Sumário
1 O apóstolo Paulo
1.1 Paulo nos Atos dos Apóstolos
1.2 Paulo nas cartas paulinas
2 O epistolário Paulino
2.1 As cartas autênticas
2.2 As cartas discutidas
3 A teologia paulina
3.1 O poder de Deus para a salvação
3.2 Novos seres humanos
3.3 O corpo da Igreja
4 Interpretação das cartas paulinas na América Latina
Referências
1 O apóstolo Paulo
Quando e onde nasceu Paulo? Em que momento se tornou um seguidor de Cristo? A cronologia da vida de Paulo tem duas fontes: os Atos dos Apóstolos e seus próprios escritos. Essas duas fontes nem sempre coincidem. A descrição dos Atos é atribuída a Lucas e corresponde à perspectiva evangelizadora de toda a sua obra. Paulo, por sua vez, não nos oferece uma autobiografia completa, mas eventos isolados a partir dos quais algumas partes de sua vida podem ser reconstruídas. Existem dois tipos de cronologias, relativas e absolutas. As relativas são entendidas como “relacionadas a Lucas” e “relacionadas às cartas de Paulo”. De acordo com essa abordagem, cada obra literária reflete uma “história” diferente do apóstolo. A cronologia absoluta busca combinar em um único quadro histórico os dados de Atos, das cartas e de alguns acontecimentos extrabíblicos que poderiam coincidir com aqueles mencionados no Novo Testamento.
1.1 Paulo nos Atos dos Apóstolos
Paulo é o protagonista da segunda parte dos Atos dos Apóstolos; a sua caracterização corresponde ao projeto narrativo e missionário da obra lucana: “e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e a Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8; cf. Is 41, 9). Lucas narra três viagens missionárias do apóstolo e três vezes o encontro do apóstolo com Jesus ressuscitado na estrada para Damasco.
As viagens de Paulo descritas na segunda parte do livro descrevem um apóstolo que se dedica a levar o Evangelho de Jesus Cristo às fronteiras da diáspora judaica. A rota da primeira viagem leva Pablo e Bernabé, enviados pela igreja de Antioquia, a Licaônia, Listra e Derbe (14,1-6), centro-sul da Turquia. Sua pregação ocorre inicialmente na sinagoga judaica (14,1) e resulta em rejeição e até apedrejamento (14,19). Diante da rejeição dos judeus, eles se voltam para os gentios (13,46). A rota da segunda viagem leva Paulo, Silas e Timóteo, em parte, à antiga Galácia, um pouco mais ao norte da primeira viagem. As dificuldades (16,6-10) empurram-nos para a Macedônia, passando por Neápolis e Filipos, centros urbanos romanos. Esta transição marca um momento crucial no projeto missionário lucano: a evangelização da Europa. A jornada da terceira viagem leva Paulo de Antioquia a Corinto, passando pela maioria das igrejas fundadas na Ásia Menor e nas costas da Tessália, e de volta a Jerusalém. O anúncio evangélico ao longo dessas viagens geralmente é feito na sinagoga judaica; Lucas também reitera os obstáculos da primeira pregação, da orientação do Espírito Santo e do exemplo de Paulo como primeiro testemunho pessoal de identificação com o destino de Jesus. As datas dessas viagens são muito discutidas. Se a menção a Galião (18,12-17) e seu tempo como procônsul na Acaia são levados em consideração, pode-se conjecturar a cerca dos seguintes prazos: primeira viagem entre 47-48 dC, segunda entre 49-52 dC e a terceira entre 53-57 dC. Também se discute se a quarta viagem, ou o cativeiro, pode ser considerada uma viagem apostólica. É bem possível que essas viagens correspondam mais a um “esquema teológico” de divulgação do testemunho sobre Jesus ressuscitado, partindo de Antioquia e Jerusalém, passando por Roma e dali até os confins da terra.
Os relatos de conversão de Paulo constituem um tríptico. Cada cena propõe uma imagem diferente do apóstolo, com um objetivo específico. O primeiro é narrado na terceira pessoa, o segundo, como testemunho pessoal e o terceiro, como defesa perante o tribunal de Agripa. Em Atos 9,1-19, Lucas descreve um encontro entre Paulo e Jesus ressuscitado. Este relato termina com o batismo de Paulo por Ananias. Em Atos 22,1-21, o próprio Paulo descreve o que aconteceu na estrada para Damasco como um testemunho pessoal. Neste caso, o “Deus dos nossos pais” o fez uma testemunha privilegiada da ressurreição do Senhor. Este relato termina com uma visão no templo em Jerusalém (vv.17-21), na qual sua missão como testemunha é confirmada. Em Atos 26,12-23, Paulo se defende das acusações de alguns judeus perante o tribunal de Agripa. Ainda que essa defesa seja feita perante um tribunal romano, Paulo usa argumentos característicos dos profetas. Sua defesa consiste em reafirmar sua vocação profética. O objetivo dessas três diferentes narrativas é mostrar, de forma gradual, como Paulo tomou consciência de sua vocação a ser testemunha de Jesus ressuscitado. Os capítulos 9, 22 e 26 descrevem suas atividades missionárias e, o mais importante, as perseguições e rejeições a que foi submetido. A imagem de Paulo que Lucas nos dá é a de um apóstolo missionário, testemunha pessoal da perseguição, morte e ressurreição do Senhor, porque ele mesmo assim o experimentou durante o seu caminho apostólico e espiritual.
1.2 Paulo nas cartas paulinas
Como Paulo se descreve em suas cartas? Como um servo inútil semelhante ao descrito no Evangelho (Lc 17,10)? Como apóstolo e evangelizador? Paulo fala de si mesmo nas seguintes passagens: Gl 1,15–2,14; Fl 3,5-6; 1Cor 7,7. O seu testemunho escrito mostra que foi um homem de fé enraizado em duas culturas, a do judaísmo da diáspora e a greco-romana do Mediterrâneo.
Em Fl 3,5-6, Paulo parece definir-se como alguém que subverte a ordem estabelecida. “Viver em Cristo” determina um antes e um depois; tudo antes é considerado uma perda quando comparado ao valor de conhecê-lo. Entre alguns judeus, a fidelidade à Lei de Moisés era de importância inigualável; um mérito que Paulo questiona após seu encontro com o Senhor. Na esfera greco-romana, o prestígio ou a capacidade de se gabar eram essenciais. Os motivos mais significativos eram a linhagem, a educação, os êxitos alcançados. Paulo relativiza sua linhagem, sua formação farisaica e seu zelo como perseguidor, mostrando com seu exemplo que a fé em Cristo constitui uma fonte incomparável de orgulho e, assim, introduz uma nova forma de ser no mundo. Em Rm 1,1, Paulo se apresenta como escravo – de Cristo Jesus – e em 1Cor 9,19, como um homem livre que se tornou escravo. Ele voluntariamente renuncia a seus direitos para dar o exemplo de como uma assembleia deve ser instruída. Essa compreensão de seu ministério, como humilde servidor da mensagem de Cristo, e de sua obra evangelizadora, como serviço a uma comunidade, modifica os parâmetros do discipulado greco-romano, cujo objetivo era superar o mestre. O fato de estar “separado” para a difusão do Evangelho (Rm 1,1) segue também o padrão de consagração de Israel característico da tradição profética do AT (cf. Ez 45,1.4; 48,9.20).
Em Gl 1,15–2,14 Paulo descreve sua transformação de perseguidor da Igreja a evangelizador dos gentios. Ele justifica seu ministério e seu ser apóstolo por um chamado divino, sem intervenção humana. Depois de ter tido essa experiência do Senhor, ele menciona um intervalo de três anos (1,18), antes de uma breve visita a Jerusalém, e depois outro intervalo de quatorze anos até uma nova visita a Jerusalém (2,1), identificada com o Concílio de Jerusalém. Estes dezessete anos não são fáceis de explicar, se for atribuído valor histórico aos itinerários propostos nos Atos dos Apóstolos. Para conciliar esses anos com os anteriores à primeira viagem missionária, seria necessário forçar um pouco o cálculo dos anos. Apesar das dificuldades apontadas em estabelecer uma cronologia absoluta, as duas fontes principais, a carta aos Gálatas (2,1-10) e os Atos dos Apóstolos (15,2-29), coincidem em mencionar o encontro de Paulo e Barnabé com os apóstolos, pilares de Jerusalém, assim como os acordos ali estabelecidos: não impor a circuncisão aos cristãos de origem pagã – não judeus – e cuidar especialmente dos pobres. Se levarmos em conta também algumas fontes históricas extrabíblicas (Suetônio e Tácito) e o cálculo retroativo dos anos passados por Paulo em Corinto conforme Atos 18,11-22, antes de comparecer perante o procônsul L. Junio Gálião na Acaia (aproximadamente 52 dC), sua participação no Concílio de Jerusalém pode ser datada por volta dos anos 49-50 dC.
2 O epistolário paulino
As cartas paulinas podem ser agrupadas de muitas maneiras: protopaulinas, deuteropaulinas, tritopaulinas. Alguns também distinguem suas cartas de cativeiro das pastorais, ou seja, as que mencionam suas cadeias (Filipenses, Filêmon, Efésios e Colossenses) e as que se dirigem aos ministros da Igreja (Timóteo e Tito). Por razões de clareza e brevidade, serão apresentadas em dois grandes grupos: aquelas cuja autenticidade é praticamente unânime e as discutidas ou atribuídas à escola paulina.
2.1 As cartas autênticas
2.1.1 Romanos
A carta aos Romanos foi escrita no final de 57 dC ou no início de 58 dC, de Acaia (Macedônia) ou de Corinto. É considerada a “suma teológica” do apóstolo. Explica como e porque Deus transforma os seres humanos pela fé em Cristo. De acordo com as promessas feitas a Israel, Deus capacita os crentes a agir com justiça e retidão. A justiça pela fé em Cristo está disponível para judeus e não judeus.
2.1.2 Primeira Coríntios
A primeira carta aos Coríntios foi escrita entre 54-56 dC, durante a “terceira viagem missionária” (cf. At 18,18-28) e possivelmente de Éfeso. Nesta carta, Paulo questiona duramente a comunidade por causa das divisões que a afligem. A discórdia sobre o tipo de batismo recebido ou os carismas que abundam na comunidade indicam que os destinatários eram neófitos ou ainda imaturos na fé. O apóstolo instrui todos eles na verdadeira sabedoria do Evangelho de Cristo.
2.1.3 Segunda Coríntios
A segunda carta aos Coríntios foi possivelmente escrita em meados de 57 dC, da Macedônia, após o reencontro de Paulo com Tito (2Cor 7,6-7) e antes de viajar novamente para Jerusalém (cf. At 19,21-22). Os temas de consolação e reconciliação aparecem como os fios comuns de grande parte da carta. Nas seções 8–9, Paulo promove uma coleção para a comunidade de Jerusalém e, em 10–13, ele se defende anunciando sua única fonte de orgulho: pregar Cristo.
2.1.4 Gálatas
A carta aos Gálatas foi escrita em algum momento entre 55-57 dC, de Corinto ou de Éfeso, depois do “Concílio de Jerusalém”, mas antes da carta aos Romanos. Nessa carta, Paulo reprova a incoerência e a tolice dos membros da comunidade que querem ceder à pressão de um grupo de agitadores judaizantes. O apóstolo lembra-lhes que, como discípulos de Cristo, foram chamados à liberdade. A verdadeira liberdade é reconhecida porque permite amar.
2.1.5 Filipenses
A carta aos Filipenses é atribuída a um “velho” e prisioneiro Paulo. A menção de “minhas correntes” (1,7.14.17) indica que o apóstolo escreveu esta carta de Roma, aproximadamente entre 60-62 dC. Nela, Paulo propõe dois exemplos a seguir, o de Cristo que se humilha e o do próprio Paulo que se despoja de seus privilégios anteriores. O convite à alegria completa este compêndio de vida cristã que sintoniza o crente com os mesmos sentimentos de Cristo.
2.1.6 Primeira Tessalonicenses
A primeira carta aos Tessalonicenses é considerada a escrita mais antiga do epistolário paulino e em todo o NT; pode ter sido escrita por volta de 50-51 dC. Nela, Paulo tenta responder ao medo daqueles que esperavam a vinda do Senhor como um evento iminente: se aqueles que morreram antes dessa vinda participariam do “dia do Senhor”. O apóstolo responde aos crentes lembrando-lhes que não se sabe o dia nem a hora e os exorta à sobriedade no presente.
2.1.7 Filêmon
Discute-se se esta carta foi escrita em 56-57 dC, de Éfeso (cf. Aristarchus em Fl 34 e Atos 19,29), ou por volta de 60 dC, de Roma. O apóstolo pede a Filêmon que receba o escravo Onésimo como se fosse o próprio Paulo. É uma pequena obra-prima de persuasão em que Paulo procura formar a consciência do cristão, para que se comporte de acordo com o amor e a fé em Jesus.
2.2 As cartas discutidas
2.2.1 Efésios
A carta aos Efésios foi escrita entre 60-90 dC, em algum lugar da Ásia Menor, em torno de uma “escola Paulina” que preservou o pensamento e o estilo do apóstolo. Nele, a condição de Paulo é mencionada como um “prisioneiro” (4,1), um “embaixador entre cadeias” (6,20). O coração da carta é o mistério de Cristo, que se define como a unidade indissolúvel entre a cabeça, que é Cristo, e seu corpo, que é a Igreja. A carta também promove coerência moral com o conhecimento desse mistério.
2.2.2 Colossenses
A carta aos Colossenses foi escrita entre 60-90 dC, em algum lugar na Ásia Menor, talvez um pouco antes da carta aos Efésios. É atribuída a uma “escola paulina” que preservou o estilo e o ensino do apóstolo. Esta carta compartilha muitas características com a carta aos Efésios, mas, ao contrário desta, não enfatiza tanto o papel da Igreja como o de Cristo. Pode ter sido a resposta a alguns equívocos que proliferaram nas comunidades de Colossos e Laodiceia.
2.2.3 Segunda Tessalonicenses
A segunda carta aos Tessalonicenses foi escrita entre 80-90 dC, em algum lugar da Ásia Menor dentro de uma “comunidade paulina”. Esta carta foi construída nos moldes da primeira e aparentemente trata do mesmo assunto: a vinda do Senhor e o fim dos tempos. No entanto, ao contrário da primeira, enfatiza a prevenção dos enganos do maligno e de qualquer outra forma de mal. Discute-se muito se o seu conteúdo apocalíptico é paulino.
2.2.4 Primeira Timóteo
A primeira carta a Timóteo foi escrita no final do século 1 dC, em algum lugar da Ásia Menor. Paulo associou Timóteo à sua obra apostólica, de acordo com o testemunho de Atos 16,1-3; 18,5; 2Cor 1,19. A carta reflete uma comunidade em transição da missão para a institucionalização. Caracteriza a conduta irrepreensível dos ministros (bispos, diáconos, presbíteros) e do resto da comunidade. A fé é entendida como uma luta que envolve amor, paciência e bondade.
2.2.5 Segunda Timóteo
A segunda carta a Timóteo foi escrita no final do século I dC, em algum lugar da Ásia Menor. Esta carta é considerada o testamento e a despedida do apóstolo no final da sua vida: “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé” (4,7). Nela, exorta-se a fidelidade, a firmeza e a força diante das adversidades. A perseguição também está prevista para todos aqueles que desejam levar uma vida autêntica em Cristo.
2.2.6 Tito
A carta a Tito foi escrita no final do século I dC. Tito aparece como companheiro apostólico de Paulo em algumas de suas cartas (2Cor 2,13; Gl 2,1-3), no contexto da missão à Macedônia (2Cor 7,6.13) e da coleta pelos pobres de Jerusalém (2Cor 8,6.16). Por esta razão, a redação da carta está localizada entre as igrejas da Macedônia ou Acaia. A carta oferece um resumo da redenção e do batismo cristãos; a redenção entendida como purificação e o batismo como renovação no Espírito Santo.
2.2.7 Hebreus
O autor da Primeira Epístola de Clemente (no final do século I ou início do século II dC) já se refere a esta carta como parte do NT; sua data de composição, entretanto, é incerta (entre 65 e 90 dC). A autoria paulina da carta foi aceita nas igrejas do Oriente, mas foi questionada nas do Ocidente; não está incluída, por exemplo, no Cânon de Muratori (século II dC aproximadamente). Seu conteúdo se assemelha muito ao de uma homilia antiga extraída de textos do AT, a fim de demonstrar a primazia do sacerdócio de Cristo.
3 A teologia paulina
3.1 O poder de Deus para a salvação
Paulo descreve em suas cartas a ação de Deus em favor dos homens por meio de certas noções conhecidas no AT. Deus, por exemplo, justifica, salva, perdoa, expia os pecados da humanidade. A essas noções o apóstolo acrescenta outras mais típicas do mundo greco-romano. Deus reconcilia, concede paz, une espíritos. A teologia de Paulo, entretanto, não difere substancialmente de sua cristologia, porque todas as ações de Deus são realizadas por meio de Jesus Cristo. Além disso, todos os seres humanos, independentemente de sua raça e origem, sejam judeus ou não judeus, acessam esses benefícios divinos por meio da fé em Cristo.
Na carta aos Romanos e aos Gálatas, Paulo sai de seu caminho para demonstrar, com a ajuda das mesmas Escrituras do AT, que as promessas de Deus a Israel também previam a inclusão de não judeus. Para isso, o apóstolo deve explicar sua compreensão pessoal, ou reinterpretação, da aliança entre Deus e Israel e da lei de Moisés. A aliança estabelecida entre Deus e Abraão incluía a terra e a descendência de todo Israel. A marca registrada de tal aliança por parte dos israelitas consistia na circuncisão dos homens. Paulo mostra que antes da aliança e da prescrição da circuncisão, Deus fez uma promessa incondicional a Abraão, na qual Abraão acreditava antes de se tornar israelita ou judeu. A precedência da promessa (para todos os crentes) em relação à aliança (circunscrita aos circuncidados) é, portanto, um ponto forte da teologia paulina. A consequência imediata dessa compreensão da maneira de agir de Deus é a revogação da validade da Lei de Moisés para aqueles que acreditam em Cristo. Se Cristo é o único intermediário entre Deus e os homens, a lei não pode ocupar este lugar. Paulo esclarece que a lei de Moisés é santa, justa e boa (Rm 7,12) e que foi a pedagoga da humanidade para ensinar-lhe o Cristo (Gl 3,24). Agora, em Cristo, todos os preceitos da lei são sintetizados no mandamento do amor.
O poder do Evangelho de Cristo tem repercussões cósmicas. Paulo descreve a atividade de Deus em favor da humanidade como uma capacitação para se tornarem filhos de Deus em plenitude. Para cumprir esse objetivo, Deus, por meio de Cristo, move aqueles que estão sob o domínio do pecado e os coloca sob o domínio da graça. Isso significa que, em Cristo, Deus vence o poder do pecado, seu antigo adversário. Nas cartas discutidas, especialmente em Efésios e Colossenses, a ação de Deus e a mediação de Cristo também têm uma dimensão cósmica. Esta dimensão já é sugerida em Rm 8,38-39 quando se afirma que nada, nem mesmo a força do pecado, pode nos separar do amor de Deus. Em Efésios e Colossenses, a soberania de Cristo, e com ela a do Deus bom, alcança todas as suas criaturas, tanto as que estão na terra como no céu.
3.2 Seres humanos novos
Paulo explica a vida em Cristo por meio de contrastes temporais, oposições lógicas e paradoxos humanos. Antes da vinda de Cristo éramos escravos do poder do pecado, agora, em Cristo, somos “escravos” da justiça (Rm 6,18). Antes, sob o império da lei, éramos expostos aos caprichos do egoísmo humano (a carne), agora em Cristo, morremos para esses caprichos e podemos viver segundo o Espírito. Paulo destaca a mudança entre o antes e o depois dos fiéis com a ajuda da imagem do batismo (imersão). O que acontece com os crentes que passam de estar sob a lei, expostos ao pecado, a estarem sob a graça? A resposta do apóstolo é contundente: uma morte acontece. O crente mergulha na morte de Cristo, é cossepultado, torna-se um com o sepultamento de Cristo e, assim, se une à sua morte (Rm 6,3-5). A esta identificação com a sua morte não corresponde uma identificação igual com a ressurreição do Senhor: essa é adiada para o futuro; seremos ressuscitados, assim como seremos salvos. A reflexão do apóstolo concentra-se, de fato, nas consequências morais desta imersão no presente: agora vivemos em vida nova (Rm 6,4). A participação nesta morte separa o crente do poder do pecado, de modo que possa pôr suas qualidades a serviço da justiça (Rm 6,12-14).
Em 1Cor 11,23-26 Paulo relata um dos mais antigos testemunhos da Última Ceia do Senhor e a explica como mistério de unidade e comunhão com a própria entrega de Jesus na cruz. Paulo também descreve essa unidade íntima do crente com Cristo por meio das virtudes da fé, esperança e caridade. A fé em Cristo se traduz na esperança de ressurreição com ele; essas virtudes se materializam, por sua vez, em manifestações de amor pelos outros, sejam eles membros da comunidade ou não.
Nas cartas discutidas, a descrição da identificação com o crente muda ligeiramente. Nelas, o esquema temporal é preservado para esclarecer os efeitos da morte e ressurreição. No entanto, ao contrário das cartas autênticas em que o “já e ainda não” é acentuado (já fomos justificados, mas ainda não salvos), as cartas discutidas insistem na presente união com Cristo: “pela graça vocês já foram salvos” (Ef 2,5). Não apenas salvos, mas glorificados com Cristo, sentados à direita de Deus Pai (Ef 2,6). Isso significa que não falta nada no caminho para a salvação? Para que o crente se torne perfeito, isto é, adulto ou maduro em Cristo, é necessário que conheça o seu mistério e cresça harmoniosamente até se identificar consigo mesmo (Ef 4,13-16).
3.3 O corpo da Igreja
Paulo define a Igreja como comunhão no Espírito. Ele curiosamente sublinha a diferença entre seus membros. Comparando-a com o corpo humano (1Cor 12,14-26), o apóstolo mostra que cada membro é diferente por natureza e função. Essa comparação permite que ele exorte seus ouvintes a protegerem cuidadosamente os membros mais fracos (1Cor 12,22-24). Durante sua experiência missionária e apostólica, Paulo teve que enfrentar muitas divisões na comunidade; algumas por motivos religiosos e até espirituais, como a proliferação de carismas; outras de natureza moral, como escândalos (1Cor 6,12-20; 7,1-2); outras de natureza étnica, como a discriminação entre judeus-cristãos e cristãos de origem pagã; entre ricos e pobres. Em todos estes casos, o apóstolo procura ir às raízes da vida cristã, muitas vezes evitando dar orientações particulares. O vínculo da caridade está acima de qualquer divisão. A presença do Espírito Santo na comunidade também garante que sua unidade seja corporativa e orgânica, mais do que mera uniformidade.
Nas cartas discutidas, a compreensão da Igreja ganha densidade. Nelas, a Igreja não se identifica primeiramente com as comunidades locais, mas com o corpo de Cristo, com seu corpo místico. Se o Cristo ressuscitado é a cabeça, a Igreja é seu corpo glorificado. A Igreja é, portanto, o mistério da unidade entre esta cabeça e este corpo. Essas cartas se aprofundam nos múltiplos ministérios que já se insinuam na segunda geração apostólica: apóstolos, profetas, evangelizadores, pastores, mestres (Ef 4,11). Nas cartas pastorais (1ª e 2ª Timóteo, Tito) é descrita uma certa organização institucional das comunidades cristãs, bem como a caracterização de certos ministérios instituídos: bispos (1Tm 3,1-7; Tt 1,7-9) diáconos (1Tm 3,8-13), presbíteros (1Tm 5,17-22; Tt 1,5-6). Ao apóstolo é atribuída, por exemplo, a nomeação dos responsáveis da comunidade (2Tm 1,6-8). É uma Igreja que cresce e se organiza para difundir o Evangelho e promover a caridade.
4 Interpretação das cartas paulinas na América Latina
A interpretação das cartas paulinas na América Latina (AL) caracterizou-se pelo seu teor pastoral. A leitura popular da Bíblia descobriu tanto nas narrativas das viagens missionárias em Atos quanto na descrição de algumas cartas um modelo para a construção de pequenas comunidades. Seguindo este modelo, descobre-se a palavra de Deus que chega ao continente americano (MESTERS, 2001). O convite paulino a viver a liberdade com que Cristo nos libertou constitui um desafio para as igrejas de todos os tempos. Um desafio que inclui também a afirmação da igualdade das mulheres em todos os níveis da sociedade e da Igreja (TAMEZ, 1999). O contexto do livro do Êxodo e de Moisés, como o líder de Israel, foi igualmente inspirador para ler os textos paulinos na AL (INOSTROZA, 2000). As cartas paulinas serviram, por fim, como fonte de reflexão para os processos de reconciliação que acontecem na AL (GRANADOS ROJAS, 2016).
Juan Manuel Granados Rojas SJ. Pontifício Instituto Bíblico. Texto original em espanhol. Postado en diciembre del 2020.
Referências
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FITZMYER, J. A. Teología de San Pablo: síntesis y perspectivas. Madrid: Ediciones Cristiandad, 2008.
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INOSTROZA LANAS, J. C. Moisés e Israel en el desierto: El Midrás Paulino de 1Cor 10,1-13. Salamanca: Publicaciones Universidad Pontificia, 2000.
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PASTOR-RAMOS, F. Para mí, vivir es Cristo: teología de San Pablo: persona, experiencia, pensamiento, anuncio. Estella: Verbo Divino, 2010.
SÁNCHEZ BOSCH, J. Maestro de los pueblos: una teología de Pablo, el apóstol. Estella: Verbo Divino, 2007.
TAMEZ, E. Gálatas. In: FARMER, W. et al. (eds.). Comentario Bíblico Internacional. Estella: Verbo Divino, 1999. p. 1508-1520.