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Escritura, Tradição e Magistério

Sumário

Introdução

1 A polêmica das duas fontes

2 O salto à frente no Concílio Vaticano II

3 A relação entre a Tradição e a Escritura na Dei Verbum

4 O caráter histórico da Tradição e da Escritura

5 A relação entre Escritura, Tradição e Magistério

Conclusão

Referências

Introdução

O estudo da relação entre Escritura, Tradição e Magistério, por mais que tenha sido fartamente posto em evidência durante e após o Concílio Vaticano II (1962-1965), revela-se sempre atual. Pois se trata de clarear mentes e corações no que diz respeito aos meios como chegam a nós os bens da salvação.

Em resposta à polêmica protestante, que pôs em dúvida a fundamentação teológica da Tradição e do Magistério, insistindo no sola Scriptura como caminho de revelação divina e de salvação humana, a Igreja Católica se viu constringida a debater em maior profundidade a relação entre essas três realidades. No decorrer do Concílio de Trento (1545-1563), evitando a expressão partim… partim em favor do et, os Padres conciliares puseram as bases para melhor entendimento da relação entre Escritura e Tradição, deixando claro que a revelação não se encontra um pouco naquela e um pouco nessa, mas conjuntamente em ambas, e que é preciso salientar a interdependência entre elas, vendo-as não como duas fontes distintas da revelação, mas como dois caminhos pelos quais Deus revela o seu ser e o seu desígnio salvífico à humanidade.

O Concílio Vaticano II deu um salto à frente. Firmou com maior clareza a conexão entre ambas, demonstrando o caráter histórico-salvífico da revelação divina. Mais que promulgação de decretos e doutrinas, como se pensava a partir de Trento e do Vaticano I, a revelação constitui-se numa história de gestos e palavras pelos quais Deus age em meio ao povo. Nessa história, Deus revela-se salvando e salva revelando-se. Todo o complexo histórico de ações pelas quais Deus manifesta seu ser e seu agir, animando, corrigindo e educando o povo, forma um rio caudaloso por onde vai passando a Tradição. No interior dessa Tradição, quando alguns hagiógrafos põem por escrito elementos da vida do povo, nascem as Escrituras, as quais passam a ser fator unificador do pensamento e dos ideais populares.

A Igreja como um todo e o Magistério como seu guia entram nessa caudalosa corrente da revelação e são, ao mesmo tempo, receptores e transmissores do Evangelho, tornando-se, pois, beneficiários e servidores da Palavra de vida. Cabe ao Magistério o serviço responsável pela acolhida, guarda e interpretação oficial da revelação presente nas Escrituras e na Tradição da Igreja.

1 A polêmica das duas fontes

A Reforma Protestante questionou profundamente a Tradição (ARENAS, 1995, p. 170-172), assegurando que toda a verdade revelada está contida na Sagrada Escritura e que esta não precisa de nenhum intérprete autorizado, uma vez que, segundo Paulo, a justificação se dá pela graça do Evangelho mediante a fé. Cada fiel, no livre exame das Escrituras, assistido pelo Espírito Santo, tem acesso direto à relação com Cristo. E pode, só pela fé, só pela graça de Deus, baseado só na Escritura, encontrar a justificação que lhe é garantida só por Cristo. Para Lutero, o Evangelho é praticado pelo “espírito” (pela fé do fiel) em oposição à “letra” (às regras morais). Por isso, diz ele, não contavam penitências, romarias, indulgências, devoções, rituais sacramentais, práticas morais, como meios que garantissem a salvação. Contava a confiança no amor de Deus, tal como registrada nas Escrituras, na síntese de Paulo, que cita Habacuc: “Nele [no Evangelho] a justiça de Deus se revela da fé para a fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’” (Rm 1,17). Acentuava-se o momento individual da fé, a acolhida da justificação atribuída ao pecador por Deus, e o livre exame das Escrituras, com menos atenção ao aspecto objetivo. Basta confiar nessa justiça que vem pela fé e conduz à fé. Desse modo, rejeitava-se a Tradição, seja como fonte de revelação e de salvação, seja como critério de interpretação da Escritura. Lutero questionava também o Magistério eclesiástico, que se arrogava, segundo ele, a plena autoridade na interpretação e no ensino da Sagrada Escritura.

Em decorrência dessa problemática gerada por Lutero, o Concílio de Trento (1545-1563) achou por bem defender a posição que considerava a Escritura e a Tradição em conjunta interdependência, para o alcance da completa compreensão da revelação (ARENAS, 1995, p. 172-174). Mas, dado o desapreço de Lutero por aquilo que não cabia nas Escrituras, o Concílio e, sobretudo, a teologia e a prática eclesial posterior, ressaltaram de modo especial, ainda que de forma germinal, a Tradição e, com ela, o Magistério. Essa opção levou muitos a um certo exagero em considerar Escritura e Tradição como duas fontes da mesma revelação. Todavia, o bom senso e a sobriedade prevaleceram e os Padres Conciliares, ao invés de aprovarem o texto previsto com duplo partim (parte da revelação estaria na Escritura e parte na Tradição), aprovaram um texto com um simples et (livros escritos e tradições não escritas), deixando claro que o Evangelho é a única fonte da revelação. O Decreto De canonicis scripturis sobre os livros sagrados e as tradições a serem acolhidas, de 1546, assim se expressa:

[O Concílio] tendo sempre diante dos olhos sua intenção de que, extirpados os erros, se conserve na Igreja a pureza do Evangelho que, prometido primeiramente pelos profetas nas sagradas Escrituras, nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, promulgou por sua própria boca e então mandou a seus Apóstolos pregá-lo a toda criatura (Mc 16,15) como fonte de toda verdade salutar e de toda ordem moral, vendo claramente que essa verdade e essa ordem estão contidas em livros escritos e tradições não escritas que, recebidas pelos Apóstolos da boca do próprio Cristo ou transmitidas como que de mão em mão pelos Apóstolos, sob o ditado do Espírito Santo, chegaram até nós, seguindo o exemplo dos Padres ortodoxos, recebe e venera, com igual sentimento de piedade e igual reverência, todos os livros tanto do Novo como Antigo Testamento, já que o mesmo Deus é autor de ambos; e recebe e venera igualmente as tradições concernentes tanto à fé quanto aos costumes, como provenientes da boca de Cristo ou ditadas pelo Espírito Santo e conservadas na Igreja católica por sucessão contínua. (DH 1501)

O objetivo do documento é mostrar que o Evangelho é a “fonte de toda verdade salutar e de toda regra moral”. Contudo, essa única fonte nos é transmitida através de duas vias, dois canais: “livros escritos e tradições não escritas”. Estas tradições não escritas, que em conjunto formam a Tradição, os apóstolos as receberam do próprio Cristo ou lhes foram ditadas pelo Espírito Santo, e foram conservadas e transmitidas pela Igreja ao longo dos séculos até chegar a nós.

Trento conclui a questão, conferindo igual valor, reverência e respeito às duas vias de transmissão do único Evangelho, fonte de toda salvação e fundamento de todo modo de conduta do homem novo, em Cristo. A Escritura e a Tradição, constituída pelas tradições recebidas do próprio Cristo ou da inspiração do Paráclito, são vistas como dois canais de transmissão da Boa-Nova, a única fonte da revelação.

Esse posicionamento tridentino parece muito formal e de pura defesa da posição e atuação católica. Porém, no fundo dessa problemática, devemos identificar uma questão muito superior à mera defesa. Nas entrelinhas, Trento afirma que o Evangelho, em sua atestação primigênia, foi confiado a uma comunidade viva de fé. E a separação entre a expressão escrita e a expressão oral e viva do Evangelho seria uma aberração, visto que todo escrito deve ser interpretado no seio da comunidade onde é gerado e nasce. Romper essa unidade seria o mesmo que trair a verdade fundamental intrínseca ao próprio Evangelho.

Os posicionamentos posteriores a Trento não foram os mesmos registrados no decreto de 1546. Na mente da maioria dos Padres e, depois, na reflexão teológica e nos ensinamentos catequéticos, o conceito que vigorou foi o das duas fontes da verdade evangélica e não o das duas vias de sua transmissão. Isso ainda era comum no século XX e se tornou bem explícito no início das discussões do Concílio Vaticano II acerca do documento sobre a divina revelação.

2 O salto à frente no Concílio Vaticano II

O Concílio Vaticano II (1962-1965) ainda se ressente do drástico conflito das duas fontes. Mas, mais uma vez, também nesse concílio prevalece o bom senso e o equilíbrio. A Constituição Dogmática Dei Verbum, promulgada em 18 de novembro de 1965, é resultado de longa discussão, que durou praticamente todo o tempo do Concílio (LATOURELLE, 1985, p. 366-368; ARENAS, 1995, p. 174-177). O esquema De fontibus revelationis, preparado anteriormente pela Comissão Teológica, apresentado e discutido em novembro de 1962, foi rejeitado pela maioria conciliar. Numa votação exploratória em vista do prosseguimento dos debates, a maioria pediu que esse esquema fosse retirado. Como não se chegou à maioria de 2/3 para isso, o papa João XXIII ordenou a retirada do texto e a formação de uma comissão mista para sua reelaboração, na qual se incluíssem elementos que vinham sendo debatidos no Secretariado para a União dos Cristãos. Os debates realizados ao redor do tema da revelação produziram mudanças profundas e substanciais, que mostram uma mudança de rumo do próprio Concílio e não apenas desse documento. Um dos motivos de discussão foi precisamente o tema polêmico das duas fontes. Estava em jogo uma nova visão do fenômeno da tradição, que se tinha anunciado no século anterior: mais que de tradição material importava a ideia de um processo de tradição. Essa ideia de uma tradição como realidade viva, além de superar de vez a teoria das duas fontes, servia para colaborar com o diálogo ecumênico, um tema que atravessava toda a assembleia conciliar.

Depois de diversas redações, a Dei Verbum entra para a história como um dos documentos mais significativos do Vaticano II, por demonstrar a compreensão católica da revelação como um diálogo pedagógico entre Deus e a humanidade. O Concílio Vaticano II expressa na Dei Verbum o mesmo pensamento do Concílio de Trento; nisso os Padres Conciliares provam estar inseridos na Tradição da Igreja, visto que defendem a mesma linha de pensamento de toda a história da Igreja, como foi firmemente defendida há quatrocentos anos.

Quanto à polêmica questão das duas fontes, o texto final do Concílio Vaticano II, mesmo não tocando explicitamente no assunto, deixa claro que há uma só fonte da revelação: a Boa Nova da salvação em Cristo. Os Padres Conciliares aprovaram o texto final da Dei Verbum, em que não só não aparece referência às duas fontes, mas fica clara a consciência da Igreja de que temos uma só fonte da revelação: o desejo divino de vir a nós e a realização prática desse desejo com seu movimento interessado na busca do ser humano para com ele se entreter como com um amigo. Citando o Concílio Tridentino, a Dei Verbum reafirma que Cristo “comunicou aos apóstolos os dons divinos e os encarregou de pregar a todos o Evangelho prometido aos profetas, por ele cumprido e promulgado por sua própria boca, como a fonte de toda verdade salutar e a expressão da correta maneira de viver”. A Dei Verbum continua afirmando que os apóstolos proclamaram fielmente esse Evangelho “pela pregação, pelo exemplo e pelas instituições que criaram”, transmitindo o que aprenderam diretamente “com as palavras, o convívio e a atuação de Cristo e pela ação do Espírito Santo”. Por fim, afirma-se que a Tradição e a Escritura “são o espelho em que a Igreja peregrina contempla a Deus, de quem tudo recebeu, enquanto não chega a vê-lo face a face” (DV 7). A insistência da Dei Verbum em que Escritura e Tradição constituem uma única fonte da revelação aparece ainda numa outra formulação: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só sagrado depósito da Palavra de Deus confiado à Igreja” (DV 10).

Considerado em relação ao texto inicial, as modificações mais importantes são as dos dois primeiros capítulos. O novo texto não começa com um capítulo sobre a dupla fonte da revelação. A visão polêmica e antiecumênica do primeiro esquema foi profundamente modificada. Não se trata mais de sustentar a tese antiprotestante de que a revelação divina tem uma dupla fonte, no sentido de que ela está contida em parte na Escritura e em parte na Tradição, mas de expor o sentido de revelação numa perspectiva histórico-salvífica. O Concílio deixa claro que, antes de falar em Escritura e Tradição, é preciso falar de uma questão mais básica da qual depende teologicamente tanto o sentido de Escritura como o de Tradição.

A preocupação do Vaticano I (1870) havia sido a de afirmar a existência de uma revelação sobrenatural. O Vaticano II assume um tom diferente. Não está preocupado apenas com o fato da revelação e com o caráter sobrenatural da revelação, mas sobretudo com o sentido da revelação e com a perspectiva histórico-salvífica em que a revelação deve ser entendida. A Dei Verbum torna-se, assim, o primeiro documento do Magistério da Igreja que se ocupa com a natureza e o sentido da revelação.

As palavras iniciais do documento, Dei Verbum, indicam que o Concílio adota a respeito da revelação uma linguagem concreta; não intenciona falar da revelação como transmissão de verdades eternas de um Deus imutável a uma Igreja institucional, mas de um diálogo em que Deus com sua Palavra viva se dirige à Igreja viva. Não se nega que a revelação dada nessa Palavra comporta verdades sobre o Deus eterno e imutável, que são reveladas à Igreja institucional. Contudo, o texto conciliar se propõe a falar de realidades concretas numa linguagem muito mais próxima de nossa história. Ao tratar da revelação divina, o Concílio não se refere a uma palavra distante, alcançada só por meio de abstrações, mas a uma palavra encarnada em nossa história, que o próprio Concílio, como toda a Igreja, escuta e proclama.

A esse respeito é bastante característica a citação, logo no Proêmio, da Primeira Epístola de São João (1Jo 1,2-3). É de notar que essa fórmula introdutória do proêmio em que se coloca um acento dominante na Palavra de Deus como a Palavra encarnada diante da qual a Igreja está em atitude de escuta e de proclamação, entrou para o texto só em sua última reformulação. O proêmio é uma introdução magnífica não só à Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a divina revelação, apresentando o tema e a linguagem do seu desenvolvimento, mas justifica-se logicamente (se não cronologicamente) “como o primeiro dos grandes documentos do Vaticano II; realmente este prooemium é uma introdução ao conjunto da obra conciliar”. E mostra que o Vaticano II ao mesmo tempo “continua e amplia o trabalho iniciado pelos concílios Tridentino e Vaticano I” (LATOURELLE, 1985, p. 369. 370).

Essa orientação do texto conciliar para o caráter histórico da revelação é consequência, entre outros fatores, de sua índole profundamente bíblica. Nesse ponto, apesar da intenção explícita de levar adiante os ensinamentos dos concílios de Trento e do Vaticano I, o Vaticano II se distingue profundamente de ambos. Basta fazer uma ligeira comparação entre os diversos textos quanto à utilização que fazem da Bíblia. O Decreto De canonicis scripturis do Concílio de Trento cita apenas uma passagem bíblica (Mt 16,15) e a Constituição Dei Filius do Vaticano I cita pouco mais de vinte. A Dei Verbum está apinhada de citações bíblicas, que mostram a origem profunda das argumentações que vão sendo desfiadas.

A questão da revelação é colocada, sobretudo no primeiro capítulo, em íntima conexão com a história e com a salvação dos seres humanos. O Vaticano II, além de desenvolver e afinar os passos iniciados por Trento e Vaticano I, promove no campo da revelação um salto qualitativo e desvela, em forma germinal, a robusta densidade que irão marcar a reflexão teológica e a prática pastoral dos anos posteriores. A revelação como tal é apresentada como diálogo e amizade, convívio e intimidade, que Deus propõe ao ser humano, aguardando uma resposta proveniente de um coração livre. Para o acolhimento dessa revelação, em que Deus manifesta o seu ser e o seu agir, há todo um jogo preparatório que vai desde a criação, passa pela história de Israel, até atingir a inteira humanidade, que, em Cristo, a plenitude da revelação, encontra o caminho de sua plena realização na participação da natureza divina.

3 A relação entre a Tradição e a Escritura na Dei Verbum

 É interessante observar que no capítulo II da Dei Verbum, sobre a transmissão da divina revelação, o Concílio Vaticano II nos abre a pista para compreender a relação entre a Escritura e a Tradição (LATOURELLE, 1985, p. 387-395; SESBOUÉ; THÉOBALD, 2005, p. 419-423; MÜLLER 2015, p. 60-80). Trata-se de um círculo hermenêutico que se inicia com a Tradição. Antes de referir-se mais explicitamente à Escritura (n. 11-25), o documento detém-se a explicitar o lugar da Tradição na vida da Igreja (n. 7-8), para depois falar sobre a relação entre ambas (n. 9-10).

Por Tradição entende-se todo o contexto social, histórico e cultural em que “a revelação destinada a todos os povos” se mantém “na sua integridade através dos tempos” e é “transmitida a todas as gerações” (DV 7). Vê-se aqui um conceito que permeia toda a espiritualidade e a teologia do Concílio: a universalidade. Para todos os povos, em todos os tempos, toda a revelação é transmitida pelos apóstolos e, em seguida, pelos seus sucessores. A Dei Verbum expõe então, em grandes linhas, a integridade do conteúdo da Tradição, fazendo um amplo apanhado dos seus significados: a) o encargo dos apóstolos, que aprenderam “diretamente com as palavras, o convívio e a atuação de Cristo e pela ação do Espírito Santo”, transmitiram o Evangelho “pela pregação, pelo exemplo e pelas instituições que criaram” (DV 7); b) a missão dos autores sagrados, que “escreveram a mensagem da salvação” (DV 7); c) a caminhada histórica dos sucessores dos apóstolos, cuja missão é “conservar o Evangelho íntegro e vivo na Igreja” (DV 7) e que perdurará até o fim dos tempos (DV 8); d) o conjunto das tradições que os fiéis recebem “oralmente ou por escrito” e que devem guardar (DV 8); e) “tudo o que contribui para que o povo de Deus leve uma vida santa e cresça na fé” (DV 8); f) tudo o que “a Igreja, na sua doutrina, na sua vida e no seu culto, perpetua e transmite a todas as gerações”, tudo o que a Igreja é e tudo em que ela crê (DV 8); g) os ensinamentos dos Santos Padres (DV 8); h) a definição do cânon das Escrituras, para que sejam mais bem compreendidas e postas em prática (DV 8).

A Dei Verbum também mostra que, diferentemente das Escrituras, que são fixas seja em sua redação literária seja em sua definição canônica, a Tradição é viva (SESBOUÉ, 2006, p. 435-440). Ela desenvolve-se na Igreja com a assistência do Espírito Santo, com a ampliação da percepção das realidades e das palavras, pela contemplação, pelo estudo, pela compreensão espiritual, pela pregação, até chegar à plenitude da verdade divina (DV 8).

Desse modo, percebe-se que sem Tradição não há Escritura. A Tradição é o chão onde nascem os livros bíblicos, é a caminhada histórica e a experiência vital das pessoas e das comunidades, em sua relação ao mesmo tempo amorosa e conflituosa com Deus, que vão sendo postas por escrito em determinados livros; é o rio caudaloso da existência, com seus avanços e recuos, suas angústias e esperanças, que vai deixando por escrito em suas margens, nos mais diversos gêneros literários, registros dos acontecimentos e cargas de seus sentimentos e emoções; é “o caos dos acontecimentos históricos como palco, no qual Deus se revela como ele é” (BLANK, 2005, p. 8). A Escritura registra a Tradição, a qual, nesse sentido, é materialmente mais rica que aquela. Pois é impossível pôr por escrito tudo o que se vive. O Evangelho de João, por exemplo, termina dizendo que seria impossível registrar tudo o que Jesus foi, disse e fez (Jo 20,30; 21,25).

Após essa ampla exposição sobre a importância da Tradição, o Concílio reflete resumidamente sobre a relação entre ambas: “se articulam estreitamente e se comunicam entre si; ambas têm a mesma origem divina, formam de certo modo uma unidade e tendem para o mesmo fim”; “a ambas deve-se receber e venerar com o mesmo amor e o mesmo respeito” (DV 9); “constituem um único depósito sagrado da palavra de Deus” e põem pastores e fiéis sob a mesma inspiração divina (DV 10).

Na verdade, estes números da Dei Verbum parecem apenas uma ampliação do que Trento já havia dito. Aqui aparece claro o desejo de Deus de conservar íntegra a revelação feita para a salvação: Cristo, em quem se plenifica a revelação, ordenou aos apóstolos que o Evangelho, prometido aos profetas, completado e promulgado por ele mesmo, fosse pregado a todos os seres humanos de todos os tempos, como a fonte única de toda salvação e do comportamento ético do cristão, seu modus vivendi, cujo modelo é a vida do próprio Cristo. Ambas estão profundamente interpenetradas, têm a mesma origem, formam como que um todo e tendem à mesma finalidade ou têm o mesmo objetivo: a salvação da humanidade. Ambas são Palavra de Deus (Dei Verbum), a Escritura, na sua expressão escrita, inspirada pelo Espírito Santo, e a Tradição, na sua expressão oral recebida de Cristo e do Espírito. A verdade revelada recebida pela Igreja está presente nestas duas vias que devem receber dos fiéis igual respeito, veneração e adesão da fé pela inteligência e pela vontade.

Os  padres conciliares tinham consciência de que a transmissão da revelação na Tradição se dá em três momentos: a) a tradição divina, que é a entrega do Filho à humanidade por parte do Pai, a entrega que Cristo, o primeiro objeto e sujeito da revelação, faz de si mesmo e a entrega do Espírito Santo para a vida dos fiéis; b) a tradição divino-apostólica, que é a recepção e a transmissão da pessoa e da obra de Cristo pelos apóstolos, que contam sempre com a assistência especial do Espírito Santo; c) a tradição eclesiástica, que é a transmissão continuadora pelos séculos afora da Tradição apostólica, original e fundadora de toda a tradição eclesial (ARENAS, 1995, p. 177-180).

Assim, os padres do Vaticano II assumem toda a Tradição da Igreja e nela se inserem mantendo a mesma posição de sempre, com a diferença de que neste momento a Igreja não estava condenando ninguém, mas buscando um diálogo aberto e sincero com as outras confissões cristãs e com a cultura moderna.

4 O caráter histórico da Tradição e da Escritura

Outras tradições da escritura sagrada (como os Vedas e os Upanixades do hinduísmo, o Corão do islamismo, o Avesta do zoroastrismo) concentram o conteúdo em reflexões, ensinamentos, provérbios, meditações, orações, com pouco espaço para narrações. Todas as religiões, com seus ritos e mitos, carregam suas tradições, as quais, por sua vez, são o fundamento das culturas (ARENAS, 1995, p. 168). De modo diferente e único, a Bíblia judaico-cristã transmite a Palavra de Deus como interpretação teológica de uma história. A história profana de Israel, analisada à luz da fé, torna-se história da revelação e da salvação. O profeta exerce uma maiêutica histórica e vê os acontecimentos como ação de Deus que liberta e salva (TORRES QUEIRUGA, 2010, p. 447-449). Quanto mais aberto estiver o povo à revelação de Deus (ARENAS, 1995, p. 169-170), mais libertação é promovida pelo próprio povo em seu favor. E vice-versa, quanto mais a libertação sociopolítica-cultural acontece, mais o povo conhece o Deus que a ele se revela (FELLER, 1988, p. 52-72).

Na história da revelação, há um grande veio religioso e cultural que apresenta Deus ao lado dos pobres, das viúvas, dos órfãos e estrangeiros suscitando neles a crença em sua própria dignidade, o empenho por melhores condições de vida e a esperança por dias melhores. Há um fio de ouro que perpassa toda a Escritura, que mostra Deus (Javé, no Antigo Testamento, e Jesus, no Novo) em sua opção pelos pobres. Não há como ler as Escrituras judaico-cristãs sem considerar o lugar proeminente dos pobres e injustiçados, pelos quais o coração de Deus revela-se apaixonado. O que se lê nas Escrituras é apenas um vislumbre da caminhada histórica do povo, em suas agruras e sacrifícios, em seus sonhos e esperanças (FELLER, 1995).

Nessa história da salvação, surge um denso corpo de tradições orais, que posteriormente e com o tempo são postas por escrito (LENGSFELD, 1971, p. 219-248; LIBANIO, 1992, p. 412-418). No caso do Antigo Testamento, temos sagas, lendas, mitos, crônicas, poemas, orações, provérbios etc., que primeiramente foram transmitidos oralmente, por um tempo mais ou menos longo, até serem compilados por escrito e constituírem-se em escrituras sagradas. No caso do Novo Testamento, temos memórias sobre fatos e palavras de Jesus e, depois, fórmulas de fé e desdobramentos pastorais, que passaram posteriormente a serem codificados nos Evangelhos e nas Cartas dos apóstolos. Essas tradições confluem em Jesus Cristo, em quem temos a revelação plena de Deus e a libertação integral do ser humano (BLANK, 2005, p. 244-259). “Nem Maomé, nem Zoroastro, nem Buda se autoapresentaram como objeto de fé para seus discípulos” (SESBOUÉ, 2006, p. 425). O cristianismo vê em Cristo a plenitude de toda a revelação. De modo que a Tradição da Igreja deve, pela história afora, voltar sempre a Jesus de Nazaré, para descobrir nele quem é Deus e quem é o ser humano.

Vê-se, assim, que a Tradição é mãe da Escritura, uma vez que antes de os livros serem escritos, no seu caudal histórico, já vinham acontecendo a revelação de Deus e a libertação do povo como obra de Deus (no Antigo Testamento), e a plenitude da revelação em Cristo e a vontade salvífica universal de Deus. Era um rio caudaloso e rico de expressões revelatórias e salvíficas de Deus, que aconteciam nas experiências que se fazia da presença e da ação de Deus. Este caudal vivo formou e gerou a Escritura. Nesse sentido, a Tradição é anterior à Escritura, é a sua mãe.

A Tradição é irmã da Escritura, uma vez que continuou o seu caudaloso percurso de caminhada histórica e comunhão vital enquanto a Escritura estava sendo escrita (aproximadamente dos anos 1000 aC até 50 aC, no caso do Antigo Testamento, e do ano 30 dC até 100 dC, no caso do Novo Testamento). Um olhar para o passado, ao fazer memória das gestas libertadoras de Javé e de Jesus, um concentrar-se no presente, ao tomar consciência da presença viva de Deus no meio do povo, um lançar-se para o futuro, na certa esperança de que tudo se encaminha para a plenitude da revelação e da salvação. Assim, Tradição e Escritura foram se irmanando no decorrer do processo revelatório que se concluiu com Jesus Cristo e os últimos apóstolos. Nesse sentido, a Tradição é irmã e contemporânea da Escritura.

Mas a Tradição não parou no ano 100 dC, com o término da composição da Escritura. A Tradição é filha da Escritura, pois continuou também depois de a Escritura estar acabada, e continua até hoje. Depois de pronta, a Escritura passou a orientar o Povo de Deus, como parâmetro para aprofundar a Tradição, que continuou vivificando a história nas gerações sucessivas. Alimentada pela Escritura na criação de rituais litúrgicos, orientações pastorais, movimentos teológicos, códigos jurídicos, instituições sociais, institutos religiosos, devoções populares, caminhos de santidade etc., a Tradição continua o processo de interpretação e atualização da revelação divina e da salvação humana, “enquanto não chega a ver a Deus face a face” (DV 7). Desse modo, a Tradição é também filha da Escritura.

Resulta assim que não é só através da Escritura que a Igreja deriva sua certeza a respeito de tudo o que foi revelado. Também a Tradição, como o nome mesmo diz, transmite a revelação divina. Por isso, ambas devem ser aceitas e veneradas com igual sentimento de piedade e reverência (DV 9). Nesse sentido, há complementaridade qualitativa entre esses dois canais de transmissão, razão pela qual é normal que a Escritura não baste para gerar certeza. Por isso, essa insuficiência material da Escritura leva a admitir que a Tradição tem uma extensão maior que a Escritura.

5 A relação entre Escritura, Tradição e Magistério

Quanto à relação entre Tradição, Escritura e Magistério, deve-se ter o cuidado em não cair no erro protestante de acusar os católicos de terem subordinado a Escritura ao Magistério (LATOURELLE, 1985, p. 395-399; SESBOUÉ, 2006, p.440-443). A autoridade do Magistério é, paradoxalmente, de obediência. O Magistério não paira acima da Palavra, mas submete-se à Palavra e a serve, enquanto “por disposição divina e assistência do Espírito Santo ensina unicamente o que foi transmitido, que procura ouvir com piedade, guardar santamente e expor com fidelidade” (DV 10). O Concílio reitera a obediência do Magistério à Palavra de Deus, na sua forma escrita e transmitida. A autoridade do Magistério só pode ser exercida na escuta obediente à Palavra, com o objetivo de manter o povo fiel na mesma obediência. “A Igreja não é domina, mas ancilla da Palavra de Deus. Preciosa afirmação no diálogo ecumênico atual: é pela primeira vez que um texto conciliar assim se exprime” (LATOURELLE, 1981, p.397).

O único depósito da revelação, formado pela Tradição e pela Escritura, foi confiado a toda a Igreja, para o alimento da fé de todos os fiéis. Mas cabe ao Magistério a guarda responsável, a exposição fiel e a interpretação oficial – funções que competem somente ao Magistério, com o objetivo de favorecer que toda a Igreja viva do único Evangelho. Desse modo, unido aos seus pastores, todo o povo cristão poderá, também em nossos tempos, imitar a Igreja apostólica na sua adesão à revelação, perseverando “na doutrina dos apóstolos, na comunhão, na fração do pão e nas ininterruptas orações” (At 2,42), de modo que “na conservação da fé, na sua prática e no seu desenvolvimento, pastores e fiéis estão sempre sob a mesma inspiração” (DV 10).

O Magistério da Igreja exerce a autoridade em nome de Cristo, pois lhe foi confiada a função de interpretar com a autoridade a Palavra de Deus, escrita e transmitida. O Magistério da Igreja define-se modestamente como servo da Palavra de Deus, nada ensinando senão o que lhe foi transmitido. Assim, o Magistério expõe fielmente a Palavra de Deus, ouve piedosamente a voz viva do Evangelho que ressoa continuamente a seus ouvidos, pois o Magistério enquanto tal, também vive na fé, sendo o primeiro a prestar ouvidos à Palavra de Deus.

Nota-se que a Escritura, a Tradição e o Magistério são inseparáveis, estão interligados e associados e interdependentes, de modo que um não pode ter consistência sem os outros dois. Os três em conjunto expressam a ação de um só Espírito, cada qual a seu modo contribuindo para a salvação dos fiéis.

Por sua relação e conexão íntima com a Escritura e a Tradição, que são a norma normans de nossa fé, a norma objetiva do que os fiéis devem crer, e por sua missão perante esses canais de revelação, o Magistério é também norma de fé, norma próxima e segura, da qual a Escritura e a Tradição, por sua vez, são a norma. (ARENAS, 1995, p. 191)

Conclusão

 No amplo e interminável processo de evangelização, a Igreja precisa renovar-se sempre a partir de sua fonte, o mistério de Deus revelado em Cristo. Evangelizar é mais que garantir o espaço da Igreja nos meios seculares, marcar presença nos areópagos modernos, impulsionar devoções da religiosidade popular, arrebanhar católicos afastados, garantir resultados às carências imediatistas do povo, entre outras metas hoje amplamente propostas. Evangelizar é propor a todas as pessoas e todos os povos, em suas distintas situações, a revelação de Deus Pai que em Cristo e no Espírito vem ao encontro do ser humano manifestando seu ser e seu agir. Deus revela-se como amor e comunhão de três pessoas distintas que se amam tanto e tão bem que são um só Deus. Esta marca essencial de Deus reflete-se no seu agir, na sua proposta de libertação integral, de salvação temporal e eterna em favor de todos os seres humanos, a começar dos pobres, dos mais afastados desse dom divino.

Um fio de ouro perpassa a Tradição e a Escritura do povo judeu e dos cristãos, que mostra como, de Abraão a Jesus e até o último dos apóstolos, Deus se põe ao lado dos últimos. Para poder alcançar todos, ele começa na base. Se o seu Reino começasse pelos que estão no pico da pirâmide, sua proposta salvífica não chegaria a todos. A partir dos últimos, pelos quais Deus-Pai e Jesus de Nazaré manifestam predileção, a vontade universal salvífica abre-se a todos os povos.

A caminhada de Israel, a história de Jesus e a vida das primeiras comunidades cristãs foram marcadas pela presença e atuação de um Deus amoroso, Deus de ternura, piedade e misericórdia, Deus dos pobres, órfãos, viúvas e estrangeiros, que ao final das Escrituras é apresentado como Deus-Amor (1Jo 4,8). Assim, a interpretação atual das Escrituras, para ser fiel à revelação bíblica do ser e do agir de Deus, precisa ser feita pela Igreja, sob a condução do Magistério, sempre a partir da opção pelos pobres.

Vitor Galdino Feller. ITESC/FACASC. Texto original em português. Enviado: 10/06/2021. Aprovado: 31/06/2021. Publicado: 24/12/2021.

Referências

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FELLER, V. G. O Deus da revelação. São Paulo: Loyola, 1988.

FELLER, V. G. A revelação de Deus a partir dos excluídos. São Paulo: Paulus, 1995.

LENGSFELD, P. Tradição e Sagrada Escritura – Sua relação mútua. In:  FEINER, J.; LOEHRER, M. Mysterium Salutis I/2: Teologia Fundamental. Trad. Belchior Cornélio da Silva. Petrópolis: Vozes, 1971.

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SESBOÜÉ, B. A comunicação da Palavra de Deus. In: SESBOÜÉ, B.; THEOBALD, Ch. A palavra de salvação (séculos XVIII-XX). História dos dogmas 4. Trad. Aldo Vanucchi. São Paulo: Loyola, 2006.

TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a revelação. A revelação divina na realização humana. Trad. Afonso Maria Ligorio Soares. São Paulo: Paulinas, 2010.

Evangelho segundo João

Sumário

1 O texto

1.1 Documentos

1.2 Unidade e coerência composicional

1.3 Estrutura estática e dinâmica

1.4 Características literárias

1.5 Caráter semítico e “bilinguismo” 

2 Intertextualidade

2.1 Antigo Testamento e judaísmo

2.2 Novo Testamento

2.3 Escritos extracanônicos/extrabíblicos

3 “Autor” e leitorado

3.1 Autor e leitor dentro do texto

3.2 Quem foi este autor?

3.3 A gênese do texto

4 O Evangelho de João e seu mundo

4.1 O Evangelho de João e a sociedade

4.2 Judaísmo e helenismo

4.3 A mundividência de João

5 Teologia e mística

5.1 Presença de Deus no Cristo “enaltecido”

5.2 Mística e contemplação

5.3 Evangelho “espiritual” e “teo-lógico”

5.4 A cruz e a glória

5.5 Escatologia, pneumatologia, eclesiologia

5.6 Coordenadas éticas

Referências

1 O texto
1.1 Documentos

As testemunhas textuais mais antigas do Evangelho de João (Jo ou EvJo) são os papiros, alguns fragmentários, outros bastante completos, do século II (P52, P90, P66) ou III (P5, P28, P39, P45, P75, P80, P95), que confirmam o texto dos grandes códices do século IV-V (BEUTLER, 2016, p. 33-34; BROWN, 2020, p. 155-157). No texto que virou padrão, entraram alguns acréscimos de certo peso: Jo 7,53–8,11 (perícope da adúltera), que aparece nos manuscritos somente a partir do século V, nem sempre no lugar que ocupa atualmente, porém considerado “canônico” (OMANSON, 2010, p. 183-184; BEUTLER, 2016, p. 214-215; BROWN, 2020, p. 592-595), e Jo 5,3b-4 (o anjo na piscina de Bezata), acréscimo muito tardio, excluído da Nova Vulgata (OMANSON, 2010, p. 174-175).[1]

1.2 Unidade e coerência composicional

No passado, o Evangelho de João já foi comparado à “túnica sem costura” de Jesus (cf. Jo 19,23), mas desde alguns séculos costuma-se apontar falhas na sequência e incoerências no pensamento. Contudo, seu espírito e vocabulário são muito homogêneos e a narrativa, bastante coerente, apesar de alguns indícios de remanejamento (sobretudo em torno dos capítulos 5–7, 15–17 e 21) (cf. ZUMSTEIN, 2014, p. 27-28). Esses “defeitos” não comprometem o desdobramento temático, que é circular e reflexivo. O escrito não pretende ser propriamente narrativo, mas usa elementos narrativos como suporte para uma visão teológica. O estilo mostra sobriedade quase litúrgica, mas também grande expressividade. Temas se repetem, com leves, porém significativas, modificações e numerosas referências diagonais interligam as diversas partes. Há certo número de autocomentários (p. ex. 3,24; 4,2 etc.), que não rompem a unidade literária, mas antes ajudam a compreensão. A recente crítica literária, admitindo que o texto “cresceu”, tende a considerar irrelevante a distinção entre o autor original e eventuais redatores, a não ser para o cap. 21, acrescentado depois do final Jo 20,30-31 e figurando como epílogo editorial (→ § 3.3).

1.3 Estrutura estática e dinâmica

A estrutura estática do evangelho apresenta-se como um díptico com dois painéis, articulados entre si, incluídos entre um prólogo (1,1-18) e um epílogo (cap. 21) (BEUTLER, 2016, p. 16-17; BROWN, 2020, p. 158-159; ZUMSTEIN, 2014, p. 21-23). O primeiro painel, Jo 1,19–12,50, usa como suporte narrativo umas poucas, mas amplamente elaboradas, cenas da obra de Jesus, principalmente os grandes milagres que João chama de “sinais” (cf. 2,11; 5,54; 6,14; 11,47; 12,37); daí ser designado como “Livro dos Sinais”. Nessa parte, há diversas idas e voltas de Jesus entre a Galileia e a Judeia (enquanto o esquema dos evangelhos sinópticos, prescindindo do evangelho da infância, conhece uma única subida da Galileia a Jerusalém; → § 2.2). Descreve-se a missão (obra e palavras) de Jesus ao mundo, enquanto “ainda não chegou a sua hora” (2,4; 7,30; 8,20). O segundo painel, 13,1–20,31, chamado pelos estudiosos “o Livro da Glória”, apresenta Jesus na sua “hora de passar deste mundo para o Pai” para receber a “glória” (13,1; 17,1.5). Os capítulos 13–17 encenam a despedida no cenáculo, quando Jesus revela seu mistério para os seus. Nos capítulos 18–20, João traz o relato da paixão e ressurreição, semelhante ao dos evangelhos sinópticos, porém, com inserção de algumas cenas próprias, muito significativas (os interrogatórios de Anás e Pilatos, a elaborada cena da morte, a aparição a Maria Madalena, a missão final dos discípulos).

A estrutura dinâmica mostra uma dialética entre as duas partes maiores, a primeira preparando a segunda, e a segunda revelando o sentido da primeira. Assim, os sinais e obras de Jesus (Jo 1–12) recebem seu significado último da cruz, que, com a ressurreição, constitui o “enaltecimento” (exaltação) de Jesus na “glória” (Jo 13–20). As conclusões de ambas as partes maiores (resp. 12,37-50 e 20,30-31) remetem, a modo de inclusio, ao Prólogo.

Essa dinâmica sugere um processo de fé, quase uma catequese com iniciação e aprofundamento, uma mistagogia. Na primeira parte, percebe-se a catequese batismal (Nicodemos, a samaritana, o paralítico, o cego de nascença, Lázaro). A segunda parte anuncia o aprofundamento e atualização da memoria Christi pelo Espírito-Paráclito (16,13). No fim, o leitor-ouvinte é incentivado a continuar firme na fé, mesmo sem ter visto (20,29.30), mas confiando nas testemunhas autópticas (19,35; 21,24).

Podemos comparar essa estrutura a um templo. O pórtico é o Prólogo (1,1-18). No espaço geral (1,19–12,50), vemos se suceder, como os quadros na nave das igrejas barrocas, os “sinais” e obras de Jesus representando o dom de Deus como crescente apelo à decisão da fé. A seguir, nos “discursos de despedida” (cap. 13–17), entramos no espaço onde é revelado o sentido (presente e futuro) do gesto supremo de Jesus: é como o presbitério, no fundo do qual refulge a cruz gloriosa (18–20). O cap. 21 é o anexo “eclesiástico”.

1,1-18 1º painel: 1,19–12,50

preparação da hora de Jesus

2º painel: cap. 13–20

a hora de Jesus

21
Prólogo obra e sinais de Jesus perante o mundo: “ainda não a hora”  “chegou a hora”: o “enaltecimento” na cruz e na glória Epílogo
a Palavra do Pai ao mundo 1,19–4,54: início dos sinais; apresentação do dom 5–12: conflito em torno da obra de Jesus e opção de fé 13–17: despedida dos “seus” 18–20: a obra consumada o Ressuscitado e a comunidade

Na primeira parte, a linha cronológica é marcada pelas festas judaicas (1,19–2,12: os primórdios, culminando numa festa de núpcias de grande força simbólica; 2,13–4,54: Jerusalém, Samaria, Galileia: em torno da primeira Páscoa; 5,1-47: uma festa em Jerusalém; 6,1-71: a Páscoa na Galileia; 7–12: Jerusalém: de Tabernáculos até a Páscoa final, anunciada em 11,55–12,36). As transições (2,1; 2,12; 3,22-24; 4,1-3; 5,1-2; 6,1; 7,1; 10,40-42; 11,54) impedem a divisão em partes estanques.

A transição para a segunda parte, o tríduo pascal, em 13,1 constitui o pivô central do evangelho. Preparada pelo tema da “hora” em 12,23.27 e pela reflexão-dobradiça de 12,37-50, marca a passagem de Jesus deste mundo para o Pai e une a primeira parte à segunda.
1.4 Características literárias

Gênero narrativo-dramático. O EvJo está entre a narrativa e o drama: alguns episódios são como pequenas encenações (cap. 4, 9, 11, 13-14), e a narrativa inteira produz um clímax dramático. Encontramos diálogos cheios de vida, indicações de tempo e lugar, mudanças de cena. Esse caráter dramatúrgico proíbe considerar o EvJo como um mero registro factual. Os detalhes descritivos, mostrando boa informação (sobretudo em relação a Jerusalém), são ricos em referências simbólicas e comunitárias (p. ex., o “sinal” inicial em Caná pode ter sido realçado por existir ali uma comunidade joanina).

A consistência dos diversos personagens confirma a unidade dramática do evangelho: Pedro, o impulsivo; André, o singelo; Filipe, o sóbrio; Tomé, o realista; Nicodemos, o sábio; Caifás, o cínico; Pilatos, o céptico; Natanael, o “israelita”. Também as personagens femininas são bem caracterizadas: a samaritana, Maria de Betânia, Maria Madalena. A “mãe de Jesus” fica anônima e parece “emoldurar” a obra de Jesus (2,1ss; 19,25ss). O Discípulo Amado (em cena a partir de 13,23) é ao mesmo tempo a testemunha e o fiel por excelência (→ § 3.2) (cf. MARCHADOUR, 2005).

Diálogos e discursos de revelação. Os diálogos e monólogos do ator principal, Jesus, correspondem ao estilo dramatúrgico. Mesmo quando dirigidas a adversários, as palavras de Jesus servem para conduzir a plateia em seu processo de fé. Seus discursos (sobretudo os discursos parabólicos iniciados por “Eu sou”: 6,35; 8,12; 9.5; 10,7.9.11.14; 11,25; 14,6; 15,1.5) são tão profundos que só no fim os discípulos confirmam: “agora falas claramente” (16,29). Esse procedimento literário demonstra analogia com o gênero da revelação sapiencial.[2] O esquema de descida e volta de Jesus lembra o tema da palavra eficaz que sai de Deus e a ele volta (cf. Is 55,8-11).

Os “discursos de revelação” abrem progressivamente o significado da obra de Jesus. Não ensinam doutrinas esotéricas, mas o sentido profundo de sua palavra e obra, como sendo o que ele aprendeu do Pai (12,50). A missão de Jesus como Palavra reveladora de Deus (1,18) se consuma em sua obra principal: dar a própria vida por amor, revelando-se Filho do Pai que é Amor (3,16).[3]

Autocomentários. O Quarto Evangelho é permeado de comentários do autor junto ao texto, em off (VAN BELLE, 1985). Alguns são indicações de cenário para acompanhar o movimento dramático (p.ex. 5,9; 9,12). Outros são alusões à tradição evangélica geral, comprovando que este evangelho foi escrito para pessoas que já conhecem a pregação geral acerca de Jesus (3,24). Alguns evocam o conhecimento peculiar de Jesus (2,24-25; 6,6), revelam o sentido escondido de suas ações ou a mensagem escondida do texto (2,21; 12,16), explicam expressões simbólicas ou de duplo sentido inacessíveis para “os de fora” (7,37-39; 8,27; 10,6) etc. Destarte, mostram como o texto contribui para a mistagogia.

Simbolismo e metáfora. João usa com frequência metáforas, símbolos e figuras, a tal ponto que, na hora da despedida, os discípulos observam que “agora” Jesus tira o véu estendido sobre sua autorrevelação em linguagem simbólica (16,25.29). As próprias narrativas se tornam símbolos daquilo que Jesus em pessoa vem trazer ou é, pois Jesus é aquilo que seus sinais e gestos simbolizam: o vinho novo, a água da vida, o pão da vida, a luz do mundo, a ressurreição… O dom é o próprio doador.

Entenda-se bem o simbolismo dual (binário) do Quarto Evangelho: em cima/embaixo, carne/espírito, luz/trevas, verdade/mentira, vida/morte (ZUMSTEIN, 2104, p. 33). Mediante símbolos arquetípicos, o autor insiste na necessidade de se optar entre dois âmbitos ou atitudes. Linguagem semelhante já aparece nos Profetas e nos Salmos. Não é um dualismo cósmico (explicação do universo por dois princípios, o do bem e o do mal, como na mitologia persa e na gnose), mas provocação profética para a opção pró ou contra Jesus (e o Pai nele), um dualismo ético, comparável a Dt 30,19.

Polissemia e ironia. Característica do texto joanino é a polissemia intencional (BROWN, 2020, p. 154; ZUMSTEIN, 2104, p. 33). Assim, o duplo sentido em Jo 3,3-5 (onde o advérbio ánōthen na boca de Jesus significa “do alto”, mas no ouvido de Nicodemos, “de novo”) introduz uma catequese sobre o nascimento desde o Espírito, significado pela água do batismo. Assim também o duplo sentido da água em Jo 4,10, do pão em 6,32-35, do ver e da cegueira em 9,37.39-41 etc. Muito peculiar é a polissemia complexa de hypsoō/doxázō, em diversas passagens interligadas, que exprimem o “enaltecimento” de Jesus (tema inspirado por Is 52,13), fazendo da elevação/exaltação na cruz a referência simbólica e, ao mesmo tempo, a presença realizada do amor dele e do Pai, a sua glória (Jo 3, 14-21; 12,32-33; 13,31-32 etc.).

Causando mal-entendido, a polissemia revela a distância entre a compreensão dos que são “do mundo” e a dos iniciados no mistério de Cristo, entre o âmbito “de baixo” e o “do alto” (3,31-36; cf. 19,8-11). Sem a adesão a Cristo na fé e o dom do Espírito (7,37-39), não se sai da compreensão errônea segundo a “carne” oposta a “espírito e vida” (6,63).

Finalidade semelhante tem a “ironia joanina”, ora branda, ora incisiva: o diálogo conscientizador (Jo 3,10; 4,10-15 etc.), a provocação irônica (9,25-27), a crítica dura e direta (5,44; 8,28), a alusão oblíqua (os “judeus” em 18,36). Às vezes, a ironia está nos próprios fatos narrados: a atitude do mestre-sala de Caná (2,9-10), a samaritana que abandona o balde que foi sua razão de ir até o poço (4,28), os “judeus” exigindo um sinal logo depois do milagre dos pães (6,30), os visitantes entendendo erroneamente por que Maria se levanta (11,30). João sublinha assim a distância entre a compreensão mundana e a divina (cf. Is 55,8-9).

O próprio termo “mundo” é polissêmico: pode significar a humanidade como âmbito da obra criadora e salvadora de Deus (3,16!), mas também, sobretudo na expressão “este mundo” (8,23; 18,36!), a parcela incrédula da humanidade, manipulada pelo poder das trevas, o “príncipe deste mundo” (12,31; 14,30; 16,11). Ao escrever que “Deus amou o mundo” (Jo 3,16), João evoca o amor divino que, no dom do Filho Unigênito, livra o mundo daquele “príncipe” (→ § 5.3). Tanto Jesus como seus discípulos estão no mundo (no sentido histórico) sem ser do mundo (não pertencem àquele “príncipe”) (cf. 17,11.14.16).

O simbolismo e a linguagem sóbria, porém densa, se opõem à compreensão imediata, seja ingênua, seja hostil. O significado que os de fora não entendem abre-se para os que estão na mistagogia. Esses, pois, não precisam procurar o “conhecimento” fora da comunidade da fé (no judaísmo ou nas especulações helenistas). Ao mesmo tempo, os de fora, ainda que sejam “mestres em Israel”, como Nicodemos (3,10), são convidados a entrar e conhecer (“Mestre, onde moras?” – “Vinde e vede”, Jo 1,39).

1.5 Caráter semítico e “bilinguismo” 

Se outrora a crítica literária chegou a ver em João um evangelho helenista, hoje se realça sua proximidade da linguagem e do pensamento semíticos. João conserva alguns termos em língua aramaica e os traduz para o grego: rabbi (1,38), messias (1,41), Kefas (1,42), rabbûni (20,16), amēn etc. Isso corresponde ao leitorado composto de judeu-cristãos e heleno-cristãos. O “bilinguismo” de João é também mental: escreve no grego comum (koiné), mas sente e pensa de modo semítico-bíblico, como transparece na sua gramática (hína no sentido de “que” ou “de modo que”; antecipação do assunto principal da frase como casus pendens etc.) (SCHNACKENBURG, 1980, p.  133-140).

Por trás das expressões e imagens está a tradição veterotestamentária, lembrada ora conforme o texto hebraico, ora conforme o texto grego da Septuaginta, ora conforme o targum (paráfrase aramaica). Assim, o termo logos (“palavra” ou “verbo”) não remete tanto ao Logos da filosofia grega (a razão), quanto à Palavra criadora e sapiencial de Deus. O esquema “do alto/de baixo” combina com o “enaltecimento” do “Filho do Homem” (Is 52,13; Dn 7,13-14; Jo 3,14; 8,28; 12,32.34). Por outro lado, certos termos da tradição bíblica se tornaram irrelevantes ou ambíguos. João evita o termo “aliança”, mas exprime essa realidade pela terminologia de amor e unidade (OLIVEIRA, 1966; CANCIAN, 1978). Não fala em “Reino de Deus” (fora do diálogo com o judeu Nicodemos, Jo 3,3.5), mas usa a expressão “vida eterna”, que abre um registro bem mais universal.

2 Intertextualidade
2.1 Antigo Testamento e judaísmo

A referência ao AT está sempre presente no Quarto Evangelho, mas não reproduz, necessariamente, a letra do texto hebraico, pois na sinagoga dos “hebreus” o texto hebraico vinha acompanhado da glosa aramaica (targum), e na sinagoga helenista lia-se o texto grego (Septuaginta).

A referência à “Escritura” (graphē, termo preferencial em João) sugere o cumprimento no sentido de plenitude: a “Escritura” ganha um sentido pleno como analogia, imagem ou símbolo daquilo que aparece em Cristo (tipologia) etc. As citações são eventualmente adaptadas ao novo sentido (p.ex.: Jo 2,17 muda o verbo de Sl 68,10 LXX do passado para o futuro, para significar a futura morte de Jesus).

João parece aludir também aos livros deuterocanônicos (sobretudo Sirácida e Sabedoria), recusados pelo judaísmo formativo e rabínico, mas conhecidos entre os cristãos, muitos dos quais eram judeus de língua grega. Chega a ser irônico: em Jo 5,18; 10,33, os fariseus acusam Jesus de se tornar igual a Deus por chamar Deus de Pai, mas é exatamente isso que se diz do justo perseguido em Sb 2,13.16.18. Se os fariseus quisessem ler os livros deuterocanônicos, compreenderiam!

2.2 Novo Testamento

Os evangelhos sinópticos. Embora o EvJo siga o esquema geral dos evangelhos sinópticos, sintetizado em At 10,37-43, ele estende a atividade pública sobre três anos em vez de um só (→ § 1.3), reduzindo, porém, o número de episódios. Muitos textos de João não têm paralelo nos sinópticos. Entretanto, nas chamadas “perícopes sinópticas” de João (2,13-21; 4,45-54; 6,1-21.60-71; 12,1-19) e na narrativa da Paixão e Ressurreição (Jo 18–20), João reinterpreta a narrativa dos sinópticos na linha de sua visão teológica.

At 10,37-43 Mt Mc Lc Jo
”após o batismo por João” 3,1–4,11 1,2-13 3,1–4,13 1,19–2,12
”Deus o ungiu com Espírito Santo e poder… andou fazendo o bem e curando todos os possessos do demônio… tudo o que fez na região dos judeus” 4,12–20,34

 

 

1,14–10,52 4,14–19,27

 

2,13–6,71:

2,13 Páscoa em Jerusalém;

4,1 passagem pela Samaria

5,1 festa em Jerusalém;

6,4 Páscoa/Galileia

7,1–12,50:

atividade na Galileia e subida única a Jerusalém
“e em Jerusalém” 21, 1–25,50 11,1–13,37 19,28–21,38 3ª subida a Jerusalém

7,1 Tabernáculos;

10,22 Dedicação;

11,55 Páscoa

ensino em Jerusalém

 

Páscoa final

“pregaram-no na cruz” 26,1–27,56 14,1–15,47 22,1–23,56 13,1–19,42
“Deus o ressuscitou no 3º dia” 28,1-20 16,1-8 24,1-53 20,1-31

As Cartas de João.[4] Prescindindo da questão da autoria, convém ler o EvJo e as Cartas como mutuamente esclarecedores (→TLA, Cartas católicas). As Cartas (1Jo, 2Jo, 3Jo) mostram muita semelhança temática com os discursos de Jesus no EvJo. 1Jo 1,1-4 mostra parentesco com o prólogo do evangelho. 1Jo 3,11-18 corresponde ao tema do amor fraterno em Jo 13,34-35; 15,10-17. Porém, as Cartas não mais se referem à discussão com a sinagoga judaica, mas refletem a situação do fim do primeiro século, quando se impôs a reta compreensão em contraste com o gnosticismo incipiente; os adversários não são mais “os judeus”, mas os dissidentes da própria comunidade (1Jo 2,19).

O Apocalipse. O EvJo foi redigido, provavelmente, no mesmo ambiente das sete igrejas de Ap 2–3, em torno de Éfeso, na Ásia Menor (Turquia). Por ser o Apocalipse de estilo muito diferente, tanto mais chamam atenção algumas semelhanças exclusivas com o EvJo, por exemplo, a designação de Jesus como “Cordeiro” (Ap 5,6 etc.) e “Palavra de Deus” (19,13). Também: o tema do martírio, o Espírito que fala às Igrejas, papel que o EvJo atribui ao Paráclito etc. As núpcias messiânicas (Ap 21–22) lembram Jo 2,1-10, e a luta contra o Dragão/Satanás (Ap 12), o desmascaramento do Diabo em Jo 8,39-47 e as alusões a ele em diversos outros textos (Jo 12,31; 16,11 etc.).

A diferença entre o EvJo e o Apocalipse está mais na linguagem e no gênero literário do que no mundo mental. Nem mesmo a diferença quanto à escatologia é tão grande assim: o Apocalipse usa imagens futurísticas para falar do juízo e da vitória de Deus, do Cordeiro e dos fiéis, aos quais assegura que não conhecerão “a segunda morte”, mas o efeito retórico concerne ao presente, exatamente como a escatologia presente do EvJo, que significa que a opção por Jesus na fé é equivalente ao Juízo e introduz na “vida eterna” (“passaram da morte para a vida”, Jo 5,24). São duas maneiras de exortar os crentes a ficarem firmes na fé e a “seguir o Cordeiro aonde ele for” (Ap 14,4; cf. Jo 12,26; 13,36-37) (PRIGENT, 2020, p. 44-49).

Outros escritos neotestamentários. A pregação dos apóstolos era muito diversificada. Paulo não se deixava impor por outros o modo de pregar o evangelho e de organizar igrejas (Gl 1,11-12). Essa relativa autonomia dos primeiros pregadores e de suas comunidades torna mais significativas ainda as semelhanças entre os diversos escritos do NT: a messianidade de Jesus, seu senhorio, sua missão divina, seu pastoreio, seu ato consagrador, o valor salvífico de sua morte, a salvação pela fé, a presença da vida nova, a primazia do mandamento do amor, a fraternidade, a comunhão. João aborda sob outro ângulo o mesmo mistério; não é apenas um texto para ser lido em si, mas também uma chave para outros escritos, inclusive anteriores, revelando o potencial de sentido que eles contêm. Assim, o fato de o EvJo acentuar a escatologia presente nos ensina a perceber melhor a dimensão presente (e pragmática) da escatologia nos outros escritos do NT, inclusive no Apocalipse.

2.3 Escritos extracanônicos/extrabíblicos

Há, sem dúvida, certa proximidade ambiental do EvJo com os incipientes movimentos gnósticos (final do séc. I), mas os textos gnósticos são ulteriores e não podem ser considerados como fonte; antes, são influenciados pelo EvJo (é o caso de Heraclão, os valentinianos e o Evangelho da Verdade, descoberto em Nag Hammadi). Quanto aos textos de Qumrã, há alguma analogia quanto ao “dualismo” (luz/trevas, verdade/mentira) e quanto à oposição ao Templo de Jerusalém, mas não o suficiente para fundamentar um contato orgânico com Qumrã e/ou os essênios.

3 “Autor” e leitorado
3.1 Autor e leitor dentro do texto

O autor implícito do EvJo, geralmente, “submerge” no texto, identificando-se com a comunidade no meio da qual ele faz seu relato, como transparece no plural comunitário usado no Prólogo (v. 14.16) e em algumas palavras de Jesus (3,11; 4,22) e dos discípulos (1,41.45; 6,68-69!). Ele fala de dentro da comunidade, como numa homilia – uma das bases do Quarto Evangelho. O autor se apresenta como articulador do testemunho e da confissão de fé da comunidade (20,30-31). O autor transparece também nos autocomentários (→§ 1.4). Em 19,35, aparece a testemunha ocular: será que o autor se identifica com esta figura, ou torna-se apenas seu porta-voz? (No epílogo, em 21,24, o editor dá a entender que essa testemunha proporcionou o escrito.)

O leitor é tratado como receptor de informação, mas, sobretudo, como destinatário da formação na fé.  Na medida em que o texto é uma narrativa, o leitor fica conhecendo a obra de Jesus. Pelos autocomentários, pelo simbolismo, pela técnica do mal-entendido e da ironia, o leitor-ouvinte é tratado como discípulo no processo da fé (→ § 1.4). A relação autor-destinatário é intensa, e o estilo de drama envolve o leitor. Podemos ver no Jesus-rabi de diversas passagens uma projeção desse intento didático do texto; o tratamento “filhinhos” (teknía) com que Jesus se dirige aos discípulos (13,31) é usado com frequência na 1ª Carta. 

3.2 Quem foi esse autor?

Em 21,24, o editor do texto parece identificar aquele que escreveu (ou mandou escrever) o EvJo como sendo o Discípulo Amado (13,23; 18,15; 19,26-27; 20,2-4.8; 21,7.20-24), a testemunha anônima ao pé da cruz em 19,35.[5] Aceita essa identificação, sugerida pelo próprio texto, pergunta-se: será o Discípulo Amado uma pessoa real ou uma figura simbólica, representando o discípulo perfeito e testemunha fiel? Uma coisa não exclui a outra: o Discípulo Amado pode ser histórico e simbólico ao mesmo tempo. Na figura simbólica pode se reconhecer o evangelizador fiel que conduziu a(s) comunidade(s) no caminho da fé. Não obliteremos, porém, a individualidade do autor: o EvJo apresenta o testemunho de Jesus e sua obra com uma profundidade teológica que ultrapassa a expressão coletiva.

Tradicionalmente, este Discípulo Amado, “autor” do EvJo, é identificado com o apóstolo João, filho de Zebedeu, mas essa atribuição pode ser causada pelo desejo de respaldar a canonicidade pela atribuição a um apóstolo, embora  o caráter apostólico não consista em ter sido escrito por um dos Doze (ou Paulo), mas em expressar e transmitir a fé dos apóstolos.[6] A tradicional atribuição do EvJo ao filho de Zebedeu supõe que esse seja o Discípulo Amado, e essa identidade (como também a de seu irmão Tiago) teria sido escondida pelo anonimato, inclusive em 1,35, em que ele seria um dos dois não nomeados (o segundo sendo André, nomeado em 1,40). Os estudos críticos, porém, não conseguem tornar convincente as teorias nesse sentido.[7] É melhor considerar o EvJo como um escrito anônimo. O Discípulo Amado é mencionado só a partir da “hora” da paixão e morte de Jesus (13,23), para ser a testemunha fidedigna da morte e da ressurreição (19,35; 20,9; cf. 21,24). No nível do leitor, seu anonimato permite ver nele o representante de todos os verdadeiros discípulos diante da cruz e ressurreição de Jesus (KONINGS, 2016, p. 59).

3.3 A gênese do texto

Podemos supor um período de pregação do “mestre joanino”, culminando na coleção de suas palavras (por via oral e escrita) nas comunidades que dele se originaram, primeiro na Judeia, na Samaria e na Galileia, depois na Síria e até na região de Éfeso (BROWN, 2020, p. 19-28; BEUTLER, p. 33). Provavelmente, entre 50 e 80 dC, pode ter havido uma primeira redação substancial, unificada em forma de evangelho consecutivo, com todas as características joaninas: as narrativas de sinais, os discursos simbólicos ou de revelação, o primeiro discurso de despedida (Jo 13-14), a Paixão e Ressurreição.

Pelo fim do século, depois da destruição do Templo e da separação radical do judaísmo (com a expulsão dos cristãos da sinagoga, aludida em 9,22 e 12,42), essa primeira redação foi continuada, pelo evangelista ou por alguém muito sintonizado com ele, em alguns trechos (como Jo 3,31-36; 6,51-58; 12,44a-50, cap. 15-17). Já no cap. 21 temos indícios claros de edição final por outra mão (21,24-25).

Não é possível separar de modo cirúrgico a primeira redação e as continuações, embora perceptíveis. Melhor é considerar o atual EvJo como um evangelho “ruminado” (KONINGS, 2016, p. 17). Os mesmos temas são retomados em vários níveis de reflexão e em vários horizontes: o da vida de Jesus, o da primeira pregação cristã, o das comunidades do fim do século I. É um exemplo daquilo que a tradição e a pregação cristã sempre deverão ser: uma contínua releitura.

Para instruir as comunidades, João usou, de modo eclético, narrativas e palavras de Jesus veiculadas em diversos círculos cristãos. Procedendo por amostras (como sugere 20,30-31), João espelha a vida da comunidade. É “o livro da vida da comunidade”: articula a vida da comunidade com aquilo que é anunciado, oralmente ou por escrito, a respeito de Jesus, cuja palavra é fonte de vida (6,68). Porém, o texto não retoma toda a tradição. O EvJo faz uma releitura seletiva, mas criativa, de alguns elementos da tradição prévia – oral, escrita ou mesmo pós-sinóptica (DAUER, 1992). Ora, a mão de João é mágica: transforma tudo que toca. Seu procedimento na hora de redigir o texto modifica a letra e o teor das tradições que utiliza. Por isso, o sentido que João quer dar a seu texto não se encontra em primeiro lugar pela comparação com suas fontes, embora útil, mas pela leitura atenta do texto em si.

4 O Evangelho de João e seu mundo           
4.1 O Evangelho de João e a sociedade

Ricos e pobres. O EvJo põe em cena antes pessoas específicas do que o povo em geral. Poucas vezes aparece a multidão popular. Com frequência aparecem as lideranças, como adversários de Jesus, a tal ponto que a expressão “os judeus”, muitas vezes (não sempre), aparece num sentido hostil. Quanto à estratificação sociológica, em vez de pobres e camponeses explorados, encontramos João Batista, reconhecido entre os judeus (5,35); uma família oferecendo ampla festa de bodas em Caná (2,1-10); Nicodemos, fariseu e chefe dos judeus (3,1); um funcionário real em Cafarnaum, que se converte com “toda a sua casa” (4,46-54); a família de Lázaro, recebendo visita de judeus influentes de Jerusalém e oferecendo um banquete a Jesus (11,32; 12,3); e o Discípulo Amado, familiarizado com a casa do sumo sacerdote (18,15). No fim, aparecem Maria de Magdala (19,25; 20,1), José de Arimateia e Nicodemos (19,38-39), aparentemente pessoas abastadas. O EvJo parece refletir a sociedade urbana judaica (em parte helenizada) no fim do I século dC (→ § 5.2), que a sinagoga procurava trazer de volta para seu meio (cf. Jo 12,42-43).

A pobreza e o uso do dinheiro não parecem ser a preocupação primordial de João. Os únicos textos que mencionam o dinheiro são retomados, tais quais, da tradição sinóptica (6,7 e 12,5) ou representam o estereótipo de Judas ladrão, dominado pelo diabo (12,6; 13,2).

Por outro lado, o EvJo é fortemente comunitário. Assim como a sinagoga, a comunidade joanina garantia proteção e previdência social para os pobres. O EvJo menciona os pobres apenas de passagem (12,8), mas insiste no serviço mútuo (13,14) e no amor fraterno comunitário (13,34-35), que inclui o cuidado dos pobres (a esmola é pressuposta em Jo 12,5-6; 13,29); e na 1ª Carta, o dever de partilhar os bens com os necessitados é bem explícito (1Jo 3,17; 4,20). Contudo, o conflito mais determinante não é pobreza vs. riqueza, mas amor vs. ódio (15,1-17 e 15,18-6,4).

No tempo da redação final, as comunidades joaninas (também na Diáspora) estavam sofrendo a exclusão por parte do judaísmo dominante. Se, para os pobres, a excomunhão significava mendicância, para os ricos significava perda de prestígio e relações sociais (“honra”, cf. Jo 12,43). Significava também perda do reconhecimento como “religião lícita”, como era o judaísmo no Império Romano e, daí, a exposição a arbitrariedades e perseguição. Contra esse pano de fundo, compreende-se melhor a história do cego de nascença (Jo 9,22!), a timidez de Nicodemos (3,2; cf. 7,50) e a desistência dos chefes que creram em Jesus (12,42).

João não esconde sua simpatia para com os desprezados: assim, no cap. 7, menciona os policiais do Templo, malditos como ‘am ha-áreṣ (povão ignorante) por terem testemunhado a favor de Jesus. O cego de nascença é um excluído que testemunha que Jesus é profeta (cap. 9). A samaritana é claramente alheia ao padrão judaico: mulher e samaritana (4,9), porém testemunha de Jesus. Em 12,19, os fariseus mostram desprezo pelas multidões que prestigiam Jesus. A todas essas pessoas é oferecido o dom de Deus em Jesus e a acolhida em sua comunidade.

Política. O EvJo rejeita o messianismo nacionalista (6,14-15; 18,36). A declaração: “meu reino não é deste mundo” liga o “reino” à verdade de Deus (18,36-37). O título “rei dos judeus” (19,19-22) é tratado com ironia joanina (→§ 1.4). Decerto, o EvJo pretende mostrar que Jesus é o Messias (Jo 20,31), mas acopla a esse termo o título de “o Filho de Deus” no sentido específico (20,31; cf. ainda 1,49, “rei de Israel”; 11,27; 18,36 + 19,7).

João não mostra interesse especial pelo Império Romano, mas o processo de Jesus perante Pilatos (18,28–19,22) esbanja tanta ironia que se deve concluir, no mínimo, que João não busca a simpatia dos romanos. Ele vê Pilatos como um fantoche nas mãos dos “judeus” ou como um cínico; sua declaração da inocência de Jesus nada significa (18,38).

A mulher. Enquanto no sistema social e religioso do judaísmo ocupavam um lugar secundário, no EvJo as mulheres desempenham um papel notável. Jesus realiza seu primeiro sinal depois de uma sugestão de sua mãe (2,4-5). A primeira pessoa a colher da boca de Jesus sua identificação como Messias é a samaritana (4,25-26), comunicando-o logo a seus conterrâneos. Em 11,27 é notável a profissão de fé de Marta, e é comovido pela intervenção de Maria que Jesus reergue Lázaro (11,32). A mesma Maria de Betânia oferece a Jesus a unção que nos outros evangelhos é atribuída a uma mulher anônima (12,1-8). A primeira a visitar o túmulo e a ver o ressuscitado é Maria Madalena, que depois é enviada a anunciar aos “irmãos” a notícia da ressurreição (20,10-18).

Gerado na fronteira do judeu-helenismo e do mundo grego, o EvJo oferece amplo espaço à mulher, desde a mãe de Jesus até Maria Madalena. Neste evangelho, a mulher se sente em casa. Ainda que seja improvável identificar o Discípulo Amado como mulher, a leitura feminista observou que é uma “personagem aberta”, permitindo às leitoras “entrar” nessa figura.

4.2 Judaísmo e helenismo

O judaísmo. O EvJo alterna a periferia (Galileia e Samaria: 20% do texto) com o centro do judaísmo, Jerusalém (80%). Mas o significado de Jerusalém é diferente do que se vê em Lucas, que vê em Jerusalém o ponto de partida da missão cristã. Em João, a antecipação da purificação do Templo e da expulsão dos animais de sacrifício “neutraliza” o Lugar Santo desde o início (2,13-21): não é mais o lugar da adoração (4,21-23). Jesus não sobe a Jerusalém para ter sucesso ali (7,1-10), e os mestres que lá se encontram são “deste mundo” (8,23).

Depois do exílio babilônico haviam surgido, em Judá e Israel, sinagogas em torno da leitura da Lei. No interior do país e em Jerusalém havia grande número de sinagogas, que não ofuscavam o Templo, mas, antes, alastravam sua influência. Jesus e os apóstolos se criaram no ambiente das sinagogas, lideradas por mestres da linha farisaica. As comunidades joaninas mantiveram uma herança disso, de onde o caráter homilético de muitos trechos. Tanto mais traumática deve ter sido, no fim do século I dC, a exclusão da sinagoga (12,42).

Outro traço do judaísmo é o discipulado (cf. Qumrã e os grêmios farisaicos). O tratamento de “mestre” para Jesus e de “filh(inh)os” para os discípulos (13,33; cf. 1Jo 2,1 etc.) vem da tradição sapiencial (cf. Sr 2,1 etc.), mas, no EvJo, o conceito de discípulo recebe um caráter diferente: Jesus é mestre e servo ao mesmo tempo, e seus discípulos, amigos (13,16; 15,15).

Frequentemente citada para localizar o Quarto Evangelho no seu contexto sócio-histórico é a expulsão dos cristãos da sinagoga (9,22; 12,42; 16,2). No nível do Jesus histórico, esse tema é anacrônico, pois a expulsão formal se situa no fim do século I, e durante a vida de Jesus, o grupo de seus seguidores era insignificante.[8] João alude a essa expulsão para mostrar que o ser cristão implica ruptura com a pertença sociorreligiosa dominante.

O Prólogo estabelece um paralelismo entre “o mundo [que] não o conheceu” e “os seus [que] não o receberam” (1,10-11). Estas frases não são absolutas, pois João continua: “A quantos, porém, o acolheram…” (1,13), incluindo bom número de judeus.
João não censura os judeus no sentido étnico; nas Cartas, certos cristãos são criticados com o mesmo rigor (cf. 1Jo 2,19; 4,3; 4,8; 2Jo 9; 3Jo 9-10). Quando usa o termo “os judeus” em sentido hostil, João não visa aos judeus em geral, mas aos que rejeitam Jesus, grupos de peso político e social, com os quais Jesus e os seus estão rompidos, tanto em Jerusalém (Jo 1,19 etc.), como na Galileia (Jo 6,41.52), tanto no ano 30 quanto nos anos 80.  Precisamos ler o evangelho que mais censura “os judeus” a partir da herança de Israel, ou seja, do ponto de vista de um judeu que lamenta a cegueira de seus líderes (Jo 9,40-41).

O culto judaico. Alguns comentadores veem no EvJo um evangelho “sacerdotal”. Algumas frases usam vocabulário sacerdotal (17,17-19), e o Discípulo Amado parece conhecer o ambiente sacerdotal em Jerusalém.[9] Nos caps. 5 e 7–12, João demonstra interesse crítico pelo Templo, onde se fazem os grandes pronunciamentos de Jesus, mas em nenhum lugar transparece conivência com o sistema do Templo. Por isso, o culto do Templo (“bois e ovelhas”, 2,15) é posto em xeque desde o início.  Aliás, João se distancia das instituições judaicas em geral: fala em “festa dos judeus” (2,13; 5,1; 6,4; 7,2; 11,55), “vossa Lei” (8,17; 10,34; cf. “Lei deles”, 15,25). Onde a linguagem de João parece sugerir um novo culto (4,22-24), esse se situa na linha do culto “espiritual” ou “racional” das cartas do NT (Rm 12,1; Hb 13,15; 1Pd 2,5). E se Jo 17,19 (como Hb 9,11-28) vê na prática de Jesus, fiel até a morte, uma “consagração”, isso deve ser entendido como realidade nova, que torna supérfluo o culto antigo. João substitui os grandes símbolos do sistema religioso de Israel pela pessoa de Jesus Cristo.

Enquanto Tiago e Mateus ensinam que os cristãos devem guardar e interpretar a Torá com maior perfeição que o judaísmo, em Paulo e João o laço umbilical com o judaísmo parece radicalmente cortado. Jesus fala aos escribas e fariseus em termos de “vossa Lei” etc. Sobretudo, João relata com ironia a desistência dos “judeus” da expectativa messiânica, quando dizem: “Não temos outro rei senão César” (19,15).

O movimento de João Batista. O EvJo releva e relativiza a figura de João Batista. Já no Prólogo, explica que João não era a “luz”, mas deu testemunho da “luz” (1,6-8) e de sua preexistência (1,15). Depois do Prólogo, a narrativa inicia por um elaborado testemunho do Batista, que anuncia Jesus como Cordeiro e Filho de Deus (1,19-34) e encaminha seus discípulos para Jesus (1,35-36). O Batista e os discípulos voltam à cena para outro testemunho em 3,22-30. Em 5,33-35, Jesus mesmo aponta para João Batista como lâmpada passageira anunciando a luz verdadeira. Em 10,40-42, o povo aprova o testemunho de João Batista. Esse ritmo decrescente das referências ilustra a palavra do Batista em 3,30: “Ele deve crescer, eu, decrescer”. Segundo At 18,24–19,7 existiam, ainda na segunda metade do século I, discípulos de João Batista em Éfeso, presumido local da redação final do EvJo. Talvez o evangelista tenha buscado atrair esses “joanitas” para a comunidade cristã? Quando a comunidade do Batista desapareceu, seu lugar foi assumido pela comunidade de Jesus. O EvJo apresenta os discípulos do Batista se transferindo para Jesus (1,35-36); seu movimento diminui diante de Jesus (3,30), pois é provisório (5,33-35), mas testemunha a favor de Jesus (10,40-42). João parece erguer o Batista em testemunha-mor de Jesus diante dos “judeus”, que talvez tenham invocado o Batista contra Jesus, por ser anterior e não ter desacatado a autoridade deles (KONINGS, 2017, p. 59-60).

Os samaritanos. A antiga oposição entre judeus e samaritanos (1Rs 12) recrudescera depois da destruição do templo samaritano do Garizim pelo rei judeu João Hircano em 128 aC (cf. Jo 4,19). Contudo, ambos povos são “filhos de Israel”. Os samaritanos celebram a Páscoa, memorial do Êxodo, e leem os Livros de Moisés, protótipo do profeta que deve vir ao mundo (cf. Jo 4,25). Possuem até uma tradução própria da Torá em grego. O EvJo aproxima Jesus dos samaritanos (4,1-42), a ponto de ser insultado como samaritano (8,48). Jo 11,52 parece aludir à promessa messiânica da nova união entre judeus e samaritanos (cf. também 10,16).

O helenismo. Como se situa o EvJo em relação à onipresente cultura helenista? Será o silêncio um indício de sua posição? Não encontramos nenhuma referência aos sábios gregos[10], nenhuma admiração pela “filantropia” dos magistrados romanos. Até há pouco, por causa do Prólogo, admirava-se o Evangelho de João como evangelho filosófico. Porém, o termo logos, no Prólogo, não aponta para a filosofia grega, mas sim, para a “Palavra” de Deus na criação. O EvJo não se dirige a um grupo eclético, e os termos simbólicos que usa são acessíveis a qualquer pessoa que tenha sensibilidade. Seus pressupostos culturais são: familiaridade com os grandes temas da Escritura e sensibilidade pelos símbolos da humanidade (luz e trevas, verdade e mentira, vida e morte…).

O EvJo não tematiza a relação com outras religiões.[11] A abertura para os samaritanos vale na medida em que aceitam a palavra de Jesus (4,41-42). A “religião em Espírito e verdade”, que Jo 4,23 opõe tanto ao judaísmo quanto ao samaritanismo, é a que bebe da fonte que é Jesus; nada tem a ver com uma religião mundial e/ou não institucional. Todavia, a meditação joanina em torno de Jesus-Messias nos prepara para o diálogo com as religiões e mundividências em geral pela profundidade. Liga tudo, não pela superfície, mas pela raiz. Não fala da filantropia “em geral”, mas do amor fraterno concreto, como testemunho para o mundo todo (Jo 13,34-35).

Sabedoria e conhecimento. Na linguagem bíblica, cultura se chama “sabedoria”. Os escribas “perscrutam as Escrituras” (5,39) e desprezam os simples que “não conhecem a Lei” (7,49). O Jesus joanino, porém, mostra que o conhecimento da Lei para nada serve se não acreditam nele (3,10; 5,39 etc.). Em compensação, os cristãos “conhecem” Deus em Jesus. Os que acreditam em Jesus chegam ao verdadeiro conhecimento salutar, sem se entregarem a algum sistema judaico ou helenista. O “conhecer” proposto pelo Quarto Evangelho distingue-se da sabedoria dos escribas e nada tem de elitista. O próprio Jesus passa por alguém que não teve instrução (Jo 7,15). Na coleção de ditos de Jesus conhecida como Q (Logienquelle), encontra-se uma sentença que recebeu o nome de “lógion joanino” (Mt 11,25-27 = Lc 10,21-22): Jesus agradece a Deus, seu Pai, porque revelou aos simples e pequenos aquilo que ficou escondido aos sábios e entendidos. João tem em comum, não só com os sinópticos, mas também com Paulo (1Cor 1,20.26 etc.) e Tg (3,1-2.13), a convicção de que o verdadeiro saber não é a cultura deste mundo, mas o conhecimento do Pai, que conhecemos em Jesus (Jo 17,2). Esse saber não vem através da sabedoria deste mundo, mas através do amor de Cristo, do qual se participa ativamente no amor fraterno.

Em grego, o conhecimento chama-se gnṓsis. João, embora nunca use esse termo (mas sim o verbo ginōskein), tornou-se o evangelho preferido da gnose que se espalhou no século II dC, prometendo aos iniciados uma vida fora deste “mundo mau”. Assim, o “Evangelho da Verdade” (encontrado em Nag-Hammadi, no Egito). Ora, esse escrito, que procura a salvação individual longe do mundo mau, é uma interpretação egocêntrica do saber evangélico proposto por João, para quem o saber “criterioso” não pode preterir o amor fraterno (cf. Jo 13,34-35; 1Jo 4,20–5,2), a ser praticado no mundo, embora sua fonte não seja o mundo!

O Quarto Evangelho se ambienta numa comunidade de tipo judeu-cristão helenista, em conflito com o judaísmo dominante do último quartel do século I e reservada quanto às outras esferas “do mundo” (o Império Romano, a cultura helenista). Não obstante, assume decididamente sua missão “no mundo”, no testemunho da fé e da caridade a partir de Jesus de Nazaré (13,35).

4.3 A mundividência de João

O amplo uso de símbolos e arquétipos dá ao EvJo um alcance universal, que transcende sua situação histórica e possibilita o diálogo com outros contextos. Por exemplo, quando João reage à expulsão dos cristãos da sinagoga, seu fraseado desliza para categorias mais amplas: o mundo, as trevas. Ao mencionar Judas, “um dos Doze”, João evoca “o chefe deste mundo” (13,2). Esses episódios são casos particulares de uma realidade universal.

O horizonte mais abrangente do EvJo é “o mundo” (kósmos), a criação, de modo especial a humanidade, no sentido neutro, vista como destinatária da salvação divina (Jo 3,16). Muitas vezes, porém, “o mundo” ou “este mundo” indica a resistência à oferta de Deus e a rejeição de seu Enviado e sua comunidade. Por isso, tanto o Enviado como a comunidade são estranhos para esse “mundo”: estão no mundo, mas não são do mundo (17,11.14), não lhe pertencem, não lhe são subservientes.

O “mundo” no sentido hostil se mostra, de modo amplo, no Império Romano com sua cultura helenista e, de modo mais próximo, no judaísmo que rejeita os cristãos. Contudo, não se deixa identificar sem mais com nenhum sistema político, econômico, social, cultural ou religioso. Antes, parece um poder indefinido que, embora fadado à impotência, estende seus tentáculos pelo universo, no espaço e no tempo. É o domínio do opositor de Deus – o diábolos, o “chefe deste mundo” (12,31; 14,30; 16,11). O Prólogo já menciona essas três esferas: o mundo refratário em geral (1,10), o povo eleito (“os seus”, 1,12, que em 8,44 são acusados de terem o diabo por pai) e a comunidade que acolhe a Palavra (1.14.16), mas na qual o diabo se insinuará na pessoa de Judas (6,70; 13,2).

5 Teologia e mística
5.1 Presença de Deus no Cristo “enaltecido””

O cerne da teologia joanina é a contemplação de Deus que se manifesta como palavra e amor na “carne”, em Jesus Cristo, à luz da Páscoa e do dom do Espírito. Mais que o evangelho da encarnação no sentido histórico, o EvJo é o evangelho da manifestação da glória de Deus em Jesus “enaltecido”. Depois da destruição do Templo em 70 dC, confrontaram-se duas maneiras de conceber a presença salvífica de Deus. Para o judaísmo renovado, essa presença se dava na Torá (escrita e oral), fortemente orientada para a halaká (ordenações rituais e morais). Para o cristianismo, a presença de Deus se dava na práxis de Jesus de Nazaré, que a comunidade cristã, vivenciando o tempo final e iluminada pelo Espírito, pretendia atualizar na prática do amor fraterno (Jo 16,13-15). Isso distingue a “via joanina” não apenas do judaísmo, mas também dos outros caminhos de salvação (cultos de mistérios, gnose etc.) e, sobretudo, dos caminhos do desamor.

O Quarto Evangelho quer ser escutado como o testemunho apostólico de que Jesus é o Messias e o Filho Unigênito de Deus, para que, na firmeza dessa fé, o ouvinte tenha “vida” (20,31). Esse testemunho apresenta Jesus como o Enviado do Pai. Pouco fala do Reino de Deus, porque, como em Paulo, não o “Reino”, mas Jesus mesmo é o objeto do anúncio.[12] João menciona o “Reino” apenas onde reproduz a linguagem judaica (Jo 3,3.5; 18,36). Não nega a messianidade daquele “de quem falam a Lei e os Profetas” (1,45), mas sugere correções fundamentais (6,14; 12,34).

João usa uma linguagem específica, que os de fora não entendem (daí o duplo sentido, o mal-entendido, a ironia; →§ 1.4). É um evangelho para os que procuram andar na luz, na verdade, em oposição aos que vivem na mentira e nas trevas (cf. Jo 12,36). Porém, não é esotérico como o gnosticismo. Para João, a iniciação não consiste na posse da verdade, mas na consciência de ser envolvido pela verdade e de ter que testemunhá-la (Jo 3,14; 4,22; 1Jo 2,3.5; 3,16.24; 4,13.16; 5,2.20). Essa verdade que ilumina a vida não está ao alcance do esforço humano, mas é um dom conferido a partir do “enaltecimento” de Jesus, através do “Espírito da Verdade” (Jo 7,39; 14,17; 15,26).

Não apenas os rabinos judaicos ficam sem entender, também o leitor é um aprendiz da fé. O EvJo conduz o leitor-ouvinte, de modo narrativo-dramático, pelo itinerário da fé. Recorda os primórdios (Jesus nos anos 30) para reforçar a fé do leitor no tempo da crise (anos 80-100), abrindo a perspectiva para as gerações vindouras (17,20; 20,29), assistidas pelo Paráclito, que em todo tempo os conduzirá “na plena verdade” (16,13). Por isso, João redesenha os fatos e as palavras de Jesus, tornando-os eloquentes para as gerações ulteriores, que devem crer no testemunho do amor fraterno (13,35) e recebem a bem-aventurança por crerem sem ter sido testemunhas da primeira hora (20,29). Assim se desenha, de acordo com a estrutura do texto (→§ 1.3), o seguinte processo/progresso: convite para a novidade do mistério (Jo 1–4), o conflito, levando à opção da fé (5–12), na intimidade dos discípulos fiéis (13–17), contemplando o “enaltecimento” (18–20).

5.2 Mística e contemplação

Se a mística é busca da união com Deus, ela não nos enclausura no intimismo. O EvJo nos introduz no novo Templo que é o Jesus eclesial (2,22), espaço de encontro com Deus para todos (4,21-24). Aí contemplamos aquele que revela a presença de Deus (1,14), como já antecipou Isaías (Is 6,10, cf. Jo 12,41). O EvJo é místico, porque acena à presença de Deus no mundo, porém, sem pertença ao mundo. Os discípulos não são do mundo, mas estão nele (17,14-15). É no mundo que os fiéis vivem a vida unida a Jesus, e, isso, sendo perseguidos e excluídos pelo mundo, que ameaça penetrar até dentro da comunidade cristã, na forma de desamor, ambição, apostasia, traição. Por isso, a 1ª Carta de João se opõe violentamente à “cobiça do mundo” (cf. 1Jo 2,16).

A mística joanina se exprime sobretudo em Jo 17,20-23, no tema da unidade dos discípulos com Cristo e o Pai. Esse tema é articulado também pelo uso característico do verbo “permanecer” (menein), sobretudo na alegoria da vinha (Jo 15,1-17). Essa alegoria mostra que o misticismo não termina na experiência da união na fé e no amor, mas se exprime na guarda do mandamento, que é o amor fraterno (15,9-11.12.16-17), práxis selada pelo dom da própria vida de Jesus (15,13).

A mística, a experiência de Deus no mistério, é um fator de liberdade, percepção íntima da grandeza incomparável de Deus, fonte de resistência à exploração dos poderes mundanos. O EvJo nos faz contemplar a glória de Deus no dom da “carne” de Jesus (cf. 1,14). João reformula de modo decisivo a Torá no novo mandamento do amor fraterno (13,34-35; 15,12), que não apenas exclui o medo (1Jo 4,18), mas tudo o que não condiz com Deus, que é “meu Pai e vosso Pai” (20,17). Assim, desperta-nos para uma ação solidária abrangente e toca nas raízes da existência cristã. Eis a força mística desse evangelho.

A mística desse evangelho não consiste na fuga do mundo, mas na abertura para o Espírito nas circunstâncias da existência. O EvJo não apresenta muitos fatos, nem receitas morais, mas, à luz de Jesus, Palavra de Deus “na carne”, mostra as opções: luz/trevas, verdade/mentira, vida/morte.

5.3 Evangelho “espiritual” e “teo-lógico”

 Clemente de Alexandria chamou o EvJo de pneumático (“espiritual”), à diferença dos outros três, que seriam mais somáticos (“corporais”), descrevendo a história exterior de Jesus (cf. EUSEBIO de Cesareia, 2000, VI, 14, 7). Porém, João não é “espiritualista”, nem apregoa um cristianismo alheio ao mundo histórico e material, mas interpreta a vida e a mensagem de Jesus à luz do Espírito de Deus, que nos faz descobrir sentidos sempre novos e atuais (cf. 16,13).

O Quarto Evangelho é “teo-lógico”: fala de Deus e leva Deus à fala. Fala de Jesus como Filho de Deus, ou como “o Filho”, sem mais, porque Deus é o horizonte onipresente daquele cujos “sinais” são narrados no evangelho (20,30; 1,18). Nisto, leva Deus mesmo à fala, a ponto de Jesus ser chamado “a Palavra” de Deus (1,1).

A teologia do Quarto Evangelho é uma teologia… de Deus: “teo-logia”! Não permite relegar a questão de Deus ao segundo plano. Sem Deus em sua transcendência e imanência não se entende esse evangelho: “Eu não vim (falei/agi) por mim mesmo” (cf. 12,50). Jesus veio, falou e agiu porque o Pai, Deus, estava nele e assim lhe ordenou.

O EvJo nos ensina que a prática de Jesus é a prática de Deus mesmo “em carne”, em existência humana histórica. Jesus não apresenta uma doutrina sobre Deus ou um receituário moral. Em Jesus se dá a conhecer aquele que ninguém jamais viu, mas que é a referência última de tudo o que somos e fazemos. Por isso podemos crer em Jesus, aderir a ele, confiar nele de modo radical. Nele, nosso viver tem seu ponto de referência inabalável. João não fala de Deus em termos abstratos, conceptuais, mas em linguagem narrativa: ao descrever a prática de Jesus Cristo, João “conta” Deus e sua presença atuante entre os homens (1,18). Em Jesus, Deus se torna “história”: é isso que quer dizer o termo “carne” em Jo 1,14.

Hoje, Deus virou produto de supermercado, mas para ler o EvJo é preciso admitir o Transcendente verdadeiro e real. João nos ensina que tocamos Deus internamente, no limite em que o Ilimitado nos envolve, como o feto conhece a mãe no útero. Tocar o Infinito por dentro, é isso que João nos proporciona ao retratar Jesus, nosso irmão, que, na hora do “enaltecimento”, nos fala de “meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (20,17). Isso se exprime mais claramente ainda em 1Jo 4,12: nós conhecemos o Deus invisível se praticamos, guiados pela palavra de Cristo, aquilo que Deus internamente é: Amor. O amor ao próximo nos faz conhecer Deus por dentro (1Jo 4,12) e sermos iguais a seu Filho (1Jo 3,2).

5.4 A cruz e a glória

Assim como um gráfico deve ser lido a partir do ponto zero, no qual se cruzam o eixo horizontal e o vertical, assim devemos ler a nossa vida a partir da cruz de Jesus, que desenha os eixos para que nossa vida se inscreva na dinâmica do amor a Deus (vertical) e do amor ao próximo (horizontal), inseparavelmente unidos (cf. Jo 15,9.12; cf. 1Jo 4,20-21).

Na visão joanina, a vida de Jesus é o relato de Deus manifestando-se na “carne”, como existência humana na história no mundo. Mas para que esse Deus não seja mero objeto de conhecimento exterior, aprendemos a olhar, a partir de Jesus, numa única visão, para Deus e para os nossos irmãos, vendo o Deus de Jesus Cristo em nossos irmãos. Deus, Jesus e os irmãos se fundem em uma única visão.

No afã de mostrar em Jesus Nazareno o agir de Deus, João o apresenta com todos os “títulos” da cristologia, mas nenhum é tão significativo e abrangente quanto o de “Filho”, chamado de “unigênito” (1,14.18; 3,16.18) para o distinguir dos outros filhos e filhas amados de Deus. A messianidade e a divindade de Jesus devem ser entendidas a partir de seu amor filial, sua “paixão” por fazer o que o Pai deseja e sua missão de revelar o que o Pai lhe dá a conhecer. “Eu e o Pai somos um” (10,30), “Quem me vê, vê o Pai” (14,9), “O Pai é maior do que eu” (14,28): nessas frases se resume a cristologia joanina.

Nossa busca e nosso agir serão orientados pelo que vemos de Deus em Jesus (14,9). Tal cristocentrismo não é um cristomonismo sectário. Não se trata, tampouco, de fazer de Jesus um outro Deus, como julgaram, indevidamente, “os judeus” (5,18; 10,33), porque não entendiam o “mistério do Filho”. Jesus é um com Deus enquanto Filho. A “divindade” de Jesus se manifesta a nós no seu amor e obediência filiais: “O Pai é maior [= mais importante] que eu” (14,28).

Assim, o “cristocentrismo teo-lógico” de João não exclui a abertura àqueles que buscam Deus por outros caminhos. O que importa é a certeza de que o Deus verdadeiro manifesta seu rosto em Jesus de Nazaré. Assim se compreendem os sinais narrados no Quarto Evangelho. Não são “provas” de sua divindade, mas sinais pelos quais Deus manifesta que está com ele (Jo 3,2) e realiza nele as suas obras (14,11), na “glória do amar” (SYMOENS, 1981).

5.5 Escatologia, pneumatologia, eclesiologia

Cristologia e escatologia são inseparáveis, pois o Cristo/Messias deve inaugurar o tempo do Fim, o reinado de Deus no mundo, tempo de plenitude e paz, shalom. Tais representações, porém, são insuficientes. João fala inicialmente em “reino de Deus” usando a linguagem do judaísmo (3,3.5; 18,36), mas depois substitui esse conceito por “vida eterna”, vida recebida e assumida na opção de fé diante da palavra e da prática de Jesus como exercício da vontade de Deus. Quem crê em Jesus vive aquilo que condiz com Deus, aquilo que é definitivamente válido: “Quem ouve minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não vai a juízo, mas passou [tempo perfeito com efeito no presente] da morte para a vida” (Jo 5,24). A vida eterna deve ser entendida não como extensão quantitativa desta vida, mas como vida do éon novo que suplanta o tempo precário “deste mundo”. Significa o salto qualitativo, na fé e no seguimento de Cristo, já agora. O “enaltecimento”, morte-e-ressurreição de Jesus, foi a manifestação dessa vida, que no dom de si supera a morte. Por isso chamamos essa “escatologia-já” de “existência pascal”.

Antes de falar da vida eterna, Jesus ensina a Nicodemos o nascimento do alto, que remete à renovação – pela conversão e pelo ensinamento de Deus – do coração daqueles que dão ouvido a Jesus (cf. Jr 33,31-33; Ez 36; Is 54,13 etc.). O símbolo disso é a efusão da água que representa o Espírito (Jo 3,5). João Batista diz que o Espírito Santo desceu sobre Jesus e permaneceu (1,33), pois ele é quem batiza com o Espírito Santo. Esse dom do Espírito acontece quando Jesus, glorificado na morte de cruz (cf. 7,39!), volta ao Pai e nos confia o mundo para que nós realizemos “obras maiores” do que ele realizou (14,12). Neste tempo de nossa existência pascal, Jesus rogará ao Pai para que nos envie o “Espírito da verdade”, o Paráclito (14,16-17), para ser nosso auxilio na missão no mundo e nosso defensor no processo com o mundo (16,7-11), guiando-nos na plena verdade de cada momento histórico (16,13). Ressuscitado, Jesus dá, no dia da Páscoa, aos discípulos o dom do Espírito (20,19-23).

5.6 Coordenadas éticas

O ensinamento moral de João se resume no binômio verdade e amor. Ambas essas realidades práticas[13] têm sua fonte em Deus e seu mediador em Jesus (15,12). Deus é verdadeiro (cf. 7,26; 8,26) no sentido de autêntico, totalmente oposto à mentira e à falsidade. Ele é fiel, seu amor é eterno e a sua palavra, digna de toda confiança. Essa palavra é Jesus, no qual se encarna a verdadefidelidade de Deus, juntamente com o amor e a graça (1,14). Na boca de Jesus, a verdade significa: a manifestação da verdade do Pai nele (LA POTTERIE, 1977). Deus é amor (cf. 1Jo 4,8.16), e é a partir desse amor que seu “Filho unigênito” ama aqueles que Deus lhe deu, os que acolhem sua palavra, a ponto de dar sua vida por eles, como exemplo para nós. Na fidelidade de Jesus até o fim, por amor, Deus nos ama e salva o mundo do “príncipe deste mundo” (Jo 3,16). Maior explicitação desta ética do amor encontra-se em 1Jo 3,11-18; 4,7-16; 5,1-2.

São essas as coordenadas da ética cristã segundo João: veracidadefidelidade e amor fraterno, fundados em Deus e vividos segundo o amor revelado por Jesus no gesto parabólico do lava-pés, prefigurando sua morte (“como eu vos fiz”, 13,15; “como eu vos amei”, Jo 13,34-35; 15,12). João não oferece listas de mandamentos, à maneira do AT, ou de virtudes, à maneira da sabedoria grega. Confia que os cristãos adultos deem, à ética conhecida desde a sua tradição e cultura, a forma do amor de Cristo (cf. 1Jo 2,7-8).

Johan Konings, SJ. FAJE. Texto original em português. Recebido: 23/06/2021. Aprovado: 26/09/2021. Publicado: 24/12/2021.

 Referências

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ZUMSTEIN, Jean. L’évangile selon Jean (13-21). Genève: Labor et Fides, 2007.

[1] Usamos como texto crítico a 27ª edição do Nestle-Aland (ver Referência).

[2] Cf. Provérbios cap. 8, Sirácida cap. 24, Baruc cap. 3-4 e Sabedoria (→§ 2.1).

[3] Nas comunidades joaninas, Jesus mesmo era o revelador, como aparece no Apocalipse (Jesus revela a visão divina sobre a comunidade, Ap 1,1), à maneira dos apocalípticos judaicos (Henoc etc.).

[4] O estudo mais completo é BROWN, 1982.

[5] O “outro discípulo” (outro que Pedro) em 18,15; 20,2.8 é muito provavelmente o Discípulo Amado, que contracena com Pedro também em 21,7.20.23.

[6] O Concílio Vaticano II, Dei Verbum 18-19, distingue entre os apóstolos e os autores sagrados.

[7] Resumo do debate em HENGEL, 1989;  THEOBALD, 2010, p. 181-183; BEUTLER, 2015, p. 31-33. Melhor é respeitar o anonimato (ZUMSTEIN, 2014, p. 86, n. 85).

[8] Continua aberta a questão se esse conflito com a sinagoga deve ser localizado no fim do primeiro século, quando do sínodo rabínico de Jâmnia e a inserção, na oração matinal dos judeus, da “bênção contra os hereges” (a birkat ha-minim, c. de 85 dC), ou já em décadas anteriores. De fato, cedo depois da morte de Jesus, ocorreram perseguições no âmbito do judaísmo (At 6–7 e At 9) (veja também Mc 13,9-13 par.).

[9] O nome “João”, atribuído ao autor, é um nome frequente nas famílias sacerdotais (cf. também João Batista, filho de sacerdote). Daí as hipóteses, gratuitas, de o Discípulos Amado ser o ancião João mencionado por Papias (cf. 2Jo 1 e 3Jo 1), ou até o João da família sacerdotal de Anás (At 4,6 – já que Anás recebe destaque exclusivo em Jo 18,12-24).

[10] Os “gregos” em Jo 7,35; 12,20 podem ser não judeus, achegados ao judaísmo, ou judeus helenistas da diáspora, menos hostis que os judeus de Jerusalém no ano 30 e do sínodo de Jâmnia nos anos 80.

[11] Implicitamente, Jo 10,16, com os verbos no futuro, sugere uma dinâmica que vai do grêmio joanino para os outros grupos cristãos, realizando num sentido novo a reunião escatológica de Israel na perspectiva do mundo inteiro (ZUMSTEIN, 2014, p. 345).

[12] “De anunciador, ele se tornou o Anunciado” (BULTMANN, 1968, p. 35).

[13] Jo 3,21; 1Jo 1,6: “fazer a verdade” = o que é verdadeiro (segundo a revelação em Cristo).

A salvação em Jesus Cristo

Sumário

Introdução

1 O que é salvação?

2 A fé cristã em Jesus Salvador

3 Salvação pela encarnação do Verbo divino

4 Salvação pelo ministério público do Enviado do Pai

5 Salvação pela morte e ressurreição do Redentor

5.1 A morte como oferta sacrificial

5.2 A morte como expiação dos pecados

5.3 A morte como pagamento do resgate do cativeiro

5.4 A morte como prestação de satisfação a Deus

6 Salvação pela recapitulação do Cristo Cabeça

7 O anúncio da salvação em Cristo no contexto atual

Conclusão

Referências 

Introdução

O atual contexto do secularismo, da indiferença religiosa e do pluralismo religioso põe um instigante desafio à fé cristã. O cristianismo tem como ponto central de sua doutrina a fé em Jesus Cristo como único Salvador de todo o gênero humano: ele é o único mediador entre Deus e a humanidade (1Tm 2,5); não há outro nome, exceto o dele, no qual todos são salvos (At 4,12).

Este artigo apresenta os elementos básicos da fé na salvação em Jesus Cristo. Depois de apresentar o significado da salvação, sobretudo a partir da reflexão pastoral e teológica da América Latina, enuncia os pontos-chave da fé cristã em Jesus Salvador. Em seguida, discorre sobre os enfoques tradicionais que caracterizaram a soteriologia no decorrer dos dois milênios do cristianismo. Por fim, indica caminhos para o anúncio da salvação em Cristo no contexto atual, sugerindo como critério de verificação pastoral a opção pelos pobres.

1 O que é salvação? 

Todo ser humano busca algo mais, anseia por transcender-se para além da rotina cotidiana, por superar as incompletudes e preencher os vazios que acompanham a vida. Numa perspectiva negativa, todo ser humano busca fugir de situações adversas que lhe atrapalham a vida. Doentes buscam a cura. Desempregados entregam seus currículos aqui e ali em vista de colocação no mundo do trabalho. Pobres e miseráveis labutam para pôr o pão na mesa de cada dia. Prisioneiros sonham com a liberdade. Pessoas injustiçadas em seus direitos básicos correm atrás da justiça com o fim de verem condenados os seus malfeitores, de verem restituídos os seus direitos, de alcançarem indenização.

Na linguagem cristã, pode-se sintetizar o significado de salvação a partir de três elementos: a) o ponto de partida é uma situação negativa insuportável, marcada por situações opressivas de males físicos e morais, injustiças, doenças, insegurança financeira, medo da morte, pecado, com a incapacidade pessoal de suportá-la e superá-la; b) o ponto de chegada é uma situação positiva oposta à anterior, confirmada por uma vida satisfatória, de bem-estar, integridade física e moral, paz interior e senso de justiça, experimentada como dom; c) a intervenção de um agente  externo, Deus Pai, que age por meio de seu Filho e de seu Espírito Santo, e que faz o indivíduo ou o povo passar da situação negativa à positiva (BATTAGLIA, 2013, p. 341-342).

Esses três elementos são encontrados em dois parágrafos da Introdução das Conclusões de Medellín (1987). O primeiro e o segundo elementos se revelam na afirmação de que a transformação do povo latino-americano se dá pela passagem de situações negativas insuportáveis, desumanas, para situações mais positivas, de dignidade humana, em que se consideram valores humanos e cristãos.

O verdadeiro desenvolvimento é a passagem de condições de vida menos humanas para condições mais humanas. Menos humanas: as carências materiais dos que são privados do mínimo vital e as carências morais dos que são mutilados pelo egoísmo. Menos humanas: as estruturas opressoras que provenham dos abusos da posse do poder, das explorações dos trabalhadores ou da injustiça das transações. Mais humanas: a passagem da miséria para a posse do necessário, a vitória sobre as calamidades sociais, a ampliação dos conhecimentos, a aquisição da cultura. Mais humanas também: o aumento na consideração da dignidade dos demais, a orientação para o espírito de pobreza, a cooperação no bem comum, a vontade de paz. Mais humanas ainda: o reconhecimento, por parte do homem, dos valores supremos e de Deus, que deles é a fonte e o fim. Mais humanas, finalmente, e em especial, a fé, dom de Deus acolhido pela boa vontade dos homens e a unidade na caridade de Cristo, que nos chama a todos a participar como filhos na vida de Deus vivo, Pai de todos os homens. (MEDELLÍN, Introdução, § 9, 1987, p. 7)

O terceiro item surge quando se professa que é Deus quem realiza a salvação do ser humano, agindo misteriosamente na condução dessas passagens, por meio de Jesus Cristo e de seu Espírito Santo, e fazendo que essas conquistas humanas terrenas apontem para a eternidade:

Nós, cristãos, não podemos, com efeito, deixar de pressentir a presença de Deus, que quer salvar o homem inteiro, alma e corpo. No dia definitivo da salvação Deus ressuscitará também nossos corpos, por cuja redenção geme agora em nós o Espírito com gemidos indescritíveis. Deus ressuscitou a Cristo e, por conseguinte, todos os que creem nele. Através de Cristo, ele está ativamente presente em nossa história e antecipa seu gesto escatológico não somente no desejo impaciente do homem para conseguir sua total redenção, mas também naquelas conquistas que, como sinais indicadores, com voz cada vez mais poderosa, do futuro, vai fazendo o homem através de uma atividade realizada no amor. (MEDELLÍN, Introdução, § 8, 1987, p. 6-7)

Quando, pois, a fé cristã fala de salvação, não a reduz a um único aspecto, mas a entende em suas mais variadas dimensões, uma vez que diz respeito à salvação do ser humano, em corpo e alma, em sua inteireza e integridade. Em linha de síntese, afirma-se que salvação é redenção do pecado em vista da vida eterna e é também libertação sociopolítica em vista da justiça social numa sociedade democrática em que se possa viver com dignidade a vida terrena. Desde Medellín, a visão de salvação, tanto da teologia como do Magistério da Igreja latino-americana, supera o dualismo reinante até então nos âmbitos eclesiais e abrange o ser humano em todas as suas dimensões e relações: consigo mesmo, com o mundo, com os irmãos e com Deus. Para a teologia e o Magistério da Igreja latino-americana, a salvação acontece no processo histórico de libertação de tudo o que impede a promoção e a defesa da vida. A salvação é, então, a realização cada vez mais plena do ser humano em sua história pessoal, comunitária, social e cósmica, até alcançar a plenitude na meta-história, a felicidade eterna.

2 A fé cristã em Jesus Salvador

Desde os seus inícios, a fé cristã afirma que os desejos mais profundos do ser humano, sejam os referentes à vida neste mundo sejam os que apontam para a vida após a morte, têm sua realização em Jesus Cristo, reconhecido como o único Salvador de toda a humanidade. A soteriologia (do grego soteria, salvação), disciplina teológica que estuda o processo da salvação humana por meio de Jesus Cristo, considera que não há, em todo o Novo Testamento, preocupação pela afirmação do ser de Jesus (o que só vai acontecer com os concílios cristológicos dos séculos IV a VIII), mas que o acento se dá sempre no agir salvífico de Jesus.

É precisamente no retorno ao agir salvífico de Jesus de Nazaré que a teologia atual conseguirá escapar das duas teses problemáticas que impedem o caminho reflexivo atual: o exclusivismo e o relativismo (FELLER, 1995, p. 11-15). O exclusivismo descarta a possibilidade de revelação e de salvação divina fora do âmbito do cristianismo. Além do risco do imperialismo, do fanatismo e da intolerância – atitudes que não condizem com o Evangelho de Cristo –, essa tese se revela injuriosa em relação ao amor de Deus, que “é maior que o nosso coração” (1Jo 3,20) e que excede todo nosso conhecimento e pretensão de açambarcá-lo. Ele também não dá nenhuma explicação sobre a ineficácia do cristianismo e do Evangelho cristão para a salvação de milhões de pessoas. Teria Deus se servido de um instrumento tão inadequado historicamente para realizar sua vontade de salvação universal? (SHORTER, 1986, p. 230-234). O relativismo, por sua vez, considera que as religiões não são nem verdadeiras nem falsas, porque não fazem afirmações sobre a realidade, mas servem-se de metáforas para descrever um sentimento pessoal ou um compromisso. Além de expor as religiões ao risco da banalização e do nivelamento pela linha da mediocridade, essa tese não respeita o diferencial de cada religião. No caso do cristianismo, não há que se negar que a fé cristã na divindade de Cristo não é puramente subjetiva, poética ou metafórica, mas fundamenta-se em atualidade histórica (SHORTER, 1986, p. 234-237).

O cristianismo está essencialmente ligado a uma insuperável particularidade histórica, que demanda a necessidade de eliminar a pretensão cristã à verdade absoluta, condensada em pronunciados traços imperialistas no decorrer de sua história. Mas é nessa particularidade que a fé cristã, desde o início, vê a manifestação da salvação em seu caráter escatológico, que obriga ao empenho pela superação de qualquer acomodação relativista. Para os cristãos, Jesus de Nazaré é uma manifestação relativa (porque é histórica) de um sentido absoluto (porque é divino) (SCHILLEBEECKX, 1997, p.179). É na particularidade histórica de Jesus de Nazaré que os cristãos hão de se firmar para confessar a universal ação salvífica do Cristo da fé. Citando a reflexão de von Balthasar sobre Jesus como “universal concreto”, M. Bordoni explica que esta é uma afirmação cristológica que “se fundamenta sobre a conjunção ontológica entre Deus e o homem que é o grande evento da história que nenhum pensamento humano poderia imaginar: ‘Cristo não é nem um indivíduo entre os outros, porque é Deus em pessoa, sem iguais entre os outros, nem é a norma como universal, porque é singular’” (BORDONI, 1997, p. 77).

Na linha da ótica calcedoniana da distinção na unidade entre o humano e o divino, o histórico e o eterno, crê-se que na particularidade histórica de Jesus de Nazaré se manifesta e se realiza, de modo pleno, o único plano salvífico universal de Deus, o qual, por sua vez, dilata-se e finca estacas nas religiões e culturas de todos os povos. Essa perspectiva é consequente com as reflexões cristológicas modernas que partem da história para chegar ao mistério, do particular para atingir o universal. A teologia atual parte da humanidade de Jesus de Nazaré para afirmar a divindade e a messianidade salvífica do Cristo da fé. Assim, seguindo uma cristologia de baixo para cima, procede-se da particularidade histórica de Jesus de Nazaré e da sua predileção pelos pobres, para perceber e definir nele a revelação da presença e da ação salvíficas de Deus-Pai em favor de todos.

Nesse sentido, encaixam-se aqui as quatro trajetórias cristológicas básicas que, segundo Helmut Koester, se desenvolveram nos anos entre a morte de Jesus e a redação dos textos neotestamentários. Fazendo memória de Jesus, de seus ensinamentos, escolhas, decisões e enfrentamentos, as primeiras comunidades cristãs foram elaborando essas trajetórias, todas elas com conteúdo soteriológico, isto é, voltado para a ação salvífica de Jesus: a) numa cristologia da parusia, voltada para o futuro, Jesus é o Filho do homem e Senhor vindouro, o agente divino que em breve retornaria na glória para julgar o mundo; b) numa cristologia da vida pública, centrada no presente da comunidade, Jesus é o homem divino, aprovado por Deus com milagres, prodígios e sinais que Deus fez por meio dele no meio dos seres humanos; c) numa cristologia da sabedoria, interessada na origem de Cristo, ele é o mestre, o enviado da sabedoria divina ou, até mesmo, a sabedoria encarnada; d) numa cristologia pascal, atenta ao final da vida de Jesus e ao início da comunidade cristã, Jesus é o crucificado e ressuscitado dentre os mortos (KOESTER, citado por GALVIN, 1997, p. 336-338).

A partir dessas trajetórias cristológicas, anteriores à redação dos textos neotestamentários, irão se desenvolver, no interior mesmo do Novo Testamento e, depois, no decorrer da história cristã, diversos modelos soteriológicos ou explicações concernentes ao modo como opera a graça de Cristo em favor de nossa salvação. Convém salientar que essas explicações enfocam como salvíficos um ou mais aspectos da existência de Cristo, sendo que os principais pontos de referência são a encarnação, a vida pública, a morte e a ressurreição de Cristo, a recapitulação final (GALVIN, 1997, p. 359). A soteriologia pascal, embora com acento mais na morte que na ressurreição, será predominante. Por sua maior fidelidade ao Jesus histórico, maior poder de edificar a Igreja, maior aproximação com a realidade do sofrimento humano, maior capacidade de oferecer estrutura aglutinadora dos outros tipos soteriológicos, ela funcionará como fator unificador.

Nos itens a seguir, veremos como esses enfoques foram ganhando novos contornos e como foram se desenvolvendo no decorrer da história da fé cristã.

3 Salvação pela encarnação do Verbo divino

O pensamento gnóstico-dualista não aceitava a doutrina da encarnação. Ao postular dois princípios metafísicos absolutos – um, espiritual e celeste, que era fonte de bem, e outro, material e terreno, que era fonte do mal –, viam o mundo criado sob luz negativa. Por essa visão negativa da matéria, o divino, totalmente espiritual, não poderia habitar, muito menos assumir, o mundo material. Em reação a esse dualismo, os Padres da Igreja, apoiados em grandes linhas no evangelho de João, afirmaram claramente que o Verbo de Deus se fez realmente carne no homem de Nazaré. A crença na encarnação é o fundamento da prática sacramental, pela qual as coisas criadas podem mediar a presença de Deus. Para Irineu de Lião (†202) é claro que, se o Verbo não se fez realmente carne, não poderia ser crucificado, não poderia nos redimir com seu sangue, não poderia dar-se a nós no sacramento eucarístico do seu corpo e sangue. Para Agostinho de Hipona (†430) a encarnação é a expressão definitiva do amor de Deus, que se rebaixa para entrar no mundo de modo pessoal e assim alcançar-nos a salvação.

Ligada à encarnação está a noção de salvação por meio da educação ou iluminação (RYAN, 2020, p. 92-94). Esta noção teve seu auge com os Padres Apostólicos e os Apologistas, no final do século I e no decorrer do século II. O Verbo de Deus encarnou-se para nos transmitir a verdade sobre Deus e sobre nós mesmos. Com seus ensinamentos e exemplos, ele é o mestre por excelência, veio nos tirar da ignorância, veio trazer luz para os que jaziam nas trevas do erro e do pecado. O cristianismo é visto como uma nova filosofia, um novo modo de vida. Trata-se, pois, de seguir seus ensinamentos, cumprir sua palavra, tornar-se seu discípulo fiel, deixar-se formar por esse divino pedagogo. Esse tema da obra salvadora como educação ou iluminação começou a perder seu vigor com a crítica de Agostinho aos pelagianos, que propunham a salvação pela prática dos ensinamentos e a imitação dos exemplos de Cristo. Para Agostinho, na linha de São Paulo em sua crítica à confiança na Lei, era preciso algo mais transformador, algo que nos libertasse do poder do pecado do mundo e, assim, nos predispusesse a viver de acordo com os ensinamentos de Cristo.

Também relacionado à encarnação está o tema da divinização ou deificação (RYAN, 2020, p. 94-97). O Verbo se fez homem para que nós, humanos, nos tornemos divinos. Pela divinização, que é mais do que a justificação ou o perdão dos pecados, o ser humano compartilha da própria vida de Deus, vive em comunhão com ele, torna-se filho por adoção. Trata-se de um maravilhoso intercâmbio: Deus se diminui para compartilhar a vida humana, a fim de que nós possamos compartilhar a vida divina, que é incorruptível e imortal. Essa divinização é possível, portanto, não por causa de algum dom humano natural, mas por pura graça divina, alcançada no decorrer de um longo processo de assimilação a Cristo a partir do batismo e pela vivência dos sacramentos.

A importância da soteriologia fundamentada na encarnação de Jesus, com suas subteorias centradas na educação e na divinização, não diminui o impacto da centralidade da morte de Jesus como predominante nas explicações da ação salvífica em favor da humanidade. Em sua grande explanação da obra divina da encarnação, assim se expressa Atanásio de Alexandria (†373), apontando para a morte salvadora do Senhor:

Vendo todos os homens sujeitos à morte, ele teve piedade de nossa raça e misericórdia de nossa fraqueza; condescendeu com nossa corrupção e não suportou que a morte dominasse sobre nós, a fim de não perecer a criatura nem se inutilizar a obra realizada pelo Pai, em benefício dos homens. O Verbo tomou, por isso, um corpo igual ao nosso (…) e o entregou à morte, em prol de todos, apresentando-o ao Pai. Agiu desta maneira por filantropia. Desta maneira, uma vez que todos nele morrem, a sentença de corrupção proferida contra os homens será ab-rogada, após ter sido inteiramente consumada no corpo do Senhor (ATANÁSIO, 2002, p. 134-135).

4 Salvação pelo ministério público do Enviado do Pai

Outro modo de apresentar a salvação em Jesus Cristo enfoca o seu ministério público, em particular a proclamação do Reino de Deus (RYAN, 2020, p. 55-59). No discurso programático do início de seu ministério (Lc 4,18-19), Jesus se apresenta como enviado do Pai dizendo a que veio: trazer a boa-nova aos pobres, libertar os prisioneiros, recuperar a vista aos cegos, proclamar o ano de graça do Senhor. Em todo o seu ministério público, Jesus cura doentes, expulsa demônios, perdoa pecadores, sacia a fome de multidões, chama homens simples e rudes para serem seus apóstolos, inclui mulheres em seu grupo de seguidores, coloca-se do lado dos pobres e excluídos da religião e da sociedade (FELLER, 1995, p. 55-74). Em Jesus de Nazaré, Deus se fez próximo e companheiro dos marginalizados e oprimidos de toda sorte. Ele não veio “para julgar o mundo, mas para salvá-lo” (Jo 12,47). Os excluídos da vida religiosa e social foram os prediletos de Jesus, destinatários do anúncio do Reino, escolhidos como sujeitos da construção do novo povo de Deus, caminho privilegiado da revelação de Deus a todos. Na opção de Jesus pelos pobres, se descobre a vontade divina de salvação de todos.

O anúncio do Reino de Deus por Jesus indica que algo não está bem na história humana: há pessoas em situação de não salvação, há poderes ativos na obra da criação divina que são opostos a Deus, há agentes humanos que, embora criados por Deus e para Deus, agem contra o ser e o agir de Deus. No anúncio do Reino de Deus, que se liga intrinsecamente à sua pessoa, Jesus está indicando que Deus vem para salvar. É certo que “a mensagem de Jesus se focalizava em um futuro advento de Deus para reinar, um tempo em que ele se manifestaria em toda a sua glória e força transcendentes para reunir e salvar seu povo de Israel, pecador, porém arrependido” (MEIER, 1997, p. 91). Mas o Reino de Deus não tinha só uma dimensão futura; ele já estava acontecendo, já se fazia presente na própria pessoa, nas palavras e ações salvíficas de Jesus, que

aponta para o poder soberano de Deus, revelado de forma clara nos exorcismos (e em outras obras salvíficas) que ele realiza e que mostram cabalmente que o Reino de Deus já chegou, ao menos para os que experimentaram na própria carne a poderosa manifestação de Deus derrotando o mal (MEIER, 1997, p. 256).

Para maior clareza, poderíamos dizer que o Reino de Deus pregado por Jesus é a realização dos sonhos divinos, transformados em sonhos humanos, em três grandes condições que expressam a realidade de salvação. Três condições que não se excluem, não se escalonam, mas se exigem mutuamente. Há uma condição mínima, que se manifesta no cuidado com a vida física, na saúde e bem-estar do corpo, na posse dos bens materiais necessários à integridade da existência: comida, casa, saúde, trabalho, segurança etc. Grande parte das obras de Jesus concentrou-se na solução-salvação de problemas físicos, materiais: cura de doenças, multiplicação dos pães, exorcismos. De fato, sem essa condição mínima, o Reino de Deus fica sem base, sem chão. Como ser feliz sem as condições mínimas de vida digna? Mas, isso não é suficiente. A felicidade humana aponta para uma expressão mais densa de salvação. Há uma condição média, que se mostra no cultivo do espírito, no acesso à educação, na liberdade de locomoção e de comunicação, nas expressões artísticas, esportivas, culturais, na promoção dos direitos humanos, pessoais e sociais, na construção da cidadania, na organização democrática, na segurança e na paz. Também aqui vemos a pregação e a ação de Jesus: as bem-aventuranças, o mandamento do amor ao próximo, as parábolas, a acolhida e o perdão aos pecadores, a vida de oração. De fato, de que adianta ter comida, se não há tranquilidade e paz, se não há comunhão? Mas, a posse de bens materiais e espirituais ainda é pouco para a felicidade humana. O ser humano tem dentro de si um desejo de absoluto, de salvação eterna, um vazio que só será preenchido no encontro definitivo com Deus. Há, por isso, uma condição máxima e última para a realização do Reino de Deus, que Jesus indicava sem deixar ambiguidades: a ressurreição final, a posse dos bens eternos, a vida eterna, a convivência feliz no céu.

O Reino de Deus é o próprio Jesus, no seu modo de ser e de agir. Ele é a mediação suprema da felicidade humana, das salvações históricas e da salvação eterna. É o Reino de Deus no meio de nós (Lc 17,21). Em sua pessoa e práxis, o Reino foi anunciado e iniciado, a salvação foi realizada, ainda que embrionariamente, em favor dos últimos e, a partir deles, em favor de todos.

5 Salvação pela morte e ressurreição do Redentor

Jesus não morreu por acaso, nem por doença, nem por acidente. Embora a comunidade cristã vá dizer que sua cruz se explica pelos desígnios da presciência de Deus (At 2,23; 4,28), é preciso, contudo, considerar os fatores históricos. Jesus foi levado à morte por causa do anúncio do Reino de Deus, o que implicava também o anúncio de outra imagem de Deus. Seja o anúncio do Reino de inclusão e igualdade, de perdão e liberdade, seja o anúncio de Deus como Pai de ternura, compaixão e misericórdia, isso incomodou os chefes religiosos.

Desde o início de seu ministério público e no decorrer de sua missão de anunciar o Reino e denunciar as práticas idolátricas do antirreino propagadas pelos chefes religiosos, Jesus foi perseguido. Foi ficando cada vez mais clara, para Jesus, a percepção de que a realização da vontade do Pai teria que passar pela entrega de sua vida. Mesmo que os evangelhos reflitam a interpretação das comunidades cristãs, há sólidas evidências de que o Jesus terreno revelou ter consciência do significado salvífico de sua morte (RYAN, 2020, p. 60-64). É o que se pode notar na indicação de que não veio para ser servido mas para servir (Mc 10,45), nos anúncios da paixão (Mc 8,31; 9,31; 10,32-34), nos relatos da instituição da eucaristia, em que ele manifesta a confiança de que sua morte servirá para a restauração de Israel e a renovação da aliança divina (Mt 26,26-30; Mc 14,22-26; Lc 22,14-20), e na oração no Getsêmani, na qual ele entrega sua vida àquele a quem chamava de Abbá (Mt 26,36-45; Mc 14,32-42; Lc 22,39-46). O próprio Jesus – e não apenas a comunidade cristã – deve ter lido sua morte à luz de textos proféticos: o martírio de um judeu fiel poderia expiar os pecados do povo (2Mc 7,37-38), o suplício do servo sofredor exerce o papel de sofrimento vicário no plano de Deus (Is 52,13–53,12). A confissão de fé dos primeiros cristãos de que a morte de Jesus tem poder salvífico (1Ts 5,10; Rm 4,25; 1Cor 15,3) certamente se fundamenta em atitudes e palavras do próprio Jesus.

5.1 A morte como oferta sacrificial

Ligada à morte, a ideia de sacrifício foi bastante útil para os Santos Padres explicarem o modo como se dá a salvação do gênero humano por Jesus Cristo (RYAN, 2020, p. 97-100). Clemente de Roma ensinava que o sangue de Cristo foi precioso para o Pai, já que foi derramado para a expiação do pecado humano e trouxe a graça do arrependimento. Atanásio ensinava que Jesus, oferecendo-se a si mesmo como sacrifício sem mancha, entregou-se à morte no lugar de todos os seres humanos, para acertar as contas com a morte e libertá-los das consequências da primeira transgressão. Segundo Ambrósio, por sua auto-oferenda, Jesus redimiu a carne humana, que era sujeita ao pecado. João Crisóstomo, nas homilias sobre a Carta aos Hebreus, se refere à morte de Cristo como sacrifício de propiciação para comprar o fim da raiva de Deus. De modo diverso, Agostinho afirma que o sacrifício de Cristo não foi para aplacar a ira de um Deus furioso, mas consequência de sua encarnação, que implicava a manifestação de sua solidariedade plena, até a morte na cruz, com a humanidade ferida e perdida.

Como o sacrifício de Cristo, também a comunidade cristã se oferece em sacrifício na eucaristia, por meio do sumo sacerdote Jesus Cristo, que se ofereceu a Deus em sua paixão por nós, na forma de servo, para que pudéssemos participar de sua cabeça gloriosa e, assim, praticar as boas obras que são o verdadeiro sacrifício a ser oferecido a Deus.

5.2 A morte como expiação dos pecados

Como único, verdadeiro, sumo e eterno sacerdote, Cristo oferece-se a si mesmo como vítima pascal. Assim, ele supera a instituição cultual do Antigo Testamento, ligada ao Templo e aos sacrifícios, indicando que, como a Lei, tampouco o culto salva. O único ato salvador a assegurar, de uma vez por todas (Hb 7,27; 9,12.26.28; 10,10), o perdão dos pecados e a comunhão com Deus é a morte sacrificial de Jesus, que veio para servir e dar a sua vida por nós (Mt 20,28), para derramar o seu sangue e nos purificar do pecado (1Jo 1,7), para nos resgatar a todos do poder do mal (1Tm 2,6). Em lugar de uma ação sagrada realizada no recinto do Templo e com rituais precisos (Lv 1-15) que mediassem o desejo humano de expiação (Hb 9,1-10), o sacrifício de Jesus acontece fora do Templo e da cidade santa, como assassinato de um malfeitor (Hb 13,12). Este é o verdadeiro culto a Deus, que responde plenamente aos anseios de expiação, pois abre o caminho para o repouso divino e a herança eterna. O grande ritual de expiação, que visava libertar Israel de seus pecados e restabelecer a aliança do povo com Deus (Lv 16), realiza-se definitivamente em Jesus Cristo, que carregou o pecado do mundo e o expiou com seu próprio sangue (Hb 9,6-14). Substitui-se a prática sacrificial de animais pela oferta de um único mediador entre Deus e os seres humanos (Hb 9,1-15), o único santuário, o único sacerdote, o único sacrifício realmente agradável a Deus, não o sacrifício simbólico celebrado com ritos religiosos, mas o sacrifício real da vida inteira doada em favor dos irmãos. Com sua morte sacrificial na cruz, Cristo supera todos os ritos e sacrifícios da antiga aliança (Hb 10,1-10). “Assim, ele suprime o primeiro para estabelecer o segundo” (Hb 10,9). Por isso, a cidade nova – a Igreja, o céu – não precisa de santuário, “pois o seu santuário é o próprio Senhor, o Deus todo-poderoso, e o Cordeiro” (Ap 21,22).

Daí o convite a que os cristãos superem a negligência (Hb 2,1), a incredulidade (Hb 3,12-13), a imaturidade espiritual (Hb 5,11-12) e saiam do recinto sagrado (Hb 13,13) para entrar em contato com o mundo onde se encontra o Cristo humilhado, que não se envergonha de ser nosso irmão (Hb 2,11) e continua a carregar a sua cruz no meio dos pobres. Assim, os fiéis alcançam a salvação em assemelhar-se a Jesus, em sua prática de amor ao próximo, no amar até o fim, até a doação da própria vida.

5.3 A morte como pagamento do resgate do cativeiro

Além da ideia de sacrifício, também a noção de resgate serviu para os Santos Padres apresentarem sua explicação soteriológica. Servindo-se da passagem de Mc 10,45 (“o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos”), alguns Padres da Igreja ensinam que, com sua morte e ressurreição, Jesus triunfa sobre o mal e resgata a humanidade que estava cativa, sob o poder do diabo. Gregório de Nissa afirma que a humanidade, com o pecado, havia se vendido a Satanás, o qual passou a ter direito sobre nós. Por questão de justiça, portanto, Deus precisava dar ao diabo, senhor da humanidade, a oportunidade de pedir o que quisesse como preço pelo resgate do ser humano. O diabo pediu o que era mais valioso do que a raça humana: o sangue do Nazareno, nascido de uma virgem e realizador de tantos milagres. Mas enganou-se porque não enxergara a divindade escondida dentro da humanidade do Senhor. Ao ressuscitar dos mortos, Jesus engana o diabo e o vence, e, unindo ao seu corpo toda a raça humana, a resgata do cativeiro diabólico. Para Agostinho, o diabo adquiriu direitos sobre a humanidade com o pecado dos primeiros pais. Por um ato de justiça e não de poder, Deus liberta a raça humana com a humildade de Cristo na encarnação, quando este não só se torna semelhante a nós, mas, embora inocente, assume também nosso sofrimento. Por ter matado um homem inocente, o diabo perdeu os direitos sobre a humanidade.

Todavia, essa ideia do resgate não foi assimilada por todos. Gregório Nazianzeno considera um ultraje chocante imaginar que o sangue de Cristo fosse o pagamento dado ao diabo pela libertação do ser humano; de modo diverso, ele entendia que o Pai aceitou a oferenda livre de Cristo não por exigência do diabo, mas porque, na economia da salvação, a humanidade deveria ser santificada pela humanidade de Deus, para que pudesse nos libertar vencendo o poder do tirano e nos conduzindo a si pela mediação do Filho.

5.4 A morte como prestação de satisfação a Deus

Com Anselmo da Cantuária, temos a passagem do uso de imagens ou metáforas para a elaboração de uma teoria soteriológica da satisfação (RYAN, 2020, p. 109-121). Ele quer oferecer uma elucidação racional dos mistérios da fé e responder a pensadores judeus que julgavam ofensiva à dignidade e à impassibilidade de Deus a ideia de encarnação. Daí o título de sua obra principal: Cur Deus homo? (Por que Deus se fez homem?). Seu argumento soteriológico se contextualiza na época feudal, em que a submissão à vontade da autoridade superior era essencial para a manutenção da ordem social e, portanto, em caso de ofensa à autoridade era exigida satisfação correspondente ao status social do ofendido. Situa-se ainda no contexto do sistema penitencial, em que havia penitências prescritas para pecados específicos em vista da satisfação para a reparação dos pecados. A satisfação oferecida pelo ofensor à autoridade e pelo pecador a Deus passou a ser uma analogia natural para explicar o sacrifício de Cristo em favor da redenção da humanidade.

Anselmo pressupõe a crença cristã de que Deus criou a humanidade para a felicidade eterna, o que requer a submissão completa da vontade humana aos planos divinos. Ao pecar, todos recusaram essa submissão, desonrando Deus e, em consequência, perturbando a ordem do universo. A superação do pecado envolve, portanto, a restauração da honra divina e o restabelecimento da harmonia do universo. Para isso há dois caminhos, o castigo divino ou a prestação de satisfação a Deus. O castigo é uma ideia inconcebível, pois contraria o desejo divino de que todos alcancem a bem-aventurança eterna. A prestação de satisfação por parte do ser humano é impossível, pois sendo infinita a dignidade de Deus é também infinita a ofensa contra ele e, portanto, a humanidade é incapaz de cobrir a distância entre o pecado cometido e a honra ofendida.

Por questão de justiça e por respeito à liberdade e à responsabilidade humanas, Deus não pode desconsiderar a ofensa e, portanto, a exigência de satisfação. Por misericórdia, Deus quer levar adiante o seu plano de ter todos consigo na felicidade eterna. A saída do impasse encontra-se na encarnação de Deus. A prestação da satisfação será feita por alguém que é ao mesmo tempo Deus perfeito e homem perfeito. A dívida é paga por alguém da raça humana, que sendo Deus apresenta-se como oferenda correspondente ao status divino daquele cuja honra foi ofendida. Como a morte é efeito do pecado, o Filho eterno de Deus não precisava morrer, mas livremente quis entregar-se à morte para satisfazer a honra divina; por este ato extremo de liberdade pessoal e de obediência ao Pai, sua auto-oferenda tem valor infinito, maior do que todo o pecado da humanidade. Sua morte presta satisfação apropriada para Deus e produz a redenção de toda a raça humana.

Com leves nuances de diferença, Tomás de Aquino acolhe a teoria de satisfação, enquanto considera que

sofrendo por amor e por obediência, Cristo ofereceu a Deus mais do que exigia a compensação de todas as ofensas do gênero humano. (…) Portanto, a paixão de Cristo foi uma satisfação pelos pecados humanos não só suficiente, mas superabundante. (TOMÁS DE AQUINO, 2002, p. 693)

Essas explicações da salvação pela morte – sacrifício, expiação, resgate, satisfação – sempre se correlacionam com a ressurreição. Se Cristo não tivesse ressuscitado, sua morte não teria poder salvífico. O primeiro efeito salvífico da morte e ressurreição do Senhor manifestou-se nos discípulos. A experiência pascal do encontro com o Cristo ressuscitado fez os discípulos vivenciarem, também eles, sua Páscoa particular: de medrosos e trancados em casa tornaram-se corajosos e ousados no anúncio da ressurreição do Senhor. Passaram a professar a inauguração, ainda que provisória, do Reino de Deus pregado por Jesus. A morte do mestre foi aceita pelo Pai, que se vingou dos mandantes e assassinos libertando a vítima do poder da morte e dando-lhe um novo modo de viver. Assim, a ressurreição de Jesus revela o significado universal da pessoa, da mensagem e da obra salvadora de Jesus.

Como não é possível entender o ministério público do anúncio do Reino sem o destino de morte, também não dá para separar a morte e a ressurreição. Surgiu muito cedo na comunidade uma interpretação soteriológica da morte e da ressurreição de Jesus, como dois eventos que se explicam mutuamente: em Jesus não há morte sem ressurreição, não há ressurreição sem morte. Sua morte não é vista apenas como acontecimento histórico, mas como evento salvífico: ele morreu por nossos pecados, como parte integrante da vontade salvadora de Deus. Sua ressureição, em conexão com a morte, é vista como intrínseca à revelação do desígnio salvador de Deus.

6 Salvação pela recapitulação do Cristo Cabeça

A renovação da humanidade e do mundo é um dos conceitos soteriológicos centrais do Novo Testamento. Os primeiros cristãos estavam convencidos de que em Cristo a humanidade e a história ganharam um novo começo. No hino cristológico da Carta aos Efésios (3,1-10), Paulo bendiz a Deus porque em Cristo todas as coisas são recapituladas. Essa doutrina está biblicamente fundamentada no ensinamento paulino do novo Adão (Rm 5,12-21; 1Cor 15,20-28.45-49), o qual supera em graça e salvação os efeitos nocivos do pecado do primeiro Adão.

A doutrina da recapitulação é especialmente desenvolvida por Irineu de Lião. (RYAN, 2020, p. 90-92). Contra o pensamento gnóstico, a recapitulação carrega a intenção de unir criação e redenção: a ação salvadora de Deus em Cristo inicia-se com a criação, continua com a redenção e realiza-se plenamente na recapitulação. Segundo Irineu, ao fazer-se carne o Verbo divino uniu-se a toda a humanidade, santificou todos os estágios da vida humana e inaugurou, assim, uma raça redimida. Como cabeça da Igreja e da humanidade, por sua obediência ele desfez os laços que nos prendiam à desobediência e reorientou todas as coisas a si. Agora, todos os seres humanos e, mesmo, todas as coisas, estão orientados para Cristo, encontram em Cristo seu sentido, foram recapitulados, reencabeçados em Cristo (IRINEU, 1995, p 349-351). Por sua obediência, Cristo restaura na humanidade a semelhança divina que havia sido perdida pela desobediência, incorporando a si toda a história humana. Se a desobediência do primeiro Adão teve abrangência universal, a obediência do novo Adão tem alcance ainda maior e abraça todos, tornando-se o ponto máximo da história humana. Ele perfez todo o caminho da história, assumindo a condição humana em todas as suas dimensões, mas não as contaminando com o pecado (Hb 4,15). Mesmo que nele não houvesse pecado (1Jo 3,5; 1Pd 2,22), ele fez-se pecado por nós para que fôssemos justificados (2Cor 5,21). Assim, Jesus Cristo imprime na humanidade sua vitória sobre o mal, o pecado e a morte.

Essa perspectiva da salvação pela recapitulação, que, tendo sua origem no Oriente cristão, percorreu o subterrâneo da teologia e da espiritualidade do Ocidente, é reassumida nos tempos modernos por grande número de teólogos. Foi adotada em suas grandes linhas pela Gaudium et Spes, onde ganhou foros de oficialidade em documento conciliar. Ela se reflete, por exemplo, nos quatro capítulos da parte doutrinal do documento. Com efeito, quase que como luz no fim do túnel, que esclarece todo o caminho anteriormente percorrido, Cristo, homem novo (GS 22), ilumina a doutrina sobre a dignidade da pessoa humana (GS 12-21); o Verbo encarnado (GS 32) elucida a doutrina sobre a comunidade humana (GS 23-31); o Cristo recapitulador do novo céu e da nova terra (GS 39) explica o sentido da atividade humana no mundo (GS 33-38); o Cristo, alfa e ômega (GS 45), interpreta a função da Igreja no mundo (GS 40-44). A perspectiva da recapitulação vê o sentido da encarnação de Cristo não apenas na libertação do mal, mas sobretudo no aperfeiçoamento do bem que está presente em toda a criação. Incluindo evidentemente a redenção como libertação do mal, a perspectiva da recapitulação de tudo em Cristo tem maior abrangência, é mais otimista, oferece maior respiro místico para uma teologia que dialoga com as demais igrejas, com as religiões e culturas, e está atenta aos grandes desafios da história.

7 O anúncio da salvação em Cristo no contexto atual

No anúncio da salvação em Cristo no atual contexto de pobreza crescente, de desmonte da democracia e das políticas públicas, de pluralismo religioso e de uso abusivo da religião para a manipulação das consciências para justificar a violência, a corrupção, a matança de inocentes, é preciso ter em conta o pressuposto básico da singularidade de Jesus no contexto de suas relações (TAVARES, 2004, p. 515-147), isto é, o retorno ao humano de Jesus de Nazaré (TORRES QUEIRUGA, 1999, p. 305-310), à humanidade de Jesus como caminho para nossa realização pessoal e para a construção de um novo mundo. Essa concretude histórica é, na verdade, alguém situado no tempo e no espaço, um homem de conflitos, com causas e opções bem definidas, com relações diferenciadas diante dos pobres e dos poderosos, com crises, renúncias e enigmas[1], com práticas provocadoras que o levaram a ser condenado à morte. Somente a partir da humanidade de Jesus haverá sentido afirmar o “mistério da graça” do cristianismo, “o ponto essencial onde o cristianismo se diferencia das outras religiões”, porque é no homem de Nazaré que se revela a vinda de Deus, que se cumpre “o anélito presente em todas as religiões da humanidade”; nele “o homem (vivens homo) é epifania da glória de Deus, chamado a viver da plenitude da vida em Deus” (JOÃO PAULO II, 1994, p. 11-12).

A partir do retorno à humanidade histórica de Jesus, pode-se captar melhor a relação entre a salvação cristã e a opção pelos pobres (FELLER, 2005, p. 56-78). É preciso colher a humanidade de Jesus naquilo em que ela se revelou mais dramática, a ponto de se poder afirmar que esse homem seja Deus e, portanto, o salvador da humanidade. O Deus do judeu-cristianismo é um Deus que busca o ser humano, que vem ao encontro de cada ser humano e da humanidade em geral. Até o ponto de tornar-se um de nós. A fé cristã confessa que, para conhecê-lo, o ser humano precisa do auxílio especial de uma revelação. Não foi com a sabedoria do mundo, com o poder do dinheiro e a força do mando que o cristianismo conseguiu chegar a todos os povos. Também hoje, não será com o poder da razão, da lei, do triunfo, que sempre aninham pretensões de exclusividade, que o cristianismo conseguirá propor a salvação de Cristo aos pobres, aos membros de outras religiões, à sociedade secular. Mas, sim, desde a pequenez, a pobreza e o martírio. Estas atitudes nos recordam que “o serviço da missão é o gozo de uma Igreja que anuncia ao ser humano de hoje, que é um filho de Deus em Cristo, que se compromete na libertação de todo homem e de todos os homens” (MARADIAGA, 2004, p. 57).

A teologia da libertação, inspirada na história multissecular da caridade cristã, nas ações pastorais das comunidades eclesiais de base e nos ensinamentos do episcopado latino-americano, enfocou sua reflexão na opção pelos pobres. Sistematizou, assim, a mensagem do cristianismo ao redor do lugar central que ocupam os pobres, como prediletos da mensagem e da prática de Jesus de Nazaré. Também a mensagem da salvação em Jesus Cristo se compreende a partir da opção pelos pobres. A centralidade dos pobres como destinatários e, a partir daí, também sujeitos do Reino de Deus, torna-se chave de leitura para compreender a amplitude desse mesmo Reino, em favor da inclusão, em seu interior, de gente de todos os povos, culturas e religiões (AQUINO JÚNIOR, 2004, p. 515-554). Para o entendimento desta centralidade vale a citação do exegeta alemão J. Jeremias:

Com a constatação de que Jesus proclamou a aurora da consumação do mundo não descrevemos ainda completamente sua pregação da basileia. Pelo contrário, não mencionamos ainda o traço essencial (…) a oferta de salvação que Jesus faz aos pobres (…). O Reino pertence unicamente aos pobres. (JEREMIAS apud SOBRINO, 1994, p. 124)

Os pobres são, com efeito, os primeiros e únicos destinatários da mensagem de Jesus, ungido pelo Espírito “para anunciar a Boa-Nova aos pobres” (Lc 4,18). Sinal de que Jesus é o Messias é: “aos pobres se anuncia a Boa-Nova” (Lc 7,22; Mt 11,5). A primeira bem-aventurança de Jesus é: “felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6,20).

A partir desta centralidade dos pobres para a compreensão e a prática do Reino de Deus, há de se compreender a parcialidade do próprio Reino de Deus (SOBRINO, 1994, p. 128-131). Como realidade escatológica, o projeto salvífico de Deus em favor da humanidade e de toda a criação, o Reino é universal, aberto a todas as pessoas e a todos os povos. Revelado ao povo judeu, o Reino abriu-se, depois, a todas as nações, a toda criatura (Mc 16,15). Essa abertura deu-se, no entanto, pela mediação dos pobres. Não foram os chefes religiosos e os líderes políticos que aceitaram e propagaram o movimento de Jesus. Ao contrário, se dependesse deles, o Reino de Deus teria sido sufocado como foi rejeitado e morto o seu pregador. Se o Reino de Deus teve continuidade na história, sua abertura aos povos, com a possibilidade de inserção em todas as culturas e de diálogo com todas as religiões, isso se deve, no que depende da ação humana, aos pobres de Israel. Da parcialidade em favor dos pobres, o Reino foi aberto à totalidade dos povos (AQUINO JÚNIOR, 2004, p. 518; FRAIJO, 2002).

Essa totalidade, portanto, não será devidamente entendida fora da parcialidade dos pobres, pois neles, como no servo sofredor Jesus de Nazaré, Deus continua a se revelar a nós.

Nesses pobres aparece o rosto de Deus, a divindade escarnecida. Que nós seres humanos possamos ver algo de Deus neles não é programável, mas acontece. Alguns só parecem exprimir o não ter figura humana, o não entesourar sua condição divina, que lhes vem com a criação. Esses pobres, como o Filho amado, fazem Deus presente, silencioso e escondido, mas enfim Deus. (SOBRINO, 2000, p. 290)

 Já no Antigo Testamento, Javé havia se revelado como Deus de um povo oprimido. Essa parcialidade não só não é negada como é corroborada no Novo Testamento. Encontramos nas Escrituras uma série de preferências de Deus, que revela sua parcialidade em favor de uns, precisamente ao revelar sua contrariedade diante de outros.

Essa parcialidade é mediação essencial de sua própria revelação. Deus não se revela, primeiro, como ele é e, depois, se mostra parcial para com os oprimidos. É antes em e através de sua parcialidade para com os oprimidos que Deus revela sua própria realidade. (SOBRINO, 1994, p. 129)

Deus revela seu ser – quem ele é e como ele é – através de seu agir. Se o seu agir se concentra na libertação dos pobres, há que se concluir, então, que o ser de Deus está marcado pela simplicidade e pela pobreza. Se “Deus é Amor” (1Jo 4,8.16), em sua comunhão de amor não há lugar para o orgulho e a prepotência.

Vivida em Deus, a história humana se torna uma só caminhada, um só devir humano, assumido irreversivelmente por Cristo, cuja obra salvadora passa a abranger todas as dimensões do existir humano, mas sempre a partir das situações em que a vida se encontra mais fragilizada. Por isso,

as mediações históricas e políticas atuais, valorizadas por si mesmas, mudam a vivência e a reflexão sobre o mistério escondido todo o tempo e agora revelado, sobre o amor do Pai e a fraternidade humana, sobre a salvação que opera no tempo e dá sua unidade profunda à história humana. (GUTIERREZ, 1981, p. 96)

O próprio Deus, que se revela na história do pobre de Nazaré em particular e dos pobres em geral, quer que os acontecimentos da história sejam sinais de sua presença salvadora e mediações para o encontro com ele.

Essa opção do próprio Deus nos faz ver que é embaixo que se situam não só as ânsias de liberdade, mas também as práticas de libertação, experimentadas na comunhão e no diálogo entre as pessoas e povos.

A comunhão com os outros, esta igualdade que Cristo quer que nós vivamos, se descobre por via da carne e não pela do espírito. É por meio da carne que Cristo é nosso irmão, nosso consanguíneo, igual a nós. E essa fraternidade, nós a podemos descobrir no nível mais baixo, no nível ínfimo. Enquanto existir alguém mais baixo do que nós, enquanto existir uma cota de “profundidade” que não tenhamos alcançado, isto significa que não realizamos toda a fraternidade. (PAOLI, 1983, p. 16)

No empenho pelo anúncio da salvação universal em Jesus Cristo, não se pode menosprezar a memória e a prática da fé do povo pobre, que, mesmo em sua pobreza e fraqueza, subverte a ordem do mundo para criar uma nova ordem cultural e religiosa (GUTIERREZ, 1981, p. 78-85; 133-139; 245-313; SCANNONE, 1976, p. 217-252), para sonhar com a globalização da solidariedade, para garantir no horizonte da história que um outro mundo é possível. No mesmo espírito do seguimento de Jesus e da opção pelos pobres, como critérios básicos para verificar a salvação universal e eterna, entende-se ainda o decálogo, também proposto pelo CELAM (2003, p. 213-229), para viver neste mundo globalizado a experiência da ação salvífica de Deus em nossa história: descobrir um ethos comum, uma força que vincule moralmente pessoas e grupos, no meio do relativismo ético ou da ausência total de ética; apostar na caridade, expressa por uma real opção pelos pobres contra a exclusão; reconstruir o tecido social, a partir da importância da família e da comunidade política; promover uma cultura do acolhimento, da hospitalidade, da gratuidade; dialogar com as ciências, com as culturas e com as religiões, buscando e valorizando um horizonte de crescimento mútuo; democratizar a comunicação, sobretudo no referente ao intercâmbio de sentido; fortalecer a globalização a partir de baixo, destacando e oferecendo alternativas de promoção e defesa da vida para os excluídos; acompanhar iniciativas de integração entre os países pobres, em vista de um destino mundial comum; replanejar a educação, como compromisso com as novas gerações; promover um novo modelo de desenvolvimento social e ecologicamente sustentável. Em tudo isso são expressas salvações históricas que são, por sua vez, sinais da salvação escatológica.

Conclusão

O ser humano nunca está feliz com o que é nem com o que tem. Busca sempre algo mais. Quer livrar-se de situações insuportáveis, luta por uma vida mais confortável. Desde Medellín, a teologia latino-americana entende que a salvação cristã abrange todos esses sonhos humanos e aponta para sua realização plena na eternidade. Deus está presente ativamente na história e faz com que as lutas humanas de libertação social, política e econômica tenham significado teológico. A salvação eterna passa pelas libertações históricas, embora não se fixe nelas.

Desde o início do cristianismo, como se pode perceber nos escritos do Novo Testamento, Jesus é apontado como o salvador da humanidade. A salvação em Jesus Cristo constitui-se ponto nuclear da fé cristã. Já no Novo Testamento e, a partir daí, nas teologias desses vinte séculos, surgiram diversas imagens soteriológicas que tentaram explicar como se dá a salvação da humanidade em Cristo. Com enfoque na encarnação do Verbo eterno, aponta-se para a educação ou iluminação dos fiéis e para sua divinização. O ministério público de Jesus e seu anúncio do Reino, embora pouco refletido nesses dois milênios, vem sendo retomado nos últimos tempos como lugar explícito da obra salvífica de Jesus. A morte redentora, vista como sacrifício, resgate, satisfação, ganhou tanto realce na explicação da ação salvífica de Cristo que, embora sempre fosse lembrada, na realidade ficou na sombra, como que atrelada à morte servindo-lhe de significado último. A recapitulação, que teve bastante impacto nos dois primeiros milênios, volta a fazer-se presente na teologia atual, ganhando espaço na teologia do Concílio Vaticano II.

A teologia latino-americana, com sua centralidade na opção pelos pobres, anuncia que a salvação universal e eterna tem como ponto de partida a concretude histórica de Jesus de Nazaré, em suas palavras e ações libertadoras em favor das multidões marginalizadas. É a partir da parcialidade dos pobres que a salvação alcança a totalidade dos povos. É a partir da historicidade dos gestos libertadores de Jesus, da Igreja e dos pobres que se aponta para a salvação eterna.

Vitor Galdino Feller. ITESC/FACASC. Texto original em português. Submissão: 22/05/2021. Aprovação: 22/10/2021; Publicação: 24/10/2021.

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[1] Ao perguntar-se sobre “o que é um falso deus, senão aquele que nos remete a nossas ideias míticas todo-poderosas e portentosas, totalmente transparentes?”, A. Gesché refere-se a Cristo como aquele que “não quis esvaziar seus próprios enigmas”. “Ele gritou numa cruz […] o enigma de um abandono; ele desceu a um inferno, ao seu inferno de morte, e é somente porque aí entrou, porque não recusou o enigma, que ele ressuscitou e recebeu resposta […]; ele renunciou à magia da onipotência […] e do milagre […] Foi porque ele viveu até o fim certa agonia do sentido e da evidência […] que ele ganhou. Ele nos ensina que o enigma salva, constrói, pode ser salutar […] Todos nós temos lutos a trabalhar e que não podemos evitar”. (GESCHÉ, A. Deus para pensar 2 – O ser humano, p. 20-21)

Cartas aos Tessalonicenses

Sumário

1 Paulo e os tessalonicenses

1.1 Cidade de Tessalônica

1.2 Comunidade cristã

2 Estrutura das duas cartas

2.1 Proposta literário-epistolar

2.2 Proposta retórica

3 Teologia

3.1 Linhas teológicas principais

3.2 Linhas teológicas menores

4 Conteúdo

4.1 Primeira carta aos Tessalonicenses

4.2 Segunda carta aos Tessalonicenses

5 Referências bibliográficas

1 Paulo e os tessalonicenses
1.1 Cidade de Tessalônica

Tessalônica era a capital da província romana da Macedônia. O seu nome era uma homenagem à mulher do general Cassandro que, em 315 aC, transferiu vários povoados e os estabeleceu próximos a uma antiga terma, localizada ao fundo do golfo Termaico.

Em 168 aC, Tessalônica, já sob os domínios do Império Romano, acolheu a construção da importante Via Egnatia, transformando-se em um indispensável local da logística militar e comercial entre Roma e o oriente.

Na metade do séc. I dC, Paulo encontrou na cidade um ambiente de prosperidade comercial, cultural e política, com uma população heterogênea e sincretista, que aproveitava da pax e securitas proporcionada pelo Império Romano.

1.2 Comunidade cristã

O grupo cristão de Tessalônica era jovem e pequeno. Por volta do ano 49/50 dC, Paulo e seus companheiros chegaram à cidade (At 17,1-10) e fundaram uma pequena comunidade, porém após alguns problemas com os judeus ali residentes os missionários deixaram a cidade e se dirigiram a Atenas e Corinto (At 17,10-15; 1Ts 2,17; 3,1).

Em seguida, Timóteo retornou à comunidade (1Ts 3,2) e percebeu que a rápida evangelização tinha deixado lacunas e os membros da comunidade mostravam dúvidas e preocupações. Na tentativa de responder a tais questionamentos e encorajar os cristãos, entre os anos 49-51 dC, Paulo redige, em Corinto, a Primeira carta aos Tessalonicenses, vista a impossibilidade de retornar à comunidade (1Ts 2,18) e a necessidade de completar o que faltava na fé dos tessalonicenses (1Ts 3,10). Essa é a mais antiga carta escrita pelo apóstolo.

Alguns anos depois, foi redigida a Segunda carta aos Tessalonicenses, a qual é considerada, pela maior parte dos estudiosos, como deuteropaulina. O texto é muito semelhante ao primeiro, dado que reforça os principais conceitos teológicos propostos na tentativa de elucidar as mesmas questões escatológicas.

2 Estrutura das duas cartas
2.1 Proposta literário-epistolar

As duas cartas são, tradicionalmente, divididas em duas partes, segundo um modelo literário-epistolar que privilegia a estrutura básica de uma carta: o praescriptum, o extenso corpo com o amplo desenvolvimento do conteúdo e o postscriptum. Eis a proposta estrutural seguindo o modelo literário-epistolar.

Primeira carta aos Tessalonicenses
Primeira parte
1,1 Praescriptum – endereço e saudação inicial
1,2–3,10 Agradecimentos e recordação da passagem por Tessalônica
3,11-13 Oração conclusiva
Segunda parte
4,1-12 Instrução sobre a santidade e o amor
4,13–5,11 Instrução escatológica
5,12-22 Exortação pastoral
5,23-24 Oração conclusiva
5,25-28 Postscriptum – Saudação final
 
Segunda carta aos Tessalonicenses
Primeira parte
1,1-2 Praescriptum – endereço e saudação inicial
1,3-12 Exortação à confiança
2,1-12 Instrução escatológica
2,13-15 Exortação à perseverança
2,16-17 Oração conclusiva
Segunda parte
3,1-5 Oração inicial
3,6-15 Outras exortações
3,16-18 Postscriptum – Saudação final
2.2 Proposta retórica

Além da perspectiva literário-epistolar, alguns autores apresentam o conteúdo de acordo com as cinco etapas da análise retórica: inventio (inventário), dispositio (ordenamento),  elocutio (expressão), actio (ação) e memoria (memória).

Tal proposta enriquece a abordagem de ambos os escritos, contudo força dentro de um rígido esquema o que, em princípio, eram cartas que privilegiavam a comunicação entre o autor e seus destinatários e não discursos que visavam o convencimento do público. A perspectiva retórica é essencial na compreensão global do texto, entretanto deve ser integrada àquela literário-epistolar.

3 Teologia

A Primeira carta aos Tessalonicenses é o mais antigo texto de Paulo, logo a sua teologia ainda está em uma fase inicial. A carta não possui exposições doutrinais comparáveis àquelas das grandes cartas como a justificação pela fé (Rm), a diversidade de carismas (1Cor) ou a liberdade cristã (Gl). Paulo aborda superficialmente temas que serão desenvolvidos posteriormente e tem na escatologia o seu enfoque principal. O conteúdo da Segunda carta aos Tessalonicenses se assemelha ao da primeira, por isso ambas as cartas são consideradas como a principal fonte paulinas para temas escatológicos como morte, ressurreição e Parusia.

3.1 Linhas teológicas principais

Ambas as cartas dedicam grande atenção à teologia escatológica. A esperança cristã era uma das dúvidas que levou Paulo a escrever à comunidade. A escatologia se relaciona diretamente à Parusia, pois a possível vinda do Senhor em breve causava preocupação e, ao mesmo tempo, uma crise de esperança na jovem comunidade.

Paulo também evidencia a teologia da eleição. As seções escatológicas da primeira carta (4,13-18; 5,1-11) utilizam uma forte terminologia apocalíptica que não visa a literal descrição dos acontecimentos no fim dos tempos, mas procura reforçar a consciência comunitária de que eles estão preparados para tais eventos, uma vez que foram escolhidos por Deus. Em suma, a teologia da eleição aponta que os membros da comunidade foram escolhidos por Deus antes da chegada dos evangelizadores, pois a eleição é um ato de amor que escolhe pessoas à santidade.

A segunda carta retoma a Parusia apresentada na primeira, contudo enriquece a exposição escatológica com a indicação do julgamento de opressores e oprimidos (1,6-10), a menção da apostasia futura (2,3), a citação do Anticristo que se revelará (2,3-4) e a manifestação do mistério da iniquidade (2,7-10).

3.2 Linhas teológicas menores

O praescriptum das cartas apresenta o grupo de missionários como apóstolos (1Ts 1,1; 2Ts 1,1-2) que realizam uma atividade colegial, não obstante o sujeito e a voz verbal na primeira do singular sejam utilizados em outras partes dos escritos (1Ts 2,18; 3,5; 5,27).

As cartas também apresentam uma constante recordação dos laços de amizade que existiam entre os remetentes e os destinatários; expressam um forte acento eclesial, dado que os tessalonicenses são chamados de “Igreja” e são escolhidos para estarem unidos; bem como, relatam uma primitiva profissão de fé (1Ts 1,9-10; 4,14) e contém as virtudes teologais (1Ts 1,3; 5,8) que levam a específicas atitudes comportamentais como a necessidade do trabalho (2Ts 3,6-12) e a correção fraterna (2Ts 3,13-15).

4 Conteúdo
4.1 Primeira carta aos Tessalonicenses

A primeira parte do texto tem um praescriptum logo no início (1,1), algo que caracterizava as correspondências antigas ao apresentar o nome dos remetentes, os destinatários e uma breve saudação inicial. Em seguida, o autor dá início a algo que também caracterizará as suas sucessivas cartas: o agradecimento (1,2-3) por tudo aquilo que aconteceu na rápida evangelização, cujos principais elementos foram as dificuldades com os judeus, o desejo de uma nova visita, a visita realizada por Timóteo e as boas notícias trazidas por ele (1,4–3,10). A primeira parte é concluída por uma oração (3,11-13).

A segunda parte deixa de lado as recordações e apresenta uma série de exposições que tinham como objetivo sanar as dúvidas da comunidade. A instrução sobre a santidade e o amor (4,1-12) é um convite a viver de modo responsável para continuar progredindo na fé, não obstante o sincretismo e a imoralidade que permeiam a cidade; o amor fraterno é tido como fundamental nesta proposta de vivência da moral cristã, visto que é uma ajuda recíproca para viver a eleição à santidade. A instrução escatológica (4,13–5,11) é dividida em duas partes, que são os textos mais comentados e estudados de toda a carta. Em primeiro lugar, a Parusia (4,13-18) consistia na visita oficial de uma personalidade que vinha em procissão a uma cidade; Paulo usa o termo e o apresenta como a visita de Cristo no fim dos tempos para ressuscitar os mortos e arrebatar os vivos, pois o conhecido ritual da Parusia imperial possibilita a fácil compreensão de que, no fim dos tempos, todos irão ao encontro do Senhor. Em segundo lugar, o Dia do Senhor (5,1-11) contrapõe o grupo dos cristãos que está preparado para o fim dos tempos àqueles dos demais, que vivem o presente com exageros e sem pretensões escatológicas, por isso não seria necessário fazer cálculos de quando o fim dos tempos vai ocorrer, mas sim viver bem o presente, sem se preocupar com a demora da Parusia. A exortação pastoral final (5,12-22) é uma antologia de conselhos para melhorar o relacionamento entre os membros da comunidade e seus líderes; o amor e o respeito servem para superar os problemas de relacionamento e colaborar na organização da jovem comunidade. Uma oração conclui a segunda parte (5,23-24).

O postscriptum (5,25-28), enfim, encerra a carta e recomenda que ela seja lida por todos. Essa simples recordação faz com que a comunidade a preserve e, sucessivamente, também a passe a outras comunidades. Esse fato faz com que a carta seja preservada e, posteriormente, integre o cânon do Novo Testamento, pois era conhecida por todas as principais comunidades cristãs primitivas.

4.2 Segunda carta aos Tessalonicenses

A primeira parte da carta é inaugurada pela repetição do praescriptum semelhante ao da primeira carta (1,1-2). Em seguida, os autores fazem um agradecimento, mesmo diante da perseguição sofrida, deixando de lado a típica entonação pessoal da primeira carta e preparando a interessante apresentação apocalíptica do julgamento escatológico de opressores e oprimidos (1,3-12). A instrução escatológica (2,1-12) menciona a decisiva manifestação de Cristo contra o adversário com o pedido de evitar o inútil alarmismo daqueles que estão agitados e que decidiram esperar o fim dos tempos deixando de lado seus afazeres. Nesse sentido, a exortação à perseverança (2,13-15) valoriza o presente e tira o excessivo foco do futuro. A primeira parte é concluída por uma oração (2,16-17).

A segunda parte engloba elementos que poderiam provir de outras fontes, visto que repetem o que já sumariamente citado na própria carta: uma nova oração (3,1-5), uma exortação ao trabalho (3,6-12) e uma exortação à correção fraterna (3,13-15). O postscriptum (3,16-18) encerra a carta com os votos de paz, reconciliação e bom relacionamento comunitário.

Diones Rafael Paganotto, oad. Texto original em português. Submissão: 02/02/2021; aprovação: 08/02/2021. Publicação: 20/02/21.

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Lucas e Atos

Sumário

1 Lucas, escritor por ofício

2 O evangelho

2.1 Um escritor de tradição: Documento Q, Marcos

2.2 Divisão, unidade narrativa

2.3 Teologia básica

2.3.1 Intenção teológica

2.3.2 Da história de Jesus à história da Igreja

3 O livro dos Atos

3.1 Divisão e elementos fundamentais 

3.2 Mensagem básica

Conclusão teológica

Referências

1 Lucas, escritor por ofício

No final do século I dC, um cristão culto, talvez de origem pagã, que havia sido prosélito judeu e conhecia bem a Bíblia Grega (os LXX), escreveu a primeira história de Jesus e de seu movimento, seguindo modelos cristãos e helenísticos anteriores.

Muitos já tentaram compor uma diéguesis (relato) das coisas (pragmatôn) que aconteceram entre nós, seguindo o que as primeiras testemunhas oculares nos transmitiram, conver­tidos em servos da Palavra. De acordo com isso, eu também, depois de investigar tudo com diligência, desde as origens, decidi escrevê-lo em ordem, ilustre Teófilo, para que possa verificar a solidez dos ensinamentos que recebeu. (Lc 1,1-4)

Nós o chamamos de Lucas porque é assim que a tradição o chamou, mas ignoramos seu nome. Ele escreveu uma obra composta de duas partes (Evangelho e Atos), que estavam em princípio unidas, mas que a Igreja posteriormente separou, como se fossem dois livros. Alguns dizem que ele escreveu sua obra em Roma, porque lá culmina Atos, outros pensam que foi em Éfeso. Seja como for, ele escreve em um lugar onde se reconhecia e se aceitava dois escritos cristãos anteriores (Marcos e Q), porque ele os utiliza como base de seu escrito, e o compõe, sem dúvida, a serviço de sua Igreja.

Lucas também conhece relatos das coisas (pragmatôn) que aconteceram “entre nós”, começando por Jesus. Ele não os rejeita, mas pensa que podem ser concluídos e organizados melhor, para destacar a coerência (solidez) da tradição cristã. Ele não inventa o que escreve, mas matiza; ele não cria do nada, mas organ­iza e elabora o que os outros transmitiram, seja em voz alta, seja por escrito. As primeiras testemunhas da Igreja morreram, outros cristãos da geração posterior também estavam morrendo. Por essa razão, situando-se entre a segunda e a terceira geração cristã, ele sentiu a necessidade de oferecer uma visão geral dos atos que aconteceram entre nós, na época de Jesus e depois de sua morte (cf. introdução aos livros de Lucas e Atos: Lc 1,1-2; At 1,1-3).

Era escritor, conhecia a maneira de escrever de alguns autores helenísticos de seu tempo e sabia como pôr os discursos apropriados na boca das pessoas certas, na hora certa, graduando e interpretando o desenvolvimento e o significado dos atos. Mas era também um catequista cristão. Certamente, ele escreveu aos fiéis de sua igreja, a quem queria oferecer uma visão confiável da vida e da mensagem de Jesus; porém escreveu também para os de fora; é talvez o único escrito do NT endereçado a um público aberto, como indica o fato de ele “editar” suas obras, dedicando-as a “Teófilo” – que pode ser um personagem real ou simbólico, conforme o uso de seu tempo. 

Conforme apontado no começo de sua segunda obra, Lucas escreveu um logos (At 1, 1) ou tratado em dois volumes ou tomos. O primeiro, sobre as coisas que Jesus “fez e ensinou” (palavras-obras) até sua ascensão (Evangelho, Lc). O segundo sobre as “obras e palavras” de seus seguidores, que vão de Jerusalém até os confins da terra (Roma), levando a mensagem de Jesus (Atos, At). Ele não escreveu um “evangelho” estritamente dito, como Marcos, nem tampouco um livro da genealogia de Jesus como Mateus, mas um “tratado de história” dos acontecimentos e palavras de Jesus e de seus seguidores, em dois volumes, significativamente iguais em tamanho (Lc e At).

Como já foi dito, a igreja do século II separou as duas partes da obra e assim considerou a primeira (Lc) como uma unidade em si mesma, colocando-a ao lado dos outros evangelhos (Mc, Mt, Jo), de maneira que a segunda (At) passou a ser vista como um livro diferente. Esta decisão foi boa, embora tenha nos impelido a esquecer a profunda unidade e conexão entre as duas obras. De toda forma, a separação das duas partes (cada uma com a amplitude normal de um “rolo”) teve consequência positiva, pois nos permitiu separar o tempo do Jesus histórico (evan­gelho) do tempo do Cristo da fé, sentado à direita do Pai, dirigindo, por seu Espírito, a vida da Igreja.

A partir critérios internos, sua obra dupla tem três momentos fortes, que influenciaram poderosamente a liturgia cristã: (a) apoiando-se principalmente em seu “evangelho da infância” (Lc 1-2), a Igreja continua celebrando a festa do Natal; (b) da mesma forma, a Igreja torna visível e celebra a Páscoa cristã levando em conta os “quarenta dias” das aparições de Jesus, que culminam com a ascensão ao céu, que nenhum outro autor do Novo Testamento apresentou desta forma (cf. Lc 24 e At 1); (c) finalmente, apenas Lucas nos permite visibilizar e celebrar a festa cristã de Pentecostes, ou seja, a festa do Espírito Santo, enviado por Jesus para iniciar e promover a missão cristã em todo o mundo, ao longo dos tempos (cf. At 2).

Quando os cristãos de hoje celebram o Natal ou interpretam a ascen­são de Jesus como a culminância e o fechamento da Páscoa, estamos utilizando o esquema teológico, histórico e litúrgico de Lucas. Outros autores do Novo Testamento (como Paulo ou João) foram capazes de oferecer uma imagem mais profunda do mistério pascoal, no início da Igreja. Mas Lucas foi (com Mateus) o autor que mais influenciou a implantação do cristianismo posterior. 

2 O evangelho

 2.1 Um escritor de tradição: Documento Q, Marcos

Lucas é um helenista, homem da cultura grega, e era provavelmente um prosélito judeu (não nasceu judeu) antes de se tornar cristão. Ele conhece a Bíblia do Antigo Testamento (os LXX) e se informou, na medida do possível, dos principais momentos da vida de Jesus, estudando escritos anteriores (um possível documento Q, com as frases de Jesus, e o Evangelho de Marcos), consultando testemunhas e portadores da tradição cristã:

a. O documento Q (do alemão Quelle, Fonte) é um texto ou fonte oral dos Evangelhos de Mateus e Lucas, que continha uma coleção dos ditos e pensamentos de Jesus. Pode ter surgido na Galileia ou na Judeia, nos anos 40 ou 50 dC, oferecendo o testemunho mais significativo de um grupo de cristãos que teriam coletado, em forma apocalíptica-sapiencial, alguns dos ditados de Jesus, para expressar e expandir para eles sua experiência. Esse documento forma, com Marcos, o mais antigo testemunho extensivo da tradição dos evangelhos. Mas, ao contrário de Marcos, que continuou a ser empregado na igreja depois que grande parte de seu material havia sido coletado por Mateus e Lucas, o Q foi perdido, talvez porque já não havia mais interesse (seus materiais tinham sido preservados em Mt e Lc), talvez porque sua visão fosse limitada: ele só colecionava “palavras” de Jesus, ele deixou de lado o tema de sua morte e ressurreição.

b. Marcos. Depois de alguns anos, por volta de 70 dC, um autor chamado Marcos pensou que o documento Q, fechado em si mesmo, era deficiente (ele não capturou o enredo da vida de Jesus) e para remediar essas deficiências ele próprio escreveu um “evangelho”. O Q não tinha sido um “evangelho”, mas um resumo das palavras de Jesus, quase sem um fundo narrativo (sem história), para que pudessem se tornar independentes da vida-morte-ressureição de Jesus. Ao contrário disso, retomando as tradições da Galileia e de Jerusalém, Marcos escreveu um evangelho “narrativo”. Ele deixou de lado quase todas as “palavras” de Jesus, para apresentar ele mesmo como “Palavra”, portador pessoal da salvação de Deus, em uma linha próxima à de Paulo, ainda enfatizando mais a história de Jesus (não apenas sua morte). Marcos escreveu, assim, a mais poderosa das “narrativas cristãs”, apresentando Jesus como evangelho: a boa nova “pessoal” de Deus (o próprio Jesus como a boa nova).

c. A novidade de Lucas. Como Mateus, Lucas pensou que o projeto dos “ditados” (Q) era insuficiente, e que era necessário aceitar a “correção” de Marcos, pois a mensagem de Jesus era inseparável da jornada concreta de sua vida e morte e da experiência pascoal da Igreja. E nesse ponto, tanto Mateus quanto Lucas, de diferentes perspectivas e tradições, combinaram os textos de Q e Marcos, a fim de oferecer um evangelho em que se vinculam, na vida e na pessoa de Jesus, os ditos e atos de sua trajetória messiânica. Mateus faz isso a partir de uma tradição judaico-cristã, mais focada no cumprimento messiânico da Lei Judaica. Lucas faz isso do fundo da tradição cristã-helenística, para oferecer um evangelho mais apropriado aos gentios.

De acordo com isso, Lucas conhece e assume os textos de Q e Marcos, mas os interpreta de sua perspectiva eclesial, adicionando às duas “fontes” anteriores uma fonte diferente (que alguns chamaram de L, de Lucas), com um material muito significativo (evangelho da infância, parábolas de misericórdia, catequese da ressurreição etc.). Seria bom ser capaz de distinguir precisamente os três estratos do Evangelho de Lucas (narração de Marcos, ditados do Q, tradições próprias de sua Igreja, talvez em Éfeso, com as de Jerusalém…), mas o assunto é complexo, típico de especialistas (que não chegaram a um acordo sobre os detalhes), de forma que isso não será abordado aqui. Basta dizer que Lucas segue Marcos (que forma sua espinha dorsal), introduzindo em seu texto “alguns elementos” do Q, como em 6,12-7,35 e 9,57-17,4, ligando tudo, finalmente, com outras tradições eclesiais e com sua própria teologia, centrada no “caminho de Jesus para Jerusalém.” Alguns insistiram na necessidade de contato pessoal de Lucas com a Virgem Maria, mas não parece necessário apegar-se a isso.

2.2 Divisão, unidade narrativa

Lucas bebe de três “fontes” básicas, mas seu texto não é um simples mosaico, ele forma uma unidade literária (narrativa) e teológica, de modo que cada um de seus elementos tem que ser interpretado em conjunto, como destacaram os pesquisadores. Ele não escreve uma narrativa à qual, “depois”, algumas notas teológicas são adicionadas, a sua estrutura narrativa já tem um sentido teológico intenso. Com isso em mente, podemos dividir o evangelho em quatro partes, com um prólogo e um epílogo:

Prólogo (Lc 1,1-4). Lucas dedica o livro, escrito com os métodos histórico-literários de sua época, a todos aqueles que “amam Deus” (= Teófilo), como contribuição para o conhecimento do cristianismo, este entendido como um fenômeno religioso e cultural.

1. Introdução. Jesus, evangelho de Deus (Lc 1,5-4,13): (a) Anúncios do nascimento de João e Jesus (Lc 1,5-56); (b) Os dois nascimentos (Lc 1,57-2,52); (c) Primeira atividade de João e Jesus (Lc 3,1-4,13). Ao contrário de Marcos e em paralelo com Mateus (embora de uma forma diferente), Lucas começa com um “evangelho da infância” (parágrafos a e b), colocando Jesus no fundo da esperança de Israel, em paralelo com João Batista.

Lucas entrelaça o evangelho de Jesus na esperança e profecia de Israel, mas de maneira que a transborda e a ratifica. Na última seção (c), segue Marcos mais de perto. O centro desta seção é a “proclamação do evangelho”: “Eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: nasceu-vos hoje um salvador, que é o Cristo-Senhor” (Lc 2,10-11). Este “evangelho” ou boas novas resgata e substitui os “evangelhos imperiais”, em que foi anunciado o nascimento do novo imperador, como na Inscrição de Priene, do ano 9 aC, no qual o nascimento de Augusto é celebrado como o início de uma nova era de salvação.

2. Atividade na Galileia (Lc 4,14-9,50): (a) Manifestação e rejeição de Jesus (Lc 4,14-6,11); (b) Ensinamentos e milagres (Lc 6,12-8,56); (c) Revelação aos discípulos (Lc 9,1-50). Esses capítulos condensam a ação básica e a mensagem de Jesus na Galileia, na linha profética, aberta ao messianismo. Na primeira e última parte (a e c), segue mais Marcos. Na parte central (b), é mais próximo do Q. Em ambos os casos, o evangelista coleciona tradições das igrejas e da missão da Galileia. Todo o tema é apresentado e focado no “discurso de Nazaré” (Lc 4,16-30).

3. Subida a Jerusalém (Lc 9,51-19,27), com esses momentos: (a) Acompanhamento e confiança no Pai (Lc 9,51-13,21); (b) Alimentos cristãos (Lc 13,22-17,10); (c) Chegada do Reino (Lc 17,11-19,28). Esta seção começa com uma introdução solene, que enquadra e situa tudo o que se segue: “Quando se completaram os dias de sua assunção, ele tomou resolutamente o caminho de Jerusalém” (cf. 9,51).

Lucas introduz e reinterpreta aqui muito material do “Q”, não na forma de sabedoria separada da vida de Jesus, mas sim como expressão de um caminho que leva a Jerusalém (novo Êxodo). Isso significa que o material Q (que poderia se tornar doutrina gnóstica), vem a ser colocado e é compreendido no contexto de um caminho messiânico de entrega da vida. Este é o centro do evangelho: a ascensão a Jerusalém, como cumprimento das promessas de Israel, e como o início de um novo êxodo cristão.

4. Atividade em Jerusalém: Paixão e Ressurreição (Lc 19,28-24,49): (a) Entrada em Jerusalém e controvérsias com os chefes de Israel (Lc 19,28-21,4); (b) Discurso escatológico (Lc 21,5-38); (c) Julgamento e morte (Lc 22,1-23,56; (d) Ressurreição e aparições de Jesus (Lc 24,1-49). Lucas volta aqui para o esquema e temas de Marcos, com pequenas mudanças. Também essa seção começa com a “decisão” de completar a ascensão a Jerusalém (19,28, retomando o motivo anterior de 9,51), de modo que toda a mensagem e viagem anterior de Jesus na Galileia devem ser entendidas a partir de sua “oferta de salvação” em Jerusalém, em disputa com as autoridades da cidade.

Nesse contexto está o discurso escatológico da Lc 21, em que a “pressa” não é mais essencial. Quanto à paixão, Lucas tenta “desculpar” Pilatos, representante do governo romano, colocando a responsabilidade sobre os “hierarcas judeus” (nunca no povo de Israel, como tal). Finalmente, oferece uma verdadeira catequese de Páscoa, com o relato dos discípulos de Emaús e da grande aparição/missão a todos os discípulos, em Jerusalém (não na Galileia, como em Marcos 16,1-8 e Mt 28,16-20).

Epílogo. Ascensão (Lc 24,50-53). Serve para concluir o evangelho, fechando-o em si mesmo (no nascimento, vida e páscoa de Jesus). O Jesus de Mateus não saiu, mas está na Galileia com os seus, acompanhando-os na missão (“Estou com você…”: Mt 28,16-20). Em oposição, o Jesus de Lucas “vai embora”, deixa os seus em certo sentido, subindo para o céu em Jerusalém (como havia anunciado em 24,46-49). Esta “experiência de Páscoa e ascensão” de Jesus em Jerusalém (no Monte das Oliveiras, de acordo com a profecia de Zacarias 14) é a razão pela qual a história é retomada em Atos 1, onde começa o livro dos atos e missão de seus discípulos.

2.3 Teologia básica

2.3.1 Intenção teológica

Ela já está explicitada a partir do prólogo, onde Lucas disse: “Visto que muitos já empreenderam compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós (…) a mim também pareceu conveniente, após acurada verificação de tudo, desde o princípio, escrever-te de modo ordenado (…) para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste” cf. (Lc 1,1-4). Quais fatos? As coisas que Jesus fez e ensinou, até sua ascensão ao céu (At 1,1-2). Os outros (os primeiros passos da igreja) estão em Atos. Os eventos de Jesus foram realizados, de acordo com isso, à luz de todo o mundo (At 26,26). Eles não são objeto de uma mensagem intimista, típica de um livro de meditações, mas o tema de uma história que merece ser contada.

Como foi dito, Lucas parece o único escritor do NT que também escreve para os não crentes, oferecendo assim seu livro no mercado aberto de seu tempo. Ele não faz isso de forma arbitrária, ele não abandona a tradição, pelo contrário: ele conta com outros livros e testemunhas da igreja, especialmente Mc e Q. Ele seleciona suas fontes, mas o faz em um diálogo e assim, diferente de Marcos e, talvez, contra Mateus, ele foi capaz de aceitar tradições da Igreja de Jerusalém, ligadas à figura de Tiago, “irmão” do Senhor, no início do evangelho e de Atos (Lc 1-2; At 1-7).

Lucas pôde escrever desta forma porque compreendeu Jesus como o ponto de partida e centro de um profundo movimento religioso que já estava se tornando importante no mundo e que merecia ser contado. Ele pode escrever assim porque é um bom narrador, porque tem um bom argumento (Jesus) e sabe expô-lo não só em um plano querigmático (Marcos) ou catequético/eclesial (Mateus), mas em uma linha histórico-literária, transmitindo, ao mesmo tempo, a fé de sua Igreja (Roma, Éfeso…?), com um horizonte aberto à missão cristã, que começa a se espalhar pelo mundo conhecido. Ao longo dos anos, a inquietação daqueles cristãos que esperaram pelo fim do mundo e a vinda imediata de Jesus se transformou, deixou de ter um significado puramente cronológico. Certamente, Lucas sabe que “Jesus virá”, mas, enquanto isso, ele abre um longo tempo de vida crente para os cristãos. Desta forma, o interesse da mensagem de Jesus (o passado de sua história) se desloca para a igreja (Atos), deixando para trás a história de Jesus (evangelho).

2.3.2 Da história de Jesus à história da Igreja

Marcos e Mateus não podiam escrever uma “história da Igreja”, pois ela não formava uma parte separada da obra de Jesus. Esta história da Igreja não era um novo evangelho (Marcos), não adicionou nada além do que foi revelado em Cristo (Mateus). Certamente, Jesus também é para Lucas a origem, ponto de partida e centro de toda a salvação. Mas a história de Jesus como tal acabou (foi concluída na Ascensão), de modo que se abre um tempo de vida e missão para seus discípulos, quando também será necessário expor o surgimento da Igreja.

Nesse sentido (e em outros que se deveria especificar), Lucas está próximo do Jesus de João quando diz: “É de vosso interesse que eu parta; pois, se não for, o Paráclito não virá a vós. Mas se for, eu o enviarei” (Jo 16,7). É apropriado que Jesus tenha ido, porque só assim ele foi capaz de “abrir” um tempo de compromisso missionário e transformação para seus discípulos. Nesse sentido, Lucas pode continuar a dizer: “Em verdade, em verdade eu vos digo: quem crê em mim fará as obras que faço e fará até maiores do que elas, porque vou para o Pai” (Jo 14,12).

Devemos acrescentar que seu Evangelho (Lc), em um sentido autônomo, pode ser interpretado, em outro, como um “prólogo” do livro de Atos. Assim, dizemos que Jesus se foi (ascensão: Lc 24,50-53; At 1,1-11) para continuar promovendo a história da salvação. De acordo com isso, os cristãos não deixam de seguir Jesus para irem à igreja, mas o próprio Jesus os leva, por seu Espírito, à vida e missão da Igreja. O passado da história de Jesus, que termina na ascensão, torna-se um princípio de salvação para a Igreja, através do Espírito Santo. Jesus foi recebido na Glória de Deus Pai e dali, de sua altura divina, guia a história através do Espírito Santo. 

3 O Livro dos Atos

Como já dissemos, em princípio, o evangelho e os Atos formaram um único livro, mas os “editores” do cânone dividiram-no, tornando os Atos o início da vida da Igreja, como uma introdução às cartas de Paulo e ao restante das cartas “católicas” ou universais do NT. Pois bem, Lucas foi capaz de escrever essa história inicial da Igreja porque a considerava uma “realidade autônoma”, ao lado (e depois) dos evangelhos. Ele não o escreveu para simplesmente contar o que aconteceu (como cronista), mas para marcar o início e a direção do caminho cristão, e fará isso desenhando uma linha que será “canônica” ou normativa para a igreja posterior. Nesse sentido, ele deixa de lado uma série de tendências cristãs ou trajetórias que conhecemos, de alguma forma, a partir de outras fontes (contribuição das mulheres, vida e missão das comunidades galileias, o judeu-cristianismo de Tiago, os princípios da gnosis etc.). Seja como for, sua visão da implantação da Igreja tem sido essencial para a história posterior do cristianismo. Em um sentido geral, dois elementos podem ser especificados em sua primeira visão da Igreja:

Polo judeu, polo romano (Atos 1-15). O livro de Atos traça um caminho que leva de Jerusalém (primeiro polo: Pedro e os Doze, com Tiago), passando por Antioquia (helenistas), por Paulo a Roma (segundo polo), onde Paulo é mantido em cativeiro, abrindo de lá a Palavra de Jesus para todo o mundo. O polo judeu forma a raiz, que deve ser mantida: marca a origem e o destino israelita de Jesus (todo Lc) e o princípio da igreja (Atos 1-15); o polo helenístico ou romano oferece o cenário final e definitivo da igreja, que chegou a Roma, onde Paulo, na prisão, proclama abertamente o Evangelho (Atos 16-28).

‒ De Jerusalém a Roma (Atos 16-28). De acordo com essa visão dos dois polos, Lucas não escreveu a história de todas as igrejas (da Galileia, Síria, Egito…), mas o caminho que leva de Jerusalém a Roma. Esta foi uma opção transcendental para grande parte da história posterior do cristianismo, que continua ligada ao judaísmo (Jerusalém), mas integrada ao Império Romano. A Igreja tem outras características, mas na visão de Lucas, no fundo delas se expressa um único caminho, uma trajetória que vai de Jerusalém (judaísmo) a Roma (universalidade), através da obra do Espírito de Deus (de Cristo) que guia tudo.

3.1 Divisão e elementos fundamentais

O livro começa com um prólogo (Atos 1,1-11), que se junta ao evangelho anterior de Lucas e traça todo o projeto, no qual três partes se distinguem, talvez melhor do que as duas acima indicadas:     

1. Pedro. Igreja de Jerusalém: Atos 1,12-5,42 (anos 30/33 d.C.). Embora no início houvesse vários movimentos ligados a Jesus (galileus, mulheres, talvez grupos helenistas já latentes na própria Jerusalém), Atos assume que a igreja nasceu unida em Jerusalém, em torno de Pedro e dos Doze. Estes são os momentos destacados pelo texto: 1. Primeira comunidade (1,12-2,47); 2. Pedro e João (3,1-5,11); 3. Missão dos Doze (5,12-42).

Pedro é a figura histórica essencial neste início da igreja, e ele também começará e confirmará a abertura aos gentios (Atos 10; 15), embora mais tarde a missão universal seja assumida e realizada por Paulo. Compartilhando uma tendência que aparece em Ap 21,14, e talvez em Ef  2,20, Lucas identifica os apóstolos com os Doze, tomando-os como o princípio da missão da Igreja (mesmo que eles logo tenham desaparecido como um grupo).

2. Helenistas. De Jerusalém a Antioquia: Atos 6,1-14,28 (anos 33-48 d.C.). A primeira dissensão surge entre hebreus e helenistas em Jerusalém (alguns de língua semita, outros da língua grega) emerge. Este último abre a Igreja para os gentios de acordo com o seguinte movimento: 1. Helenistas e Estêvão (6,1-8, 3); 2. Missão de Samaria (8,4-40); 3. Conversão de Paulo (9,1-31); 4. Missão de Pedro (9,32-11,18); 5. Antioquia: “independência” dos cristãos (11,19-12,25); 6. Primeira missão de Paulo e Barnabé, por Chipre e Ásia Menor (13,1-14,28; anos 36-48 d.C.).

O desenvolvimento da Igreja aparece, assim, como uma experiência carismática, que já havia sido anunciada em Atos 2 (Pentecostes), traçando uma linha de abertura de Jerusalém para todos os povos. Esta implantação é realizada por meio dos helenistas (Atos 6-8) e culmina em Paulo (a partir de Atos 9), dando origem ao chamado Concílio de Jerusalém, onde a existência de “duas igrejas” em comunhão é admitida e ratificada: os judeu-cristãos de origem rabínica de Tiago, em Jerusalém, e os judeu-cristãos de origem pagã abertos, de uma forma ou de outra, aos gentios, a quem aceitam em suas comunidades (At 15).

3. Paulo. De Antioquia a Roma: Atos 15,1-28,29. Esta parte começa com a disputa entre os judeu-cristãos de Jerusalém e os pagãos-cristãos de Antioquia, e para resolvê-la é celebrado o “concílio”, no qual Tiago (Jerusalém) e Pedro (igreja original) aceitam a missão de Paulo entre os pagãos, sem a necessidade de “cumprirem” a lei judaica (Atos 15,1-15,35, 48/49 d.C.). A partir de agora, o protagonista da missão cristã será Paulo, que levará a Igreja a Roma, tornando-a universal.

Lucas simplifica dados, silencia comunidades alternativas e omite (até atenua) muitos elementos, mas sua visão tem um profundo sentido teológico, com esses principais momentos: 1. Duas missões de Paulo para a Ásia Menor e Grécia, fundando as igrejas do Leste do Império: (15,36-18,22 e 18, 23-21,14; anos 49-57 dC); 2. Subida para Jerusalém, para entregar a coleção dos gentios à Igreja mãe e, assim, ratificar sua comunhão messiânica com ela (21,15-23,30), com prisão e posterior encarceramento em Cesareia (23,31-26,32; anos 58-60 dC); 3. Prisioneiro de Roma, a ser julgado (27,1-28,28; ano 60 dC); 4. Epílogo (28.30-31; anos 60-62 dC). À espera do julgamento, na prisão domiciliar, Paulo proclama abertamente o Evangelho em Roma. A Igreja de Jesus chegou ao centro do Império.

Mc 16,1-8 e Mt 28,16-20 pressupõem que a missão cristã universal começou na Galileia. Lucas suprime essa alusão e afirma que a igreja começou e foi confirmada em Jerusalém (cf. Atos 1-7; 15), de onde se espalhou por todo o mundo. Ali Jesus subiu para completar seu trabalho, sendo crucificado (cf. Lc 9,51-24,52), e a Igreja emergiu como um grupo messiânico, em torno dos Doze, à espera da vinda do Messias crucificado (Atos 1-2).

Marcos e Mateus pensavam que a Igreja começara da Galileia (Mc 16, 7-8; Mt 28,16-20). Atos, por outro lado, assume que o caminho central da Igreja, iniciado e retomado em Jerusalém (concílio, cap. 15) se abre a partir de Jerusalém, pelos helenistas e pela Igreja de Antioquia, mas de tal forma que o próprio Paulo retorna a Jerusalém, para retomar dali (preso como Jesus, mas não executado) o caminho final para Roma, onde desemboca o caminho da Igreja, aberto de Roma a todas as nações (At 16-28).

3.2 Mensagem básica

Nenhum dos evangelistas sentiu a necessidade de “completar” o Evangelho com uma obra autônoma no desenvolvimento da igreja, pois o caminho e a tarefa da Igreja estavam contidos em Jesus. Lucas, por outro lado, fez isso, e nesse ponto alguns pesquisadores modernos o tomaram como o primeiro representante do “catolicismo primitivo”, o primeiro a transformar o evangelho em uma religião organizada e o cristianismo em estrutura eclesial. Mas isso não é totalmente verdade. O que Lucas quer descrever em Atos é a marcha e o caminho da igreja, como portadora de um evangelho universal, que chega a Roma e de Roma deve se abrir, como uma religião unitária ao mundo todo.

Nesse sentido, contra uma espécie de fragmentação ou divisão das igrejas, cada uma por conta própria (judeu-cristãos e helenistas, seguidores do discípulo amado, grupos gnósticos e missionários itinerantes de vários tipos), Lucas descreve uma história unitária, de tipo ideal em que todos os movimentos cristãos são englobados e unificados, em uma marcha que vai do primeiro polo (em Jerusalém, em torno de Pedro e os Doze) até o segundo polo (com Paulo em Roma). Este é um caminho histórico, mas ao mesmo tempo é um caminho “postulado”, é a expressão de um desejo de unidade de todas as igrejas, em torno de Pedro e Paulo.

Jerusalém e os Doze (At 1-5). A comunidade de Jerusalém aparece em Atos como um ideal escatológico. Nela são dados os sinais da mudança dos tempos, da transformação da humanidade (milagres). Os cristãos repartem e consomem os bens (como se o mundo fosse acabar muito em breve), mas ao mesmo tempo eles começam a acolher pessoas de outras nações e grupos (embora, na verdade, logo passem a se concentrar apenas nos judeus). Certamente, nesta igreja já aparecem crentes que querem “enganar” o Espírito (como Ananias e Zafira, Atos 5,1-11), mas eles não aparecem por si mesmos, mas como um aviso aos verdadeiros crentes.

Helenistas e a missão aos pagãos (At 6-12).  Apesar da tentação de se fechar em si mesma, a primeira comunidade é forçada a expandir-se, com base no testemunho dos chamados helenistas. Há tensões internas entre eles e os hebreus, mas são superadas, principalmente por causa da perseguição que obriga os helenistas a deixarem Jerusalém. E, sobretudo, o Espírito que se manifesta fora da comunidade constituída está presente e em ação: o episódio do centurião Cornélio é, neste momento, decisivo. Sem dúvida, também outros grupos surgem (em torno de mulheres, seguidores do discípulo amado e outros), mas Lucas os silencia, pois só vai querer se concentrar, na vida e obra de Paulo, que se converte a Cristo, e de Pedro, que tem que deixar Jerusalém , para cumprir sua tarefa em outros lugares, em um gesto de abertura universal.

Paulo e Bernabé (At 13‒15). Lucas se concentrou apenas na missão de Barnabé e Paulo, como uma expansão da Igreja no mundo pagão (impulso do Espírito, cf. Atos 13-14), forçando a abordagem da questão da divisão e unidade da igreja. Em Jerusalém, há cristãos que continuam exigindo a circuncisão de todos os crentes (eles devem se tornar judeus antes de se converterem a Cristo). Mas os representantes das várias igrejas (Pedro, Tiago, Paulo…) se reúnem no chamado Concílio de Jerusalém (Atos 15, ano 49), assumindo a diversidade das igrejas, ratificando a liberdade dos cristãos que vêm dos gentios. Este é o concílio constituinte do cristianismo, entendido como “comunhão de igrejas”, em torno da fé e testemunho de Cristo. Nesse “concílio” deveriam ser incluídas, pelo menos implicitamente, outras igrejas (de um tipo mais gnóstico, como a do discípulo amado), mas Lucas não as cita. Trata-se apenas das falas de Pedro – Paulo – Tiago.

Missões de Paulo (Atos 16-20). Lucas abandona a seu destino (ou deixa de fora a história) outras igrejas (como as de Pedro e Barnabé, ex-companheiro de Paulo), para se concentrar apenas na de Paulo, que se expande, como uma nova comunidade messiânica, libertada da lei, nos vários países do Oriente Médio: de Éfeso até a Macedônia e Acaia (Atenas e Corinto). O mundo, já preparado pelo Espírito de Deus, parece pronto para ouvir a voz de Paulo, a missão cristã. Com isso, este segundo livro de Lucas poderia ser intitulado Evangelho dos Atos do Espírito, com foco no grande diálogo de Paulo com o helenismo no Areópago de Atenas (Atos 17,16-34), onde se confirma o vínculo (e diferença) entre o cristianismo e o pensamento grego, entendido como um sinal de sabedoria universal.

‒ De Jerusalém a Roma (At 21-28). O fim do livro dos Atos conta o caminho que leva Paulo a Roma, passando por Jerusalém, onde ele é feito prisioneiro, depois de querer entregar a Tiago e à Igreja judaico-cristã de Jerusalém a coleção de comunidades dos gentios, como sinal de unidade das igrejas. Assim, a vida das igrejas gentílicas (da comunidade universal de Roma) continua precisar de sua relação (vinculação) com a Igreja judaico-cristã de Jerusalém, sem que Lucas diga como essas relações terminaram. Seja como for, Paulo é levado a Roma para ser julgado, porque, como cidadão romano, pôde apelar, como efetivamente apelou, à Corte de César, para expor ali, no centro do mundo então conhecido, a mensagem de Jesus. Paulo chegou a Roma, e lá pôde proclamar a Palavra, ainda que isso fizesse situação de prisioneiro (em prisão domiciliar) aguardando julgamento. Neste momento, Lucas pode interromper sua história. Ele sabia, sem dúvida, que a história continuava, e ele poderia contar muito mais, mas o que disse era suficiente. Ele traçou uma parábola eloquente do caminho universal da Igreja de Jesus, que se abre para o vasto mundo dos gentios em Roma, que nela convergem e são simbolizados (cf. Atos 28, 25-31).

Esta é a mensagem da dupla obra de Lucas, que se abre a partir das promessas de Israel, através de Jesus, por meio de Roma, a todas as nações. Existem outros caminhos, outras formas de entender e narrar o desenvolvimento da igreja, centrada na Galileia (cf. Mc 16,8) ou aberta ao Oriente (Mt 2,1-11). Mas esse caminho de lutas foi, e continua sendo, o mais significativo, nos moldes do evangelho paulino.

Conclusão teológica

Como apresentado, alguns historiadores modernos, especialmente protestantes, tomaram Lucas como o primeiro defensor do “protocatolicismo”, ou seja, da primeira interpretação do cristianismo como religião organizada. A novidade escatológica de Jesus (seu compromisso radical com a fé libertadora) teria sido perdida e, nesta brecha, teria emergido uma visão dogmática da história que tem seu princípio em Israel, se concentra em Cristo e avança através da Igreja até o cumprimento das promessas de Jesus, ou seja, até a plenitude dos tempos. Assim, pode-se dizer (com A. Loisy): Jesus anunciou o Reino de Deus, mas chegou a Igreja.

Lucas admitiria esse slogan, mas ele mudou seu significado dizendo: Jesus anunciou o Reino de Deus e, graças a Deus, a Igreja emergiu, como portadora desse anúncio, como garantia de continuidade do projeto de Jesus, como proclamação e princípio do Reino neste mesmo mundo, pela ressurreição de Jesus, pela obra do Espírito Santo, em relação à História Sagrada. Neste contexto, três “tempos” podem ser distinguidos e vinculados:

 ‒ Tempo do Pai, Antigo Testamento. No início da história está Deus (Deus de todos os povos: cf. At 17), como fonte de vida e criador. Desde o início, se entende o caminho de Israel. Lucas, o primeiro autor de origem pagã (não judaica) do Novo Testamento, é paradoxalmente aquele que mais defende o judaísmo, pois ele não o vê mais de dentro (como Paulo ou Mateus, que tem que lutar contra um “mau judaísmo”, para se destacar em Jesus o que eles pensam que é o bom judaísmo), mas de fora, como expressão já passada e muito bonita. Nesse sentido, os textos Lc 1-2 e At 1-5 são exemplares, destacando a raiz veterotestamentária da vida e realidade cristãs. Por isso, diante de Mc 16 e Mt 28 que centram a mensagem de Jesus na Galileia, Lucas funda a vinda de Jesus (cf. Lc 1) e a origem da Igreja (cf. At 1-5) no entorno do templo em Jerusalém. O evangelho está, portanto, integrado à história da profecia e esperança israelita como um desenvolvimento da promessa israelita.

‒ Tempo do Filho, Evangelho. No centro do tempo está Jesus, tal como vem a mostrá-lo em seu conjunto todo o evangelho (Lc). Certamente, o tempo de Jesus é delimitado entre nascimento e ascensão, de tal forma que apresenta contornos fixos e bem precisos dentro da história. Lucas aparece nesse ponto como o criador de uma visão do cristianismo como historia salutis, história da salvação, contra um tipo de teologia posterior da Igreja que teria interpretado o evangelho como uma verdade atemporal do tipo grego (na linha de uma ontologia filosófica). Nesta linha, como O. Cullmann mostrou, o verdadeiro intérprete e primeira testemunha da teologia especificamente cristã foi Lucas, ao entender a salvação como uma história, centrada em Jesus. 

‒ Tempo do Espírito Santo, Igreja (Livro dos Atos dos Apóstolos). A partir da Páscoa de Jesus, como expressão da vinda do Espírito Santo (Pentecostes) surgiu a etapa final da história, que é a época do Espírito Santo, que se mantém e avança até a Parusia ou revelação final de Jesus, quando realiza a obra da salvação e entrega o reino ao Pai, para que Deus seja tudo em  todos (1 Cor 15,28). O protagonista daquela época (e do livro dos Atos) é o Espírito Santo, que aparece, assim, como dom e presença do Jesus ressuscitado, de maneira que seu evangelho (Lc) ficaria inacabado se não fosse completado pelo evangelho do Espírito Santo (Atos). Como já dito, a ausência de Jesus é princípio de salvação: ele teve que superar sua antiga forma de existência humana, para enviar seu Espírito (cf. Lc 24,49; Atos 2,33), começando o tempo e o caminho da Igreja em Pentecostes (Atos 2).

Lucas escreveu, assim, uma cristologia histórica (uma teologia da história da salvação), de forte impostação litúrgica, definindo os momentos centrais da nova celebração cristã (Natal, Páscoa, Pentecostes). Sua visão de Jesus está ligada à missão eclesial (através do Espírito) e à esperança escatológica (à culminância futura da história). Neste contexto, podemos falar de uma cristologia pneumatológica (conduzida e aberta pelo Espírito Santo).

‒ Jesus, “função” do Espírito Santo, Nascimento. Jesus, o Filho de Deus, não podia nascer apenas pela obra de outros seres humanos, dentro de uma história geral da providência divina, mas teria surgido – como efetivamente surgiu – por particular influência de Deus, por meio do Espírito. O nascimento humano de Jesus pelo Espírito que age em Maria (cf. Lc 1,35) aparece, assim, como princípio da revelação de Deus.

‒ Jesus, portador do Espírito. Lucas formula a experiência do batismo: “O Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como pomba” (Lc 3,22). Jesus aparece, assim, como o Espírito Santo “corporalizado”, encarnado, em forma humana. Nesse sentido, alguns teólogos costumam falar da “Cristologia do Espírito”, ou seja, de uma cristologia do Espírito encarnado em Jesus. Devemos acrescentar que o Espírito não é apenas o início do nascimento (como em Lc 1,26-38) e o renascimento de Jesus (batismo), mas uma fonte de salvação messiânica, em uma visão libertadora (cf. Lc 4,18; At 10,38).

‒ O Espírito do Ressuscitado. Páscoa e Pentecostes. A novidade mais significativa da experiência pascoal, segundo Lucas, é o fato de que Jesus ressuscitado “recebeu o Espírito” de tal forma que pode se apresentar como o Emissor do próprio Espírito de Deus. Deste modo, ele mesmo diz: “Eis que enviarei a promessa do Pai, ou seja, o Espírito Santo” (cf. Lc 24,49). É o que o próprio Lucas diz, ainda mais precisamente, pela boca de Pedro, no primeiro sermão cristão: “Elevado à direita de Deus, recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou (…)” (At 2,33).

Xabier Pikaza, Salamanca. Texto original espanhol. Postado en diciembre del 2020.

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A recepção do Vaticano II na América Latina e Caribe. Um olhar de conjunto sobre alguns pontos relevantes

Sumário

Introdução

1 Sinais dos tempos – Método Ver-Julgar-Agir

2 A irrupção dos pobres e para eles a manifestação de Deus

3 Transformações em algumas formas de vida no Povo de Deus

3.1 O serviço presbiterial

3.2 Transformações na vida religiosa ou consagrada

4 A leitura popular da Bíblia e a animação bíblica de toda a pastoral

5 A reforma litúrgica e a religiosidade popular

Reflexões finais

Referências

Introdução

Analisar a recepção conciliar nas igrejas de um continente é uma tarefa que requer  uma clara consciência dos limites. Por um lado, a obra do Vaticano II abrange os mais diversos temas da vida da Igreja e das teologias de uma região, por outro lado, particularmente na América Latina e no Caribe, cresce a conscientização sobre a complexidade e a diversidade das realidades socioculturais. Estas não são apenas as diferenças entre os países, mas também entre as múltiplas subculturas dentro deles. O Sínodo panamazônico de 2019 também revela que certas regiões compartilham formas de vida e desafios além das fronteiras políticas nacionais. São mais de sete milhões e meio de quilômetros quadrados com nove países (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela, incluindo a Guiana Francesa). A região registra a presença de cerca de três milhões de povos indígenas, representando cerca de 390 povos e nacionalidades diferentes. No entanto, mesmo com todas essas realidades plurais e complexas, é possível reconhecer características comuns, mesmo em referência à vida da Igreja, que nos permite falar de uma realidade latino-americana e caribenha.

Existiu e existe ainda hoje um consenso quase unânime sobre o valor positivo e decisivo do Concílio para a vida da Igreja neste continente. Isso pode ser verificado nos mais diversos textos: os episcopais – individuais e colegiados – as inúmeras produções teológicas e pastorais de múltiplos grupos, particularmente grupos de padres de diversos países, de congregações religiosas etc. O Vaticano II, como um todo, logo se tornou um símbolo de renovação. Algumas análises assumiram a imagem de um novo Pentecostes para caracterizar a importância deste evento. Muitas das expressões mais típicas do catolicismo latino-americano pós-Concílio, como as comunidades eclesiais de base (CEBs), a leitura popular da Bíblia, a valorização da religiosidade popular, a inserção da vida religiosa em ambientes pobres, inclusive a teologia da libertação, se reconhecidas como realidades teológico-pastorais devedoras e agradecidas do evento conciliar. Essas realidades eclesiais, entre outras, são as que possibilitam afirmar que a recepção nessas terras tem sido “seletiva, criativa e fiel” (GALILEA, 1987).

Outro aspecto geral caracteriza a recepção: os mesmos textos do Vaticano II não foram trabalhados diretamente na mesma proporção do que foi feito em outras línguas e regiões. A análise da recepção conciliar ainda deve ser feita onde sua ligação com o Vaticano II não é explícita. É possível falar de um vínculo mediado, mas de forma alguma superficial. Dois fatos podem ser verificados em grande parte da literatura teológica de nosso continente, ao contrário da pesquisa em outras latitudes. O Vaticano II é normalmente considerado em conjunto com a Conferência de Medellín como um único grande evento de celebração e recepção. Provavelmente a natureza ainda muito europeia do Concílio, visível em seus temas atuais e também nos ausentes, contribuiu para essa dinâmica. Assim, no final do 50º ano, falou-se de uma “memória dupla”, o Concílio e a Conferência de Medellín (LIBANIO, 2013, p. 164). G. Gutierrez caracterizou bem esse aspecto.

Considero que, da América Latina e do Caribe, é legítimo entender por evento conciliar o conjunto de três elementos: João XXIII e suas intervenções nos dois anos que antecederam a abertura do Concílio, onde expressou intuições, que não foram totalmente reconhecidas no Concílio. (…) Em segundo lugar, os documentos conciliatórios elaborados, após longas discussões, incluindo o clima em que foram discutidos e aprovados. Finalmente, a Conferência Episcopal de Medellín, convocada para considerar a situação da Igreja e da América Latina à luz do Concílio, foi a primeira e criativa recepção de três anos após o ápice do Vaticano II. (…) Medellín foi, ao mesmo tempo, uma leitura do Vaticano II da América Latina e do Caribe. (GUTIÉRREZ, 2013, p. 116-117)

Com o início da “latinoamericanização” do Vaticano II (GALLI, 2018, p. 14) surge um novo fenômeno. O nascimento da consciência de ser uma igreja regional com traços próprios, com realidades diversas a de outros continentes, especialmente o europeu, tem seu ponto de partida, precisamente, no evento do Concílio e sua recepção imediata na Segunda Conferência Episcopal Latino-Americana realizada em Medellín (1968). Este evento é caracterizado “em certo sentido”, como “a certidão de nascimento da Igreja latino-americana e caribenha” (BEOZZO, 2008).

A recepção da herança conciliadora, por outro lado, está em grande parte ligada a alguns grandes textos magisteriais subsequentes. Um caso emblemático é representado pela exortação Evangelii Nuntiandi (1975), decisiva para a perspectiva da Conferência Geral realizada em Puebla (1979); essa exortação é o documento pós-Concílio mais relevante no parecer de Francisco (FRANCISCO, 2014a). A encíclica Populorum Progressio (1967), que apresenta uma reflexão não suficientemente discutida no Vaticano II, teve uma importante influência na Conferência de Medellín; foi até classificada como “algo como a Gaudium et spes do Terceiro Mundo” (GUTIÉRREZ, 2018, p. 86).

 1 Sinais dos tempos – Método Ver-Julgar-Agir

A perspectiva metodológica utilizada na linguagem magistral, na programação da ação pastoral da Igreja e na elaboração teológica nessas décadas revela uma das principais linhas de acolhimento do Concílio no continente. O teólogo chileno Juan Noemi caracterizou justamente a nova situação: “Antes do Vaticano II, prevalece um exercício teológico para o qual o contexto espacial e temporal constitui uma exterioridade, um acidente que não é considerado em si como determinante da teologização” (NOEMI, 1996, p. 31). Com essa perspectiva histórica e de metodologia teológica, fica mais evidente o que aconteceu na Conferência de 1968:

a coisa mais decisiva em Medellín não é ter colocado sobre a mesa a questão da libertação como tal, mas sim que pela primeira vez de maneira explícita e consciente, a situação da América Latina é considerada, não mais como um acidente dispensável, mas como pano de fundo para o que o exercício teológico é confrontado. (…) Incentiva um trabalho teológico localizado e responsável pela realidade concreta e não além dela. (NOEMI, 1996, p. 46)

Nesta perspectiva se percebe, então, o sucesso de uma descoberta de Víctor Codina: Gaudium et spes é “o texto que teve maior impacto na América Latina por seu convite a ouvir e discernir os sinais dos tempos” (CODINA, 2013, p. 84). Como é sabido, o Vaticano II deu um passo inicial e muito debatido durante a elaboração da Constituição pastoral. Entre as novidades propostas pela última versão do chamado Esquema XIII na quarta sessão do Concílio estava a estrutura hermenêutica do documento que, como afirma C. Theobald, “estava fundada sobre o método indutivo ‘ver-julgar-agir’ da Ação Católica, introduzido como um esquema estruturante na primavera de 1965” (THEOBALD, 2015, p. 228). A partir desse momento, a interpretação dos sinais dos tempos, expressão bíblica e pastoral que simboliza esse método, foi adquirida como princípio teológico do qual toda a futura Constituição se organiza. Além disso, essa metodologia indutiva, com uma trilogia dialeticamente articulada, criada por Joseph Cardijn, fundador da Juventude Operária Cristã (JOC), já era utilizada antes do Concílio em múltiplas instâncias da vida das igrejas na América Latina e do Caribe (BRIGHENTI, 2015, p. 608-615).

É possível verificar nos diálogos e na bibliografia internacionais que a constituição Gaudium et spes e, em particular, essa metodologia, foram realmente assumidas nos diversos continentes, ainda que de uma maneira diferenciada (SANDER, 2005, p. 835-859). Assim, as teologias da libertação em suas diferentes formas ‒ norte-americanas, sul-americanas, asiáticas e africanas ‒ tiveram, nesse modo de proceder, um “padrão comum”, um “fio condutor”, ainda que, sua diversidade de gênero, de origem econômica, nacional e étnica, cultural e/ou religiosa, que não deva ser subestimada (PHAN, 2000, p. 62).

Mas é preciso reconhecer que, a partir dessa perspectiva metodológica, a América Latina percorreu um caminho peculiar no pós-Concílio: essa abordagem teve uma repercussão e desenvolvimento maiores sobre ela do que em outras regiões. A Conferência de Medellín (1968) assumiu criativamente o método de reflexão teológica da Constituição pastoral. Sua principal característica é que, ao contrário do Concílio, o método não só influenciou um documento, mas a “mecânica de trabalho”, como era chamada, de toda a Conferência, que se moldou aos documentos elaborados. Graças a Medellín, aliás, o impacto do método para moldar a identidade eclesial latino-americana nos anos seguintes é inegável. Como Brighenti afirmou, ele está na base de práticas eclesiais populares que desembocaram na opção pelos pobres, na formação das comunidades eclesiais de base, na prática da leitura popular da Bíblia, no desenvolvimento da assistência pastoral social, na militância cidadã e na própria teologia da libertação (BRIGHENTI, 2015, p. 608). Todas essas expressões eclesiais, com suas riquezas e limitações, representam uma certa novidade teológico-pastoral qualitativa na história da Igreja e, em grande parte, identificam por sua “originalidade” a caminhada e o peculiar rosto latino-americano. Nesse sentido, a declaração de José Legorreta, que muitos autores compartilhariam, é significativa: “o método ver-julgar-agir tornou-se emblemático da nova forma de ser igreja e fazer teologia na América Latina” (LEGORRETA, 2015, p. 255).

Um fato marcou particularmente o desenvolvimento posterior a Medellín: os questionamentos ao método ver-julgar-agir nas diversas Conferências Generais do Episcopado Latino-americano ou por ocasião deles. Admitido sem discussões na época de Medellín (1968), o método tem sofrido repetidos ataques em conferências subsequentes, até Aparecida (2007), sem exceção. Em especial, a Conferência de Santo Domingo (1992), pois essa representa o caso mais relevante desse revés. Que essa forma teológica, indutiva e histórica de prosseguir, que tem caracterizado particularmente a maneira de ser e fazer a Igreja deste continente, tenha encontrado importantes oposições, particularmente no centro romano da Igreja, é mais um sinal de sua importância e quanto estava em jogo nela.

 2 A irrupção dos pobres e neles a manifestação de Deus

 Devido à sua riqueza e complexidade, não é fácil caracterizar em poucas palavras o núcleo do processo eclesial e a originalidade teológica dessas décadas no continente gerada a partir de Medellín. Vários autores sugeriram uma formulação nestes termos: a novidade está na irrupção dos pobres e neles a manifestação de Deus (SOBRINO, 2016, p. 208).

O que foi uma convicção embrionária na década de 1960, em 50 anos, acabou inspirando toda uma forma de entender a Igreja na América Latina e no Caribe e ativando o desenvolvimento da primeira teologia contextual propriamente dita, não europeia: a teologia da libertação. Os pobres continuarão a ser uma temática determinante no continente, como um “lugar teológico” pelo qual se busque entender o Evangelho[1]. A expressão “perto dos pobres, próximos a Deus” condensa um critério chave e decisivo do discernimento evangélico (GUTIÉRREZ, 2010).

Ao adotar o método Gaudium et spes de observar a história para examinar nela a presença e a vontade de Deus, os latino-americanos descobriram que, além do que o Concílio havia alertado (PLANELLAS, 2014), o sinal dos tempos correspondentes ao seu contexto constituía as grandes transformações que afetavam todos os aspectos da vida das pessoas, particularmente a vida dos mais pobres e oprimidos, o surgimento deles como sujeitos históricos e o alarme sobre a espiral da violência. Na segunda metade do século XX, houve uma verdadeira irrupção dos pobres na história, seja como novos sujeitos capazes de organizar e lutar no campo social e político, ou como massas cuja miséria era considerada uma injustiça estrutural e não uma mera fatalidade.

O Magistério Episcopal Latino-Americano pós-Concílio e a teologia da Libertação, entrelaçados no início, refletiram sobre essa realidade de forma original. Em Medellín (1968), em particular, é afirmado de forma rudimentar, mas com muita força, a origem teológica estrita da qual, posteriormente, a Conferência de Puebla (1979) chamará de “opção pelos pobres” ou “opção preferencial pelos pobres” (DPb n.733-735, 1134-1165). “A frase opção preferencial é nova, o conteúdo é muito antigo, basta abrir a Bíblia para encontrá-lo” (GUTIERREZ, 2010, p. 14).

A pobreza a que a Igreja Latino-Americana dos anos 1960 e 70 aludiu era principalmente a dos camponeses no ambiente rural, a dos imigrantes camponeses nas grandes cidades e dos trabalhadores industriais. De qualquer forma, foi reconhecida em pessoas socioeconomicamente pobres, ou seja, latino-americanos/as carentes de alimentos, saúde, habitação, educação; pessoas exploradas ou multidões desocupadas. À medida que vários dos países perderam suas democracias e tiveram que suportar ditaduras militares, igrejas latino-americanas veriam novos tipos de pobres nas vítimas de violações dos direitos humanos (perseguidos, torturados e desaparecidos) e em seus parentes que exigiam justiça. Somadas às deficiências acima, estavam a insegurança, a falta de liberdade, a humilhação e a falta de moradia (DPb n.49, 314, 347).

Naqueles anos, a América Latina também foi marcada pelo cenário da Guerra Fria travada entre as grandes potências dos Estados Unidos e da União Soviética. Os países latino-americanos, pertencentes ao chamado Terceiro Mundo, se alinharam ou foram forçados a fazê-lo ‒ com o capitalismo ou o marxismo. A Revolução Cubana (1959) foi um marco que influenciou toda a década de 1960 até que o acesso democrático ao poder do presidente Salvador Allende no Chile (1970) ofereceu outro paradigma de socialismo possível. O golpe militar que derrubou Allende incluiu o país na longa lista de nações latino-americanas que naqueles anos tiveram ditaduras militares (Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Paraguai, Peru, Uruguai). A ditadura de Pinochet no Chile (1973-1990) foi pioneira em ensaiar o neoliberalismo que, mais tarde, na década de 1990, dominou parte do continente. A queda do Muro de Berlim (1989), uma espécie de triunfo da sociedade capitalista ocidental, teve um forte impacto nos movimentos sociais e políticos latino-americanos de esquerda, bem como na teologia da libertação.

Na tentativa de entender a pobreza e suas causas, na década de 1960, os teólogos da libertação fizeram seu próprio caminho aplicado nas ciências sociais, que consistia em abandonar a “teoria do desenvolvimento” ‒ que entendia que os países subdesenvolvidos seguiriam naturalmente o curso dos países desenvolvidos ‒ e adotar as “teorias da dependência”, que postulavam a necessidade de “libertar” os países pobres dos ricos, pois o elo entre eles foi precisamente o fator que criou a riqueza de uns e a pobreza de outros (OLIVEROS, 1977, p. 38-46; GUTIÉRREZ, 1990, p. 127-137). É verdade que, “apesar dos limites”, essa “teoria fez avançar qualitativamente” o estudo da realidade social do continente, lembra Gutiérrez. “Talvez sua principal contribuição tenha sido fazer ver a necessidade de uma análise estrutural, ou seja, não se limitando a uma simples descrição da situação” (GUTIÉRREZ, 2018, p. 88).

O conceito dos pobres só adquiriu uma densidade teológica maior quando Medellín, Puebla e a Teologia da libertação distinguiram, graças às Escrituras, entre a pobreza “material” ‒  a pobreza socioeconômica ‒  e a pobreza “espiritual” ‒  o compromisso de solidariedade com os pobres.  Gutiérrez usou a expressão: “com os pobres contra a pobreza”. Dessa forma, os pobres passaram a ser considerados como um tema teológico, seja porque têm um privilégio epistemológico para entender o Evangelho, seja porque sua reflexão teológica sapiencial é valorizada. A reflexão magisterial e teológica valorizou a luta agonizante dos pobres simplesmente pela sua vivência, e pela sua capacidade de evangelizar e revelar Deus como o Deus dos pobres.

Nas décadas sucessivas, a persistência do fenômeno da pobreza e da crescente complexidade de sua realidade deram origem, por um lado, a um grande número de conceituações e terminologias que buscam entender e explicar esse mundo e, por outro lado, estratégias e propostas de soluções para seus problemas estruturais. A pobreza é dita cada vez mais de várias maneiras.

Em relação à atualização da visão teológica sobre o problema, o argumento central reside na aquisição de uma melhor compreensão da complexidade da pobreza. De particular importância foi o desenvolvimento do aumento da conscientização sobre a questão racial, a “aparição pública” das culturas aborígenes e a “emergência” das questões específicas das mulheres. Por outro lado, um vislumbre da ecologia surgiu com os olhos dos pobres (BOFF, 2011). O Magistério continental, em especial nas Conferências Gerais posteriores as de Medellín e Puebla, ou seja, as de Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007), ratificaram a opção pelos pobres e evidenciaram sua índole cristológica (DSD n.2033-2035; 2130; DAp n.128, 397-399). Se Puebla pediu para descobrir no rosto de vários tipos de pobres o rosto de Cristo (DPb n.31-39), Santo Domingo expandiu esses rostos (DSD n.178) e Aparecida simplesmente os multiplicou (DAp n.65).

Francisco, o primeiro papa latino-americano da história, representa hoje a escolha dos pobres no mais alto nível da Igreja: a sede de Roma. Sua frase “o quanto queria uma Igreja pobre e para os pobres”, no início de seu pontificado, caracteriza seu programa de governo expresso na sua Exortação Evangelii Gaudium. Com razão foi dito que este texto, sem ser uma carta pertencente à doutrina social da Igreja – tema importante para sua interpretação ‒, é o documento mais elaborado e detalhado sobre o tema da Igreja e dos pobres em toda a história do magistério do bispo de Roma.

3 Transformações em algumas formas de vida no Povo de Deus

É perigoso idealizar romanticamente a Igreja latino-americana, alertou V. Codina (CODINA, 1990, p. 107). Muitos dos que vêm ao continente pela primeira vez pensam que em cada paróquia encontrarão comunidades de base, que em cada diocese há bispos como o monsenhor Romero, que em cada Igreja há leigas e leigos exemplares que proclamam a palavra até o martírio, que em cada comunidade religiosa as pessoas estão inseridas entre os pobres e são verdadeiramente proféticas. A realidade é muito diferente e às vezes até decepcionante. Pelo contrário, a grande maioria dos cristãos vive em estruturas eclesiais tradicionais, inclusive pré-Concílio. O machismo, em geral, e o clericalismo, em particular, permeiam fortemente as mentalidades e práticas de inúmeros agentes pastorais, bispos e presbíteros. Estruturas paroquiais não renovadas não são exceção. Os órgãos diocesanos, como conselhos sacerdotais ou conselhos pastorais, têm uma existência mais formal do que operacional. O déficit nos processos sinodais em todos os níveis é uma característica muito arraigada e generalizada. São todas formas de vida pessoais e práticas institucionais de difícil transformação. Em particular, as iniquidades de gênero, tão visíveis em estruturas eclesiais, encontram um importante apoio nos costumes culturais marcadamente patriarcais de nossos países, que se manifestam, sem exceção, em todas as classes sociais e nas áreas mais diversas: família, políticos, negócios, sindicatos, universidades etc. Assim, quando falamos de novas formas eclesiológicas, como as CEBs, ou a opção pelos pobres, refere-se a realidades minoritárias, mas significativas.

Uma avaliação geral da recepção do Concílio do ponto de vista eclesiológico poderia destacar, entre os principais aspectos relevantes, a colegialidade episcopal materializada no CELAM (FELICIANI, 1974; ESCALANTE, 2002), o surgimento e desenvolvimento das mesmas comunidades eclesiais de base (MARINS, 2018), também o importante significado que teve o conceito teológico de Povo de Deus ter sido assumido pela Lumen Gentium como categoria arquitetônica da renovada visão da Igreja (GALLI, 2015, p. 413). Outro ponto de vista é igualmente interessante para revisar: as profundas transformações vivenciadas pelos vários membros e vocações no Povo de Deus; transformações teóricas e também em seus modos concretos de vida. Alguns aspectos de dois deles são brevemente destacados: presbíteros e vida religiosa ou consagrada.

3.1 O serviço presbiterial

Algumas das ideias fundamentais do decreto Presbyterorum ordinis, que buscava promover uma renovação na imagem do sacerdócio existente antes do Vaticano II, foram recentemente definidas. Elas representam um passo em uma certa direção: a) da óptica da consagração até a perspectiva da missão eclesial. Trento havia partido de uma perspectiva sacramental, da eucaristia à ordem, o Vaticano II coloca a doutrina em um contexto mais amplo, como uma modalidade de realização da missão eclesial; b) a partir da singularidade do ministério da cultual à integração de ministérios proféticos e pastorais; c) de uma visão sacerdotal individualista a uma visão sacerdotal comunitária, na qual esse ministério também se caracteriza como participação no ministério episcopal. A escolha pelo vocabulário presbiteral em relação ao sacerdotal devido à sua maior proximidade com a língua do Novo Testamento e por destacar mais sua especificidade não pode ser subestimada; d) do presbítero alter Christus e mediador ‒ expressões deliberadamente excluídas ‒ ao presbítero que atua na pessoa ou em nome de Cristo; e) da santidade como alimento do ministério para o ministério como elemento da mesma santidade com uma categoria unificadora de todos os aspectos do ministério e da vida sacerdotal, caridade pastoral (CASTELLUCCI, 2017, p. 317-326). Nesse sentido, parece correta a avaliação de que o ensinamento conciliador expresso em Presbyterorum ordinis representa “uma renovação e aprofundamento substancial da teologia do serviço presbiteral”, não um mero “amálgama inconsistente de concepções distintas”, mas uma visão “concisa e conclusiva deste ministério (FUCHS, 2005, p. 543). Portanto, sem ignorar as limitações, o verdadeiro desenvolvimento e progresso histórico-dogmático devem ser reconhecidos nesta questão conciliadora. A história da recepção neste âmbito não se resume a este documento-chave, mas está intimamente ligada à visão geral da Lumen Gentium, às importantes perspectivas abertas pela Gaudium et spes, particularmente na leitura dos sinais dos tempos e em suas reflexões sobre a relação entre fé e história e, não menos importante, a renovação litúrgica ‒ Sacrosanctum Concilium ‒ que rapidamente mudou a vida concreta dos sacerdotes nas práticas tão importantes como cotidianas. Mas como mostra a análise dos diversos processos históricos no continente, a influência do Concílio não deve ser superestimada; é um elemento decisivo, mas junto a outros não menos relevantes que nos permitem entender o que aconteceu nessas décadas.

Pode-se reconhecer que este é, de fato, um dos âmbitos fracos da renovação conciliadora no continente. Certos aspectos de Medellín, contrários aos novos tons de Presbyterorum ordinis, parecem um sintoma inicial disso. Isso é indicado, por exemplo, no vocabulário utilizado, no mesmo título “Sacerdotes”, na constituição de um ministério independente de uma comunidade concreta, com um esquema descendente. O julgamento de F. Taborda é significativo: não obstante a perspectiva da opção pelos pobres, típica de todos os textos de Medellín, “é decepcionante a teologia do presbiterado descrito” no respectivo documento (TABORDA, 2017, p. 211). A questão aqui é se, à luz do processo vivenciado nessas décadas, nessa área não estamos enfrentando um fenômeno mais global, que não é específico para o catolicismo latino-americano.

O decreto Optatam totius, por sua vez, recebeu uma recepção favorável de forma semelhante aos outros documentos conciliares. É praticamente impossível fazer uma avaliação dos processos vivenciados nessas décadas nos seminários de formação de candidatos ao presbiterado dada a diversidade dos países e a complexidade das questões. Ainda que seja verdade que eles mantêm uma estrutura relativamente uniforme baseada nas normas e orientações da Santa Sé. Não se pode negar processos de mudança, entre os quais é possível destacar uma maior relevância dada à formação humana, com a crescente contribuição da psicologia à formação pastoral. É verdade que, ainda hoje, poderiam ser subscritos muitos dos aspectos positivos já reconhecidos pelo documento de Medellín:

Nota-se maior integração na equipe de formadores; atualizando isso através de cursos e encontros de reflexão; esforço para uma formação mais pessoal dos seminaristas dentro de um ambiente familiar; integração do seminário na comunidade eclesial e na comunidade humana; mais contato do bispo e dos padres paroquiais com o seminário; maior abertura para as realidades do mundo de hoje e da família; renovação de métodos pedagógicos; aplicação de uma psicologia saudável no discernimento e orientação dos candidatos. (DMed n.13, 6)

Alguns aspectos negativos, já indicados à época de Medellín, parecem conservar toda sua atualidade, ainda que em um novo contexto cultural, tais como a existência de “formadores insuficientemente preparados” ou as “falhas na formação em direção à maturidade humana plena” (DMed n.13, 5). A participação de leigas e leigos na formação ainda é limitada. Um ponto central parece não ter sido conquistado: não obstante as transformaçõess realizadas, a mentalidade clerical, expresa em formas de liderança e práticas institucionais, não apresenta uma melhora substantiva. Isso coloca em questão a eclesiologia que, de pronto, não na declaração de intenções, está na base dos projetos de formação. A questão surge até que ponto a própria estrutura dos seminários não contribui para a imobilidade nesse aspecto tão importante para a realização de uma eclesiologia do Povo de Deus. Os profundos desafios colocados pela chamada cultura pós-moderna, que destaca Aparecida (DAp n.318), não podem ser desconhecidos. De qualquer forma, as limitações vistas nas estruturas de formação, em grande parte, também não parecem ser uma característica especificamente latino-americana de acolhimento conciliador, mas uma questão comum a outras regiões geográficas da Igreja.

3.2 Transformações na vida religiosa ou consagrada

A redescoberta de seus fundadores e seus carismas iniciais, estimulados pelo decreto conciliador Perfectae caritatis, por um lado, e o declínio de novas vocações e os inúmeros abandonos, por outro, marcaram a vida das mais diversas congregações e institutos religiosos nessas décadas, como uma tendência global. As questões de renovação e de identidade representam um dos desafios e das tarefas mais relevantes do pós-Concílio em referência à vida consagrada. Uma frase de Medellín resume bem o clima da época: “Nestes tempos de revisão, muitos se perguntam qual é a posição do religioso na Igreja e qual é sua vocação especial dentro do Povo de Deus” (DMed n.12,2). Assim como no resto das vocações na Igreja, a reconfiguração da identidade da vida consagrada tem sido marcada, predominantemente, por responsabilidades diante dos processos históricos: “ela deve ser incorporada no mundo real e hoje com maior audácia do que em outros tempos” (DMed n.12,2). O chamado geral da Gaudium et spes teve um impacto peculiar neste modo de vida: “somos testemunhas que um novo humanismo está nascendo, no qual o ser humano é definido principalmente pela responsabilidade com seus irmãos e irmãs e pela história” (GS n.55).

Nesse contexto mais geral se situa a que é, talvez, a principal novidade ou originalidade dessas décadas nas formas de vida consagrada, já estabelecida por Puebla (1979): a mudança de lugar social, ou seja, comunidades inseridas em meio popular. “Surgem ‘pequenas comunidades’, geralmente nascidas do desejo de se inserir em bairros modestos ou no campo, ou de uma missão evangelizadora particular” (DPb n.731). Trata-se de uma nova forma ou figura eclesial em consonância com a nova consciência da pobreza: “colocou em uma luz mais clara sua relação com a pobreza dos marginalizados, o que não implica mais não apenas o desprendimento interno e a austeridade da comunidade, mas também a solidariedade, o compartilhamento e em ‒ alguns casos ‒  convívio com os pobres” (DPb n.734) (MESTERS, 1997). Esse processo incluiu a revisão das obras tradicionais e foi vivido com muitas tensões (BARROS, 2018). É também fruto da redescoberta da vocação original dos fundadores, que quase sempre responderam a uma necessidade específica dos pobres e marginalizados. Nesse sentido, Ronaldo Muñoz declarou em 1987: “vivemos um tempo de refundação de todas as congregações religiosas” (MUOZ, 2002, p. 76). Este é um passo muito significativo, particularmente por congregações femininas. Por outro lado, não se pode ignorar a importante inércia institucional típica de uma “pastoral de conservação” (DMed n.6,19). Em suma, à luz de uma recepção conciliar complexa, mas substancialmente positiva, uma variedade de questões e desafios são agora vislumbrados para dar a esses carismas eclesiais uma forma apropriada em uma situação cultural profundamente transformada (VITÓRIO, 2017).

4 A leitura popular da Bíblia e a animação bíblica de toda a pastoral

As várias iniciativas em torno da Palavra de Deus desenvolvidas nas décadas na América Latina e no Caribe se reconhecem explicitamente como devedores da renovação produzida pelo movimento bíblico do século XX e, particularmente, pela Constituição Dei Verbum. O documento de 1993, “A Interpretação da Bíblia na Igreja”, da Pontifícia Comissão Bíblica, também teve efeitos importantes. Se a Constituição conciliar desencadeou o movimento bíblico no continente, este texto confirmou várias das intuições da caminhada bíblica latino-americana: interdisciplinaridade na interpretação da Bíblia, o valor do contexto do leitor, leituras liberacionistas e feministas, críticas à leitura fundamentalista, a avaliação de lectio divina etc (SALAZAR, 2009, p. 18, 23). Não há dúvida, também, de que o uso da língua vernacular em celebrações litúrgicas favoreceu os processos de apropriação da Bíblia pelo Povo de Deus.

Entre todas as realizações dessas décadas, uma delas merece ser particularmente destacada.

A herança do Concílio encontrou sua expressão mais significativa e criativa na leitura popular da Bíblia, uma ampla apropriação comunitária da Palavra de Deus que alimentou o caminho das comunidades eclesiais de base e das pastorais sociais ao longo desses anos, com grande protagonismo dos leigos, e de modo especial das mulheres. (BEOZZO, 2012, p. 442)

Esta declaração de J. O. Beozzo encontraria um consenso significativo de muitos autores/as. Nas palavras de um dos principais propulsores, Paul Richard:

O movimento bíblico na América Latina consiste justamente em devolver a Bíblia ao Povo de Deus: colocar a Bíblia em suas mãos, seu coração e suas mentes. O Povo de Deus, como o autêntico “proprietário” da Bíblia e intérprete dela, recupera seu direito divino de ler e interpretar as Sagradas Escrituras. (RICHARD, 2007, p. 11)

A seu serviço estão a ciência bíblica e o magistério eclesial. Na opinião do principal expoente dessa iniciativa, Carlos Mesters, as novidades dessa experiência, não obstante as diferenças em suas conquistas nos países e regiões, estão no objetivo, no tema da interpretação e no lugar social. O objetivo não é buscar informações sobre o passado, mas iluminar o presente com a luz da presença de Deus conosco e interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. O sujeito não é o especialista; interpretar as escrituras é uma atividade comunitária na qual todos participam, incluindo o exegeta que desempenha um papel especial nela. Se o lugar dos pobres também é central aqui, a contribuição dos povos indígenas e, em particular, das mulheres é um fato crescente e notável. O lugar social onde se faz a interpretação é a partir dos pobres e marginalizados. Isso muda a forma de olhar, principalmente, por sua consciência social crítica (MESTERS, 1991, p. 153). É uma leitura de natureza ecumênica, não por causa de seus debates teóricos, mas pelo compromisso de todos os crentes com a defesa da vida ameaçada e da busca pela libertação.

Em particular, o uso do método ver-julgar-agir ajudou a desenvolver o que seus autores descrevem como uma “nova visão de revelação: Deus fala hoje” (MESTERS, 2015, p. 534). A Bíblia é considerada “o segundo livro de Deus que nos permite discernir no Livro da Vida onde Deus está, como Deus é, e qual é sua Palavra para nós”. Nesse sentido, afirma-se,

A Bíblia nos revela a Palavra de Deus, mas também nos revela quando e onde Deus se revela em nossa realidade. (…) Devemos ouvir a Palavra de Deus com um olho na Bíblia e o outro na realidade em que vivemos. Ao descobrir a prioridade do Livro da Vida como o primeiro Livro de Deus, agora podemos sair do texto da Bíblia para o texto da Vida. Em sua leitura pastoral, eles utilizam sempre a distinção entre o Livro da Vida e o Livro da Bíblia; dando prioridade ao Livro da Vida como o primeiro Livro de Deus. (RICHARD, 2010, p. 249)

Como se observa claramente, a chamada leitura popular da Bíblia está intimamente ligada a outras experiências típicas do pós-Concílio latino-americano: a escolha pelos pobres, as comunidades de base e a metodologia indutiva herdada da Ação Católica especializada.

Outro aspecto de relevo em relação à Palavra de Deus na vida da Igreja é a mudança de paradigma produzida na pastoral bíblica, isto é, uma nova forma de conceber a dimensão bíblica da ação pastoral das igrejas no continente: desde uma pastoral especializada com outras (pastorais educativos, pastoral da saúde, etc.) a uma animação bíblica de toda a pastoral. Nesse sentido, e parafraseando a expressão conciliadora sobre a Bíblia “como a alma da teologia sagrada” (DV n.24), as Escrituras têm sido afirmadas como a “alma da pastoral”. A expressão significativa, “animação bíblica de toda a pastoral”, foi assumida no magistério latino-americano (DAp n.248) e, posteriormente, na exortação pós-sinodal de Bento XVI, Verbum Domini (2010) (ULLOA, 2015, p. 298).

Vale ressaltar as diversas iniciativas desenvolvidas pela CELAM, por exemplo, a criação de um instituto especializado, o Cebitepal, dedicado especialmente à formação de pastorais e à disseminação da pastoral bíblica. Igualmente a existência de revistas bíblicas especializadas e algumas associações de biblistas de vários países (México, Chile, Argentina, Paraguai, Brasil etc.).

Não se pode subestimar a importância das várias traduções, como nunca antes feitas na história da Igreja no continente. Elas incluem a chamada Bíblia latino-americana e um projeto editorial em andamento, a Bíblia da América. Além do que aconteceu no âmbito litúrgico ‒ a introdução da língua vernácula ‒, destacam-se também os trabalhos interconfessionais com as Sociedades Bíblicas Unidas. O campo bíblico tem sido um dos espaços privilegiados de iniciativas ecumênicas conjuntas.

Em síntese, a análise do biblista chileno P. Uribe parece correta. A recepção do movimento bíblico, em geral, e dos ensinamentos da constituição conciliar Dei Verbum têm sido verificada mais em experiências práticas e pastorais do que em obras teóricas.

Não se trata de uma recepção que não adere de forma ortodoxia ao sensus fidei, mas que sua adesão se realiza na práxis e a partir dessa práxis se pode se refletir teoricamente, elaborando certos níveis de apropriação dos ensinamentos contidos na Constituição. (ULLOA, 2015, p. 298)

5 A reforma litúrgica e a religiosidade popular

A reforma litúrgica do Concílio provavelmente foi a mudança mais imediata e impactante na vida concreta de inúmeras comunidades eclesiais em todo o continente. Em particular, o uso da língua vernácula visibilizou o Vaticano II, suas intenções pastorais e seu processo de aggiornamento sem romper com a tradição anterior. Nesse sentido, o ponto central da reforma litúrgica, isto é, a participação ativa e frutífera dos fiéis, recebeu um importante impulso. Embora não tenham faltado abusos devido à falta de observância das regras litúrgicas, por um lado, ou resistência à renovação, por outro lado, ambos os aspectos encontrados em Puebla (DPb 1n.01, 903), parece que, historicamente, não são notas decisivas para caracterizar o acolhimento conciliar da reforma litúrgica no continente. O motu proprio Summorum pontificum (2007), de Bento XVI, que liberalizou o uso da liturgia romana que precede a reforma conciliar e teve efeitos significativos na medida em que fortaleceu o espaço existente do tradicionalismo litúrgico legitimando teologicamente posições eclesiais e litúrgicas pré-conciliares, parece não ter tido impacto significativo nas igrejas na América Latina e no Caribe, ao contrário dos países de língua inglesa (FAGGIOLI, 2018, p. 28).

Notam-se importantes fragilidades da recepção conciliar, por um lado, em um processo de inculturação apenas recentemente iniciado, e por outro, em uma distância ou relação tênue da reforma litúrgica com religiosidade popular, chave na experiência crente de milhões de pessoas e na vida das igrejas no continente; é, além disso, uma questão pouco relevante no mesmo Sacrosanctum concilium. Sobre o primeiro aspecto, a Conferência de São Domingos diz:

Ainda não é abordado o processo de inculturação saudável da liturgia; isso faz com que as celebrações sejam ainda, para muitos, até mesmo algo ritualístico e privado que não os torna conscientes da presença transformadora de Cristo e de seu Espírito, nem se traduz em um compromisso solidário para a transformação do mundo. (DSD n.43)

A opinião autorizada de Roberto Russo é clara sobre isso. Parece que a determinação com que o diálogo entre a liturgia romana e as diversas culturas diminuiu, argumenta o liturgista uruguaio. “O problema da língua foi resolvido, e substancialmente bem. Mas fica pendente a questão da linguagem, que é mais difícil e ainda precisa ser realizada, nos textos, nos símbolos e na música” (RUSSO, 2013, p. 245).

Sobre o vínculo com a piedade popular ou o catolicismo popular, uma proposta pastoral de Puebla ilumina bem o problema:

Favorecer a fecundação mútua entre a Liturgia e a piedade popular que canalizem com lucidez e prudência os anseios de oração e vitalidade carismática que hoje se comprova em nossos países. Por outro lado, a religião do povo, com sua grande riqueza simbólica e expressiva, pode proporcionar à liturgia um dinamismo criativo. Isso, devidamente discernido, pode servir para incorporar cada vez mais e melhor a oração universal da Igreja em nossa cultura. (DPb n.465) (SANCHEZ ESPINOSA, 2013)

O tema da piedade popular, “uma expressão privilegiada da inculturação da fé católica” (DSD n.36), esteve presente em todas as Conferências, desde Medellín  ‒ de forma relevante em Puebla (DPb n.444-469) ‒ a Aparecida. Nessa última, com duas novas expressões  ‒ uma verdadeira “mística do popular” ou “espiritualidade popular” (DAp n.262, 263) ‒ adquiriu definitivamente um lugar muito proeminente. Se destaca a importância de santuários, peregrinações, festas, canto, vestidos, danças etc. (BIANCHI, 2009). Uma ligação mais próxima e não confusa entre a liturgia e a piedade popular parece uma tarefa pendente, compreensível no contexto da deficiência apontada sobre a inculturação do rito romano. Essa deficiência é muito importante quando você leva em conta, em particular, o significado da piedade mariana, expressa particularmente na importância dos santuários marianos no continente (Guadalupe, Aparecida, Luján etc.) que congregam anualmente milhões de crentes.

A fraqueza das propostas acadêmicas de teologia litúrgica nas faculdades e casas de formação aos presbíteros e, em geral, o pequeno número de teólogos/as e agentes pastorais formados nesta disciplina dá o que pensar. Além disso, o reconhecimento expresso em Puebla de que à pastoral litúrgica não foi dada “a prioridade que lhe corresponde dentro da pastoral conjunto” (DPb n.901) parece conservar toda a sua atualidade. Ambos os fenômenos indicariam que a renovação litúrgica, embora sua importância objetiva, representa uma área negligenciada da recepção conciliar.

Um desafio de longa data e muito significativo em algumas regiões do continente é a falta de celebração eucarística dominical. Embora o problema seja claramente levantado em Aparecida, não parece que uma resposta satisfatória tenha sido formulada lá (ALMEIDA, 2018). Reconhece-se a existência de “milhares de comunidades com seus milhões de membros que não têm a oportunidade de participar da Eucaristia dominical”; eles são encorajados a participar das celebrações da Palavra e “a rezar por vocações sacerdotais” (DAp n.253). Neste ponto, o sínodo da Amazônia de outubro de 2019 indicaria um caminho a seguir.

Em suma, se a reforma litúrgica é valorizada como uma renovação positiva e muito significativa, as limitações vistas na vida das igrejas desta região nos permitem entender o julgamento severo de R. Russo: “no continente latino-americano, as grandes linhas que vão além da pura reforma dos ritos ou dos textos desejados pelo Sacrosanctum Concilium não foram desenvolvidas e não foram totalmente aceitas”. (RUSSO, 2013, p. 245). Os princípios inspiradores da reforma litúrgica não desenvolveram totalmente seu potencial.

6 Reflexões finais

Uma avaliação da recepção conciliar deve, naturalmente, incluir muitos outros aspectos relevantes. O tema da catequese, por exemplo, tem representado uma área pastoral muito dinâmica e criativa, com espírito conciliar e uma grande difusão e impacto nas comunidades cristãs. Em grande parte, este tema esteva ausente do Concílio, mas é uma questão decisiva, já desde Medellín, que adquiriu, não só na América Latina, um desenvolvimento vigoroso no dinamismo do pós-Concílio. O campo educacional, por sua vez, também seguiu seu próprio itinerário, inclusive diferenciando-se da proposta geral expressa na Declaração Gravissimum educationis do Vaticano II. O conceito de Medellín de educação libertadora mostra uma recepção com um relevo diversificado. O desenvolvimento do diálogo ecumênico teve, acima de tudo, iniciativas comuns diante dos problemas dos direitos humanos. A paisagem religiosa do continente passa por uma transformação considerável nessas décadas com a perda da verdadeira ou suposta hegemonia católica anterior. Os desenvolvimentos teológicos têm sido relevantes, especialmente ligados aos contextos históricos e culturais. A mera declaração de algumas de suas várias correntes revela a riqueza do processo que ocorreu: teologias da libertação, teologias feministas latino-americanas, teologia indígena ou ameríndia e teologias afro-americanas, teologia do povo etc.

Victor Codina oferece uma formulação que sintetiza bem os processos vivenciados nessas décadas:

No caso da América Latina e do Caribe, a recepção do Vaticano II não foi uma mera assimilação vital, muito menos uma simples aplicação do Vaticano II para a América Latina: tem sido uma recriação original, uma fidelidade criativa, uma releitura do Concílio de um continente ao mesmo tempo cristão e marcado pela pobreza e injustiça. Essa recepção fez avançar a doutrina conciliar, desenvolveu suas intuições implícitas, dando ao aggiornamento conciliar uma tradução geográfica e histórica muito concreta. Por essa razão, essa recepção, apesar de ter sido feita em plena comunhão com a Igreja universal, tem sido frequentemente conflitante para setores da sociedade civil e também da Igreja, incapazes de entender o dinamismo e a novidade do Espírito. Tem sido uma recepção de martírio no sentido forte da palavra: fielmente recebida por testemunhas do evangelho que, em muitos casos, viveram sua fidelidade ao Senhor até o derramamento de sangue. É por isso que a recepção do Vaticano II pelo continente latino-americano merece respeito: devemos nos descalçar, estamos em solo sagrado. Ninguém poderia imaginar os impulsos da vida que surgiram. Foi um momento de graça, um kairós, um verdadeiro Pentecostes, assim como o Vaticano II. (CODINA, 2013, p. 82)

Carlos Schickendantz. Centro Manuel Larraín (Universidade Alberto Hurtado), Santiago, Chile. Texto original espanhol. Postado em dezembro de 2020.

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[1] Agradeço a J. Costadoat por escrever as ideias desse ponto.

A Eucaristia

Sumário

1 Realidade atual da eucaristia

2 Valorização do magistério

3 Sacramento principal

4 Nomes

5 A doutrina fundamental

5.1 Instituída por Cristo na última ceia

5.2 Memorial da ceia

5.3 Memorial do sacrifício

5.4 A presença real de Cristo

5.5 Transubstanciação

5.6 A questão das espécies e a fórmula essencial

6 A eucaristia e a Igreja

7 A celebração, em síntese

Referências

1 Realidade atual da eucaristia

A eucaristia, como principal celebração litúrgica da Igreja, sofre nestes tempos as mesmas tensões e contradições que a fé cristã nas sociedades contemporâneas. Não é estranho, porque celebra, precisamente, a fé em Jesus Cristo, morto e ressuscitado na vida atual da humanidade e de cada crente. A liturgia é sensível às mudanças no mundo e na Igreja, porque não se celebra em espaços e tempos abstratos, mas nos contextos humanos, culturais e eclesiais concretos de cada crente e de cada comunidade. Em geral, pode-se dizer que, na última década, um grande número de católicos deixou de participar da eucaristia dominical e de praticar a vida sacramental. Em geral, são aqueles cuja relação com a Igreja se baseava sobretudo na recepção dos sacramentos e na participação nos funerais e nas grandes festas cristãs do ano litúrgico ou dos santuários. As comunidades eclesiais de base, capelas de bairros mais homogêneos ou setores rurais, por outro lado, tendem a manter uma práxis celebrativa mais viva e regular. Mas também, muito frequentemente, têm se ressentido do distanciamento dos jovens e da dificuldade de engajar leigos e leigas nos vários papéis litúrgicos ligados à eucaristia: coros, leitores, acólitos. A crise resultante dos abusos de poder, consciência e sexuais de membros do clero, que nos últimos anos foi amplamente divulgada e afetou fortemente a Igreja em muitos países do continente, tem sido um fator que, para muitos católicos com uma pertença mais frágil à Igreja e/ou uma formação mais superficial, os leva a cessar praticamente toda a participação nela, a começar pela eucaristia dominical.

Certamente, a realidade da celebração da eucaristia é muito vasta e diversa para ser resumida ou generalizada em poucas linhas. De um lado, existem comunidades com celebrações muito vivas e participativas, e de outro, igrejas onde o número de fiéis que vão à missa dominical diminuiu drasticamente, enquanto a idade média dos participantes aumentou com a mesma radicalidade. Os planos pastorais diocesanos, o carisma dos párocos ou dos sacerdotes que presidem a eucaristia, a formação dos leigos e das leigas e a tradição da Igreja local são determinantes para a qualidade da vida litúrgica e, em particular, das celebrações eucarísticas. As grandes diferenças nestes aspectos também determinam, em grande parte, as diferenças na qualidade, participação e vivacidade das missas.

Este olhar realista, que não pretende ser pessimista, é necessário no início de um tratamento doutrinal da eucaristia, pois nós, católicos, colocamos este sacramento no lugar mais alto da vida litúrgica da Igreja e não deixamos de proclamar sua centralidade e importância. Para muitos pode parecer que essas afirmações não correspondem à realidade no momento e, para falar a verdade, não estariam errados. Por outro lado, pode a Igreja renunciar a afirmar e ensinar a importância e a centralidade da eucaristia, sem com isso afetar o próprio cerne da sua práxis litúrgico-sacramental?

2 Valorização do magistério

O magistério da Igreja continua a colocar a eucaristia em um lugar eminente na sua prática cultual. O Catecismo da Igreja Católica (CEC) reafirma que a eucaristia é “a fonte e o ápice de toda a vida cristã”, citando a Lumen Gentium n.11 (CEC n.1324); que “contém todo o bem espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, nossa Páscoa”, citando Presbyterorum ordinis n.5 (CEC n.1325), e termina afirmando que “a eucaristia é o compêndio e a soma da nossa fé” (CEC n.1327).

Anteriormente, a constituição sobre a liturgia do Concílio Vaticano II, a Sacrosanctum Concilium (SC), afirmava que a liturgia, da qual a eucaristia é a expressão máxima, é “o ápice a que tende a atividade da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte da qual emana toda a sua força” (SC n.10).

O papa São João Paulo II dedicou importantes páginas à eucaristia no seu magistério, dentre as quais se destaca a sua última carta encíclica, em 2003, Ecclesia de Eucharistia (EdE). Nela há passagens testemunhais de grande profundidade, como a que diz: “Aqui (na eucaristia) está o tesouro da Igreja, o coração do mundo, o penhor do fim a que todo homem, ainda que inconscientemente , aspira. Um grande mistério, que certamente nos ultrapassa e põe à prova a capacidade  de nossa mente de ir além das aparências” (EdE n.59).

Também o papa emérito Bento XVI escreveu sobre a eucaristia. Particularmente importante é a sua exortação apostólica Sacramentum caritatis (SC), de 2007, na qual integra a reflexão do Sínodo dos Bispos de 2005, cujo tema foi precisamente a eucaristia.

O magistério do papa Francisco, por sua vez, oferece um grande número de catequeses, homilias e frases sobre a eucaristia. Na catequese de 8 de novembro de 2017, Francisco recorda o antigo e impressionante episódio dos mártires da Abitínia:

Não podemos esquecer o grande número de cristãos que, no mundo inteiro, em dois mil anos de história, resistiram até à morte para defender a Eucaristia; e quantos, ainda hoje, arriscam a vida para participar na Missa dominical. No ano de 304, durante as perseguições de Diocleciano, um grupo de cristãos, do norte de África, foram surpreendidos a celebrar a Missa numa casa e foram aprisionados. O procônsul romano, no interrogatório, perguntou-lhes por que o fizeram, sabendo que era absolutamente proibido. E eles responderam: “Sem o domingo não podemos viver”, que significava: se não podemos celebrar a Eucaristia, não podemos viver, a nossa vida cristã morreria. Com efeito, Jesus disse aos seus discípulos: “se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6, 53-54). Aqueles cristãos do norte de África foram assassinados porque celebravam a Eucaristia. Deixaram o testemunho de que se pode renunciar à vida terrena pela Eucaristia, porque ela nos dá a vida eterna, tornando-nos partícipes da vitória de Cristo sobre a morte. Um testemunho que nos interpela a todos e exige uma resposta acerca do que significa para cada um de nós participar no Sacrifício da Missa e aproximarmo-nos da Mesa do Senhor. (FRANCISCO, 2017) 

A pergunta do Papa Francisco é chave em nossos dias: o que a eucaristia significa para nós hoje? Se houve momentos em que não era necessário fazer tal pergunta, não são estes que se vive. Certamente, para apreciar a eucaristia não basta saber mais sobre ela. Se o conhecimento não está em conexão vital com toda a vida de fé, é de pouca utilidade. Pode nos tornar mais sábios, mas não ajuda celebrar melhor nossa fé. A eucaristia é, antes de tudo, uma experiência. Uma experiência celebrativa, festiva, que nasce da gratuidade de ser cristão. Podemos saber muito sobre ela, mas para que adquira seu sentido pleno como sacramento da Igreja, deve ser experimentada, vivida e celebrada na comunidade dos fiéis. Dessa perspectiva, tenta-se aqui sintetizar sua doutrina fundamental.

3 Sacramento principal

A liturgia e os ministérios da Igreja são orientados para a eucaristia. “Os outros sacramentos”, afirma o CEC n.1324, “assim como todos os ministérios eclesiais e obras de apostolado, estão unidos à eucaristia e a ela são ordenados”. Sua centralidade na Igreja Católica é clara e está bem fundamentada na práxis e na doutrina de sua história. Por isso é necessário conhecer esses fundamentos nestes tempos em que a formação catequética da Igreja costuma ser fraca e escassa.

A eucaristia é o principal dos sete sacramentos. No mundo sacramental, está ordenada com o conjunto dos sacramentos da iniciação cristã, juntamente com o batismo e a crisma. A tríade batismo-crisma-eucaristia foi, durante os primeiros séculos do cristianismo, a porta de entrada para a comunidade cristã, como uma celebração sacramental única e simultânea, da qual a eucaristia era o ponto culminante. Muito tarde na história da Igreja, apenas no início do século XX, generalizou-se o costume de antecipar a eucaristia aos mais novos, alterando assim a ordem tradicional em que eram ministrados os sacramentos de iniciação: 1-batismo, 2-crisma e 3-eucaristia; para uma nova: 1-batismo, 2-eucaristia e 3-crisma. Mas já antes, na Igreja latina, a crisma havia sido separada do batismo no momento da administração. A razão é que, no Ocidente, ao contrário das comunidades do Oriente cristão, o bispo (e não o sacerdote) foi instituído como ministro ordinário (hoje o chamamos original) da confirmação. Os padres batizavam os recém-nascidos e somente quando o bispo visitava a localidade, ou quando crianças ou jovens podiam ir à sé episcopal, eles podiam ser crismados. E muitas vezes anos se passavam entre os dois sacramentos. Mas mesmo assim, a eucaristia era recebida pela primeira vez apenas na crisma, preservando assim a ordem tradicional: 1-batismo, 2-crisma e 3-eucaristia e, portanto, se preservava o sinal concreto da eucaristia  como culminância da iniciação cristã.

Hoje se considera importante recuperar a unidade destes três sacramentos, teológica e pastoralmente vinculados e interdependentes. Já que nas igrejas latinas essa unidade não pode ser temporal – o costume e certas vantagens pastorais de administrar a primeira eucaristia primeiro e depois a crisma estão muito arraigados – tenta-se que seja pelo menos catequética e liturgicamente clara: na formação e no ritual. Considerar a eucaristia como o ponto culminante da iniciação cristã só pode ser afirmado teoricamente, pois o sinal estabelece como ponto culminante (pelo menos temporalmente) o sacramento da crisma.

O batismo e a confirmação imprimem caráter, ou seja, são sacramentos que só são recebidos uma vez na vida, pois deixam uma marca espiritual indelével em quem os recebeu. A eucaristia, por sua vez, é o sacramento do caminho cristão: é recebida quantas vezes forem necessárias, como alimento para viver a união pessoal com Cristo e o discipulado. É o sacramento do viajante, do peregrino que deseja viver a sua fé no seguimento e na fidelidade à missão confiada. Na homilia do Corpus Christi de 2015, o papa Francisco afirmou que “a eucaristia não é uma recompensa para os bons, mas uma força para os fracos; para os pecadores é o perdão, o viático que nos ajuda a andar, a caminhar”. Imagem profunda e realista: a comunhão eucarística não pode ser recompensa pelos méritos que um cristão possui, mas é precisamente o alimento de que necessita na sua fragilidade e vulnerabilidade para viver e testemunhar a sua fé no complexo mundo de hoje.

4 Nomes

A eucaristia recebeu vários nomes ao longo da história. Cada um deles destaca algum aspecto de seu conteúdo teológico ou de sua forma celebrativa. A CEC os lista de forma mais completa nos números 1328 a 1332. Três deles são particularmente importantes:

Fração do pão. Esta expressão encontra-se em Atos 2, 42-46, no contexto da descrição da primeira comunidade cristã, e em Atos 20, 7-11, em um contexto que pode ser chamado de litúrgico, de uma assembleia no “primeiro dia da semana” (Domingo, Dia do Senhor), com longa palestra (homilia) de São Paulo. A expressão fração do pão refere-se diretamente a uma ação própria da eucaristia, como é a de partir o pão para distribuí-lo, mas tem suas raízes em um costume judaico muito mais antigo: o do pai de família que, depois de abençoar a mesa, partia e repartia o pão para os seus. Na refeição da Páscoa judaica, que é o antecedente imediato da eucaristia, este gesto era particularmente significativo.

Ceia do senhor. Em 1Cor 11,20, São Paulo usa esta expressão para distinguir a ceia fraterna que precedeu a “Ceia do Senhor” (a eucaristia) nas primeiras comunidades cristãs. Na comunidade de Corinto, as ceias anteriores eram palco de excessos e desprezo pelos mais pobres, o que motiva a crítica de Paulo. Apesar de não se reproduzir na própria Ceia do Senhor, sua proximidade com ela deve torná-los coerentes com o espírito cristão de fraternidade, solidariedade e apreço pelos mais pobres.

Eucaristia. Este nome encontra-se, na sua forma verbal, dar graças, em Lc 22,19: “Pegou o pão, deu graças (…)” e em 1Cor 11,24: “Pegou o pão, agradeceu e partiu-o (…)”. Bem próximo está o termo abençoar, utilizado em Mc 14,22 e Mt 26,26: “Ele tomou o pão, abençoou-o (…)”. Dado que a ação de graças e a bênção são ações inerentes à liturgia cristã, e que se manifestam com particular clareza na eucaristia, este é o termo que a liturgia atual tem privilegiado sobre os demais.

Missa? Embora a expressão “missa” continue a ser usada em linguagem coloquial e pastoral em português, espanhol e outras línguas, é um termo que deixou de ser usado em linguagem teológica devido à sua escassa relação com qualquer aspecto central da eucaristia. Sua origem está na Idade Média, na fórmula de despedida dos fiéis no final da eucaristia: “Ite, missa est” (literalmente, “vai, foi enviado”, referindo-se implicitamente à celebração). A partir daí, por metonímia, a eucaristia passou a ser chamada de “missa”.

5 A doutrina fundamental

5.1 Instituída por Cristo na última ceia

A tradição cristã, baseada no Novo Testamento, afirma que a eucaristia foi instituída por Jesus Cristo na ceia que ele celebrou com seus apóstolos na noite anterior à sua paixão. Os textos fundamentais são Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,19-20; 1Cor 11,23-25. Transmitem, com pequenas variações, o relato da instituição que até hoje constitui a parte central das Orações eucarísticas. Também é fundamental Jo 13,1-15, que relata o lava-pés que Jesus fez durante a ceia, considerado um sinal cujo conteúdo e significado são paralelos e análogos ao da fração do pão: a entrega radical de sua vida ao serviço da humanidade. Diz que o Senhor, tendo amado os seus, amou-os até o fim. Sabendo que chegara a hora de deixar este mundo para voltar para seu Pai, durante o jantar, ele lavou os pés dos apóstolos e deixou-lhes o mandamento do amor como missão. É o mesmo conteúdo da oferta do pão partido e do vinho repartido, sinais da entrega radical de Jesus aos seus, que os seus discípulos devem imitar em sua memória.

Na ceia, Jesus deu à Páscoa, a principal festa judaica, seu “significado definitivo” (CEC n.1340). “O nosso Salvador, na última Ceia, na noite em que foi entregue, instituiu o sacrifício eucarístico, (…) banquete pascal em que se recebe Cristo, a alma se enche de graça e nos é concedido o penhor da glória futura” (SC n.47).

Para lhes deixar um penhor desse amor, para nunca se afastar dos seus e torná-los participantes de sua Páscoa, instituiu a eucaristia como memorial de sua morte e ressurreição e ordenou a seus apóstolos (“aqueles que constituía os sacerdotes do Novo Testamento”, Concílio de Trento, Denziger-Hünermann (DH), n.1740) para fazerem o mesmo “em sua memória” (Lc 22,19 e 1Cor 11,24). Eucaristia e sacerdócio ministerial são dois temas que a tradição católica manteve essencialmente ligados.

Ao falar da instituição da eucaristia, é necessário referir-se à compreensão contemporânea de “instituição”: não é apenas o momento fundante de um sacramento, mas sobretudo a vontade de Jesus de salvar por meio de certos sinais rituais em que Ele mesmo continua a agir por meio do Espírito Santo, através de ministros que o fazem em seu nome e em seu lugar. Ou seja, a instituição não é apenas uma ação do passado histórico, mas um efeito permanente dela, cada vez que o sacramento – neste caso, a eucaristia – é celebrado novamente: ali está Jesus Cristo, agora ressuscitado e glorioso, presidindo cada assembleia que celebra sua fé.

5.2 Memorial da Ceia

A eucaristia é “memorial”: “Fazei isto em memória (comemoração) de mim”. Este conceito é fundamental na compreensão sacramental contemporânea. Permite-nos compreender melhor o mistério da presença e atualização da obra salvífica de Cristo na liturgia, e especialmente na eucaristia. Não é uma mera memória subjetiva individual, mas uma ação ritual e eclesial que torna atual e presente a força libertadora das ações de Jesus. A eucaristia é, portanto, o memorial do mistério pascal de Cristo: não só evoca ou recorda, mas também traz, de algum modo, para o aqui e agora, a obra de salvação realizada pela sua vida, morte e ressurreição. Essa obra torna-se presente e atual através da ação litúrgica celebrada pela Igreja.

Os ritos e as palavras constituem a “matéria-prima” do mundo sacramental cristão e, em particular, da eucaristia. Esses ritos, que são ações simbólicas realizadas pelos fiéis em lugares e com objetos significativos, e acompanhados por palavras igualmente significativas, faladas ou cantadas, são os elementos básicos de toda celebração litúrgica. Na história da eucaristia, o âmbito significativo estendeu-se, para além dos ritos e das palavras, ao prédio em que é celebrada, cujo centro visual e ritual é ocupado pelo altar, acompanhado do ambão da Palavra, a outros lugares significativos dentro dele (pia batismal, sacrário, sede, lugar de penitência, imagens), e para a vestimenta dos ministros. Todos estes sinais são elementos que “falam”, comunicando um sentido que ultrapassa a mera compreensão racional e envolve todo o ser daqueles que formam a assembleia que celebra a sua fé. No “prédio-igreja” é realizada a “Ceia do Senhor”, que em sua forma ritual evoca a ceia de Jesus com seus discípulos antes de sua paixão e morte. A mesa (alimento) e a palavra (comunicação) também são os elementos centrais de toda ceia de convívio.

A eucaristia é memorial da única ceia histórica que Jesus celebrou com seus discípulos antes de padecer. Tanto a última ceia narrada pelos Evangelhos, como também a paixão, morte e ressurreição de Jesus, ocorridas imediatamente depois, ocorreram apenas uma vez na história (ephapax). O que foi dado temporalmente se deu uma vez por todas, sacramentalmente, pela obra do Espírito Santo, pode ser realizado “em memória sua” todas as vezes e em qualquer lugar que um grupo de cristãos queira celebrar sua fé, “até que Ele venha” (1Cor 11,26), atualizando hic et nunc (aqui e agora) a salvação ocorrida no mistério pascal. Assim, cada eucaristia na história participa, sacramentalmente, na única ceia do passado temporal por obra do Espírito Santo. Cada eucaristia é um memorial ou comemoração da última ceia.

5.3 Memorial do sacrifício

SC n. 47 afirma: “O nosso Salvador instituiu na última Ceia, na noite em que foi entregue, o Sacrifício eucarístico do seu Corpo e do seu Sangue para perpetuar pelo decorrer dos séculos, até Ele voltar, o sacrifício da cruz (…)”.

Assim como é um memorial da ceia, a eucaristia é também um memorial do único sacrifício histórico de Cristo na cruz. Isso é comumente expresso simplesmente dizendo que a eucaristia é sacrifício. Mas essa expressão pode suscitar interpretações equivocadas. Tal como acontece com a ceia, quando se diz que a eucaristia é sacrifício, não se afirma em sentido histórico, pois historicamente Jesus morreu uma só vez na cruz, mas em sentido sacramental ou memorial: a eucaristia é o “sacramento do sacrifício (da cruz)”. No entanto, isso não explica por que ou em que sentido a própria cruz, ou seja, a morte histórica de Jesus Cristo crucificado, é um sacrifício. O livro bíblico que desenvolve essa ideia é a carta aos Hebreus (Hb 7,26-27; 10,1-14), afirmando que Cristo é o único sacerdote que oferece um único sacrifício (oferecendo-se na cruz), uma vez e para todos. Ou seja, o sacrifício é feito por Jesus se oferecendo. Daí a expressão que ele é “sacerdote, vítima e altar”. Fora da Bíblia, a Didaquê, escrita contemporânea aos últimos livros do Novo Testamento, é a primeira escrita que fala da eucaristia como um “sacrifício”.

A eucaristia não é “sacrifício” no sentido usual da palavra, isto é, uma oferta feita a Deus para atrair algum favor, expiar uma falta ou purificar-se. O Deus de Jesus Cristo não precisa de sangue ou sacrifícios humanos – como a terrível tortura e morte na cruz – para amar e favorecer seu povo. Jesus não se ofereceu como sacrifício nesse sentido. O “cordeiro de Deus”, Jesus Cristo, que evoca aquele cordeiro sacrificado em cada Páscoa judaica para ser comido em família, recordando a refeição rápida de cordeiro assado, pão sem fermento e verduras amargas antes de partir para o êxodo, não pode ser entendido como uma oferenda apresentado pelo ser humano como um sacrifício a Deus, para apaziguá-lo ou obter favores.

Por outro lado, a crítica profética do Antigo Testamento já havia alertado que os sacrifícios sangrentos (de animais sacrificados de maneiras diferentes) não agradam a Deus se não implicam uma vida diária coerente com a adoração. “Eu quero misericórdia, não sacrifícios”, diz Oseias 6,6, profetizando contra a adoração vazia. E Isaías diz: “Estou farto de holocaustos de carneiros… e o sangue de touros e bodes não me agrada. (…) Buscar o que é justo, dar seus direitos aos oprimidos, fazer justiça aos órfãos, defender a causa da viúva ”(Is 1,11,17). Um sacrifício “espiritual”, isto é, oração crente e amor ao próximo, agrada mais a Deus do que sacrifícios materiais de animais.

O que Jesus fez foi dar a sua vida por amor extremo, radical, pela humanidade, coroando assim uma vida e um ministério de serviço humilde à humanidade, representado no lava-pés que o Evangelho segundo João coloca no lugar da Ceia do Senhor. Jesus não queria morrer da maneira que vislumbrava: daí a sua oração pungente no jardim do Getsêmani. A sua entrega à vontade do Pai é consequência de uma missão entregue à missão de dar vida, que com a sua morte teria a sua expressão máxima, a ressurreição dos mortos. Só nesse sentido pode-se dizer que a morte de Cristo foi um sacrifício. Toda a sua vida foi ser pão partido/corpo entregue e vinho/sangue derramado por seu próximo. No sacrifício da cruz culmina uma atitude permanente de Jesus, que ele entendeu como essencial na missão confiada pelo Pai: o despojo de si mesmo assumindo a condição de escravo (Fl 2,6-8), servindo a humanidade até a entrega voluntária da própria vida.

O caráter sacrificial da eucaristia, sempre afirmado pela doutrina da Igreja Católica, com extrema força depois que Lutero e a Reforma do século XVI o negaram, deve ser entendido como uma participação memorial na entrega voluntária e extrema de sua vida, aceita por Jesus Cristo como consequência da sua missão no mundo. Ao mesmo tempo, e daí o verdadeiro sentido da apresentação das ofertas na celebração da eucaristia, a assembleia atualiza o sentido sacrificial da sua própria vida cristã, ou seja, oferece-se como instrumento do amor de Deus pela humanidade, e está empenhada em perpetuar a missão de Cristo de anunciar e fazer presente o Reino de Deus no mundo.

A eucaristia é sacrifício neste horizonte. Na medida em que é um dom recebido de Deus, a eucaristia é memorial do seu amor extremo e, na medida em que é oferta a Deus, é sacrifício: não para obter algo dele, mas para dar a própria vida por seu Reino, como Jesus.

5.4 A presença real de Cristo

A Igreja sempre afirmou que, nas espécies “eucaristizadas” do pão e do vinho, Cristo está presente. A base bíblica fundamental são as palavras de Jesus nas histórias da instituição: “Este é o meu corpo … este é o meu sangue” (Mt 26,26-28). A fé na presença de Cristo na celebração e nas espécies eucarísticas está presente desde o início da formação da liturgia cristã.

Veio então, no desenvolvimento histórico da eucaristia, a veneração das espécies, principalmente do pão, quando sobravam pedaços após a celebração. Eram conservados com respeito para serem distribuídos aos enfermos ou impossibilitados de participar da eucaristia e, posteriormente, passaram a ser objeto de devoção e mantidos em sacrários ou tabernáculos feitos especialmente para esse fim. Finalmente, em paralelo com a perda do sentido de comunhão eucarística, quando ninguém ou muito poucos já se aproximavam para comungar, a adoração do pão consagrado desenvolveu-se mais intensamente como uma liturgia própria e independente da celebração da eucaristia, e a construção dos altares barrocos, que muitas vezes exaltavam a guarda para a adoração em exuberantes retábulos que ocupavam toda a largura e altura da abside das igrejas.

A presença de Cristo na eucaristia é firme doutrina da Igreja Católica, que também as grandes igrejas reformadas partilham, embora com nuances diferentes na sua interpretação. O Concílio de Trento formulou dogmaticamente esta afirmação dizendo que sob as espécies consagradas o próprio Cristo, vivo e glorioso, está presente de maneira verdadeira, real e substancial, com seu Corpo, seu Sangue, sua alma e sua divindade (DH n.1640, 1651) .

No entanto, a presença real de Cristo na eucaristia nunca foi fácil de entender racionalmente; menos ainda para a mentalidade técnico-científica contemporânea. Percebe-se com muita clareza, como acontece com todas as verdades cristãs fundamentais, que é somente pela fé que pode ser aceita. A pergunta sobre como isso pode acontecer sempre acompanhou os cristãos.

5.5 A transubstanciação

Foi a permanente dificuldade em compreender racionalmente a afirmação de que o pão e o vinho consagrados são o corpo e o sangue de Cristo – quando o bom senso e a evidência dos sentidos da visão, olfato, paladar e tato dizem que só há pão e vinho – que levou, já no final da Idade Média, a complexas reflexões e árduas discussões sobre como ocorre a mudança nas espécies. O resultado foi a teoria finalmente aceita pela Igreja Católica: a doutrina da transubstanciação (DH n.1642).

Segundo ela, no relato da instituição, ocorre a transubstanciação do pão e do vinho no Corpo e Sangue de Cristo. A doutrina explica que ocorre uma mudança de substância, ou de essência, do pão e do vinho, que se tornam Corpo e Sangue de Cristo, mas sem mudar seus acidentes de pão e vinho (aparência, peso, cor, sabor, cheiro e textura), de modo que, embora mantenham as características do pão e do vinho, mudaram de essência, sendo agora, verdadeiramente, a do Corpo e Sangue de Cristo.

A doutrina da transubstanciação continua a ser uma explicação plausível de como se dá a transformação do pão e do vinho no Corpo e no Sangue de Cristo, mas tem sido complementada ou ampliada por outras contribuições na contemporaneidade, que criticam sua concentração no que acontece com a espécie sem considerar um fator essencial da eucaristia: seu significado e sua finalidade; isto é, eles afirmam que a doutrina da transubstanciação considera as espécies estaticamente e postulam que a transformação das espécies deve ser entendida de forma dinâmica e de acordo com o significado do sacramento da eucaristia: alimento espiritual, força para a vida eclesial. Daí os nomes dessas teorias: transignificação e transfinalização.

Especialmente interessante é a segunda, pois Jesus, na última ceia, não se limitou a dizer: “Este é o meu Corpo, este é o meu Sangue”; em vez disso, ele fez os gestos e pronunciou essas palavras com um propósito: para distribuir aquela comida e aquela bebida entre os comensais e serem também consumidas por eles. Quer dizer: à afirmação de que este pão é o seu Corpo e que o vinho é o seu Sangue, o seu consumo na ceia festiva e fraterna pertence teológica e ritualmente, como uma única ação litúrgica. E, ainda mais, este consumo visa alimentar a vida interior e a fidelidade ao seguimento de Cristo por parte de quem o faz, não só individualmente, mas como Igreja, Corpo de Cristo. Não basta considerar a transubstanciação em si, sem fazê-la juntamente com sua finalidade. É por isso que não poderia haver uma eucaristia em que apenas o sacerdote celebrante comungasse, visto que é celebrada para a comunhão eucarística, embora parte das espécies sejam preservadas para serem distribuídas posteriormente ou para a adoração eucarística.

5.6 A questão das espécies e a fórmula essencial

Pão de farinha de trigo feito na hora e vinho natural, de uva, não corrompido, são a “matéria” do sacramento. Um pouco de água deve ser misturada ao vinho. O Código de Direito Canônico especifica que “ segundo a antiga tradição da Igreja latina, o sacerdote utilize o pão ázimo, onde quer que celebre” (CIC n.926 §1). O pão ázimo é o pão feito sem fermento. Os ritos orientais geralmente usam pão fermentado para a eucaristia.

A comunhão, de acordo com a Introdução à última edição do Missal Romano (2002), pode ser oferecida em muitas ocasiões nas duas espécies (com pão e vinho), mais do que no passado. Mas a comunhão segue válida sob a espécie única do pão e, se necessário, quando alguém não está em condições de engolir sólidos, sob a única espécie do vinho. Mais que a validade, a verdade do sinal aconselha comungar habitualmente sob as duas espécies, uma vez que isso foi feito pelo Senhor na última ceia e assim se fez durante séculos em todas as comunidades cristãs.

Todos os sacramentos têm uma fórmula essencial, a cuja proclamação está ligada a sua validade e que tradicionalmente é muito cuidada pela Igreja. Na eucaristia, esta fórmula é considerada a Oração eucarística completa, desde o diálogo antes do Prefácio à doxologia com o Amém final. O cerne da oração é constituído pelo relato da instituição, que não corresponde literalmente a nenhum dos relatos bíblicos mencionados acima (Mt, Mc, Lc e 1Cor), mas contém o essencial deles: “Peguem e comam todos dele, porque este é o meu Corpo, que será entregue por vocês. / Tomem e bebam todos dele, porque este é o cálice do meu Sangue, Sangue da nova e eterna aliança, que se derramará por vocês e por muitos para remissão dos pecados. Façam isso em memória de mim.”

6 A eucaristia e a Igreja

São Paulo afirma que os cristãos são o corpo de Cristo e Cristo a sua cabeça (1Cor 12,13-30). Esta imagem tem uma expressão particularmente intensa na celebração da eucaristia. Nela os fiéis se reúnem como “assembleia” e se identificam como “igreja” de Cristo (igreja deriva do grego ecclesia, que originalmente significa assembleia). Cada vez que celebram a eucaristia, os cristãos se constituem uma comunidade de discípulos que continua a missão de Jesus na história. Celebram juntos em seu nome e “em sua memória”, presididos pelo próprio Cristo, presente no ministro (SC n.7) e na própria assembleia, que é o seu Corpo.

Toda a liturgia, e de modo muito especial a eucaristia, é “exercício do sacerdócio de Cristo”, segundo a expressão de SC n.7. Aqui está a raiz teológica da participação ativa que a reforma do Vaticano II promoveu na liturgia. Todo o Cristo, isto é, Cabeça e Corpo, exerce seu sacerdócio na celebração da eucaristia. Portanto, não é o sacerdote ministro sozinho ou isolado, mas ele juntamente com toda a assembleia, que pelo batismo se constituiu em “povo sacerdotal” (1Pe 2,9), e cada homem ou mulher batizados, em “sacerdotes, profetas e reis” (Ritual do Batismo, oração da unção com crisma), que os torna protagonistas da liturgia pela sua participação ativa, plena, consciente e fecunda (SC n.48). A eucaristia, cada vez que é celebrada, é uma expressão de toda a Igreja, um sinal histórico da Igreja celeste.

A participação ativa dos fiéis na liturgia foi uma das grandes conquistas do Concílio Vaticano II. Desde então, se quis que os cristãos não assistissem à eucaristia como estranhos e mudos espectadores, mas, conscientes de que na eucaristia há um encontro com Jesus Cristo vivo e, ao mesmo tempo, compreendendo-o tanto quanto possível, dela participem pela intimidade da fé, pelos ritos e orações, serviços e ministérios, canções e gestos simbólicos, na riqueza da celebração. A renovação dos ritos, dos textos e dos cantos, e especialmente os esforços de inculturação têm facilitado este propósito, embora hoje, como já foi referido, a eucaristia sofra outras ameaças das nossas sociedades secularizadas.

A Igreja se alimenta da eucaristia: dela vive porque é o sacramento do caminho, da peregrinação cristã pelas luzes e sombras da vida e da história, continuando a missão de Jesus Cristo, para a plenitude do Reino. A relação entre a eucaristia e a Igreja enfatiza particularmente a dimensão soteriológica (relativa à salvação) e a dimensão escatológica (relativa ao fim dos tempos), que também estão intimamente ligadas entre si. Quando celebra a eucaristia, a Igreja é uma Igreja que experimenta a salvação e se nutre para ser libertadora e, ao mesmo tempo, participando antecipadamente na liturgia celeste (SC n.8), é uma Igreja da esperança.

Isso não significa que a vida dos cristãos se reduza à eucaristia; significa antes que, sendo a eucaristia o ápice e a fonte (LG n.11) da vida da Igreja, é o momento em que toda a nossa vida é oferecida a Deus e dele recebe força para continuar o seu caminho. A eucaristia supõe a vida e é para a vida, assim como supõe a fé e deve fortalecê-la. Todos os sacramentos alimentam a vida cristã, mas a eucaristia o faz de uma forma única, como encontro do crente no centro da sua fé: Jesus Cristo morreu e ressuscitou para que todos tenham “vida em abundância” (Jo 10,10).

A participação ativa na celebração da eucaristia é um sinal de maturidade dos cristãos. Responder os diálogos com o ministro que preside, cantar no coro, saudar os vizinhos no rito da paz e, sobretudo, comungar são parte integrante de uma boa celebração da eucaristia. São um sinal visível de que não é uma simples festa humana, mas um encontro pessoal e eclesial com Cristo ressuscitado e vivo na humanidade.

7 A celebração, em síntese

A liturgia da eucaristia desenvolve-se segundo uma estrutura fundamental que se formou e consolidou desde muito cedo e que se conserva até hoje. Compreende dois grandes momentos que formam uma unidade básica, “um único ato de culto” (SC n.56): a liturgia da Palavra e a liturgia eucarística. A elas estão associados os dois principais centros significativos do espaço litúrgico: o altar e o ambão, que devem ser sempre únicos. É assim que falamos das “duas mesas”: a da palavra e a da eucaristia. Essas duas grandes partes são enquadradas nos ritos iniciais e nos ritos finais. Ao primeiro pertencem o ato penitencial e o canto de Glória; ao segundo, a bênção final que envia a assembleia para vivenciar o que foi celebrado.

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II enfatizou de forma marcante a importância da Sagrada Escritura na eucaristia e em toda a liturgia da Igreja. Para isso enriqueceu o ciclo anual anterior, que se repetia a cada ano e oferecia muito menos passagens bíblicas e muita repetição de algumas delas, planejando um ciclo de três anos para os domingos e dois para as missas da semana (feriais), com uma riqueza muito maior de passagens bíblicas cujo critério de seleção e distribuição foi que quem celebra a eucaristia todos os domingos, nos três anos, tenha uma visão global de toda a Sagrada Escritura. Os ciclos dominicais (ou “anos”) eram chamados de A, B e C, e cada um deles recebia a leitura de um Evangelho: Mateus para o ciclo A, Marcos e João para o ciclo B e Lucas para o C. Para a eucaristia dominical, estabeleceram-se ainda leituras do Antigo e do Novo Testamento.

Para as eucaristias feriais foi estabelecido um ciclo de dois anos, denominado I (anos ímpares) e II (anos pares), em que o Evangelho se repete todos os anos, mas a primeira leitura é diferente em anos ímpares e pares. Tanto em quantidade como sobretudo em qualidade (critérios de seleção dos textos), a Bíblia tem, desde a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, uma presença digna do seu estatuto de “mesa da Palavra”, parte essencial da eucaristia e não mera preparação para a comunhão. Em relação à riqueza bíblica, que deve ser lida e acolhida como palavra viva, isto é, como iluminação da realidade da assembleia celebrante, a reforma pede aos sacerdotes que façam uma homilia todos os domingos e, com sorte, em cada eucaristia, e que seja baseada na proclamação da Palavra de Deus.

A celebração da eucaristia não foi e não pode ser estática. Mantendo o cerne testemunhado pela Bíblia, especialmente todo o Novo Testamento e a primeira práxis cristã, carrega o destino de tudo o que é humano: se desenvolve, se adapta, muda ao longo da história. A esclerose de suas normas ou a inflexibilidade para adaptá-las às culturas e aos grupos humanos só a alienou do Povo de Deus, que precisa celebrar sua fé e sempre encontrar uma maneira de fazê-lo. Que esta forma mantenha sempre a eucaristia em primeiro lugar, é tarefa permanente da Igreja ser fiel a Jesus, que nos pediu que  fizéssemos isso “em sua memória”.

Guillermo Rosas, SSCC. Pontificia Universidad Católica de Chile. Texto original espanhol. Postado em 30 de dezembro de 2020.

Referências

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Cartas Paulinas

Sumário

1 O apóstolo Paulo

1.1 Paulo nos Atos dos Apóstolos

1.2 Paulo nas cartas paulinas

2 O epistolário Paulino

2.1 As cartas autênticas

2.2 As cartas discutidas

3 A teologia paulina

3.1 O poder de Deus para a salvação

3.2 Novos seres humanos

3.3 O corpo da Igreja

4 Interpretação das cartas paulinas na América Latina

Referências

1 O apóstolo Paulo

Quando e onde nasceu Paulo? Em que momento se tornou um seguidor de Cristo? A cronologia da vida de Paulo tem duas fontes: os Atos dos Apóstolos e seus próprios escritos. Essas duas fontes nem sempre coincidem. A descrição dos Atos é atribuída a Lucas e corresponde à perspectiva evangelizadora de toda a sua obra. Paulo, por sua vez, não nos oferece uma autobiografia completa, mas eventos isolados a partir dos quais algumas partes de sua vida podem ser reconstruídas. Existem dois tipos de cronologias, relativas e absolutas. As relativas são entendidas como “relacionadas a Lucas” e “relacionadas às cartas de Paulo”. De acordo com essa abordagem, cada obra literária reflete uma “história” diferente do apóstolo. A cronologia absoluta busca combinar em um único quadro histórico os dados de Atos, das cartas e de alguns acontecimentos extrabíblicos que poderiam coincidir com aqueles mencionados no Novo Testamento.

1.1 Paulo nos Atos dos Apóstolos

Paulo é o protagonista da segunda parte dos Atos dos Apóstolos; a sua caracterização corresponde ao projeto narrativo e missionário da obra lucana: “e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e a Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8; cf. Is 41, 9). Lucas narra três viagens missionárias do apóstolo e três vezes o encontro do apóstolo com Jesus ressuscitado na estrada para Damasco.

As viagens de Paulo descritas na segunda parte do livro descrevem um apóstolo que se dedica a levar o Evangelho de Jesus Cristo às fronteiras da diáspora judaica. A rota da primeira viagem leva Pablo e Bernabé, enviados pela igreja de Antioquia, a Licaônia, Listra e Derbe (14,1-6), centro-sul da Turquia. Sua pregação ocorre inicialmente na sinagoga judaica (14,1) e resulta em rejeição e até apedrejamento (14,19). Diante da rejeição dos judeus, eles se voltam para os gentios (13,46). A rota da segunda viagem leva Paulo, Silas e Timóteo, em parte, à antiga Galácia, um pouco mais ao norte da primeira viagem. As dificuldades (16,6-10) empurram-nos para a Macedônia, passando por Neápolis e Filipos, centros urbanos romanos. Esta transição marca um momento crucial no projeto missionário lucano: a evangelização da Europa. A jornada da terceira viagem leva Paulo de Antioquia a Corinto, passando pela maioria das igrejas fundadas na Ásia Menor e nas costas da Tessália, e de volta a Jerusalém. O anúncio evangélico ao longo dessas viagens geralmente é feito na sinagoga judaica; Lucas também reitera os obstáculos da primeira pregação, da orientação do Espírito Santo e do exemplo de Paulo como primeiro testemunho pessoal de identificação com o destino de Jesus. As datas dessas viagens são muito discutidas. Se a menção a Galião (18,12-17) e seu tempo como procônsul na Acaia são levados em consideração, pode-se conjecturar a cerca dos seguintes prazos: primeira viagem entre 47-48 dC, segunda entre 49-52 dC e a terceira entre 53-57 dC. Também se discute se a quarta viagem, ou o cativeiro, pode ser considerada uma viagem apostólica. É bem possível que essas viagens correspondam mais a um “esquema teológico” de divulgação do testemunho sobre Jesus ressuscitado, partindo de Antioquia e Jerusalém, passando por Roma e dali até os confins da terra.

Os relatos de conversão de Paulo constituem um tríptico. Cada cena propõe uma imagem diferente do apóstolo, com um objetivo específico. O primeiro é narrado na terceira pessoa, o segundo, como testemunho pessoal e o terceiro, como defesa perante o tribunal de Agripa. Em Atos 9,1-19, Lucas descreve um encontro entre Paulo e Jesus ressuscitado. Este relato termina com o batismo de Paulo por Ananias. Em Atos 22,1-21, o próprio Paulo descreve o que aconteceu na estrada para Damasco como um testemunho pessoal. Neste caso, o “Deus dos nossos pais” o fez uma testemunha privilegiada da ressurreição do Senhor. Este relato termina com uma visão no templo em Jerusalém (vv.17-21), na qual sua missão como testemunha é confirmada. Em Atos 26,12-23, Paulo se defende das acusações de alguns judeus perante o tribunal de Agripa. Ainda que essa defesa seja feita perante um tribunal romano, Paulo usa argumentos característicos dos profetas. Sua defesa consiste em reafirmar sua vocação profética. O objetivo dessas três diferentes narrativas é mostrar, de forma gradual, como Paulo tomou consciência de sua vocação a ser testemunha de Jesus ressuscitado. Os capítulos 9, 22 e 26 descrevem suas atividades missionárias e, o mais importante, as perseguições e rejeições a que foi submetido. A imagem de Paulo que Lucas nos dá é a de um apóstolo missionário, testemunha pessoal da perseguição, morte e ressurreição do Senhor, porque ele mesmo assim o experimentou durante o seu caminho apostólico e espiritual.

1.2 Paulo nas cartas paulinas

Como Paulo se descreve em suas cartas? Como um servo inútil semelhante ao descrito no Evangelho (Lc 17,10)? Como apóstolo e evangelizador? Paulo fala de si mesmo nas seguintes passagens: Gl 1,15–2,14; Fl 3,5-6; 1Cor 7,7. O seu testemunho escrito mostra que foi um homem de fé enraizado em duas culturas, a do judaísmo da diáspora e a greco-romana do Mediterrâneo.

Em Fl 3,5-6, Paulo parece definir-se como alguém que subverte a ordem estabelecida. “Viver em Cristo” determina um antes e um depois; tudo antes é considerado uma perda quando comparado ao valor de conhecê-lo. Entre alguns judeus, a fidelidade à Lei de Moisés era de importância inigualável; um mérito que Paulo questiona após seu encontro com o Senhor. Na esfera greco-romana, o prestígio ou a capacidade de se gabar eram essenciais. Os motivos mais significativos eram a linhagem, a educação, os êxitos alcançados. Paulo relativiza sua linhagem, sua formação farisaica e seu zelo como perseguidor, mostrando com seu exemplo que a fé em Cristo constitui uma fonte incomparável de orgulho e, assim, introduz uma nova forma de ser no mundo. Em Rm 1,1, Paulo se apresenta como escravo – de Cristo Jesus – e em 1Cor 9,19, como um homem livre que se tornou escravo. Ele voluntariamente renuncia a seus direitos para dar o exemplo de como uma assembleia deve ser instruída. Essa compreensão de seu ministério, como humilde servidor da mensagem de Cristo, e de sua obra evangelizadora, como serviço a uma comunidade, modifica os parâmetros do discipulado greco-romano, cujo objetivo era superar o mestre. O fato de estar “separado” para a difusão do Evangelho (Rm 1,1) segue também o padrão de consagração de Israel característico da tradição profética do AT (cf. Ez 45,1.4; 48,9.20).

Em Gl 1,15–2,14 Paulo descreve sua transformação de perseguidor da Igreja a evangelizador dos gentios. Ele justifica seu ministério e seu ser apóstolo por um chamado divino, sem intervenção humana. Depois de ter tido essa experiência do Senhor, ele menciona um intervalo de três anos (1,18), antes de uma breve visita a Jerusalém, e depois outro intervalo de quatorze anos até uma nova visita a Jerusalém (2,1), identificada com o Concílio de Jerusalém. Estes dezessete anos não são fáceis de explicar, se for atribuído valor histórico aos itinerários propostos nos Atos dos Apóstolos. Para conciliar esses anos com os anteriores à primeira viagem missionária, seria necessário forçar um pouco o cálculo dos anos. Apesar das dificuldades apontadas em estabelecer uma cronologia absoluta, as duas fontes principais, a carta aos Gálatas (2,1-10) e os Atos dos Apóstolos (15,2-29), coincidem em mencionar o encontro de Paulo e Barnabé com os apóstolos, pilares de Jerusalém, assim como os acordos ali estabelecidos: não impor a circuncisão aos cristãos de origem pagã – não judeus – e cuidar especialmente dos pobres. Se levarmos em conta também algumas fontes históricas extrabíblicas (Suetônio e Tácito) e o cálculo retroativo dos anos passados ​​por Paulo em Corinto conforme Atos 18,11-22, antes de comparecer perante o procônsul L. Junio Gálião na Acaia (aproximadamente 52 dC), sua participação no Concílio de Jerusalém pode ser datada por volta dos anos 49-50 dC.

2 O epistolário paulino

As cartas paulinas podem ser agrupadas de muitas maneiras: protopaulinas, deuteropaulinas, tritopaulinas. Alguns também distinguem suas cartas de cativeiro das pastorais, ou seja, as que mencionam suas cadeias (Filipenses, Filêmon, Efésios e Colossenses) e as que se dirigem aos ministros da Igreja (Timóteo e Tito). Por razões de clareza e brevidade, serão apresentadas em dois grandes grupos: aquelas cuja autenticidade é praticamente unânime e as discutidas ou atribuídas à escola paulina.

2.1 As cartas autênticas

2.1.1 Romanos

A carta aos Romanos foi escrita no final de 57 dC ou no início de 58 dC, de Acaia (Macedônia) ou de Corinto. É considerada a “suma teológica” do apóstolo. Explica como e porque Deus transforma os seres humanos pela fé em Cristo. De acordo com as promessas feitas a Israel, Deus capacita os crentes a agir com justiça e retidão. A justiça pela fé em Cristo está disponível para judeus e não judeus.

2.1.2 Primeira Coríntios

A primeira carta aos Coríntios foi escrita entre 54-56 dC, durante a “terceira viagem missionária” (cf. At 18,18-28) e possivelmente de Éfeso. Nesta carta, Paulo questiona duramente a comunidade por causa das divisões que a afligem. A discórdia sobre o tipo de batismo recebido ou os carismas que abundam na comunidade indicam que os destinatários eram neófitos ou ainda imaturos na fé. O apóstolo instrui todos eles na verdadeira sabedoria do Evangelho de Cristo.

2.1.3 Segunda Coríntios

A segunda carta aos Coríntios foi possivelmente escrita em meados de 57 dC, da Macedônia, após o reencontro de Paulo com Tito (2Cor 7,6-7) e antes de viajar novamente para Jerusalém (cf. At 19,21-22). Os temas de consolação e reconciliação aparecem como os fios comuns de grande parte da carta. Nas seções 8–9, Paulo promove uma coleção para a comunidade de Jerusalém e, em 10–13, ele se defende anunciando sua única fonte de orgulho: pregar Cristo.

2.1.4 Gálatas

A carta aos Gálatas foi escrita em algum momento entre 55-57 dC, de Corinto ou de Éfeso, depois do “Concílio de Jerusalém”, mas antes da carta aos Romanos. Nessa carta, Paulo reprova a incoerência e a tolice dos membros da comunidade que querem ceder à pressão de um grupo de agitadores judaizantes. O apóstolo lembra-lhes que, como discípulos de Cristo, foram chamados à liberdade. A verdadeira liberdade é reconhecida porque permite amar.

2.1.5 Filipenses

A carta aos Filipenses é atribuída a um “velho” e prisioneiro Paulo. A menção de “minhas correntes” (1,7.14.17) indica que o apóstolo escreveu esta carta de Roma, aproximadamente entre 60-62 dC. Nela, Paulo propõe dois exemplos a seguir, o de Cristo que se humilha e o do próprio Paulo que se despoja de seus privilégios anteriores. O convite à alegria completa este compêndio de vida cristã que sintoniza o crente com os mesmos sentimentos de Cristo.

2.1.6 Primeira Tessalonicenses

A primeira carta aos Tessalonicenses é considerada a escrita mais antiga do epistolário paulino e em todo o NT; pode ter sido escrita por volta de 50-51 dC. Nela, Paulo tenta responder ao medo daqueles que esperavam a vinda do Senhor como um evento iminente: se aqueles que morreram antes dessa vinda participariam do “dia do Senhor”. O apóstolo responde aos crentes lembrando-lhes que não se sabe o dia nem a hora e os exorta à sobriedade no presente.

2.1.7 Filêmon

Discute-se se esta carta foi escrita em 56-57 dC, de Éfeso (cf. Aristarchus em Fl 34 e Atos 19,29), ou por volta de 60 dC, de Roma. O apóstolo pede a Filêmon que receba o escravo Onésimo como se fosse o próprio Paulo. É uma pequena obra-prima de persuasão em que Paulo procura formar a consciência do cristão, para que se comporte de acordo com o amor e a fé em Jesus.

 2.2 As cartas discutidas

2.2.1 Efésios

A carta aos Efésios foi escrita entre 60-90 dC, em algum lugar da Ásia Menor, em torno de uma “escola Paulina” que preservou o pensamento e o estilo do apóstolo. Nele, a condição de Paulo é mencionada como um “prisioneiro” (4,1), um “embaixador entre cadeias” (6,20). O coração da carta é o mistério de Cristo, que se define como a unidade indissolúvel entre a cabeça, que é Cristo, e seu corpo, que é a Igreja. A carta também promove coerência moral com o conhecimento desse mistério.

2.2.2 Colossenses

A carta aos Colossenses foi escrita entre 60-90 dC, em algum lugar na Ásia Menor, talvez um pouco antes da carta aos Efésios. É atribuída a uma “escola paulina” que preservou o estilo e o ensino do apóstolo. Esta carta compartilha muitas características com a carta aos Efésios, mas, ao contrário desta, não enfatiza tanto o papel da Igreja como o de Cristo. Pode ter sido a resposta a alguns equívocos que proliferaram nas comunidades de Colossos e Laodiceia.

2.2.3 Segunda Tessalonicenses

A segunda carta aos Tessalonicenses foi escrita entre 80-90 dC, em algum lugar da Ásia Menor dentro de uma “comunidade paulina”. Esta carta foi construída nos moldes da primeira e aparentemente trata do mesmo assunto: a vinda do Senhor e o fim dos tempos. No entanto, ao contrário da primeira, enfatiza a prevenção dos enganos do maligno e de qualquer outra forma de mal. Discute-se muito se o seu conteúdo apocalíptico é paulino.

2.2.4 Primeira Timóteo

A primeira carta a Timóteo foi escrita no final do século 1 dC, em algum lugar da Ásia Menor. Paulo associou Timóteo à sua obra apostólica, de acordo com o testemunho de Atos 16,1-3; 18,5; 2Cor 1,19. A carta reflete uma comunidade em transição da missão para a institucionalização. Caracteriza a conduta irrepreensível dos ministros (bispos, diáconos, presbíteros) e do resto da comunidade. A fé é entendida como uma luta que envolve amor, paciência e bondade.

2.2.5 Segunda Timóteo

A segunda carta a Timóteo foi escrita no final do século I dC, em algum lugar da Ásia Menor. Esta carta é considerada o testamento e a despedida do apóstolo no final da sua vida: “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé” (4,7). Nela, exorta-se a fidelidade, a firmeza e a força diante das adversidades. A perseguição também está prevista para todos aqueles que desejam levar uma vida autêntica em Cristo.

2.2.6 Tito

A carta a Tito foi escrita no final do século I dC. Tito aparece como companheiro apostólico de Paulo em algumas de suas cartas (2Cor 2,13; Gl 2,1-3), no contexto da missão à Macedônia (2Cor 7,6.13) e da coleta pelos pobres de Jerusalém (2Cor 8,6.16). Por esta razão, a redação da carta está localizada entre as igrejas da Macedônia ou Acaia. A carta oferece um resumo da redenção e do batismo cristãos; a redenção entendida como purificação e o batismo como renovação no Espírito Santo.

2.2.7 Hebreus

O autor da Primeira Epístola de Clemente (no final do século I ou início do século II dC) já se refere a esta carta como parte do NT; sua data de composição, entretanto, é incerta (entre 65 e 90 dC). A autoria paulina da carta foi aceita nas igrejas do Oriente, mas foi questionada nas do Ocidente; não está incluída, por exemplo, no Cânon de Muratori (século II dC aproximadamente). Seu conteúdo se assemelha muito ao de uma homilia antiga extraída de textos do AT, a fim de demonstrar a primazia do sacerdócio de Cristo.

3 A teologia paulina

 3.1 O poder de Deus para a salvação

Paulo descreve em suas cartas a ação de Deus em favor dos homens por meio de certas noções conhecidas no AT. Deus, por exemplo, justifica, salva, perdoa, expia os pecados da humanidade. A essas noções o apóstolo acrescenta outras mais típicas do mundo greco-romano. Deus reconcilia, concede paz, une espíritos. A teologia de Paulo, entretanto, não difere substancialmente de sua cristologia, porque todas as ações de Deus são realizadas por meio de Jesus Cristo. Além disso, todos os seres humanos, independentemente de sua raça e origem, sejam judeus ou não judeus, acessam esses benefícios divinos por meio da fé em Cristo.

Na carta aos Romanos e aos Gálatas, Paulo sai de seu caminho para demonstrar, com a ajuda das mesmas Escrituras do AT, que as promessas de Deus a Israel também previam a inclusão de não judeus. Para isso, o apóstolo deve explicar sua compreensão pessoal, ou reinterpretação, da aliança entre Deus e Israel e da lei de Moisés. A aliança estabelecida entre Deus e Abraão incluía a terra e a descendência de todo Israel. A marca registrada de tal aliança por parte dos israelitas consistia na circuncisão dos homens. Paulo mostra que antes da aliança e da prescrição da circuncisão, Deus fez uma promessa incondicional a Abraão, na qual Abraão acreditava antes de se tornar israelita ou judeu. A precedência da promessa (para todos os crentes) em relação à aliança (circunscrita aos circuncidados) é, portanto, um ponto forte da teologia paulina. A consequência imediata dessa compreensão da maneira de agir de Deus é a revogação da validade da Lei de Moisés para aqueles que acreditam em Cristo. Se Cristo é o único intermediário entre Deus e os homens, a lei não pode ocupar este lugar. Paulo esclarece que a lei de Moisés é santa, justa e boa (Rm 7,12) e que foi a pedagoga da humanidade para ensinar-lhe o Cristo (Gl 3,24). Agora, em Cristo, todos os preceitos da lei são sintetizados no mandamento do amor.

O poder do Evangelho de Cristo tem repercussões cósmicas. Paulo descreve a atividade de Deus em favor da humanidade como uma capacitação para se tornarem filhos de Deus em plenitude. Para cumprir esse objetivo, Deus, por meio de Cristo, move aqueles que estão sob o domínio do pecado e os coloca sob o domínio da graça. Isso significa que, em Cristo, Deus vence o poder do pecado, seu antigo adversário. Nas cartas discutidas, especialmente em Efésios e Colossenses, a ação de Deus e a mediação de Cristo também têm uma dimensão cósmica. Esta dimensão já é sugerida em Rm 8,38-39 quando se afirma que nada, nem mesmo a força do pecado, pode nos separar do amor de Deus. Em Efésios e Colossenses, a soberania de Cristo, e com ela a do Deus bom, alcança todas as suas criaturas, tanto as que estão na terra como no céu.

3.2 Seres humanos novos

Paulo explica a vida em Cristo por meio de contrastes temporais, oposições lógicas e paradoxos humanos. Antes da vinda de Cristo éramos escravos do poder do pecado, agora, em Cristo, somos “escravos” da justiça (Rm 6,18). Antes, sob o império da lei, éramos expostos aos caprichos do egoísmo humano (a carne), agora em Cristo, morremos para esses caprichos e podemos viver segundo o Espírito. Paulo destaca a mudança entre o antes e o depois dos fiéis com a ajuda da imagem do batismo (imersão). O que acontece com os crentes que passam de estar sob a lei, expostos ao pecado, a estarem sob a graça? A resposta do apóstolo é contundente: uma morte acontece. O crente mergulha na morte de Cristo, é cossepultado, torna-se um com o sepultamento de Cristo e, assim, se une à sua morte (Rm 6,3-5). A esta identificação com a sua morte não corresponde uma identificação igual com a ressurreição do Senhor: essa é adiada para o futuro; seremos ressuscitados, assim como seremos salvos. A reflexão do apóstolo concentra-se, de fato, nas consequências morais desta imersão no presente: agora vivemos em vida nova (Rm 6,4). A participação nesta morte separa o crente do poder do pecado, de modo que possa pôr suas qualidades a serviço da justiça (Rm 6,12-14).

Em 1Cor 11,23-26 Paulo relata um dos mais antigos testemunhos da Última Ceia do Senhor e a explica como mistério de unidade e comunhão com a própria entrega de Jesus na cruz. Paulo também descreve essa unidade íntima do crente com Cristo por meio das virtudes da fé, esperança e caridade. A fé em Cristo se traduz na esperança de ressurreição com ele; essas virtudes se materializam, por sua vez, em manifestações de amor pelos outros, sejam eles membros da comunidade ou não.

Nas cartas discutidas, a descrição da identificação com o crente muda ligeiramente. Nelas, o esquema temporal é preservado para esclarecer os efeitos da morte e ressurreição. No entanto, ao contrário das cartas autênticas em que o “já e ainda não” é acentuado (já fomos justificados, mas ainda não salvos), as cartas discutidas insistem na presente união com Cristo: “pela graça vocês já foram salvos” (Ef 2,5). Não apenas salvos, mas glorificados com Cristo, sentados à direita de Deus Pai (Ef 2,6). Isso significa que não falta nada no caminho para a salvação? Para que o crente se torne perfeito, isto é, adulto ou maduro em Cristo, é necessário que conheça o seu mistério e cresça harmoniosamente até se identificar consigo mesmo (Ef 4,13-16).

 3.3 O corpo da Igreja

Paulo define a Igreja como comunhão no Espírito. Ele curiosamente sublinha a diferença entre seus membros. Comparando-a com o corpo humano (1Cor 12,14-26), o apóstolo mostra que cada membro é diferente por natureza e função. Essa comparação permite que ele exorte seus ouvintes a protegerem cuidadosamente os membros mais fracos (1Cor 12,22-24). Durante sua experiência missionária e apostólica, Paulo teve que enfrentar muitas divisões na comunidade; algumas por motivos religiosos e até espirituais, como a proliferação de carismas; outras de natureza moral, como escândalos (1Cor 6,12-20; 7,1-2); outras de natureza étnica, como a discriminação entre judeus-cristãos e cristãos de origem pagã; entre ricos e pobres. Em todos estes casos, o apóstolo procura ir às raízes da vida cristã, muitas vezes evitando dar orientações particulares. O vínculo da caridade está acima de qualquer divisão. A presença do Espírito Santo na comunidade também garante que sua unidade seja corporativa e orgânica, mais do que mera uniformidade.

Nas cartas discutidas, a compreensão da Igreja ganha densidade. Nelas, a Igreja não se identifica primeiramente com as comunidades locais, mas com o corpo de Cristo, com seu corpo místico. Se o Cristo ressuscitado é a cabeça, a Igreja é seu corpo glorificado. A Igreja é, portanto, o mistério da unidade entre esta cabeça e este corpo. Essas cartas se aprofundam nos múltiplos ministérios que já se insinuam na segunda geração apostólica: apóstolos, profetas, evangelizadores, pastores, mestres (Ef 4,11). Nas cartas pastorais (1ª e 2ª Timóteo, Tito) é descrita uma certa organização institucional das comunidades cristãs, bem como a caracterização de certos ministérios instituídos: bispos (1Tm 3,1-7; Tt 1,7-9) diáconos (1Tm 3,8-13), presbíteros (1Tm 5,17-22; Tt 1,5-6). Ao apóstolo é atribuída, por exemplo, a nomeação dos responsáveis ​​da comunidade (2Tm 1,6-8). É uma Igreja que cresce e se organiza para difundir o Evangelho e promover a caridade.

4 Interpretação das cartas paulinas na América Latina

A interpretação das cartas paulinas na América Latina (AL) caracterizou-se pelo seu teor pastoral. A leitura popular da Bíblia descobriu tanto nas narrativas das viagens missionárias em Atos quanto na descrição de algumas cartas um modelo para a construção de pequenas comunidades. Seguindo este modelo, descobre-se a palavra de Deus que chega ao continente americano (MESTERS, 2001). O convite paulino a viver a liberdade com que Cristo nos libertou constitui um desafio para as igrejas de todos os tempos. Um desafio que inclui também a afirmação da igualdade das mulheres em todos os níveis da sociedade e da Igreja (TAMEZ, 1999). O contexto do livro do Êxodo e de Moisés, como o líder de Israel, foi igualmente inspirador para ler os textos paulinos na AL (INOSTROZA, 2000). As cartas paulinas serviram, por fim, como fonte de reflexão para os processos de reconciliação que acontecem na AL (GRANADOS ROJAS, 2016).

Juan Manuel Granados Rojas SJ. Pontifício Instituto Bíblico. Texto original em espanhol. Postado en diciembre del 2020.

 Referências

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Teologia das religiões

Sumário

1 Diferença entre teologia e uma fenomenologia das religiões

1.1 Abordagem fenomenológica

2 Pluralismo inter-religioso como um novo lugar teológico e as três posições clássicas da teologia

2.1 A posição exclusivista-eclesiocêntrica

2.2 A posição inclusivista-cristocêntrica

2.3 A posição pluralista-teocêntrica

3 Reflexão teológica

3.1 Chaves de categorias cristãs

3.1.1 A divina tri-unidade

3.1.2 Chave crístico-kenótica

3.1.3 A chave do Reino

3.2 Chaves de categorias denominacionais cruzadas

3.2.1 Revelação e excedente apofático

3.2.2 A dimensão teológica e teologal do diálogo

3.2.3 Coinspiração das religiões para uma tripla abertura ao Real

4 Questões abertas

Referências

1 Diferença entre teologia e uma fenomenologia das religiões

A teologia das religiões pode ser entendida como genitivo objetivo ou genitivo subjetivo. Como genitivo objetivo, é uma reflexão teológica da fé cristã sobre o significado da pluralidade de religiões existentes na terra, enquanto como genitivo subjetivo indica que cada religião tem sua própria teologia. Na verdade, deve-se perguntar se pode haver uma teologia que não esteja ligada a nenhuma religião. A abordagem esperada deste artigo é implicitamente uma teologia cristã das religiões. Em outras palavras, como a partir da revelação cristã as outras religiões da humanidade são compreendidas e integradas. No entanto, no final apontamos algumas pistas para uma teologia de natureza transconfessional, que poderia ser um ponto de encontro para os diferentes credos.

1.1 Abordagem fenomenológica

Vale a pena fazer uma distinção prévia: a diferença entre a abordagem fenomenológica e a abordagem teológica. A fenomenologia das religiões aborda a experiência e manifestação do sagrado, lembrando que cada tradição é uma difração única e diversa do Mistério que adquire a forma do destinatário que o recebe. Fenomenologicamente, a manifestação do Absoluto é inseparável do receptáculo que o recolhe. O Absoluto permanece condicionado pela mediação que o manifesta. Ficamos perplexos ao ver esse elo intransponível. Isso não reduz o Mistério, mas nos faz perceber que só podemos acessá-lo de nossa perspectiva particular.

Mantendo a abordagem fenomenológica, existem três significados da palavra religião relacionados à sua etimologia: religare, relegere, religere. Religare implica “criar vínculos”, “estabelecer vínculos” com a tripla dimensão da realidade: a divina, a humana e a cósmica. A cada uma das três áreas corresponde uma característica: as crenças estão relacionadas a Deus; os códigos de comportamento estão relacionados à comunidade humana e, nos ritos, nos colocam em relação ao mundo e à natureza, enquanto nos situam nas coordenadas de tempo e espaço.

Relegere significa “reler”, “interpretar” o mistério de Deus, o sentido da vida e da morte, da existência de cada um, a razão do mal. As religiões são recortes possíveis do infinito para torná-lo inteligível e assumível à escala humana. O Mistério permanece inatingível, sempre além de qualquer interpretação que dele se faça. As religiões são dedos apontando para a lua, mas não são a lua. Indicam um rumo a seguir para um Lá – escondido em cada Aqui – que transcende qualquer palavra e qualquer veículo, porque Deus está sempre além de tudo e também sempre mais aqui em tudo.

Religere significa escolher sempre, com plena liberdade e lucidez, o caminho que a pessoa se sente chamada a percorrer. As religiões fornecem o quadro em que se exercita o ato contínuo de eleição pela Vida, estimulando atos cada vez mais lúcidos e livres.

As três possíveis etimologias têm em comum o re- que as precede. O prefixo indica que esses vínculos não são estáticos, mas estão em movimento, na medida em que são capazes de se adaptar às situações mutáveis ​​que ocorrem a cada tempo e a cada geração. Sem esse prefixo dinâmico e reduplicativo, as religiões podem se tornar prisões que, por não serem renovadas, caem na inércia ou se contraem e terminam em coerção.

As três esferas que abraçam as religiões (o divino, o humano e o cósmico) estão envolvidas em cada religião simultânea e reciprocamente, pois a forma de conceber a divindade marca a forma de compreender o humano e de se relacionar com o cosmos, bem como o modo de compreender o humano determina nossa relação com o divino e com o cósmico, e nossa maneira de ser e de nos relacionarmos com o mundo determina nossas imagens de Deus e nossas relações com os outros. Por isso, toda religação é ao mesmo tempo uma interpretação da realidade. A forma de vinculação cria um certo entendimento e desenvolve determinados valores. Os textos sagrados contêm a revelação desses códigos de comportamento, bem como narram os momentos e atos fundantes que se perpetuam através dos ritos próprios de cada religião.

Do ponto de vista fenomenológico e da história das religiões, reconhecemos três grandes tipos de constelações religiosas: as cósmicas, as teístas e as oceânicas. Poderíamos acrescentar a religião secularizada ou a espiritualidade sem religião, fenômeno cada vez mais significativo que também faz parte do diálogo inter-religioso e da reflexão teológica ainda por ser feita. As religiões aborígines ou cósmicas enfatizam a sacralidade da terra. Nelas, a experiência religiosa está diretamente relacionada aos elementos da natureza da qual o ser humano faz parte. As tradições teístas-personalistas (judaísmo, cristianismo e islamismo) emanam do relato do Gênesis, em que o ser humano é concebido como “imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,27). Daí o caráter antropomórfico do Deus bíblico, invocado como Tu, e o caráter teomórfico do ser humano que é capaz de ser interlocutor de Deus. Enquanto as três religiões abraâmicas se desenvolvem em uma relação com o Ser Supremo que personaliza o ser humano, as religiões oceânicas – hinduísmo, budismo e taoísmo – pertencem a um paradigma muito diferente. Elas nos colocam em um terreno em que tanto o eu humano quanto o Tu divino são penultimidades a superar. Quando o eu psíquico-corporal descobre que faz parte de uma totalidade abrangente que o sustenta, deixa de ser um predador para se tornar um celebrador da existência. Não havendo um eu, tampouco há um Tu a que se referir, porque o Tu está em relação ao eu que se autopercebe separando-se.

Este é o quadro fenomenológico em que se situa a teologia cristã das religiões.

2 Pluralismo inter-religioso como um novo lugar teológico e as três posições clássicas da teologia

A reflexão sobre a pluralidade religiosa pode ser considerada como um novo lugar teológico, que foi como Melchor Cano, no séc. XVI, nomeou as áreas que poderiam ser fecundas e inspiradoras para a reflexão teológica. Como um campo específico, estamos diante de um tema que mal tem cinquenta anos de reflexão e discernimento teológico. O termo “teologia das religiões” foi cunhado pela primeira vez na década de 1960 pelo teólogo alemão Heinz Robert Schlette. Ainda não temos uma terminologia adequada, e suas percepções e proposições são insipientes. Faltam linguagem, vocabulário, assim como fórmulas maduras que tenham passado pela inevitável prova de acertos e erros na tentativa de encontrar expressões mais adequadas e precisas.

Apesar do inevitável reducionismo de qualquer classificação, convém mencionar as três posições clássicas da teologia em relação às outras religiões: o exclusivismo de caráter eclesiocêntrico, o inclusivismo de caráter cristocêntrico e o pluralismo de caráter teocêntrico. Embora esta tipologia possa servir de ponto de partida, atualmente está estagnada porque não compreende toda a complexidade que está em jogo.

2.1 A posição exclusivista-eclesiocêntrica

O exclusivismo era a posição oficial que a Igreja tinha até o Concílio Vaticano II. É identificável com a frase Extra Ecclesiam nulla salus (“Fora da Igreja não há salvação”), sentença que foi pronunciada pela primeira vez por Cipriano de Cartago no séc. III, num contexto de divisões internas das comunidades cristãs, mas que foi endurecida a partir do séc. XIV, com a bula Unam Sanctam (1302) de Bonifácio VIII, quando foi usada contra outras religiões. Esta posição considera que não há salvação sem uma confissão explícita de fé em Jesus Cristo e sem uma participação nos sacramentos, começando com o batismo. Daí o impulso missionário de tantas gerações. Contudo, mesmo nos momentos mais fechados da Igreja, o magistério oficial nunca o considerou em sentido restritivo, pois aceitou a possibilidade de um batismo de desejo, mesmo inconsciente. O exclusivismo é eclesiocêntrico na medida em que considera que a salvação só pode ser alcançada com um reconhecimento explícito da mediação eclesial, através da participação nos seus sacramentos e da adesão aos seus dogmas de fé. Embora o Concílio Vaticano II tenha abandonado esta posição, ela continua a persistir em não poucos setores. Podemos identificá-la como um universalismo centrípeto, em que a “catolicidade” do cristianismo é condicionada pelo reconhecimento de certas mediações histórico-culturais.

2.2 A posição inclusivista-cristocêntrica

Na década de 1950, do séc. XX, a teologia da revelação de Jean Daniélou, juntamente com a contribuição de outros teólogos, permitiu que os textos conciliares avançassem para o que hoje se conhece como posição inclusivista. Pela primeira vez em sua história, a Igreja reconheceu oficialmente que havia verdade em outras religiões e que, por meio delas, também se podia alcançar Deus. Na Constituição dogmática Lumen Gentium aparecem várias passagens em que se reconhece o aspecto subjetivo de quem professa outras crenças:

Tudo o que de bom e verdadeiro neles há [nos que buscam Deus com coração sincero], é considerado pela Igreja como preparação para receberem o Evangelho, dado por Aquele que ilumina todos os homens, para que possuam finalmente a vida. (LG n.16)

O documento vai além ao avaliar também os aspectos objetivos das demais tradições, ainda que não apareça a palavra religião:

[…] tudo quanto de bom encontra no coração e no espírito dos homens ou nos ritos e cultura próprios de cada povo, não só não pereça mas antes seja sanado, elevado e aperfeiçoado, para glória de Deus. (LG n.17 e Ad Gentes n.9)

A declaração Nostra Aetate vai além, ao reconhecer que “o que é verdadeiro e santo” se refere explicitamente ao que os outros caminhos religiosos oferecem e lhes pertence legitimamente:

A Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. (Nostra Aetate n.2)

Com isso, a Igreja reconhecia que sendo primícia do Reino não o esgota, mas é caminho para ele. Em outro parágrafo do decreto, incentiva os cristãos de todo o mundo a se familiarizarem com as tradições culturais e religiosas dos países em que vivem, para que  “façam assomar à luz, com alegria e respeito, as sementes do Verbo neles adormecidas” (AG, 11). A expressão “sementes do Verbo” é retirada da Patrística, onde autores como São Justino, Irineu de Lyon e Clemente de Alexandria mostraram uma atitude aberta para com a cultura helênica, reconhecendo que ela continha elementos que prefiguravam o cristianismo. Esta posição inclusivista continuou avançando em documentos pontifícios posteriores, o mais aberto dos quais é Anúncio e Diálogo (1996). No entanto, a declaração da Dominus Iesu (6 de agosto de 2000) representou uma mudança abrupta e um retrocesso à posição eclesiocêntrica-exclusivista.

Como representantes desta segunda posição, encontramos teólogos como Karl Rahner, Jacques Dupuis e Andrés Torres Queiruga. Entre os teólogos protestantes, Wolfhart Pannenberg se destaca (D’ACOSTA, 2000).

O inclusivismo é cristocêntrico na medida em que se desloca da mediação eclesial à referência a Jesus, Cristo, único e universal mediador, mas de natureza trans-histórica. Os teólogos que defendem essa posição entendem que a ação salvadora de Cristo vai além de sua confissão explícita. Estamos dentro da concepção de “cristãos anônimos” formulada por Karl Rahner (2007). Esta expressão não é absorvedora, no sentido de anular as outras formas de crença sem respeitar a sua singularidade, mas, ao aceitar a sua especificidade, reconhece nelas traços crísticos, ainda que não cristãos. A diferença entre crístico e cristão é que cristão se refere à expressão histórico-cultural da mensagem do Evangelho, enquanto crístico seria o cerne da mensagem de Jesus: a existência entendida como doação, porque essa é a máxima revelação de Deus que aconteceu em Jesus Cristo – nele, Deus revelou que a sua essência é amar. Onde há doação, o ser humano participa da revelação crística, mesmo que não a formule com categorias cristãs. Nesse caso, estamos perante uma universalidade de carácter centrífugo, em que a autoafirmação não se fecha em si mesma, mas abre-se aos outros.

2.3 A posição pluralista-teocêntrica

O pluralismo vai um passo além e propõe uma mudança de paradigma. Na década de 1970 do séc. XX, John Hick, um teólogo anglicano, o comparou à virada copernicana: de acreditar que outras religiões giram em torno de Cristo e do cristianismo a conceber que Cristo – e com ele, o cristianismo – é apenas um planeta que, como as outras religiões, gira em torno de Deus. Daí a passagem do cristocentrismo ao teocentrismo. Entre os teólogos católicos, destacam-se Paul Knitter e Hans Kung (1988), bem como o pensador Raimon Panikkar – uma das contribuições mais relevantes a esse respeito é sua noção de diálogo intrarreligioso, segundo o qual destaca que o diálogo entre as religiões se estabelece em um quadro comum de experiência do transcendente. O pluralismo trata de levar a sério a diversidade das manifestações religiosas, considerando que todas as tradições estão equidistantes ante o Mistério, que transcende todas.

Esta terceira posição é teocêntrica na medida em que ocorre o deslocamento de Cristo para Deus ou para o Mistério. Os teólogos que defendem esta posição consideram que, na medida em que Jesus é o caminho para o Pai, o ponto de encontro entre as religiões deve ser procurado no Pai (como origem e fonte do Mistério), e não em Jesus. Cada religião tem sua mediação para alcançar o Mistério originador, e nisso reside a singularidade de cada tradição. Esta terceira posição tem correntes diversas: uma acentua mais o aspecto práxico das religiões, sublinhando o que as une em torno das causas justas da terra, o que levaria a falar em reinocentrismo; outra está mais voltada para o aspecto da transformação e da libertação que todas as religiões procuram oferecer para alcançar a salvação (soteria), tanto pessoal quanto coletiva, e por isso falamos em soteriocentrismo; e uma terceira enfatiza mais o aspecto místico ou especulativo, enfatizando a philosophia perennis, a sabedoria comum às religiões. Por sua vez, é possível distinguir, ainda, outras duas correntes: aquelas que consideram que as religiões são formas diferentes de atingir o mesmo objetivo, com tendência a minimizar as diferenças e advogar uma unidade progressiva de todas as religiões; e aquelas que consideram que esta pluralidade apresenta uma singularidade irredutível de cada uma e que nisso consiste o seu valor e riqueza. Raimon Panikkar é um dos defensores mais radicais desta segunda posição.

Usando outras categorias, podemos dizer que tanto o exclusivismo quanto o inclusivismo são unicêntricos, enquanto o pluralismo é policêntrico, tanto em seu modo centrípeto (convergente) como centrífugo (divergente). Apesar da relevância dessa tripla classificação, levantaram-se vozes que não são reconhecidas nelas, pois embora sejam rótulos que servem para orientar, também correm o risco de caricaturizar e desqualificar. Gavin d’Costa e Reinhold Bernhardt (2000) defendem um inclusivismo recíproco e a necessidade do particularismo para que haja um verdadeiro diálogo na diferença. Na mesma linha, José Ignacio González Faus (2003), diz que é conveniente especificar no que ser exclusivo, no que inclusivo e no que pluralista. Porque há um irrenunciável cristão, que é o anúncio do Deus crucificado, despojado de todo poder e incompatível com qualquer justificativa de poder, e nesse sentido devemos falar de exclusivismo; o inclusivismo está na ressurreição, na medida em que não é só Jesus que ressuscita, mas todos nós ressuscitamos com ele; e o pluralismo está na universalidade da eleição de Deus por todos os seres humanos e, portanto, em sua revelação nas várias religiões da terra.

Nos últimos anos, surgiu uma nova forma de abordar a teologia das religiões que evita essa tripla classificação, que é excessivamente simples e contrapõe elementos que são mais complexos. É a chamada nova teologia comparada. Para esta corrente, o esquema tipológico acima não responde adequadamente à tensão inevitável que deve ser mantida entre as particularidades constitutivas de cada tradição religiosa, a abertura ao diálogo e a autêntica apreciação das outras religiões. Os teólogos comparativistas tentam manter essa tensão sem renunciar a nenhum de seus dois princípios fundamentais: identidade e alteridade. Os autores mais significativos são David Tracy, Francis Clooney, James Fredericks, Robert C. Neville e Keith Ward.

Em todo caso, uma teologia das religiões exige um conhecimento profundo, não só da própria tradição, mas também de outras tradições, para não cair em confusões e erros que prejudicam ainda mais a compreensão da diversidade e dificultam as possibilidades de diálogo e encontro.  Daí a importância das equivalências homeomórficas, uma expressão usada por Raimon Panikkar para estabelecer elementos comparativos sem, com isso, cair em concordância, mas tampouco ficar paralisado por sistemas de crenças incompatíveis. Este pensador define as equivalências homeomórficas como “analogias de terceiro grau que desempenham uma função equivalente (não igual), nos respectivos sistemas, àquela que a outra noção (ou outras) desempenha em seu próprio” (PANIKKAR, 2016, p.449). Assim, por exemplo, o Deus pessoal do cristianismo não pode simplesmente ser identificado com o Brahman impessoal do hinduísmo, ou com o Tao do taoísmo, mas todos os três ocupam o mesmo lugar último em seus respectivos sistemas. Em comparação com o islã, a equivalência homeomórfica não é entre Jesus e Maomé, mas entre Jesus e o Alcorão, já que, para o cristianismo, Jesus é Deus encarnado e, para o islã, o Alcorão é o verbo de Deus; o correspondente cristão de Maomé seria Maria, no sentido de que ambos são os mediadores máximos da revelação sem serem deificados por esse motivo. Este é apenas um exemplo da dificuldade e do cuidado que se deve ter ao estabelecer diálogos teológicos entre religiões.

3 Reflexão teológica

A seguir apresentamos algumas pistas a partir das quais se pode desenvolver uma teologia das religiões – que ainda está por ser feita. Três delas surgem da tradição cristã e três delas têm um caráter mais universal e poderiam ser usadas para uma teologia transconfessional.

3.1 Chaves das categorias cristãs

3.1.1 A tri-unidade divina

Ao longo de quatro séculos, a Igreja procurou compreender como Deus, sem perder a sua transcendência, pôde tornar-se homem plenamente ao se encarnar na imanência. Assim foi surgindo a compreensão da tri-unidade divina: Deus, sem prejuízo de sua unidade, se difrata ao mesmo tempo em uma pluralidade de pessoas, em que cada uma tem sua própria atividade (economia, em linguagem patrística): o Pai é a fonte originária, o Filho é o receptáculo que recebe esta dádiva irreprimível do Pai, ao mesmo tempo que é a sua Palavra e a Forma que contém todas as formas (Cl 1,16), e o Espírito Santo é o dinamismo que está além e no interior de todas as palavras e formas. Em Jesus de Nazaré, o cristianismo histórico reconhece o Filho assumindo a forma humana. Alguns teólogos da época patrística apontavam para a possibilidade de que o Logos ensarkós (o Filho ou o Verbo encarnado) não exaurisse o Logos asarkós (o Filho ou o Verbo não encarnado). Isso deixa aberta a possibilidade de admitir que em cada religião há uma manifestação diferente do Logos asarkós. Essa foi a incursão retomada em nossos dias por Jacques Dupuis (2000, p.106-111), mas que foi rejeitada no Dominus Iesu (n.10). Por enquanto, sem poder continuar avançando cristologicamente nesta direção, o dinamismo pneumatológico permanece aberto.

Por outro lado, nas outras tradições religiosas, uma estrutura tríade pode ser reconhecida no Ser ou Realidade Transcendente:

1. Para se referir à dimensão fontal e originária de Deus (aquele que chamamos de Pai no cristianismo), no judaísmo se fala do Ein Sof ou do nome impronunciável de Yahweh; no islã, Alá é designado como Haqq (O Real); no hinduísmo, diz-se Brahman Nirguna (O Ser Supremo sem atributos); é o Sunyata (Vazio) do budismo e Tao (curso, caminho) no taoísmo.

2. Para se referir ao seu aspecto manifesto (o que Cristo, o Filho, é na tradição cristã), no judaísmo há a Sabedoria (Hokmah) de Yahweh; no islã pode ser identificado com o Livro eterno; no hinduísmo, é designado como Brahman Saguna (com atributos); é o Dharmakaya no budismo (o corpo cósmico de Buda) e a díade Yin-Yang no taoísmo.

3. Quanto ao dinamismo do Espírito, que está além de todas as formas, no judaísmo ele aparece como ruah e, no islã, o Sopro do Misericordioso; no hinduísmo, está presente como atman, no budismo como prajna-karuna (sabedoria-compaixão) e no taoísmo como Chi, a energia primordial e onipresente.

Isso não quer dizer que essas tríades expressem a mesma coisa que as três Pessoas da trindade cristã, mas verificamos algumas equivalências homeomórficas nas diferentes tradições que nos permitem estabelecer relação entre elas. A partir delas, pode-se estabelecer algum tipo de analogia, na qual suas especificidades sejam respeitadas ao mesmo tempo que se enriquecem.

3.1.2 Chave crístico-kenótica

Do ponto de vista mais estritamente cristológico, a questão que se coloca para a teologia cristã é: o que é que salva da fé em Jesus? Em que consiste seu caráter salvífico? O que salva é viver em estado de receptividade e doação, que é o cerne da vida de Jesus e da mensagem evangélica. O caminho para a Vida nada mais é do que entrega de si. Jesus revela o rosto de Deus: Deus é amor (1Jo 4,8), entrega radical de si, e Jesus encarna este amor total. O Deus kenótico revela: “Ele, estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas foi aniquilado [ekenosen], tomando a forma de escravo. Tornando-se semelhante a um homem(…) abaixou-se, tornando-se obediente até a morte, à morte sobre uma cruz” (Fl 2,6-8).

O dinamismo pascal da fé implica um processo contínuo de morte e ressurreição de nossas referências sobre Deus e seus modos de se revelar. Textos e dogmas se espalham exatamente pelo que contêm. Em última análise, falam apenas de uma coisa, que os impede de ficarem fechados em si mesmos: que há revelação de Deus onde há esvaziamento de si. Cristo Jesus é precisamente o ícone deste duplo esvaziamento: do divino no humano e do humano no divino. Este esvaziamento de Cristo não pode tornar-se mensagem exclusiva, mas sim de discernimento: onde há doação, há revelação do divino, manifestação da Realidade Última que faz todas as coisas existirem. Esta entrega é o sinal de que se proclama a Palavra de Deus que ilumina a vida dos homens, seja qual for a história concreta que a transmita.

Se Cristo é o ícone da entrega plena, confessá-lo como o Senhor deveria nos introduzir no mesmo desprendimento que nos permite reconhecer em outras manifestações outros dons do divino no humano e do humano no divino. Só na medida em que participamos de seu dinamismo kenótico podemos reconhecer o ato de revelação-doação contido nas outras tradições. A realidade completa é este ato de desapego pelo qual o divino se manifesta. O mesmo acontece com as outras tradições em relação a nós: sua entrega é a condição de possibilidade de que nos reconheçam como outras expressões daquilo que veneram. Foi o que aconteceu na teofania de Pentecostes: o autismo se transformou em comunhão.

O dinamismo pascal culmina na teofania de Pentecostes, em que o Espírito é reconhecido em cada língua. Este reconhecimento não consiste apenas em outras religiões compreenderem o que dizemos de Cristo para completá-las, mas também que somos capazes de reconhecer o que nelas é salvífico e que nos completa. A tarefa da teologia cristã é descobrir de que forma Deus também se deu a conhecer por meio de outras revelações e como ele se expressa nas outras tradições religiosas.

3.1.3 A chave do Reino

É tarefa de uma teologia cristã das religiões reconhecer as implicações práxicas de cada formulação doutrinária. A ortopráxis não é apenas uma questão ética, mas radicalmente teológica: “cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). O que salva, da fé em Jesus, não é uma questão cognitiva, mas um modo de vida que liberta do egocentrismo. “Nem todo aquele que diz: ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus ”(Mt 7,21). A vontade de Deus é a doação, porque ele mesmo é doação, ele é amor. Assim, quem vive no amor vive em Deus e em Cristo, qualquer que seja o nome com que se identifique. Portanto, o critério teológico, que por sua vez é um critério de discernimento para abordar outras tradições religiosas, consiste em observar como se expressa, motiva e promove a abertura à alteridade e o compromisso com a solidariedade.

3.2 Chaves de categorias transconfessionais

Além disso, e além das categorias especificamente cristãs, se pode identificar três chaves transversais para todas as tradições religiosas.

3.2.1 Revelação e excedente apofático

As religiões estão indissociavelmente ligadas à noção de revelação e toda revelação tende a ser considerada a única, ou a mais completa e definitiva. Por isso o encontro teológico entre as religiões é tão complexo, porque nenhuma pode renunciar à sua completude e, por sua vez, se confronta com a existência das outras. A aproximação entre elas só é possível se deixarmos de competir entre todos e estivermos prontos para compartilhar plenitudes. Na medida em que toda religião se reconhece como receptáculo de um mistério que a ultrapassa, ela pode se abrir para esse excedente de Realidade e tentar aceitar que cada religião pode conter esse Mistério à sua maneira. Para isso, é necessário captar o núcleo fundante, incandescente, de cada religião. Um esforço deve ser feito para reconhecer a experiência religiosa do outro de dentro. Por sua vez, cada religião não pode fazer isso senão a partir de suas próprias categorias.

À medida que reconhecemos que nossas imagens do Absoluto são radicalmente condicionadas por nossa finitude, o horizonte último do que é se alarga. Isso nos leva à dimensão apofática da fé, ali onde palavras e conceitos desaparecem na sua origem, ajudando a livrar-se da tentação idólatra de reduzir Deus a categorias humanas. Em todas as tradições existe um dinamismo de transcendência para se abrir a um Deus semper maior; todas têm o antídoto para evitar cair nesse perigo, pois se referem a uma fonte que as transcende. No caso do judaísmo, é a experiência contínua do êxodo em que Deus se revela como um não Nome, YHVH, porque é impronunciável; no cristianismo, trata-se do dinamismo pascal, no qual nossas imagens de Deus morrem repetidamente para renascer em um plano posterior; no islã, nos deparamos com a experiência da hégira (“partida”, “saída”, “emigração”), pois ela está presente na prostração de sua oração, o sujud, da qual brota a expressão: Allah Akbar, “Deus é sempre maior ”, lembrando que toda imagem ou apropriação de Deus é idolatria; no hinduísmo, está presente no dinamismo de Shiva, o aspecto destrutivo-recriativo de Deus, bem como na crença de que Brahman mostrou apenas um quarto de seu ser; no budismo, o vazio (sunyata) preserva toda tentação da substanciação, assim como no Zen fala da Grande Morte; no taoísmo, o próprio Tao (caminho, via) não é um substantivo, mas um verbo que indica o fluxo de todas as coisas e que não se deixa levar por nenhuma.

3.2.2 A dimensão teológica e teologal do diálogo

O ser humano, como criatura, é radicalmente um ser dialógico. Teologicamente, existimos a partir do Outro de nós e biologicamente somos o resultado do encontro entre dois seres. Sem relacionamento, não somos. Sem os outros, não há linguagem e, portanto, não há ato ou reflexão teológica. Sair ao encontro do outro e dialogar não é algo casual ou sobreposto à fé, mas faz parte da mesma experiência religiosa. Isso implica uma fé dialógica, não monológica, que acaba fechada em si mesma, transformando suas próprias crenças em idolatria, brandindo-as como troféus frente a outras.

Se o diálogo é constitutivo da reflexão teológica, significa que a escuta e a abertura à alteridade fazem parte da teologia como método. Isso faz uma teologia aberta, como deve ser toda teologia se realmente quiser se referir a Deus como Mistério, e não como uma ideologia. O pluralismo religioso torna-se uma oportunidade de escuta e abertura a esse mesmo Mistério multiforme, que se expressa tanto através das culturas como das linguagens humanas. Porque as religiões nada mais são do que as entranhas transcendentes de cada cultura. Fazer teologia das religiões é exercitar a capacidade de escuta e abertura.

Tudo isso significa que, mais do que uma teologia do diálogo, se esteja a intuir a necessidade de uma teologia em diálogo (DUPUIS, 2000, p. 292-298).

3.2.2 Coinspiração das religiões para uma tripla abertura ao Real

As religiões são chamadas a conspirar no impulso do ser humano em direção ao espírito. Se não competirmos entre totalidades e compartilharmos plenitudes, podemos nos ajudar reciprocamente. As religiões, como re-ligare, re-legere, re-eligere, promovem um triplo vínculo e, ao mesmo tempo, uma tripla abertura em relação às três dimensões da realidade: a divina, a humana e a cósmica. Cada uma delas abre um caminho e as três estão presentes em todas as tradições.

a) A forma mística e contemplativa

No momento do encontro inter-religioso, as fórmulas mentais com que cada tradição descreve o Mistério são desafiadas e, por isso mesmo, libertas da tentação de absoluto e de literalismo. O que é desconfortável para a segurança mental resulta em purificação para o processo da fé. O diálogo inter-religioso ajuda a aprofundar a desidolatrização dos dogmas e a potencializar sua iconização. Dogmas guiam a fé, mas não podem literalizá-la, porque então bloqueiam o próprio processo de fé que tentam suscitar. As diferentes concepções do divino são caminhos para percorrer dentro de cada tradição e copos para dar de beber aos convidados que chegam. A dimensão apofática da fé ajuda a evitar que catedrais, sinagogas, pagodes e mesquitas se tornem prisões dogmáticas.

b) A via profética e ética

O encontro inter-religioso permite compartilhar o impulso profético de todas as tradições religiosas. Todas elas denunciam a tentação totalitária de qualquer ideologia ou cidade terrena de abri-la à alteridade. A única maneira de ir em direção ao Outro é a interpelação que a presença do outro nos faz. Diante da exigência de sua necessidade, saímos de nós mesmos em direção ao Outro por e para o outro. Todas as origens das religiões estão ligadas a uma mensagem libertadora que constrói a comunidade humana com critérios de fraternidade e justiça. Deste modo, as religiões mostram-se mestras do humano e promovem a via ética, também em diálogo com as tradições seculares.

c) A via ecológica

O terceiro vetor em que as religiões podem coinspirar e fecundar umas às outras é no respeito à natureza. A sensibilidade ecológica não é um modismo, mas um sinal dos tempos de um momento crítico do planeta. Trata-se de passar de uma atitude altiva e predatória para com a natureza para venerá-la e guardá-la, agradecendo a todo o momento o que ela nos proporciona. A transformação do meio ambiente não pode ser exercida como uma violência contra a terra, mas de uma forma radicalmente “religiosa”, isto é, de religação, que leve em conta que a natureza faz parte de nós e nós dela. O cristianismo é chamado a reconhecer honesta e humildemente que a sua concentração antropológica o fez negligenciar os laços com a natureza e que devemos recorrer à sabedoria das tradições que a ela estão mais intimamente ligadas.

4 Questões abertas

As conclusões só podem ser aberturas. Cristo na cruz é a passagem pela qual se deve entrar para ter acesso à Vida. E não há outra Vida senão a participação daquele que é um dom contínuo de si mesmo. Cristo não fecha o diálogo, mas o abre revelando que o fundo da existência é a doação pura, absoluta e permanente de si mesmo. A teologia cristã do pluralismo religioso é chamada a descobrir como outras religiões são caminhos pelos quais a Realidade Última se entrega e se revela. E, para isso, deve estar disposta a reconhecê-la sob outros nomes e outras formas além daqueles que já conhece. O dinamismo pascal de perda e rasgo do véu do templo mostra que o ato teológico é, também ele, um ato de entrega. Só assim ele pode apreender toda a realidade como entrega e Páscoa de Deus, pela qual vamos continuamente de uma margem à outra em direção a um Deus sempre maior.

Para continuar avançando no campo da teologia das religiões, os seguintes pontos devem ser levados em consideração:

1. É essencial conhecer a fundo as outras tradições religiosas. Um conhecimento que não pode se limitar à mera informação, mas debe tentar perceber com o terceiro olho, o olho do espírito e do coração, a verdade que nelas pulsa.

2. Uma teologia que ajude a tomar consciência de que toda religião é linguística e culturalmente condicionada e, assim, não pode ter suas formulações ou interpretações como absolutas. Isso impregna a teologia e as religiões de humildade e as deixa abertas, conscientes de que estão sempre situadas no espaço e no tempo humanos.

3. Na medida em que a teologia fala de Deus, deve deixar Deus falar. Daí a necessidade de restaurar a teologia à sua dimensão mística. Sem ela, as religiões se tornam ideologia e, em vez de falar do Mistério, que é inexaurível e insubstituível, falam apenas de si mesmas e para si mesmas.

4. Uma teologia que seja, ao mesmo tempo, antropologia e que ajude a descobrir o fundo transcendente do ser humano e das culturas, ainda que se expressem de formas diferentes. A teologia das religiões é chamada a celebrar esta diversidade e também a interpretá-la.

5. Uma teologia das religiões que reflete sobre o mundo e para o mundo. A sua tarefa deve ser profética e inspiradora, chamada a comprometer-se com as causas urgentes e difíceis do mundo e a iluminá-las com a luz que lhe é específica. A sua tarefa é fazer com que as religiões se entendam e sejam significativas para o nosso tempo, atentas ao que está cada vez mais em jogo: a sobrevivência do planeta.

Por fim, permanece em aberto a questão de saber se é possível fazer uma teologia metaconfessional ou se não é possível subtrair-se ao quadro confessional a partir do qual se reflete sobre as outras e a própria religião. É uma questão aberta, como radicalmente está aberto o mistério.

Javier Melloni, SJ. Facultad de Teología de Catalunya. Texto original em espanhol. Postado em dezembro de 2020.

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As viragens na Teologia Contemporânea

Sumário

Introdução: o que se entende, aqui, por viragem?

1 Viragem histórica: a “história” como horizonte das teologias do século XX

2 Viragem social: o “reverso da história” como cenário das teologias da libertação

3 Viragens recíprocas e simultâneas: ecológica, intercultural, decolonial

Conclusão: Que tipo de relação vigoraria entre as distintas viragens?

Introdução: o que se entende, aqui, por viragem?

Imprescindível se faz esclarecer os termos que compõem o título do verbete no intuito de explicitar melhor o objetivo ao qual se propõe. Não se entende viragem como ponto matemático de inflexão a partir do qual se operaria uma ruptura com o passado como condição para se inaugurar algo “novo”. Concebe-se viragem como um movimento de reconfiguração metodológica da teologia com vistas à sua inserção no diálogo com novos paradigmas culturais. As distintas viragens testemunhariam, portanto, a consciência da teologia contemporânea de que a própria relevância constitui condição imprescindível para que recupere, vez por vez, sua perene atualidade.

O recorte por nós proposto mediante a formulação “teologia contemporânea” não diz propriamente respeito a uma rígida delimitação histórica, tarefa da qual se ocuparia a ciência historiográfica. Referimo-nos, aqui, à pluralidade de teologias produzidas no curso dos séculos XX e XXI como resultado de experimentações metodológicas ocorridas a partir das provocações do fenômeno histórico-cultural do Iluminismo. Pois foi, a partir de então, que a teologia cristã se descobriu diante do premente desafio de apresentar e, ao mesmo tempo, defender a positividade histórico-salvífica da fé e sua relevância em face da emergência da razão autônoma e autossuficiente não mais refém da tutela do conhecimento via autoridade.

1 Viragem histórica: a “história” como horizonte das teologias do século XX

O que caracteriza grosso modo as distintas correntes teológicas surgidas no século XX é sua preocupação em “acertar o passo da história”. As interpelações postas de forma contundente pelo Iluminismo provocaram nas teologias cristãs a consciência de um duplo descompasso: irrelevância e anacronismo. E o efeito dessa consciência foi descobrir-se numa espécie de limbo, uma situação intermediária e fechada em si mesma. Por um lado, a teologia cristã se descobre aquém dos novos desafios postos pela situação atual. Por outro, ela se reconhece alheia às próprias fontes. Na origem deste despertar de consciência encontra-se a emergência da historicidade como paradigma hegemônico da Modernidade ocidental. Por essa razão, denominador comum de todas as formas de teologia que surgiram no século XX é a assunção da História como paradigma.

Pode-se afirmar que o leitmotiv das teologias do século passado é a simultaneidade entre abertura ao tempo presente e volta às origens. No início do século XX, M.-D. Chenu expunha em modo sistemático as linhas características da reforma da teologia almejada no recém-constituído escolasticado dos Dominicanos, em Le Saulchoir, na Bélgica: afirmação do primado do dado revelado, assunção da crítica bíblica e histórica, tomismo aberto, atenção aos problemas do próprio tempo.

Ainda no mesmo opúsculo, o teólogo dominicano propunha a articulação da “fé in statu scientiae”, em sua dupla função positiva e especulativa, com a “fé solidária com o próprio tempo” (CHENU, 1937).  Expressão dessa preocupação é o título por ele dado a uma de suas principais obras – uma coletânea de artigos esparsos – publicada em dois volumes: La Parole de Dieu. 1. La foi dans l’intelligence; 2. L’Évangile dans le temps (CHENU, 1964). Anos mais tarde, em um artigo programático da assim chamada Nouvelle Théologie, publicado na revista Études, sob o título de “Les orientations présentes de la pensée religieuse”, J. Daniélou traçava as diretrizes da renovação da teologia: 1) o retorno às fontes (Escrituras, Padres da Igreja, Liturgia); 2) o contato com as correntes do pensamento contemporâneo; 3) o contato com a vida (DANIÉLOU, 1946, p. 5-21).

É precisamente nesse contexto de antecipações, resistências, recuos e avanços que se convoca e se celebra o Concílio Vaticano II. O tão falado aggiornamento, querido e proposto por João XXIII, é expressão da consciência do anacronismo e da irrelevância da Igreja e da teologia face aos novos e urgentes apelos do mundo de então. A urgência desse aggiornamento suscitou a “volta às fontes” ou o “retorno às origens” como potencialização da correspondência aos apelos do mundo dos anos 60 do século passado. Presente já na convocação do Concílio, essa consciência se explicita na Alocução de abertura do Vaticano II, proferida por João XXIII: a Gaudet Mater Ecclesia. Emblemático, nesse sentido, o fato que a Coleção de Teologia, em vários volumes temáticos, elaborada imediatamente após o Vaticano II e sob sua influência, tenha recebido de seus organizadores o sugestivo título de Mysterium Salutis. Compêndio de Dogmática histórico-salvífica.

Lendo a clássica obra de Rosino Gibellini, intitulada La teologia del XX secolo, damo-nos conta de que as correntes teológicas emersas no século passado se colocam, todas elas sem exceção, debaixo do arco-íris da História. É, portanto, no horizonte do paradigma da historicidade que se inserem todas as “viragens” (les tournants) teológicas do século passado: tanto a existencial-antropológica como a hermenêutica e, sucessivamente, a política e, por fim, a planetária. Gibellini distingue quatro tipologias consoantes ao modo de fazer teologia no decorrer do século XX: 1) Teologias da identidade; 2) Teologias da correlação; 3) Teologias políticas; 4) Teologias na era da mundialização (GIBELLINI, 2007, p. 559-560).

As Teologias da Identidade estariam preocupadas em afirmar a transcendência da Palavra de Deus (K. Barth) e atestar a absoluta superioridade da Revelação cristã em relação à filosofia e à sabedoria humana em geral (H.U von Balthasar). Por essa razão, a teologia é apresentada como “dogmática eclesial” (Barth), como “gramática da fé” (Lindbeck) ou como “algo que dá o que pensar” (Jüngel).

As Teologias da correlação se caracterizariam pela articulação entre identidade e relevância no interior da teologia cristã em relação à dimensão existencial, antropológica, cultural e experiencial humana. Aqui se inscrevem as conhecidas teologias: existencial (Bultmann), da cultura (Tillich), antropológica (K. Rahner), da experiência (Schillebeeckx), ecumênica e inter-religiosa (Küng), hermenêutica (Geffré e Tracy).

As Teologias políticas (Metz, Moltmann e Sölle) representariam a passagem do antropológico existencial para a esfera do político. Nesse sentido, elas propõem que se desentranhem os conteúdos sociais e políticos da mensagem cristã, recolocando assim a fé cristã no espaço público contra toda espécie de privatismo religioso segundo os moldes das sociedades burguesas pós-iluministas.

Concluindo, diríamos que praticamente todas as teologias surgidas na área geográfica do Atlântico Norte no curso do século passado pretendem responder à questão tão bem formulada por D. Bonhoeffer: como falar de Deus ao ser humano adulto e emancipado, autêntico filho da Ilustração europeia (GUTIÉRREZ, 1979, p. 546-558)? Todavia, nesse mesmo século XX, emergiam outras perguntas que não queriam calar. Essas provinham de outras latitudes, caracterizadas por relações distintas para com a Modernidade colonial ocidental. Essas questões emergiam, para todos os efeitos, do “reverso da história”.

2 Viragem social: o “reverso da história” como cenário das teologias da libertação

Gibellini considera o movimento de Ingresso da teologia na era da mundialização ainda como fenômeno no interior do paradigma da história. E nesse rol ele elenca toda a diversidade cultural e de gênero que irrompeu no seio da teologia cristã no decorrer do século passado, a saber: a Teologia da libertação (TdL) latino-americana, a Teologia da inculturação no continente africano, a Teologia das religiões no continente asiático, a Teologia feminista. Seria o movimento do irromper das teologias do terceiro mundo no universo da teologia cristã universal. Somos de opinião, todavia, que tais teologias surjam do “reverso da história” e não propriamente da história concebida, no horizonte da Modernidade colonial, como desenvolvimento linear e progressivo.

A explicitação dessa nova consciência – do “reverso” da história – teria se verificado durante a preparação de uma conferência de Gustavo Gutiérrez a ser proferida em Chimbote (Peru) em julho de 1968, poucas semanas antes da abertura da Assembleia dos bispos em Medellín, sobre a realidade vivida na América Latina como desafio para uma pastoral de promoção humana. O texto da conferência, publicado no ano seguinte sob o título Para una teología de la liberación, significou uma autêntica viragem na teologia, pois pela primeira vez e de modo explícito, se propunha uma “teologia da libertação” em alternativa à “teologia do desenvolvimento”. O próprio Gutiérrez é quem oferece um esclarecedor testemunho sobre o contexto de sua intervenção e sobre o seu alcance:

Para nós que tínhamos uma responsabilidade pastoral, eram os anos em que nos interrogávamos sobre a presença do Evangelho e da Igreja nesta ebulição de ideias, de experiências, de correntes e buscávamos critérios de discernimento. Nessa situação se efetuou em Chimbote uma reunião de sacerdotes e leigos para tentar compreender aquilo que vivíamos em nosso país. Foi-me confiado o relatório teológico sobre um tema que era então muito discutido: a teologia do desenvolvimento. Ao preparar meu relatório compreendi que era mais bíblico e mais teológico falar de uma teologia da libertação, ao invés de uma teologia do desenvolvimento. Ou seja, teologia da libertação como teologia da salvação nas concretas situações históricas em que o Senhor nos oferece a graça da salvação (GUTIÉRREZ, 1986, p. 125-126).

Como se vê, a singularidade da proposta da TdL latino-americana emerge a partir da maneira alternativa de se perceber a particularidade da realidade dos povos latino-americanos no cenário internacional. Não se aceita sem mais a tipologia do paradigma da história segundo o qual a realidade inteira seria capturada no bojo de um único e inexorável processo histórico linear caracterizado pelo progresso e pelo desenvolvimento. Desenvolvimento tinha se tornado, naqueles idos, palavra-chave do processo de recolonização encabeçado pelas nações ricas do hemisfério norte. Na época, falava-se em povos desenvolvidos para distingui-los dos assim chamados “subdesenvolvidos” ou “em vias de desenvolvimento”.

É o próprio Gutiérrez que, de resto, desde o início chama a atenção para o “fato mais relevante” no cenário sociopolítico, cultural e eclesial do continente: a “irrupção dos pobres” e seu clamor por libertação (GUTIÉRREZ, 1982, p. 215). Nesse sentido, a teologia da libertação nasce desbancando não apenas a ideia de desenvolvimento, mas, sobretudo, seu expediente sistemático de naturalização da riqueza e da pobreza. Falava-se, a tal propósito, de um processo linear e crescente envolvendo nações desenvolvidas e nações em desenvolvimento. Essa classificação, pretensamente natural, encobria a dimensão estruturalmente conflitiva da realidade do desenvolvimento. Reputava-se natural que as nações do Ocidente fossem mais desenvolvidas do que as nações dos continentes periféricos que, com o passar dos anos, se tornariam também elas desenvolvidas. Concebia-se desenvolvimento como um processo cujo crescimento econômico e cultural se daria de modo contínuo e linear, indo do mais primitivo e menos desenvolvido na direção do mais desenvolvido e “civilizado”.

Como se percebe, a “libertação” proposta pela TdL emerge como crítica estrutural ao que se considerava, então, natural: história ocidental como única história; desenvolvimento como crescimento linear e ilimitado. E, por isso mesmo, a TdL surge com a pretensão de se apresentar como teologia feita a partir do “avesso” da história. Não se fala ainda de uma história outra, mas não se admite sem mais o conceito naturalizado de uma história ocidental única que vai do natural e inculto ao civilizado e desenvolvido. O conceito de “libertação” deflagra o lado sombrio e intencionalmente esquecido dessa história.

Para exprimir essa reviravolta, surgem expressões que caracterizam o dissenso quanto à linearidade totalizadora da universalidade do paradigma da historicidade: “reverso da história”, “avesso da história”, “o não homem” como interlocutor privilegiado da TdL (GUTIÉRREZ, 1979), “Sitz im Leben und Sitz im Tode” (contexto vital e, ao mesmo tempo, contexto de morte) como lugar teológico, na dupla valência de ponto de partida e também de perspectiva da reflexão teológica (SOBRINO, 1989, p. 155). Como se pode ver, com a TdL temos uma primeira ruptura no tocante à imposição universal do paradigma moderno da História e mediante a deflagração do sistemático expediente de naturalização de processos históricos de desigualdade econômica, social e cultural. E isso se dá mediante a eleição do conceito libertação.

Nesse sentido, vale lembrar o que propunha J. L. Segundo, já nos inícios dessa nova teologia, no que diz respeito a uma necessidade básica para a TdL: pôr em movimento o círculo hermenêutico entre “libertação da teologia” e “teologia da libertação”. Trata-se de um processo recíproco e, por isso mesmo, simultâneo. Esta seria, em sua opinião, condição imprescindível para libertar a teologia clássica das amarras de sua falsa consciência universal. Explorar a autonomia relativa e a constitutiva mutualidade entre “libertação da teologia” e “teologia da libertação” seria conditio sine qua non para o exercício de uma autêntica TdL (SEGUNDO, 1975).

As intuições básicas e a metodologia específica da TdL foram sendo aos poucos incorporadas por outras teologias e pelo próprio Magistério. Daí a razão se utilizar o plural para se referir às ‘teologias’ da Libertação como, por exemplo, a teologia negra e a teologia feminista da libertação. Trata-se de um processo de expansão e consolidação da TdL também em outras latitudes e contextos históricos e culturais, nos quais as raízes da TdL foram se aprofundando e se interconectando sempre mais umas às outras (LIBANIO, 1987).

Simultâneo fenômeno se deu ainda nos terrenos específicos das minorias pobres e oprimidas do continente latino-americano. Com o passar do tempo, a concepção de “libertação” foi se desdobrando e, portanto, se explicitando sempre mais e o termo “pobre” ganhando feições cada vez mais concretas. É o que transparece, por exemplo, no prefácio escrito por Gustavo Gutiérrez à 14ª edição de seu Teología de la Liberación. Perspectivas, intitulado “Mirar lejos!”, que apareceu em 1990 e, portanto, 20 anos após a primeira edição. No intuito de salientar que o pobre pertence a uma coletividade social, Gutiérrez emprega expressões como: “povos submetidos”, “classes sociais exploradas”, “raças desprezadas” e ainda “culturas marginalizadas” (GUTIÉRREZ, 1990, p. 22). Ele sublinha ainda que falar do pobre, mais do que se referir apenas a uma categoria sociológica ou política, significa remeter-se a um complexo fenômeno: o “mundo do pobre” (GUTIÉRREZ, 1990, p. 22).

Nessa mesma linha, Victor Codina sublinhava uma necessidade imprescindível para a TdL, a saber: discernir um terceiro momento no movimento histórico da Ilustração, além dos dois já discernidos por Jon Sobrino (cf. SOBRINO, 1976, p. 177-208). Este terceiro momento no interior do Iluminismo, na opinião dele, seria caracterizado pelos desafios postos pela racionalidade simbólica, responsável, por sua vez, pela acolhida da alteridade que se manifestaria nas distintas diferenças: culturais, raciais, de gênero, religiosas etc. (CODINA, 1993, p. 271-296).

3 Viragens recíprocas e simultâneas: ecológica, intercultural, decolonial

Qual a razão de se considerar juntas as três viragens: ecológica, intercultural e decolonial? Pelo fato, precisamente, de nos encontrarmos diante de um processo por nós descrito como “desdobramento de um mesmo paradigma”. Com isso, não queremos misturá-las nem confundi-las, mas, ao contrário, distingui-las para que emerjam as dimensões e questões singulares propostas por cada uma dessas viragens. Somente em tal caso, salvaguardar-se-á a possibilidade de que se interpenetrem reciprocamente e, assim, se potencializem mutuamente. Pois, de fato, as dimensões peculiares sublinhadas por cada uma delas, ao se inter-relacionar com as demais, tornam possível um processo de potencialização simultânea e recíproca.

No que diz respeito à viragem ecológica, não se entende aqui ecologia apenas como sinônimo de meio ambiente. A preocupação com o ambiente constitui uma das dimensões da ecologia compreendida a partir de uma visão sistêmica. Por essa razão, a Ecologia seria mais bem descrita como uma nova arte, um novo paradigma a pautar nossas relações com o sistema-Vida e com o sistema-Terra. Concebe-se, portanto, ecologia como uma singular complexidade composta por quadro dimensões: ambiental, social, mental e espiritual/integral (BOFF, 2012).

A ecoteologia, por sua vez, constitui uma espécie de ponte entre ecologia e teologia e vice-e-versa (SUSIN; ZAMPIERI, 2015; MURAD, 2016). Ela é expressão, mais precisamente, de um discurso articulado que procura deslindar as mútuas e recíprocas implicações entre os desafios postos pela atual crise ecológica e o anúncio do “evangelho da Criação” próprio da fé cristã. De um lado, a crise ecológica se apresenta como um dos mais urgentes e complexos desafios para a tarefa teológica hodierna. De outro, o “evangelho da Criação” constitui a utopia permanente das relações harmoniosas e ternas que buscamos construir entre todos os seres, verdadeiros “filhos da Terra”, nossa Casa comum (TAVARES, 2010).

A ecoteologia, na perspectiva da libertação, salienta que a gravidade e urgência das questões atinentes ao discurso acerca do cuidado de nossa “Casa comum” exigem que todo discurso teológico responsável – e que, portanto, não se deixa tragar pela indiferença e pelo cinismo – se construa a partir da condição dos pobres e numa perspectiva utópico-libertadora. Um discurso acerca da tutela da vida no Planeta que não incorpore as questões da pobreza e da fome, da injustiça social e das contradições da globalização neoliberal peca por ingenuidade e conivência. Da mesma forma, um discurso acerca do cuidado e da sustentabilidade da vida no planeta Terra, nossa Casa comum, que não brote, de maneira esperançosa, dos sulcos fecundos do “evangelho da criação”, acabará sucumbindo a um pessimismo trágico.

A ecoteologia da libertação, portanto, salienta a necessidade de se “articular o grito da Terra com o grito do pobre” (BOFF, 1995; 1996, p. 75-88; 2000, p. 1889-207). E o pressuposto é de que a injustiça social e a crise ambiental são ambas provocadas por um sistema de morte, deflagrado como produto de um paradigma civilizacional, caracterizado pelo poder hegemônico do mercado, da tecnociência e da mídia (TAVARES, 2014a, p. 382-401). É este sistema, no fundo, o responsável último pelos processos em curso que, juntos, compõem o que temos justamente denominado de “crise ecológica”. A ecoteologia se inspira na utopia de um novo e emergente paradigma, o ecológico. Este se encontra ainda em fase de gestação, mas seus rebentos se revelam cada vez mais promissores. Fruto de um novo olhar, as novas relações propiciadas pelo emergente paradigma ecológico seriam fortemente marcadas pelos valores da complexidade, do cuidado e da sustentabilidade, entre outros (TAVARES, 2014b, p. 13-24).

No tocante à viragem intercultural, tem-se advertido a necessidade de uma transformação intercultural da teologia, expressa no propósito de se fazer teologia interculturalmente (MIRANDA, 2001; IRARRÁZAVAL, 2002; FORNET-BETANCOURT, 2007; TAVARES, 2015; 2018; HERRERA RODRÍGUES, 2019). Nesse intuito, formula-se uma tríplice crítica às teologias surgidas no contexto do século passado, todas elas sob o arco-íris do paradigma moderno da História. Critica-se: a afirmação de uma única História; a ideia imposta e difusa de contemporaneidade como expressão da assimetria entre as várias temporalidades e tempos diferentes; a assunção de uma história particular como a História universal. E a partir desse dissenso crítico, explicita-se a nova proposta escandida em três passos: o respeito às distintas temporalidades e à complexidade do Tempo; a simetria entre distintas temporalidades e entre “tempos” diferentes; a consciência de que o universal não é separado do local nem se contrapõe ao particular.

A Teologia intercultural, portanto, não é avessa à ideia de universalidade, como se poderia pensar apressada e superficialmente. Não propõe a fragmentação do mundo nem faz apologia de regionalismos ou de provincianismos. O que postula a teologia intercultural é uma universalidade a partir das diferenças culturais. A diversidade cultural não compromete nem inviabiliza a universalidade. A perspectiva do encontro e do diálogo é que possibilita, em última instância, a verdadeira universalidade, posto que a autêntica experiência de universalidade brota das experiências particulares e locais. Há uma comunicação que se dá pelas raízes, a partir de baixo, e por isso verdadeiramente inclusiva. Não existe universalidade desvinculada dos processos locais e particulares, visto que o universal não se dá separado do local nem tampouco contraposto ao particular. Qualquer tentativa de universalização que não brote das particularidades de cada situação e das diferenças de cada realidade local resultará fruto de imposição e de impostura. Uma concepção de universalidade que não se nutre do encontro e da partilha das diferenças se degenerará em uma mera tautologia.

A Teologia intercultural, enfim, não se satisfaz simplesmente com afirmar ou constatar a pluralidade das culturas; afirma que seu lugar teológico é constituído pela pluralidade de culturas em comunicação. Interculturalidade, aqui, “descreve relações simétricas e horizontes entre duas ou mais culturas, a fim de enriquecer-se mutuamente e contribuir a uma maior plenitude humana” (ESTERMANN, 2010, p. 33). Esse é precisamente seu momento “inter”. Trata-se, em suma, de uma teologia elaborada a partir do contexto do encontro e do diálogo entre as culturas e sob sua perspectiva. Pois como afirma Fornet-Bettancourt: “Não existe apenas uma pluralidade de histórias, a historicidade humana é temporalmente pluralista” (2009, p. 99).

A viragem decolonial vem se dando a partir do momento em que a teologia tem se sentido interpelada por questões suscitadas pelo grupo de estudos “Modernidad-Colonialidad” ao propor uma “viragem decolonial”: movimento que, partindo da análise da modernidade-colonialidade, culmina na perspectiva e discurso da decolonialidade[1]. Esta é a razão pela qual se insiste em concebê-la como movimento, processo, guinada, opção. Constata-se, portanto, que a lógica da colonialidade e a retórica da modernidade constituem, de fato, cara e coroa da mesma moeda e que, portanto, é justificável falar de um único fenômeno: “modernidade-colonialidade” (DUSSEL, 2000, p. 29-30; QUIJANO, 1997; PORTO GONÇALVES, 2003, p. 168; MIGNOLO, 2010; 2017). A colonialidade seria, portanto, a face “ocultada” da modernidade ocidental. Anibal Quijano, sociólogo peruano, insiste no fato de que a conquista e exploração violentas do “novo” continente não apenas precedem historicamente a constituição da Europa, mas são conditio sine qua non da sua imposição como protagonista do primeiro padrão de poder internacional: capitalista, colonial, eurocêntrico, racista, patriarcal (QUIJANO, 1997).

Se, de fato, a colonialidade se apresenta como “o lado mais escuro da modernidade” (MIGNOLO, 2017), também a teologia se sente instada a desvelar aspectos mantidos no encobrimento e que serviriam de contraponto ao projeto tão decantado da Modernidade ocidental que, no decorrer de séculos, dela tem se servido como uma de suas mais fortes bases ideológicas de sustentação. Por esta razão, adverte-se a necessidade de se operar, simultaneamente, uma verdadeira “descolonização da teologia”. Na impossibilidade de elencar e aprofundar, aqui, a complexidade dos aspectos mantidos no encobrimento, salienta-se apenas que a teologia decolonial se sente interpelada pelo sistemático processo de “naturalização” que constitui a espinha dorsal do inteiro projeto moderno colonial e que continua tendo vigência em nossos dias mediante expedientes de uma nova colonialidade global. Trata-se de tríplice “naturalização”, posto que à “naturalização” da desigualdade social entre colonizador e colonizado, mediante a “invenção da ideia de raça” (Quijano), e da racionalidade moderno-colonial veio se somar em tempos de globalização neoliberal a “naturalização” do mercado e da tecnociência como necessidades imperativas (TAVARES, 2019a, p. 77-101; 2019b, p. 481-488). Interpelada, portanto, pelas questões oriundas da viragem decolonial, a teologia se mostrará sensível aos desafios postos e às prospectivas abertas pela modernidade colonial a partir de sua constitutiva interrelação entre capitalismo, racismo, eurocentrismo e patriarcalismo.

Conclusão: Que tipo de relação vigoraria entre as distintas viragens?

Resta-nos, enfim, dizer uma palavra acerca da relação vigente entre as distintas viragens. Preferimos concebê-la em termos de “assunção” ou de “incorporação”. E o pressuposto é que fenômenos e mentalidades históricos não se encontram distribuídos ao longo de uma história linear e progressiva e classificados segundo critérios que justificariam a superação do mais recente em relação ao anterior, deixado para trás. Tal postura trairia o hábito reconhecidamente moderno e colonial, cuja pretensão é, entre outras, inventar um saber que se constitui, cada vez, a partir de um novo início. Daí a razão de se buscar a novidade, não raras vezes, de maneira obsessiva. Entretanto, não se quer negar o caráter de superação das três viragens simultâneas e recíprocas (ecológica, intercultural e decolonial) com relação à viragem social e dessa, por sua vez, com respeito à viragem histórica. Há sim um processo de superação entre as respectivas viragens, apenas que tal superação se dá a modo de incorporação, e não propriamente de supressão.

Sinivaldo S. Tavares, OFM. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Texto original português. Postado em dezembro de 2020.

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[1] Para uma maior compreensão da genealogia dos “estudos decoloniais” e sua relação com os “estudos pós-coloniais” e também com os “estudos subalternos”, ver MELLA, 2016, p. 442-448; BALLESTRIN, 2013. Constatamos, não raras vezes, o uso indiscriminado dos prefixos “pós-” e “de-”, talvez pela carência de maiores referências com respeito a esclarecimentos terminológicos que, para além de mero jogo de palavras, são introduzidos com o fito de delimitar o estatuto epistemológico.