida pelo menos desde o tempo de Esdras (Esd 7,25-26), por volta de 420 ou 400 aC, embora em grande parte já se encontrasse redigida antes do exílio na Babilônia em 597 aC (BROWN; COLLINS, 1990, p.1037). O estudo dos manuscritos antigos mostra que tais textos da Bíblia hebraica em uso no período do Segundo Templo de Jerusalém (entre 520 aC e 70 dC) nem sempre são absolutamente idênticos ao posterior texto massorético, havendo por vezes proximidade maior com o texto grego da Bíblia dos Setenta e com o Pentateuco samaritano.

O segundo grupo era aquele que o tradutor grego do Eclesiástico chama de “Profetas” (Nebi’im). Essa categoria inclui o que o judaísmo designa de “profetas anteriores” e os modernos chamam de “obra deuteronomista de história”: os livros de Josué, Juízes, 1-2 Samuel e 1-2 Reis (MANNUCCI, 1983, p.191). Trata-se de uma coleção de natureza pré-exílica. Nos Nebi’im incluía-se também aquilo que o judaísmo designa de “profetas posteriores”: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os “Doze profetas”. Esses últimos englobam aquilo que os cristãos designam de “profetas menores” com a exceção de Baruc. Os “Profetas” como um todo, compostos pelos textos como hoje conhecemos, compunham um cânon bem assente pelo menos desde o tempo em que o original hebraico do livro do Eclesiástico (não o prólogo grego escrito posteriormente pelo tradutor) foi redigido, por volta de 180 aC (BROWN; COLLINS, 1990, p.1037).

O terceiro grupo era aquele dos “Escritos” (Ketubim). Essa categoria refere-se a um conjunto cujo conteúdo na época pré-cristã é difícil de definir com exatidão, e é a que causa mais celeumas no que diz respeito à sua fixação (MANNUCCI, 1983, p.191). A tese clássica de Herbert Ryle, proposta em 1892, sustentava que a tradução grega denominada Bíblia dos Setenta refletiria um cânon judaico alexandrino mais longo, estabelecido antes do evento de Jesus Cristo. Segundo Ryle, esse cânon alexandrino compreenderia os livros deuterocanônicos junto com os “Escritos”  pouco tempo e se a lista original de seus livros estivesse disponível. Contudo a tese de Ryle precisa ser alterada devido ao longo tempo requerido para a tradução da Septuaginta, somado ao fato que a relação exata dos livros que a compunham na época pré-cristã não pode ser determinada com exatidão (MANNUCCI, 1983, p.192). A imprecisão das referências aos “Escritos” no judaísmo até mesmo no século I dC é um sinal a mais de que, nesse âmbito, o cânon dos “Escritos” não estava definido com rigor antes do evento de Jesus Cristo (BROWN; COLLINS, 1990, p.1039).

2.2 Após o evento Cristo por judeus não cristãos

Após o evento de Jesus Cristo, judeus não cristãos continuaram a organizar a coleção de textos sagrados. Especialistas sugerem que a hostilidade aos cristãos teria representado estímulo a esse trabalho de definição do cânon judaico após Cristo. Outros sugerem que o impulso para a definição teria provindo das disputas internas no judaísmo entre fariseus e seitas judaicas de tendência apocalíptica como a de Qumran (BROWN; COLLINS, 1990, p.1040).

A descoberta dos manuscritos do Mar Morto a partir de 1947 permitiu lançar um olhar acurado à situação do cânon do Antigo Testamento por volta do ano 70 dC, quando aqueles manuscritos foram ali escondidos. “A biblioteca de Qumran dá a impressão de uma certa seletividade, mas dificilmente de uma precisa distinção entre um cânon fechado e os demais textos” (BROWN; COLLINS, 1990, p.1041). Encontram-se em Qumran tanto a Lei como os Profetas e os Escritos, faltando o livro de Ester. Há inúmeros livros extracanônicos. Dos deuterocanônicos estão presentes parte de Baruc, assim como Tobias e Eclesiástico. Sobre esse último, foi ainda descoberto em 1964 nas ruínas da fortaleza de Massada um rolo em hebraico, o que indica sua grande importância para aqueles judeus (MANNUCCI, 1983, p.194).

No final do século I dC, o historiador Flávio Josefo manifestava que os judeus da época possuíam livros sagrados tidos como tal devido a sua origem divina (BROWN; COLLINS, 1990, p.1039). Josefo é testemunho de que, nessa altura, havia um cânon judaico acolhido com veneração, mas que este ainda não se encontrava definido com absoluta precisão (MANNUCCI, 1983, p.193).

A afirmação da tese clássica de Herbert Ryle de que um cânon judaico palestinense mais curto (correspondente ao atual cânon de 39 livros) teria sido fixado por rabinos em Jâmnia após 70 dC também precisa ser alterada. Em Jâmnia funcionou de fato uma escola destinada ao estudo da Torá, e ali rabinos tinham funções diretivas dentro da comunidade judaica. Contudo não aconteceu ali um sínodo de rabinos, um “concílio de Jâmnia” (THEOBALD, 1990, p.140). Tampouco há evidências de que tenha sido ali elaborada uma lista de livros sagrados (MANNUCCI, 1983, p.195). A posição atualmente mais segura é a de que, até o final do século II dC, em âmbito judaico, não foi estabelecido nenhum cânon equivalente aos 39 livros do atual cânon veterotestamentário abreviado e que excluísse escritos em grego (BROWN; COLLINS, 1990, p.1040). Além do mais, a hipótese da origem grega dos deuterocanônicos ficou comprometida ao se demonstrar que parte relevante deles havia sido redigida originalmente em hebraico e que a maioria dessas obras havia sido aceita por uma parcela dos judeus palestinenses não cristãos (AUWERS; DE JONGE, 2003, p.xviii).

Desse modo, a fixação do cânon por judeus não cristãos não se verificou até o início do século II dC (PERANI, 2000, p.399). O motivo último para que o judaísmo não cristão limitasse seu cânon apenas aos livros mais antigos pode ter sido o embate com os cristãos, com o propósito de estabelecer uma contraposição judaico-palestinense mais efetiva à empreitada dos cristãos que ao longo do século II dC assumiram um cânon mais amplo com base na versão grega da Bíblia dos Setenta (MANNUCCI, 1983, p.195).

2.3 Após o evento Cristo por cristãos

Esforços para definir a lista dos livros sagrados pré-cristãos passaram a ser feitos por parte dos cristãos, tanto de origem judaica como pagã. Eles utilizavam nesse trabalho o evento de Jesus como chave de leitura, o que conduzia a uma inflexão hermenêutica (GIBERT; THEOBALD, 2007, p.18). Para eles, “o fato constituído por Cristo [era …] como uma chave escrita no início da partitura e que determina tudo” (LOHFINK, 1964, p.172). Uma passagem do Evangelho de João – “Examinais as Escrituras, pensando ter nelas a vida eterna, e são elas que dão testemunho de mim” (Jo 5,39) – reflete apropriadamente essa ótica dos antigos cristãos ao considerarem a Lei, os Profetas e os Escritos.

Manifesta-se desde essa mais remota origem o paradigma personalista de revelação com o qual os cristãos dos primeiros séculos concebiam a autocomunicação de Deus e interpretavam os Livros Sagrados. Para eles, a Palavra de Deus por excelência era Jesus Cristo, Christus praesens – Cristo presente – na vida das comunidades e dos fiéis. Em relação a Ele, qualquer Livro Sagrado era apenas analogicamente referido como Palavra de Deus. A Sagrada Escritura como Palavra de Deus analógica encontrava-se totalmente subordinada àquele que é a Palavra de Deus em sentido estrito e rigoroso, a segunda pessoa divina invocada nas aclamações ao “Pai, Filho e Espírito Santo”. Estava-se ali longe do paradigma coisificado de revelação que, no segundo milênio, predominaria no cristianismo em geral e traria consigo a preocupação de determinar as letras exatas, a grafia e a fraseologia do texto bíblico, quando este passaria tardiamente a ser compreendido como imenso depósito de palavras divinamente reveladas.

Até o final do século II, não há entre os cristãos um cânon veterotestamentário exato e universalmente acolhido. A partir daí, paralelamente à progressiva fixação do cânon hebraico entre os judeus não cristãos, os cristãos foram tomando duas vias no estabelecimento do cânon do AT (BROWN; COLLINS, 1990, p.1042). De um lado, isso se deu por repercussão oposta, incluindo-se no AT tanto os livros protocanônicos como os deuterocanônicos com base na Bíblia dos Setenta. Um exemplo é Justino Mártir, que não tinha origem judaica. Ele afirmava que se deve ter como parte da Sagrada Escritura tudo aquilo que se encontra em grego na Bíblia dos Setenta, mesmo aquilo que os judeus não cristãos excluíam (Dialogus cum Thryphone, n.71). Orígenes, conforme o relato de Eusébio de Cesareia, incluía na lista de livros sagrados os deuterocanônicos Ester e 1-2 Macabeus (Historiae Ecclesiasticae VI, 25). O Códice Vaticano, manuscrito da Bíblia grega do início do século IV, apresenta os livros de Tobias, Judite, Baruc, Eclesiástico e Sabedoria. O Códice Sinaítico, da metade do século IV, é fragmentário em relação ao Antigo Testamento, mas inclui os deuterocanônicos livros de Tobias, Judite, 1 Macabeus, Eclesiástico e Sabedoria.

De outro lado, em âmbitos cristãos que viviam em contato com comunidades judaicas não cristãs, verificou-se por vezes uma repercussão em sintonia. Nesses ambientes, encaminhou-se para uma concepção abreviada do cânon do AT na qual um dos critérios era a presumida originalidade em língua hebraica do livro. Melitão, judeu convertido ao cristianismo e bispo de Sardes, forneceu no final do século II o primeiro cânon veterotestamentário cristão que conhecemos, ainda mais restrito que o cânon abreviado de 39 livros por excluir o livro de Ester. A descrição a respeito de Melitão é fornecida por Eusébio de Cesareia na História Eclesiástica, na qual a lista vem reproduzida (Historiae Ecclesiasticae IV, 26). Autores cristãos entre o século IV e início do século V, como Cirilo de Jerusalém, Atanásio e Jerônimo, favorecem o cânon abreviado, mas de uma maneira que precisa ser matizada. Cirilo de Jerusalém (EB 9) e Atanásio (EB 14) elencam o cânon abreviado, mas incluem o deuterocanônico Baruc. Jerônimo cita muitas vezes os livros deuterocanônicos, o que mostra o valor que esses livros tinham para ele (MANNUCCI, 1983, p.197). Jerônimo, além disso, comenta no prefácio da tradução do livro de Tobias: “Julgo ser melhor desagradar à decisão dos fariseus e servir ao que foi determinado pelos bispos” (Praefatio in Tobiam, c.25).

As determinações dos bispos aludidas por Jerônimo haviam sido tomadas em diversos concílios e refletiam o sensus fidelium do período. Na maior parte das vezes, iam na direção de um cânon longo. Em 360 dC, o sínodo de Laodiceia promulgou uma série de decretos. No último deles, de número 60, o sínodo definiu um cânon abreviado, mas que, diferentemente de Melitão, incluía o livro de Ester e também o deuterocanônico livro de Baruc (EB 11). O exame histórico lança hoje dúvidas sobre a autenticidade desse sexagésimo decreto de Laodiceia (GONZAGA, 2019, p.90). Pouco depois, em 382, o Sínodo de Roma definiu com o Decretum Damasi um cânon longo com os deuterocanônicos, mas sem Ester nem Baruc (DH 179). Ainda no final do século IV, a tradução da Vulgata comissionada pelo Papa Dâmaso a Jerônimo traz todos os deuterocanônicos.

Contemporaneamente, na África, os sínodos de Hipona, em 393, e de Cartago, em 397 (DH 186) e 419 (GONZAGA, 2019, p.180), seguiram a linha da Vulgata, mas não mencionam o livro de Baruc. Essa era a posição de Agostinho, cuja autoridade contribuiu decididamente para determinar as discussões a respeito do cânon no âmbito ocidental (BROWN; COLLINS, 1990, p.1036). Agostinho enumera as obras do cânon com os livros deuterocanônicos sem Baruc (AGOSTINHO, De doctrina christiana II, 8,13). A mesma linha de aceitação dessas obras no seio do AT manifesta-se em 405 na carta do Papa Inocêncio I a Exupério, bispo de Toulouse, na França. Sobre os profetas, a carta de Inocêncio I fala genericamente de “dezesseis livros dos profetas”, o que parece excluir Baruc e incluir unicamente Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel e os doze profetas menores (DH 213). Em aproximadamente 495, o Decretum Gelasii elenca no AT os deuterocanônicos, também com a exceção de Baruc (EB 26).

Nos últimos séculos do primeiro milênio, verificou-se no cristianismo uma mudança na compreensão do paradigma de revelação, a qual terá efeitos na consideração do cânon bíblico. Passa-se do paradigma personalista de revelação para o paradigma coisificado. Agora, seguindo o paradigma coisificado de revelação, esta era concebida como o resultado da transmissão de um imenso conjunto de palavras (algo) de origem divina que se encontraria disponível como revelação aos fiéis no tempo antes da morte. Tal era o paradigma de revelação, por exemplo, da Teologia escolástica. Essa mudança na concepção de revelação acarretará transformações na compreensão do cânon bíblico. Mais do que encontrar de modo vivo Aquele que é a Palavra de Deus por excelência, Cristo, mediante a fiel orientação do registro da revelação na Sagrada Escritura, entraria em vigor a preocupação de esclarecer rigorosamente os livros, em suas letras, grafias e fraseologias exatas que comporiam o depósito de palavras divinamente reveladas.

A respeito do cânon bíblico, um marco no segundo milênio foi o padre católico inglês John Wycliffe. Em 1378, ele afirmou o princípio da suficiência revelativa da Sagrada Escritura (WYCLIFFE, 1905, p.181; 1906, p.131). Concebido segundo os moldes do paradigma coisificado de revelação, esse princípio da suficiência revelativa da Bíblia (ou sola Scriptura, como seria posteriormente chamado) rejeitava como revelação divina qualquer outra coisa que não estivesse na Bíblia. Com isso em mente, Wycliffe empreendeu a primeira tradução da Bíblia (a partir da Vulgata) para o inglês com o propósito de tornar a revelação divina mais acessível. Sua tradução incluía no AT os deuterocanônicos, mas no prólogo trazia apenas a lista do cânon abreviado de 39 livros, com a afirmação de que qualquer livro do AT além daqueles deveria ser tido como apócrifo.

John Wycliffe não se deu conta da incoerência lógica de que tais juízos sobre o cânon extrapolam o princípio da suficiência revelativa da Bíblia, ou sola Scriptura. Já que o próprio texto sagrado não traz em nenhum de seus livros o elenco dos títulos que devem fazer parte da Bíblia, quem sustenta a exclusão de qualquer livro da categoria de Escritura Sagrada vale-se de uma autoridade revelativa que não se encontra na Bíblia, mas fora dela.

Nos séculos posteriores, a discussão sobre o cânon do AT estaria novamente reaberta (46 livros ou 39?), mas agora acoplada – mesmo que de maneira logicamente incoerente – a um argumento típico do paradigma coisificado de revelação: o da revelação como sola Scriptura. No século XVI, as ideias de John Wycliffe ganhariam vigor com Martinho Lutero. O pensamento de Lutero era motivado, entre outros elementos, pela ideia da suficiência da Bíblia como revelação divina. Com o objetivo de tornar essa revelação divina mais acessível, Martinho Lutero publicou em Wittenberg a Bíblia traduzida para o alemão. A primeira edição do conjunto completo dos livros bíblicos aconteceu em 1534, embora impressões contendo partes da Bíblia tivessem sido feitas nos anos anteriores.

Na Bíblia de Lutero, os sete livros deuterocanônicos mais os trechos deuterocanônicos de Daniel e Ester encontravam-se deslocados de posição, agrupados e colocados como apêndice numa seção intermediária entre o Antigo e o Novo Testamento. Tais escritos eram ali designados como apocrypha, ao que se seguia a explicação que se tratava de escritos que não eram iguais à Sagrada Escritura, mas que ainda assim eram úteis e apropriados para leitura (BROWN; COLLINS, 1990, p.1042). Posteriormente, tal apêndice passou a ser excluído das edições protestantes da Bíblia. Na Reforma, o cânon abreviado aparece detalhadamente expresso como lista de 39 livros em confissões nacionais como a Confessio Fidei Gallicana, de 1559, a Confessio Belgica, de 1561, a Confessio Anglicana, de 1563, e a Confissão de Fé de Westminster, de 1646.

Em 1546 o Concílio de Trento tratou da questão do cânon bíblico. Na ocasião, ele promulgou sua decisão a favor do cânon veterotestamentário longo. O Concílio de Trento, contudo, manteve o mesmo paradigma coisificado de revelação que, característico da Escolástica, assinalavam também John Wycliffe e os reformadores do século XVI. O texto do decreto apresenta o elenco dos livros que compõem o cânon longo do AT com todos os deuterocanônicos (DH 1502).

Ao aceitar o cânon longo, Trento parece ter preservado a autêntica memória do tempo das origens cristãs, enquanto que os outros grupos cristãos [reformados], numa tentativa de retornar ao cristianismo primitivo, contentaram-se com o cânon abreviado dos judeus [não cristãos] que, se pesquisadores protestantes como A. C. Sundberg e J. P. Lewis estiverem corretos, havia sido criação de um período posterior. (BROWN; COLLINS, 1990, p.1042)

Cerca de três séculos depois, em 1870, o Concílio Vaticano I confirmaria a decisão do Concílio de Trento a respeito do cânon longo (DH 3006 e 3029). Em 1965, o Concílio Vaticano II teria como pacífica a decisão de Trento a respeito do cânon do AT e por isso não viu necessidade de explicitar seu conteúdo. Tendo, entretanto, deixado de lado a concepção de revelação divina coisificada, o Vaticano II resgatou, na Constituição Dei Verbum, o paradigma personalista de revelação característico do “depósito da fé”, isto é, do próprio Cristo e dos apóstolos, assim como da Igreja nos primeiros séculos da era cristã. Tendo agora novamente essa concepção personalista de revelação em mente, o Vaticano II alude ao fato de que o texto sagrado redigido na Antiguidade não traz em si o elenco dos livros do cânon bíblico e que, para determinar tal elenco, é inevitável valer-se de uma autoridade revelativa viva que não se encontra na Sagrada Escritura, mas fora dela: “mediante a Tradição, a Igreja conhece o cânon inteiro dos livros sagrados [… pois] Deus, que outrora falou, dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho” (Dei Verbum n.8).

3 O cânon do Novo Testamento

As primeiras comunidades cristãs tinham escritos que consideravam sagrados, recebidos de sua herança judaica. Na sua hermenêutica desses escritos, valiam-se da chave de leitura proporcionada pelo evento da vida, morte e ressurreição de Cristo. Gradualmente essas primeiras comunidades passaram a redigir seus próprios textos à luz do evento de Jesus Cristo. A definição de um cânon desses novos escritos significou a escolha de alguns e a exclusão de outros. Há séculos o cristianismo em geral – ortodoxo, católico e reformado – reconhece o cânon de 27 livros do Novo Testamento: quatro evangelhos mais Atos dos Apóstolos, catorze cartas específicas no corpus paulinum, sete cartas católicas ou universais (de Tiago, Pedro, João e Judas) e o Apocalipse de João. Houve um processo fora da Sagrada Escritura cujo resultado – o cânon – não foi redigido por nenhum dos hagiógrafos e não se encontra no interior de nenhum dos livros da Bíblia. A história desse processo nos seis primeiros séculos da era cristã é complexa. Uma hipótese simplista deve ser excluída por ter sido demonstrada falsa: a de que no princípio teria havido uma fase de reconhecimento pacífico dos 27 livros, mas que teria sido seguida de um período de dúvidas, para enfim ter-se de novo retornado ao reconhecimento inicial (MANNUCCI, 1983, p.205).

3.1 Reconhecimento dos escritos cristãos como sagrados

O substantivo grego διαθήκη (diathéke) pode ser traduzido como “aliança” ou “testamento”, e καινὴ (kainé) é o adjetivo “nova”. A kainé diathéke (Nova Aliança ou Novo Testamento) é uma fórmula importante utilizada pelos cristãos desde o início para se referirem ao acontecimento revelativo total que se manifestou no evento de Jesus Cristo. Nos primeiros séculos a expressão “Nova Aliança” ou “Novo Testamento” possuía envergadura mais vasta do que a designação dos 27 livros do cânon do NT, e significavam o evento da vida, morte e ressurreição de Cristo. Por exemplo, Paulo fala de sua atividade missionária dizendo ser “capaz de exercer o ministério da Nova Aliança [kainé diathéke]” (2Cor 3,6), referindo-se com essa expressão à realidade ampla manifestada no evento de Jesus Cristo. Em seguida, ele recorda o acontecimento revelativo do antigo Israel e a Aliança mosaica registrados nos livros que compõem a Torá: “Até o dia de hoje, quando [os israelitas] leem o Antigo Testamento [palaiá diathéke, no sentido de Antiga Aliança …]” (2Cor 3,14). Nessa passagem, a expressão “Antigo Testamento” ou “Antiga Aliança” é um “termo para designar a Lei [que] foi inventado por Paulo para sublinhar o caráter ultrapassado da revelação feita a Moisés” (MURPHY-O’CONNOR, 1990, p.820).

Na exposição paulina, a realidade designada como nova (a Nova Aliança ou Novo Testamento na passagem de 2Cor 3,6) situa a reflexão sobre a palaiá diathéke (Antiga Aliança ou Antigo Testamento) no mesmo horizonte amplo de compreensão do termo diathéke. Do ponto de vista da exatidão das fontes, seria um anacronismo pensar que Paulo tivesse ali como implícita uma “coisa”, a lista dos 27 livros que depois seria designada de Novo Testamento.

O horizonte mais amplo de compreensão da expressão “Novo Testamento” deve ser mantido ao se considerar a elaboração do cânon neotestamentário pois manteve-se nos tempos em que esse foi sendo formado. Na época patrística, um autor que utiliza o horizonte mais amplo de kainé diathéke é Ireneu de Lyon, em 180 dC na obra Adversus Haereses. No quarto e último livro dessa obra, o bispo de Lyon aborda frequentemente o tema das duas Alianças. Em Ireneu, a referência às duas Alianças não é equivalente ao uso que hoje fazemos das fórmulas “Antigo Testamento” e “Novo Testamento”. Ele se refere aos eventos das duas Alianças – aquela do antigo Israel e a nova em Cristo – manifestadas na história do povo hebreu. Não se sustenta, portanto, a tese de que Ireneu teria inventado a fórmula “Novo Testamento” para se referir à lista dos escritos cristãos reconhecidos como sagrados.

Já em meados do século II há atestações de que escritos redigidos por cristãos eram reconhecidos como sagrados. Há, nas obras de Justino Mártir, indicações claras do reconhecimento de escritos cristãos na mesma categoria de sagrados em que se encontravam os escritos judaicos pré-cristãos (MANNUCCI, 1983, p.203). Ao falar de textos cristãos, ele faz referência a um conjunto denominado “Memórias dos Apóstolos” em cujo título o genitivo indica a autoria (FIALOVA, 2016, p.169, 171). Tais “Memórias” eram compostas pelos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João (FIALOVA, 2016, p.173). Justino comenta que essas “Memórias dos Apóstolos” são “chamadas de Evangelhos” (Apologia I, 66).

A indicação do reconhecimento da natureza sagrada desses escritos encontra-se na sequência. Justino relata que, no “dia do Sol”, primeiro dia da semana, os cristãos da cidade e do campo reuniam-se e faziam “a leitura das Memórias dos Apóstolos e dos Escritos dos Profetas” (Apologia I, 67). Depois dessas leituras, eram partilhados o pão e o vinho eucarísticos pelo presidente da celebração e feitas ações de graças. Em Justino, vê-se que as “Memórias dos Apóstolos” ou “Evangelhos” tinham o mesmo caráter sagrado das Escrituras Sagradas que haviam sido recebidas do antigo Israel (FIALOVA, 2016, p.177).

3.2 A evolução das listas de textos sagrados cristãos

A lista mais antiga de textos sagrados cristãos atualmente conhecida é o Fragmento de Muratori. O documento representa o uso, no final do século II em Roma, dos escritos cristãos reconhecidos ali como Escritura Sagrada (MANNUCCI, 1983, p.204). Trata-se de um pedaço de manuscrito em latim do século VII no qual faltam a parte inicial e final. A crítica textual indica que foi traduzido de um original grego. Data-se o Fragmento de Muratori no final do século II porque ele se refere a Pio, bispo de Roma de 140 a 155, como sendo recente. Críticos na linha de Albert Sundberg mantêm que o original do Fragmento de Muratori seria apenas do século IV, mas os argumentos não se sustentam (AUWERS; DE JONGE, 2003, p.315). A parte inicial do documento está perdida e ele não fala dos evangelhos de Mateus e Marcos, mas Lucas e João são mencionados nas primeiras linhas como terceiro e quarto evangelhos. Além dos quatro evangelhos e dos Atos dos Apóstolos, a lista afirma que devem ser aceitas as treze cartas paulinas, a Primeira e Segunda Carta de João, a Carta de Judas e o Apocalipse de João. O documento relata que deve ser acolhido um Apocalipse de Pedro, mas ressalta que alguns em Roma o rejeitam. O Fragmento de Muratori não menciona a Carta aos Hebreus, a Carta de Tiago, a Primeira e Segunda Carta de Pedro nem a Terceira Carta de João, e indica alguns livros que não devem ser lidos na Igreja entre os quais o Pastor de Hermas (EB 1-7).

Somente a partir do século IV é que chegará até nós uma consistente diversidade de testemunhos a respeito do cânon do NT. No início desse século, Eusébio de Cesareia relata a lista que teria sido reconhecida por Orígenes na primeira metade do século III (MANNUCCI, 1983, p.204). Estão ali presentes os quatro evangelhos e Atos dos Apóstolos, a Carta aos Hebreus, o Apocalipse, a Primeira e a Segunda Carta de Pedro (mas lançando dúvidas sobre a segunda), três Cartas de João (lançando dúvidas sobre as duas últimas) e um número indeterminado de cartas de Paulo. Não se fala da Carta de Tiago nem da Carta de Judas (Historiae Ecclesiasticae VI, 25).

Em outra parte de sua obra, Eusébio aborda o assunto dos livros cristãos que seriam fidedignos referindo-se a eles como “livros do Novo Testamento” (Historiae Ecclesiasticae III, 25). Ele basicamente repete o elenco acima que era reconhecido por Orígenes (MANNUCCI, 1983, p.204). A diferença é que agora, falando por si, Eusébio comenta que a Carta de Tiago e a Carta de Judas estão também na categoria de duvidosas. Atesta, porém, que ambas estavam sendo empregadas regularmente em diversas Igrejas (BROWN; COLLINS, 1990, p.1051). Além disso, alerta para uma terceira categoria de livros que, não obstante piedosos, não tinham origem no âmbito dos apóstolos, como Atos de Paulo, Pastor de Hermas, Apocalipse de Pedro, Carta de Barnabé e as Instituições dos Apóstolos. Enumera, por fim, uma quarta categoria de obras que se afastavam grosseiramente da ortodoxia e que por isso deviam ser repudiadas. Nessa categoria, ele incluiu uma série de escritos que, recebendo o nome de “Evangelhos”, eram erroneamente atribuídos a Pedro, Tomé, Matias e André e divulgados por cristãos heréticos (Historiae Ecclesiasticae III, 25).

Contemporânea a essas listas é aquela de Cirilo de Jerusalém, aproximadamente do ano 350, na qual ele enumera os livros cristãos que eram lidos na Igreja. Ele acautela que apenas quatro são os evangelhos legítimos. Os demais escritos com esse nome, como o Evangelho de Tomé, disfarçando-se “com a tinta externa e o perfume do nome de evangelho, enganam as almas dos mais ingênuos” (EB 10). Cirilo prossegue e elenca entre os demais textos legítimos os Atos dos Apóstolos, a Carta de Tiago, a Segunda e a Terceira Carta de Pedro, as três Cartas de João, a Carta de Judas e quatorze cartas paulinas (estas sem especificação individual). Não menciona o Apocalipse (EB 10). Uma lista igual a essa é aquela elaborada em 360 pelo Concílio de Laodiceia, que silencia sobre o Apocalipse de João. O cânon de Laodiceia especifica uma a uma as catorze cartas paulinas (EB 13).

Outros testemunhos relevantes são do mesmo arco de tempo ao longo do século IV. O Códice Vaticano apresenta um corpus paulinum no qual faltam a Primeira e Segunda Carta a Timóteo, a Carta a Tito e a Carta a Filêmon, além de também não apresentar o livro do Apocalipse. O Códice Sinaítico, por sua vez, apresenta os 27 livros do NT mais a Carta de Barnabé e o Pastor de Hermas.

Além dos códices com o efetivo texto bíblico, há o testemunho fornecido por listas nominais de livros bíblicos sem o texto deles. Uma delas é o Cânon de Mommsem. Theodor Mommsen publicou, em 1890, a descoberta de uma lista esticométrica dos livros bíblicos utilizada por copistas africanos na metade do século IV para calcular o preço de um exemplar da Bíblia cristã (AUWERS; DE JONGE, 2003, p.154). O Cânon de Mommsen nada fala da Carta aos Hebreus, de Tiago e de Judas.

Na segunda metade do século IV, encontra-se em Atanásio de Alexandria e nos Sínodos de Roma, Hipona e Cartago uma concordância a respeito do elenco de 27 livros de origem cristã a serem lidos nas atividades litúrgicas (MANNUCCI, 1983, p.204). A Carta 39 de Atanásio, escrita em 367, define um cânon detalhado do NT (EB 15). O Sínodo de Roma, em 382, com o Decretum Damasi, manifesta um cânon pormenorizado idêntico. Ele consta dos quatro evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, dos Atos dos Apóstolos, as catorze cartas paulinas identificadas uma a uma e com a Carta aos Hebreus, o Apocalipse de João, Primeira e Segunda Carta de Pedro, uma Carta de Tiago, as três Cartas de João e uma Carta de Judas (DH 180). A ordem das cartas católicas ou universais (de Tiago, Pedro, João e Judas) segue a ordem dos apóstolos elencada por Paulo em Gl 2,9 – onde Tiago, Pedro e João, nessa sequência, são referidos como “as colunas da Igreja” –, sendo a carta do apóstolo Judas Tadeu inserida depois (AUWERS; DE JONGE, 2003, p.574). O Sínodo de Hipona, em 393, estabelece o mesmo elenco de livros (EB 17), que o 3o Sínodo de Cartago, em 397, repete à letra (DH 186).

Outros exemplos seguem-se ao longo do século V. Em 405, a carta do Papa Inocêncio I a Exupério, bispo de Toulouse, além de elencar os 27 livros do cânon do NT, põe de sobreaviso contra escritos não genuínos que circulavam com os nomes de apóstolos como Matias, Tiago Menor, Pedro, João e Tomé (DH 213). O Códice Alexandrino, da primeira metade do século V, apresenta os 27 livros do NT mais a Primeira e Segunda Carta de Clemente de Roma (BROWN; COLLINS, 1990, p.1050). No final do século V, o Decretum Gelasii menciona um a um os 27 livros do NT (EB 27).

Ao longo do século IV as Igrejas latinas e gregas se encaminhavam, portanto, a um processo de aceitação do cânon neotestamentário de 27 livros. Nesses âmbitos, tal aceitação estaria consumada no final desse período (BROWN; COLLINS, 1990, p.1050). Tal não era, entretanto, a situação das Igrejas na Síria, que usavam um cânon de 17 livros. Neste, os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João eram substituídos pelo Diatéssaron de Taciano, que compunha numa única obra a harmonização dos quatro evangelhos. Faziam-se também presentes os Atos dos Apóstolos e um corpus paulinum de 15 obras, com a Carta aos Hebreus e uma Terceira Carta aos Coríntios. Só ao longo do século V foi que as Igrejas na Síria substituíram o Diatéssaron pelos quatro evangelhos, suprimiram a Terceira Carta aos Coríntios e recuperaram a Carta de Tiago, a Primeira Carta de Pedro e a Primeira Carta de João, mas permaneceram sem a Segunda Carta de Pedro, a Segunda e a Terceira Carta de João, a Carta de Judas e o Apocalipse. Em situação análoga estava a Igreja de Antioquia (MANNUCCI, 1983, p.205). A Igreja Copta tinha um cânon que incluía a Primeira e a Segunda Carta de Clemente de Roma, como no Códice Alexandrino. A Igreja Etíope tinha essas duas cartas e mais oito decretos, num total de 35 livros. “Essas considerações devem deixar claro para o estudante o quanto se está generalizando ao se falar de um cânon neotestamentário na Igreja dos primeiros séculos” (BROWN; COLLINS, 1990, p.1051).

No segundo milênio, com o predomínio do modelo coisificante de revelação, já se atesta o cânon como é conhecido hoje. Essa é a situação em 1441, no Concílio de Florença, que elenca o cânon do NT com 27 livros (DH 1335). No Concílio de Trento (1546), esta lista foi retomada e confirmada (DH 1503), o mesmo se dando no Vaticano I (1870), que ratifica o cânon de Trento, mas sem enumerar os livros individuais (DH 3006 e 3029). Algo parecido se deu em 1965, no Concílio Vaticano II (Dei Verbum n. 20).

O âmbito da Reforma protestante geralmente manteve o cânon do NT com 27 livros. A Bíblia de Lutero traduzida para o alemão e publicada integralmente em 1534 elenca e traz esses 27 livros. Na Inglaterra, a edição da Bíblia em inglês autorizada pelo rei Henrique VIII, em 1539, intitulada a Grande Bíblia, tinha o número e a sequência hoje usuais para o NT. Esse procedimento continua hoje em dia, quando uma típica edição da Bíblia protestante traz na mesma ordem os mesmos 27 livros do NT de uma Bíblia católica. A diferença está na ótica utilizada para acessar os textos do cânon. Na Reforma, tal ótica é o paradigma coisificado de revelação em que esta é compreendida como sola Scriptura. A única revelação divina que se encontra disponível ao fiel antes de sua morte é o texto bíblico que o leitor tem diante de si, como um imenso depósito de palavras divinamente reveladas.

Conclusão

A revelação judaico-cristã, desde sua mais remota origem, teve o caráter do paradigma personalista, segundo o qual o que é revelado é, sobretudo, Alguém que na plenitude daquele processo revelativo mostrou-se na pessoa de Jesus de Nazaré. Esse era o paradigma de revelação do próprio Cristo e dos apóstolos. É esse Alguém – Christus praesens, Cristo presente – que continua se revelando posteriormente e no tempo atual, embora o que de si venha agora a mostrar já tenha sido revelado anteriormente no tempo da revelação fundamental. A Sagrada Escritura definida em base a um cânon é o registro dessa revelação fundamental culminada em Cristo. Ela é o registro que guia e orienta com segurança o encontro atual com o próprio Cristo vivo. Incertezas eventuais sobre alguns de seus trechos não depõem contra seu caráter sagrado. Antes, atestam que a Bíblia, enquanto Palavra de Deus subordinada, encontra-se numa relação de total dependência em relação àquele Alguém que é a Palavra de Deus por excelência, Jesus de Nazaré.

O estudo do cânon da Sagrada Escritura ganha em qualidade ao ser deixado de lado o paradigma coisificado de revelação, segundo o qual aquilo que Deus teria feito passar do âmbito divino para o humano seriam palavras exatas contendo seus textos revelados em uma precisa grafia e fraseologia. Ainda que o estudo dos manuscritos antigos demonstre que os textos da Sagrada Escritura não sofreram mudanças fundamentais desde a Antiguidade, ele demonstra também que havia diferentes versões dos textos sagrados utilizadas pelos judeus no período do Segundo Templo (entre 520 aC e 70 dC), bem como entre os cristãos do primeiro século. Os textos daquela época nem sempre são absolutamente idênticos a textos posteriores como o texto massorético e os pergaminhos gregos. Alguns são mais próximos do texto grego presente na Bíblia dos Setenta, e mesmo do Pentateuco samaritano. Tais diferenças, longe de serem tidas como erros, falsificações ou invenções de copistas ou tradutores, apenas indicam a inadequação do paradigma coisificado de revelação. É a concepção plasmada por tal paradigma – que não era aquele de Cristo e dos apóstolos – que exigiria um absoluto rigor de letras, grafias e fraseologias determinadas pelo cânon de livros sagrados.

César Andrade Alves SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Belo Horizonte, Brasil. Texto original em português.

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