Escritura, Tradição e Magistério

Sumário

Introdução

1 A polêmica das duas fontes

2 O salto à frente no Concílio Vaticano II

3 A relação entre a Tradição e a Escritura na Dei Verbum

4 O caráter histórico da Tradição e da Escritura

5 A relação entre Escritura, Tradição e Magistério

Conclusão

Referências

Introdução

O estudo da relação entre Escritura, Tradição e Magistério, por mais que tenha sido fartamente posto em evidência durante e após o Concílio Vaticano II (1962-1965), revela-se sempre atual. Pois se trata de clarear mentes e corações no que diz respeito aos meios como chegam a nós os bens da salvação.

Em resposta à polêmica protestante, que pôs em dúvida a fundamentação teológica da Tradição e do Magistério, insistindo no sola Scriptura como caminho de revelação divina e de salvação humana, a Igreja Católica se viu constringida a debater em maior profundidade a relação entre essas três realidades. No decorrer do Concílio de Trento (1545-1563), evitando a expressão partim… partim em favor do et, os Padres conciliares puseram as bases para melhor entendimento da relação entre Escritura e Tradição, deixando claro que a revelação não se encontra um pouco naquela e um pouco nessa, mas conjuntamente em ambas, e que é preciso salientar a interdependência entre elas, vendo-as não como duas fontes distintas da revelação, mas como dois caminhos pelos quais Deus revela o seu ser e o seu desígnio salvífico à humanidade.

O Concílio Vaticano II deu um salto à frente. Firmou com maior clareza a conexão entre ambas, demonstrando o caráter histórico-salvífico da revelação divina. Mais que promulgação de decretos e doutrinas, como se pensava a partir de Trento e do Vaticano I, a revelação constitui-se numa história de gestos e palavras pelos quais Deus age em meio ao povo. Nessa história, Deus revela-se salvando e salva revelando-se. Todo o complexo histórico de ações pelas quais Deus manifesta seu ser e seu agir, animando, corrigindo e educando o povo, forma um rio caudaloso por onde vai passando a Tradição. No interior dessa Tradição, quando alguns hagiógrafos põem por escrito elementos da vida do povo, nascem as Escrituras, as quais passam a ser fator unificador do pensamento e dos ideais populares.

A Igreja como um todo e o Magistério como seu guia entram nessa caudalosa corrente da revelação e são, ao mesmo tempo, receptores e transmissores do Evangelho, tornando-se, pois, beneficiários e servidores da Palavra de vida. Cabe ao Magistério o serviço responsável pela acolhida, guarda e interpretação oficial da revelação presente nas Escrituras e na Tradição da Igreja.

1 A polêmica das duas fontes

A Reforma Protestante questionou profundamente a Tradição (ARENAS, 1995, p. 170-172), assegurando que toda a verdade revelada está contida na Sagrada Escritura e que esta não precisa de nenhum intérprete autorizado, uma vez que, segundo Paulo, a justificação se dá pela graça do Evangelho mediante a fé. Cada fiel, no livre exame das Escrituras, assistido pelo Espírito Santo, tem acesso direto à relação com Cristo. E pode, só pela fé, só pela graça de Deus, baseado só na Escritura, encontrar a justificação que lhe é garantida só por Cristo. Para Lutero, o Evangelho é praticado pelo “espírito” (pela fé do fiel) em oposição à “letra” (às regras morais). Por isso, diz ele, não contavam penitências, romarias, indulgências, devoções, rituais sacramentais, práticas morais, como meios que garantissem a salvação. Contava a confiança no amor de Deus, tal como registrada nas Escrituras, na síntese de Paulo, que cita Habacuc: “Nele [no Evangelho] a justiça de Deus se revela da fé para a fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’” (Rm 1,17). Acentuava-se o momento individual da fé, a acolhida da justificação atribuída ao pecador por Deus, e o livre exame das Escrituras, com menos atenção ao aspecto objetivo. Basta confiar nessa justiça que vem pela fé e conduz à fé. Desse modo, rejeitava-se a Tradição, seja como fonte de revelação e de salvação, seja como critério de interpretação da Escritura. Lutero questionava também o Magistério eclesiástico, que se arrogava, segundo ele, a plena autoridade na interpretação e no ensino da Sagrada Escritura.

Em decorrência dessa problemática gerada por Lutero, o Concílio de Trento (1545-1563) achou por bem defender a posição que considerava a Escritura e a Tradição em conjunta interdependência, para o alcance da completa compreensão da revelação (ARENAS, 1995, p. 172-174). Mas, dado o desapreço de Lutero por aquilo que não cabia nas Escrituras, o Concílio e, sobretudo, a teologia e a prática eclesial posterior, ressaltaram de modo especial, ainda que de forma germinal, a Tradição e, com ela, o Magistério. Essa opção levou muitos a um certo exagero em considerar Escritura e Tradição como duas fontes da mesma revelação. Todavia, o bom senso e a sobriedade prevaleceram e os Padres Conciliares, ao invés de aprovarem o texto previsto com duplo partim (parte da revelação estaria na Escritura e parte na Tradição), aprovaram um texto com um simples et (livros escritos e tradições não escritas), deixando claro que o Evangelho é a única fonte da revelação. O Decreto De canonicis scripturis sobre os livros sagrados e as tradições a serem acolhidas, de 1546, assim se expressa:

[O Concílio] tendo sempre diante dos olhos sua intenção de que, extirpados os erros, se conserve na Igreja a pureza do Evangelho que, prometido primeiramente pelos profetas nas sagradas Escrituras, nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, promulgou por sua própria boca e então mandou a seus Apóstolos pregá-lo a toda criatura (Mc 16,15) como fonte de toda verdade salutar e de toda ordem moral, vendo claramente que essa verdade e essa ordem estão contidas em livros escritos e tradições não escritas que, recebidas pelos Apóstolos da boca do próprio Cristo ou transmitidas como que de mão em mão pelos Apóstolos, sob o ditado do Espírito Santo, chegaram até nós, seguindo o exemplo dos Padres ortodoxos, recebe e venera, com igual sentimento de piedade e igual reverência, todos os livros tanto do Novo como Antigo Testamento, já que o mesmo Deus é autor de ambos; e recebe e venera igualmente as tradições concernentes tanto à fé quanto aos costumes, como provenientes da boca de Cristo ou ditadas pelo Espírito Santo e conservadas na Igreja católica por sucessão contínua. (DH 1501)

O objetivo do documento é mostrar que o Evangelho é a “fonte de toda verdade salutar e de toda regra moral”. Contudo, essa única fonte nos é transmitida através de duas vias, dois canais: “livros escritos e tradições não escritas”. Estas tradições não escritas, que em conjunto formam a Tradição, os apóstolos as receberam do próprio Cristo ou lhes foram ditadas pelo Espírito Santo, e foram conservadas e transmitidas pela Igreja ao longo dos séculos até chegar a nós.

Trento conclui a questão, conferindo igual valor, reverência e respeito às duas vias de transmissão do único Evangelho, fonte de toda salvação e fundamento de todo modo de conduta do homem novo, em Cristo. A Escritura e a Tradição, constituída pelas tradições recebidas do próprio Cristo ou da inspiração do Paráclito, são vistas como dois canais de transmissão da Boa-Nova, a única fonte da revelação.

Esse posicionamento tridentino parece muito formal e de pura defesa da posição e atuação católica. Porém, no fundo dessa problemática, devemos identificar uma questão muito superior à mera defesa. Nas entrelinhas, Trento afirma que o Evangelho, em sua atestação primigênia, foi confiado a uma comunidade viva de fé. E a separação entre a expressão escrita e a expressão oral e viva do Evangelho seria uma aberração, visto que todo escrito deve ser interpretado no seio da comunidade onde é gerado e nasce. Romper essa unidade seria o mesmo que trair a verdade fundamental intrínseca ao próprio Evangelho.

Os posicionamentos posteriores a Trento não foram os mesmos registrados no decreto de 1546. Na mente da maioria dos Padres e, depois, na reflexão teológica e nos ensinamentos catequéticos, o conceito que vigorou foi o das duas fontes da verdade evangélica e não o das duas vias de sua transmissão. Isso ainda era comum no século XX e se tornou bem explícito no início das discussões do Concílio Vaticano II acerca do documento sobre a divina revelação.

2 O salto à frente no Concílio Vaticano II

O Concílio Vaticano II (1962-1965) ainda se ressente do drástico conflito das duas fontes. Mas, mais uma vez, também nesse concílio prevalece o bom senso e o equilíbrio. A Constituição Dogmática Dei Verbum, promulgada em 18 de novembro de 1965, é resultado de longa discussão, que durou praticamente todo o tempo do Concílio (LATOURELLE, 1985, p. 366-368; ARENAS, 1995, p. 174-177). O esquema De fontibus revelationis, preparado anteriormente pela Comissão Teológica, apresentado e discutido em novembro de 1962, foi rejeitado pela maioria conciliar. Numa votação exploratória em vista do prosseguimento dos debates, a maioria pediu que esse esquema fosse retirado. Como não se chegou à maioria de 2/3 para isso, o papa João XXIII ordenou a retirada do texto e a formação de uma comissão mista para sua reelaboração, na qual se incluíssem elementos que vinham sendo debatidos no Secretariado para a União dos Cristãos. Os debates realizados ao redor do tema da revelação produziram mudanças profundas e substanciais, que mostram uma mudança de rumo do próprio Concílio e não apenas desse documento. Um dos motivos de discussão foi precisamente o tema polêmico das duas fontes. Estava em jogo uma nova visão do fenômeno da tradição, que se tinha anunciado no século anterior: mais que de tradição material importava a ideia de um processo de tradição. Essa ideia de uma tradição como realidade viva, além de superar de vez a teoria das duas fontes, servia para colaborar com o diálogo ecumênico, um tema que atravessava toda a assembleia conciliar.

Depois de diversas redações, a Dei Verbum entra para a história como um dos documentos mais significativos do Vaticano II, por demonstrar a compreensão católica da revelação como um diálogo pedagógico entre Deus e a humanidade. O Concílio Vaticano II expressa na Dei Verbum o mesmo pensamento do Concílio de Trento; nisso os Padres Conciliares provam estar inseridos na Tradição da Igreja, visto que defendem a mesma linha de pensamento de toda a história da Igreja, como foi firmemente defendida há quatrocentos anos.

Quanto à polêmica questão das duas fontes, o texto final do Concílio Vaticano II, mesmo não tocando explicitamente no assunto, deixa claro que há uma só fonte da revelação: a Boa Nova da salvação em Cristo. Os Padres Conciliares aprovaram o texto final da Dei Verbum, em que não só não aparece referência às duas fontes, mas fica clara a consciência da Igreja de que temos uma só fonte da revelação: o desejo divino de vir a nós e a realização prática desse desejo com seu movimento interessado na busca do ser humano para com ele se entreter como com um amigo. Citando o Concílio Tridentino, a Dei Verbum reafirma que Cristo “comunicou aos apóstolos os dons divinos e os encarregou de pregar a todos o Evangelho prometido aos profetas, por ele cumprido e promulgado por sua própria boca, como a fonte de toda verdade salutar e a expressão da correta maneira de viver”. A Dei Verbum continua afirmando que os apóstolos proclamaram fielmente esse Evangelho “pela pregação, pelo exemplo e pelas instituições que criaram”, transmitindo o que aprenderam diretamente “com as palavras, o convívio e a atuação de Cristo e pela ação do Espírito Santo”. Por fim, afirma-se que a Tradição e a Escritura “são o espelho em que a Igreja peregrina contempla a Deus, de quem tudo recebeu, enquanto não chega a vê-lo face a face” (DV 7). A insistência da Dei Verbum em que Escritura e Tradição constituem uma única fonte da revelação aparece ainda numa outra formulação: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só sagrado depósito da Palavra de Deus confiado à Igreja” (DV 10).

Considerado em relação ao texto inicial, as modificações mais importantes são as dos dois primeiros capítulos. O novo texto não começa com um capítulo sobre a dupla fonte da revelação. A visão polêmica e antiecumênica do primeiro esquema foi profundamente modificada. Não se trata mais de sustentar a tese antiprotestante de que a revelação divina tem uma dupla fonte, no sentido de que ela está contida em parte na Escritura e em parte na Tradição, mas de expor o sentido de revelação numa perspectiva histórico-salvífica. O Concílio deixa claro que, antes de falar em Escritura e Tradição, é preciso falar de uma questão mais básica da qual depende teologicamente tanto o sentido de Escritura como o de Tradição.

A preocupação do Vaticano I (1870) havia sido a de afirmar a existência de uma revelação sobrenatural. O Vaticano II assume um tom diferente. Não está preocupado apenas com o fato da revelação e com o caráter sobrenatural da revelação, mas sobretudo com o sentido da revelação e com a perspectiva histórico-salvífica em que a revelação deve ser entendida. A Dei Verbum torna-se, assim, o primeiro documento do Magistério da Igreja que se ocupa com a natureza e o sentido da revelação.

As palavras iniciais do documento, Dei Verbum, indicam que o Concílio adota a respeito da revelação uma linguagem concreta; não intenciona falar da revelação como transmissão de verdades eternas de um Deus imutável a uma Igreja institucional, mas de um diálogo em que Deus com sua Palavra viva se dirige à Igreja viva. Não se nega que a revelação dada nessa Palavra comporta verdades sobre o Deus eterno e imutável, que são reveladas à Igreja institucional. Contudo, o texto conciliar se propõe a falar de realidades concretas numa linguagem muito mais próxima de nossa história. Ao tratar da revelação divina, o Concílio não se refere a uma palavra distante, alcançada só por meio de abstrações, mas a uma palavra encarnada em nossa história, que o próprio Concílio, como toda a Igreja, escuta e proclama.

A esse respeito é bastante característica a citação, logo no Proêmio, da Primeira Epístola de São João (1Jo 1,2-3). É de notar que essa fórmula introdutória do proêmio em que se coloca um acento dominante na Palavra de Deus como a Palavra encarnada diante da qual a Igreja está em atitude de escuta e de proclamação, entrou para o texto só em sua última reformulação. O proêmio é uma introdução magnífica não só à Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a divina revelação, apresentando o tema e a linguagem do seu desenvolvimento, mas justifica-se logicamente (se não cronologicamente) “como o primeiro dos grandes documentos do Vaticano II; realmente este prooemium é uma introdução ao conjunto da obra conciliar”. E mostra que o Vaticano II ao mesmo tempo “continua e amplia o trabalho iniciado pelos concílios Tridentino e Vaticano I” (LATOURELLE, 1985, p. 369. 370).

Essa orientação do texto conciliar para o caráter histórico da revelação é consequência, entre outros fatores, de sua índole profundamente bíblica. Nesse ponto, apesar da intenção explícita de levar adiante os ensinamentos dos concílios de Trento e do Vaticano I, o Vaticano II se distingue profundamente de ambos. Basta fazer uma ligeira comparação entre os diversos textos quanto à utilização que fazem da Bíblia. O Decreto De canonicis scripturis do Concílio de Trento cita apenas uma passagem bíblica (Mt 16,15) e a Constituição Dei Filius do Vaticano I cita pouco mais de vinte. A Dei Verbum está apinhada de citações bíblicas, que mostram a origem profunda das argumentações que vão sendo desfiadas.

A questão da revelação é colocada, sobretudo no primeiro capítulo, em íntima conexão com a história e com a salvação dos seres humanos. O Vaticano II, além de desenvolver e afinar os passos iniciados por Trento e Vaticano I, promove no campo da revelação um salto qualitativo e desvela, em forma germinal, a robusta densidade que irão marcar a reflexão teológica e a prática pastoral dos anos posteriores. A revelação como tal é apresentada como diálogo e amizade, convívio e intimidade, que Deus propõe ao ser humano, aguardando uma resposta proveniente de um coração livre. Para o acolhimento dessa revelação, em que Deus manifesta o seu ser e o seu agir, há todo um jogo preparatório que vai desde a criação, passa pela história de Israel, até atingir a inteira humanidade, que, em Cristo, a plenitude da revelação, encontra o caminho de sua plena realização na participação da natureza divina.

3 A relação entre a Tradição e a Escritura na Dei Verbum

 É interessante observar que no capítulo II da Dei Verbum, sobre a transmissão da divina revelação, o Concílio Vaticano II nos abre a pista para compreender a relação entre a Escritura e a Tradição (LATOURELLE, 1985, p. 387-395; SESBOUÉ; THÉOBALD, 2005, p. 419-423; MÜLLER 2015, p. 60-80). Trata-se de um círculo hermenêutico que se inicia com a Tradição. Antes de referir-se mais explicitamente à Escritura (n. 11-25), o documento detém-se a explicitar o lugar da Tradição na vida da Igreja (n. 7-8), para depois falar sobre a relação entre ambas (n. 9-10).

Por Tradição entende-se todo o contexto social, histórico e cultural em que “a revelação destinada a todos os povos” se mantém “na sua integridade através dos tempos” e é “transmitida a todas as gerações” (DV 7). Vê-se aqui um conceito que permeia toda a espiritualidade e a teologia do Concílio: a universalidade. Para todos os povos, em todos os tempos, toda a revelação é transmitida pelos apóstolos e, em seguida, pelos seus sucessores. A Dei Verbum expõe então, em grandes linhas, a integridade do conteúdo da Tradição, fazendo um amplo apanhado dos seus significados: a) o encargo dos apóstolos, que aprenderam “diretamente com as palavras, o convívio e a atuação de Cristo e pela ação do Espírito Santo”, transmitiram o Evangelho “pela pregação, pelo exemplo e pelas instituições que criaram” (DV 7); b) a missão dos autores sagrados, que “escreveram a mensagem da salvação” (DV 7); c) a caminhada histórica dos sucessores dos apóstolos, cuja missão é “conservar o Evangelho íntegro e vivo na Igreja” (DV 7) e que perdurará até o fim dos tempos (DV 8); d) o conjunto das tradições que os fiéis recebem “oralmente ou por escrito” e que devem guardar (DV 8); e) “tudo o que contribui para que o povo de Deus leve uma vida santa e cresça na fé” (DV 8); f) tudo o que “a Igreja, na sua doutrina, na sua vida e no seu culto, perpetua e transmite a todas as gerações”, tudo o que a Igreja é e tudo em que ela crê (DV 8); g) os ensinamentos dos Santos Padres (DV 8); h) a definição do cânon das Escrituras, para que sejam mais bem compreendidas e postas em prática (DV 8).

A Dei Verbum também mostra que, diferentemente das Escrituras, que são fixas seja em sua redação literária seja em sua definição canônica, a Tradição é viva (SESBOUÉ, 2006, p. 435-440). Ela desenvolve-se na Igreja com a assistência do Espírito Santo, com a ampliação da percepção das realidades e das palavras, pela contemplação, pelo estudo, pela compreensão espiritual, pela pregação, até chegar à plenitude da verdade divina (DV 8).

Desse modo, percebe-se que sem Tradição não há Escritura. A Tradição é o chão onde nascem os livros bíblicos, é a caminhada histórica e a experiência vital das pessoas e das comunidades, em sua relação ao mesmo tempo amorosa e conflituosa com Deus, que vão sendo postas por escrito em determinados livros; é o rio caudaloso da existência, com seus avanços e recuos, suas angústias e esperanças, que vai deixando por escrito em suas margens, nos mais diversos gêneros literários, registros dos acontecimentos e cargas de seus sentimentos e emoções; é “o caos dos acontecimentos históricos como palco, no qual Deus se revela como ele é” (BLANK, 2005, p. 8). A Escritura registra a Tradição, a qual, nesse sentido, é materialmente mais rica que aquela. Pois é impossível pôr por escrito tudo o que se vive. O Evangelho de João, por exemplo, termina dizendo que seria impossível registrar tudo o que Jesus foi, disse e fez (Jo 20,30; 21,25).

Após essa ampla exposição sobre a importância da Tradição, o Concílio reflete resumidamente sobre a relação entre ambas: “se articulam estreitamente e se comunicam entre si; ambas têm a mesma origem divina, formam de certo modo uma unidade e tendem para o mesmo fim”; “a ambas deve-se receber e venerar com o mesmo amor e o mesmo respeito” (DV 9); “constituem um único depósito sagrado da palavra de Deus” e põem pastores e fiéis sob a mesma inspiração divina (DV 10).

Na verdade, estes números da Dei Verbum parecem apenas uma ampliação do que Trento já havia dito. Aqui aparece claro o desejo de Deus de conservar íntegra a revelação feita para a salvação: Cristo, em quem se plenifica a revelação, ordenou aos apóstolos que o Evangelho, prometido aos profetas, completado e promulgado por ele mesmo, fosse pregado a todos os seres humanos de todos os tempos, como a fonte única de toda salvação e do comportamento ético do cristão, seu modus vivendi, cujo modelo é a vida do próprio Cristo. Ambas estão profundamente interpenetradas, têm a mesma origem, formam como que um todo e tendem à mesma finalidade ou têm o mesmo objetivo: a salvação da humanidade. Ambas são Palavra de Deus (Dei Verbum), a Escritura, na sua expressão escrita, inspirada pelo Espírito Santo, e a Tradição, na sua expressão oral recebida de Cristo e do Espírito. A verdade revelada recebida pela Igreja está presente nestas duas vias que devem receber dos fiéis igual respeito, veneração e adesão da fé pela inteligência e pela vontade.

Os  padres conciliares tinham consciência de que a transmissão da revelação na Tradição se dá em três momentos: a) a tradição divina, que é a entrega do Filho à humanidade por parte do Pai, a entrega que Cristo, o primeiro objeto e sujeito da revelação, faz de si mesmo e a entrega do Espírito Santo para a vida dos fiéis; b) a tradição divino-apostólica, que é a recepção e a transmissão da pessoa e da obra de Cristo pelos apóstolos, que contam sempre com a assistência especial do Espírito Santo; c) a tradição eclesiástica, que é a transmissão continuadora pelos séculos afora da Tradição apostólica, original e fundadora de toda a tradição eclesial (ARENAS, 1995, p. 177-180).

Assim, os padres do Vaticano II assumem toda a Tradição da Igreja e nela se inserem mantendo a mesma posição de sempre, com a diferença de que neste momento a Igreja não estava condenando ninguém, mas buscando um diálogo aberto e sincero com as outras confissões cristãs e com a cultura moderna.

4 O caráter histórico da Tradição e da Escritura

Outras tradições da escritura sagrada (como os Vedas e os Upanixades do hinduísmo, o Corão do islamismo, o Avesta do zoroastrismo) concentram o conteúdo em reflexões, ensinamentos, provérbios, meditações, orações, com pouco espaço para narrações. Todas as religiões, com seus ritos e mitos, carregam suas tradições, as quais, por sua vez, são o fundamento das culturas (ARENAS, 1995, p. 168). De modo diferente e único, a Bíblia judaico-cristã transmite a Palavra de Deus como interpretação teológica de uma história. A história profana de Israel, analisada à luz da fé, torna-se história da revelação e da salvação. O profeta exerce uma maiêutica histórica e vê os acontecimentos como ação de Deus que liberta e salva (TORRES QUEIRUGA, 2010, p. 447-449). Quanto mais aberto estiver o povo à revelação de Deus (ARENAS, 1995, p. 169-170), mais libertação é promovida pelo próprio povo em seu favor. E vice-versa, quanto mais a libertação sociopolítica-cultural acontece, mais o povo conhece o Deus que a ele se revela (FELLER, 1988, p. 52-72).

Na história da revelação, há um grande veio religioso e cultural que apresenta Deus ao lado dos pobres, das viúvas, dos órfãos e estrangeiros suscitando neles a crença em sua própria dignidade, o empenho por melhores condições de vida e a esperança por dias melhores. Há um fio de ouro que perpassa toda a Escritura, que mostra Deus (Javé, no Antigo Testamento, e Jesus, no Novo) em sua opção pelos pobres. Não há como ler as Escrituras judaico-cristãs sem considerar o lugar proeminente dos pobres e injustiçados, pelos quais o coração de Deus revela-se apaixonado. O que se lê nas Escrituras é apenas um vislumbre da caminhada histórica do povo, em suas agruras e sacrifícios, em seus sonhos e esperanças (FELLER, 1995).

Nessa história da salvação, surge um denso corpo de tradições orais, que posteriormente e com o tempo são postas por escrito (LENGSFELD, 1971, p. 219-248; LIBANIO, 1992, p. 412-418). No caso do Antigo Testamento, temos sagas, lendas, mitos, crônicas, poemas, orações, provérbios etc., que primeiramente foram transmitidos oralmente, por um tempo mais ou menos longo, até serem compilados por escrito e constituírem-se em escrituras sagradas. No caso do Novo Testamento, temos memórias sobre fatos e palavras de Jesus e, depois, fórmulas de fé e desdobramentos pastorais, que passaram posteriormente a serem codificados nos Evangelhos e nas Cartas dos apóstolos. Essas tradições confluem em Jesus Cristo, em quem temos a revelação plena de Deus e a libertação integral do ser humano (BLANK, 2005, p. 244-259). “Nem Maomé, nem Zoroastro, nem Buda se autoapresentaram como objeto de fé para seus discípulos” (SESBOUÉ, 2006, p. 425). O cristianismo vê em Cristo a plenitude de toda a revelação. De modo que a Tradição da Igreja deve, pela história afora, voltar sempre a Jesus de Nazaré, para descobrir nele quem é Deus e quem é o ser humano.

Vê-se, assim, que a Tradição é mãe da Escritura, uma vez que antes de os livros serem escritos, no seu caudal histórico, já vinham acontecendo a revelação de Deus e a libertação do povo como obra de Deus (no Antigo Testamento), e a plenitude da revelação em Cristo e a vontade salvífica universal de Deus. Era um rio caudaloso e rico de expressões revelatórias e salvíficas de Deus, que aconteciam nas experiências que se fazia da presença e da ação de Deus. Este caudal vivo formou e gerou a Escritura. Nesse sentido, a Tradição é anterior à Escritura, é a sua mãe.

A Tradição é irmã da Escritura, uma vez que continuou o seu caudaloso percurso de caminhada histórica e comunhão vital enquanto a Escritura estava sendo escrita (aproximadamente dos anos 1000 aC até 50 aC, no caso do Antigo Testamento, e do ano 30 dC até 100 dC, no caso do Novo Testamento). Um olhar para o passado, ao fazer memória das gestas libertadoras de Javé e de Jesus, um concentrar-se no presente, ao tomar consciência da presença viva de Deus no meio do povo, um lançar-se para o futuro, na certa esperança de que tudo se encaminha para a plenitude da revelação e da salvação. Assim, Tradição e Escritura foram se irmanando no decorrer do processo revelatório que se concluiu com Jesus Cristo e os últimos apóstolos. Nesse sentido, a Tradição é irmã e contemporânea da Escritura.

Mas a Tradição não parou no ano 100 dC, com o término da composição da Escritura. A Tradição é filha da Escritura, pois continuou também depois de a Escritura estar acabada, e continua até hoje. Depois de pronta, a Escritura passou a orientar o Povo de Deus, como parâmetro para aprofundar a Tradição, que continuou vivificando a história nas gerações sucessivas. Alimentada pela Escritura na criação de rituais litúrgicos, orientações pastorais, movimentos teológicos, códigos jurídicos, instituições sociais, institutos religiosos, devoções populares, caminhos de santidade etc., a Tradição continua o processo de interpretação e atualização da revelação divina e da salvação humana, “enquanto não chega a ver a Deus face a face” (DV 7). Desse modo, a Tradição é também filha da Escritura.

Resulta assim que não é só através da Escritura que a Igreja deriva sua certeza a respeito de tudo o que foi revelado. Também a Tradição, como o nome mesmo diz, transmite a revelação divina. Por isso, ambas devem ser aceitas e veneradas com igual sentimento de piedade e reverência (DV 9). Nesse sentido, há complementaridade qualitativa entre esses dois canais de transmissão, razão pela qual é normal que a Escritura não baste para gerar certeza. Por isso, essa insuficiência material da Escritura leva a admitir que a Tradição tem uma extensão maior que a Escritura.

5 A relação entre Escritura, Tradição e Magistério

Quanto à relação entre Tradição, Escritura e Magistério, deve-se ter o cuidado em não cair no erro protestante de acusar os católicos de terem subordinado a Escritura ao Magistério (LATOURELLE, 1985, p. 395-399; SESBOUÉ, 2006, p.440-443). A autoridade do Magistério é, paradoxalmente, de obediência. O Magistério não paira acima da Palavra, mas submete-se à Palavra e a serve, enquanto “por disposição divina e assistência do Espírito Santo ensina unicamente o que foi transmitido, que procura ouvir com piedade, guardar santamente e expor com fidelidade” (DV 10). O Concílio reitera a obediência do Magistério à Palavra de Deus, na sua forma escrita e transmitida. A autoridade do Magistério só pode ser exercida na escuta obediente à Palavra, com o objetivo de manter o povo fiel na mesma obediência. “A Igreja não é domina, mas ancilla da Palavra de Deus. Preciosa afirmação no diálogo ecumênico atual: é pela primeira vez que um texto conciliar assim se exprime” (LATOURELLE, 1981, p.397).

O único depósito da revelação, formado pela Tradição e pela Escritura, foi confiado a toda a Igreja, para o alimento da fé de todos os fiéis. Mas cabe ao Magistério a guarda responsável, a exposição fiel e a interpretação oficial – funções que competem somente ao Magistério, com o objetivo de favorecer que toda a Igreja viva do único Evangelho. Desse modo, unido aos seus pastores, todo o povo cristão poderá, também em nossos tempos, imitar a Igreja apostólica na sua adesão à revelação, perseverando “na doutrina dos apóstolos, na comunhão, na fração do pão e nas ininterruptas orações” (At 2,42), de modo que “na conservação da fé, na sua prática e no seu desenvolvimento, pastores e fiéis estão sempre sob a mesma inspiração” (DV 10).

O Magistério da Igreja exerce a autoridade em nome de Cristo, pois lhe foi confiada a função de interpretar com a autoridade a Palavra de Deus, escrita e transmitida. O Magistério da Igreja define-se modestamente como servo da Palavra de Deus, nada ensinando senão o que lhe foi transmitido. Assim, o Magistério expõe fielmente a Palavra de Deus, ouve piedosamente a voz viva do Evangelho que ressoa continuamente a seus ouvidos, pois o Magistério enquanto tal, também vive na fé, sendo o primeiro a prestar ouvidos à Palavra de Deus.

Nota-se que a Escritura, a Tradição e o Magistério são inseparáveis, estão interligados e associados e interdependentes, de modo que um não pode ter consistência sem os outros dois. Os três em conjunto expressam a ação de um só Espírito, cada qual a seu modo contribuindo para a salvação dos fiéis.

Por sua relação e conexão íntima com a Escritura e a Tradição, que são a norma normans de nossa fé, a norma objetiva do que os fiéis devem crer, e por sua missão perante esses canais de revelação, o Magistério é também norma de fé, norma próxima e segura, da qual a Escritura e a Tradição, por sua vez, são a norma. (ARENAS, 1995, p. 191)

Conclusão

 No amplo e interminável processo de evangelização, a Igreja precisa renovar-se sempre a partir de sua fonte, o mistério de Deus revelado em Cristo. Evangelizar é mais que garantir o espaço da Igreja nos meios seculares, marcar presença nos areópagos modernos, impulsionar devoções da religiosidade popular, arrebanhar católicos afastados, garantir resultados às carências imediatistas do povo, entre outras metas hoje amplamente propostas. Evangelizar é propor a todas as pessoas e todos os povos, em suas distintas situações, a revelação de Deus Pai que em Cristo e no Espírito vem ao encontro do ser humano manifestando seu ser e seu agir. Deus revela-se como amor e comunhão de três pessoas distintas que se amam tanto e tão bem que são um só Deus. Esta marca essencial de Deus reflete-se no seu agir, na sua proposta de libertação integral, de salvação temporal e eterna em favor de todos os seres humanos, a começar dos pobres, dos mais afastados desse dom divino.

Um fio de ouro perpassa a Tradição e a Escritura do povo judeu e dos cristãos, que mostra como, de Abraão a Jesus e até o último dos apóstolos, Deus se põe ao lado dos últimos. Para poder alcançar todos, ele começa na base. Se o seu Reino começasse pelos que estão no pico da pirâmide, sua proposta salvífica não chegaria a todos. A partir dos últimos, pelos quais Deus-Pai e Jesus de Nazaré manifestam predileção, a vontade universal salvífica abre-se a todos os povos.

A caminhada de Israel, a história de Jesus e a vida das primeiras comunidades cristãs foram marcadas pela presença e atuação de um Deus amoroso, Deus de ternura, piedade e misericórdia, Deus dos pobres, órfãos, viúvas e estrangeiros, que ao final das Escrituras é apresentado como Deus-Amor (1Jo 4,8). Assim, a interpretação atual das Escrituras, para ser fiel à revelação bíblica do ser e do agir de Deus, precisa ser feita pela Igreja, sob a condução do Magistério, sempre a partir da opção pelos pobres.

Vitor Galdino Feller. ITESC/FACASC. Texto original em português. Enviado: 10/06/2021. Aprovado: 31/06/2021. Publicado: 24/12/2021.

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