Sumário
Introdução
1 A história da relação entre fé na criação e ciências: questões epistemológicas
2 O testemunho bíblico da fé na criação
2.1 A Palavra com Espírito, origem da criação
2.2 A ordem ecológica e maternal da criação
2.3 A curvatura ética do humano, imagem e semelhança do Criador
2.4 O crescimento do humano, sua polivalência e a pedagogia divina
2.5 O Primogênito da Criação: o Novo Adão e o Novo Caim
3 A criação como paradigma universal: a doutrina cristã
3.1 Um Criador antes da criação: o Pai e Poeta da criação e suas duas mãos na creatio ex nihilo
3.2 O mistério do mal, o sofrimento, a providência divina e as dores de parto da criação
3.3 Estética, ética e espiritualidade da criação: a beleza, o cuidado, o louvor
Referências
Introdução
A Teologia da Criação (TC) ganhou novos insights e tornou-se mais complexa ao longo do século XX e começo do século XXI, e estas são as razões principais: 1. Uma nova compreensão que a ciência obteve a respeito de si mesma nesse tempo, de tal forma que se trata de uma nova revolução científica, da qual se reconfigurou uma nova cosmologia em toda a sua extensão, desde a astrofísica até a física subatômica e quântica, e sua contribuição crítica e inspiradora para a TC; 2. Uma nova hermenêutica bíblica e das narrativas religiosas em geral, possibilitando a distinção e o respeito às diferentes linguagens, especialmente a científica e a religiosa; 3. A urgência sinalizada pela crise ecológica de forma generalizada, obrigando a pensar uma ecoteologia como parte de uma nova alfabetização ecológica para uma nova espiritualidade e uma urgente ética ecológica e planetária correspondente. A TC deve dar suporte para uma “conversão ecológica” (Laudato Si’ n. 216-221).
Os autores que aprofundaram e publicaram textos em torno da TC nesse período têm em comum, como uma exigência metodológica, a criação de uma nova epistemologia compondo as três razões acima, de forma interdisciplinar, arriscando inclusive, para assuntos fundamentais, uma linguagem transdisciplinar. Pode-se afirmar que nem é mais possível elaborar uma TC sem um complexo exercício interdisciplinar na forma de diálogo com diferentes ciências da natureza e diferentes ciências humanas (POLKINGHORNE, 2000, p. 123-135). Tratando-se de teologia, a TC tem, em última instância, o desafio da recolocação da natureza no horizonte metafísico religioso sem se esquivar da palavra das ciências e de regras de hermenêutica. A TC não é rival ou concorrente das ciências, mas tem a vocação para a totalidade e, para além da totalidade como “criação”, a sua relação com a transcendência de uma alteridade criadora. Assim, por exemplo, “que o ser humano possa conceber a natureza como um ‘todo’ é já um fato metafísico e uma afirmação de sua transcendência” (LENOBLE, 1969, p. 384). O “Todo” é, no entanto, mais do que um universo físico ou um mundo pesquisado e jamais exaustivamente conhecido pelas ciências, mas uma “totalidade aberta”. “A concepção de mundo depende somente em pequena parte das ideias científicas. Ela reflete muito mais as necessidades morais e sociais, e mais ainda, desejos inconscientes (…) é neste nível que se opera a junção da ciência e da vida” (LENOBLE, 1969, p. 31). Assim, “a história da ciência (…) é uma lenta reforma da consciência por ela mesma, para ganhar enfim o direito de ver a natureza tal qual é” (LENOBLE, 1969, p. 32). Em sua plenitude, o nome da natureza, do mundo, do universo, é “criação”.
Uma TC pode, portanto, se organizar em três estágios: 1. A história da relação entre fé na criação, ciências e contextos: o contexto histórico permite compreender a história da doutrina sobre a criação em diálogo e eventualmente confronto com as ciências de cada tempo histórico, e a exigência de reformulação continuada da epistemologia para uma adequada TC (KÜNG, 2007, p. 13 et seq.); 2. O sentido criacional das narrativas canônicas da fé, a Escritura e seu percurso – da primeira página do Gênesis à última página do Apocalipse e vice-versa. A teologia cristã da criação tem seu ápice privilegiado, do qual se compreende a totalidade da criação, em Cristo (MALDAMÉ, 2005, p. 29-36). No atual estágio de pluralismo e de diálogo de religiões, também esse percurso bíblico e cristão deve se dar em diálogo com outras narrativas religiosas; 3. As consequências práticas são compreendidas à luz dos pontos precedentes: são consequências ecológicas, litúrgicas e éticas, incluindo o mistério do mal e o sofrimento na criação, a providência e a graça presentes na criação, a redenção e o cuidado da criação.
1 A história da relação entre fé na criação e ciências: questões epistemológicas
A historicidade de todo conhecimento, inclusive teológico, é parte da nova epistemologia no sentido mais amplo, assim como, mais especificamente, a historicidade da ideia de natureza e de criação. Na história da relação entre fé na criação e ciências, o Ocidente conheceu diferentes posturas, e que em certa medida permanecem, ainda que só residualmente ou então reinterpretadas com novo vigor desde uma nova epistemologia:
1. O conhecimento mítico e a relação mágica do ser humano com a natureza, percebida de forma anímica, habitada pela divindade ou mesmo confusa com a divindade: panta plere theon – tudo está cheio do divino, conforme referência crítica de Aristóteles ao pré-socrático Thales de Mileto em De Anima, 411a. Trata-se de uma cosmologia simbiótica, em que a natureza é vista como um grande seio, algo como um panteísmo ou “panenteísmo” maternal e nutritivo, percepção típica de coletores e caçadores. Pode ser chamada de relação “animista”, cuja experiência e verdade permanece na relação com a “mãe Terra”, a Pachamama ameríndia ou grega ou indiana, mesmo quando a terra seja considerada também uma criatura, nossa “irmã e mãe Terra” (São Francisco – Cântico das Criaturas).
2. A ruptura sedentária com a simbiose cósmica, na criação de um espaço próprio, possibilitou uma percepção de alteridade criadora. Produziu geralmente uma relação expiatória e sacrificial, uma dívida original, a ser saldada num círculo de dons: aos dons divinos através da natureza, a devolução de dons humanos através dos sacrifícios. Pode ser chamada de relação “pagã”, conforme a etimologia da palavra paganus – o que está conectado com o campo, com a natureza e suas manifestações divinizadas. Ganha múltiplas formas culturais e religiosas, desde simples oferendas até grandiosos e trágicos sacrifícios humanos. O círculo de dons da criação, com reconhecimento e retribuição, permanece de diferentes formas nas práticas religiosas, inclusive com mutações semânticas, sendo a eucaristia uma delas, pois a eucaristia cristã tem no seu ápice a presença viva de Cristo em seu memorial de pão e vinho.
3. Já na história do cristianismo, tal como na relação entre fé e razão, há tensão e situações de conflito entre a fé na criação e o caminho das ciências, com duas situações extremas: a redução do conhecimento científico ao conhecimento teológico, como em São Boaventura (De reductione artium ad theologiam), embora a conceito medieval de ciência esteja mais próximo de Aristóteles do que das ciências modernas; e, vice-versa, a redução do conhecimento teológico ao conhecimento científico, o que marca profundamente os séculos de modernidade, desde as pesquisas e experimentos de Leonardo da Vinci e Galileu até o começo do século XX. O conflito, na modernidade, conduziu também à mútua exclusão, mútuo desconhecimento e indiferença. A teologia interessou-se preferencialmente pela dimensão antropológica e histórica como sendo o mundo privilegiado de um drama humano que se desenrola sobre o palco de uma natureza estática como suporte e moldura, abandonando assim o estudo da natureza, do cosmos e da vida biológica, às ciências. Houve, tal como em filosofia, um “superaquecimento da História – com H maiúsculo, como um sujeito – em detrimento da Geografia emudecida e coisificada, com perda das conexões humanas com a terra e o cosmos. Em termos pastorais, a teologia, a moral e a espiritualidade se reduziram com frequência ainda mais à preocupação da redenção da alma. O resto – até mesmo o corpo – seria um acréscimo formal na ressurreição do Último Dia, mas sem significado próprio e consequente. A TC perdia aqui todo o seu peso, e toda a escatologia coube num simples ponto abstrato: “Salva tua alma!” (cf. MOLTMANN, 1993, p. 42 et seq.).
4. A aceitação e acomodação de um paralelismo de verdades: na Idade Média, as verdades paralelas – o que seria verdade na ciência não necessariamente seria verdade na palavra da revelação divina e vice-versa – eram um problema de lógica, mas também uma evasão diante da perseguição religiosa, no caso de Avicena e Averróis. O paralelismo não foi aceito pelos escolásticos cristãos. Uma relativa autonomia metodológica e mútua referencialidade foram as soluções encontradas, de tal forma que, em linguagem escolástica, em primeiro lugar há o Liber Naturae, e, quando este se tornou difícil de compreender teologicamente, o Criador ofereceu o Liber Scripturae para ler melhor o primeiro. A relação entre natureza e graça sobrenatural, entre razão e fé, como entre terra e céus, visível e invisível etc. são duais que seguem a mesma dinâmica de relativa autonomia, mas de mútua referencialidade. O essencial desta postura, antes ainda dos escolásticos, está posto desde os concílios da Igreja da Antiguidade no primeiro artigo do Credo. Diante das tensões do século XIX, com o sucesso crescente da teoria darwinista da evolução, é reafirmado pelo Concílio Vaticano I em seu documento Dei Filius. E no final do século XX, é novamente exposto pela encíclica Fides et Ratio, de João Paulo II.
5. O concordismo moderno, um modo especial de acomodação em favor da religião, busca nas pesquisas científicas as provas de que “a Bíblia tinha razão”. Este esforço paga o alto preço do fundamentalismo literário, sem levar em conta a exegese científica e a hermenêutica. Pretende, por exemplo, encontrar e identificar sobre o monte Ararat algum resto da mítica arca de Noé.
6. O positivismo, em contraposição, é o reducionismo científico que chegou ao paroxismo no final do século XIX e começo do século XX, de tal forma que a ciência ocupou o lugar da religião e se tornou religião. Reduziu toda capacidade de verdade às ciências, excluindo a arte, a literatura, e, claro, a teologia, de modo especial uma possível TC. Em reação, até nossos dias, a “cientologia” e, de alguma forma, o espiritismo, como diversas teosofias e novos gnosticismos, lutam por manter certa fusão e concordismo de fé e ciência.
7. Um caso emblemático plantado no século XIX, depois da afirmação da teoria da evolução, que retorna como um avatar das tensões na relação entre fé na criação e ciência, é o embate entre evolucionismo e criacionismo. Trata-se de uma confusão de linguagens e de modos de relação com o universo, especialmente os seres vivos. Enquanto objeto de observação e de pesquisa, o universo e a vida são adequadamente conhecidos e explicados através da evolução. A teoria da evolução, não só dos seres vivos, mas inclusive de um universo em expansão, é atualmente a melhor teoria científica. No entanto, enquanto objeto da profissão de fé, ou seja, de uma alteridade criadora, o mesmo universo é confessado como criação divina. São duas linguagens e duas formas de conhecimento e, inclusive, de experiência da realidade (MOLTMANN, 1993, p. 68 et seq.; p. 90 et seq.). A afirmação de um designer inteligente na origem do universo é da ordem da fé, que a ciência não pode nem afirmar e nem negar, não faz parte da aula de ciência, faz parte da aula de religião e sua hermenêutica. Para quem crê segundo o sentido da narrativa bíblica, desde o Gênesis até o Apocalipse, o evolucionismo – e não a teoria de um universo fixo e estático ou de cada elemento criado desde um começo cronológico segundo seu estado atual – é a teoria que mais se adequa à profissão de fé na dinâmica da criação através de uma história ainda em aberto. Não há necessariamente, portanto, conflito e exclusão, mas relativa autonomia e mútua referencialidade entre evolução e criação para quem crê: tanto a ciência como a fé são saberes diferentes e abertos, instigantes e, portanto, ainda compreensões em crescimento.
Convém notar que o criacionismo se configurou como reação ao positivismo das ciências no começo do século XX nos Estados Unidos, e foi um dos postulados da afirmação dos fundamentos da fé cristã segundo o catecismo de algumas denominações cristãs, o que ficou conhecido como fundamentalism. Com a entrada das ciências hermenêuticas, sobretudo a partir da historicidade, da fenomenologia e da psicanálise, o fundamentalism passou a significar a incapacidade de interpretação, o literalismo, o biblicismo, a religião sem mediação hermenêutica, o que leva a absurdos tanto na área do conhecimento como nas consequências práticas, morais e sociais. Assim, fundamentalismo acabou ganhando um sentido muito amplo e afetou profundamente não só a interpretação da criação, mas da própria condição humana, da sexualidade e dos estudos de gênero, do que se entende como milagres e graça, da oração, e até da sociedade e da política. A TC teria sido apenas um horizonte justificador desta visão se a emergência ecológica não tivesse vindo para o centro das atenções em nossos dias. Hoje o fundamentalismo é uma grave patologia da fé.
8. Uma dificuldade de fundo a ser bem compreendida para a elaboração de uma adequada epistemologia em TC é o que observa o medievalista Jacques Le Goff (1999) em relação aos dois mil anos de cristianismo. Segundo Le Goff, o primeiro milênio se caracterizou mais por um afastamento do que por uma integração da natureza à espiritualidade cristã, e por uma concentração antropológica afastada do resto da natureza. Agostinho representa bem tal postura. Por um lado, a natureza poderia sugerir uma relação “pagã” diante da sedução fascinante e tremenda dos elementos da natureza divinizados, permanecendo nos elementos do mundo o sagrado que é próprio de Deus. Para os judeus, herdeiros primários do profetismo, a distinção já estava bem estabelecida ao insistirem na transcendência divina da qual não se diz o nome e nem se faz nenhuma figura, e as narrativas da criação no Gênesis e nos livros de sabedoria amparam tanto a absoluta distinção como a relação entre a soberania divina e a sua criação. Mas cada vez mais os cristãos provinham do paganismo, e diante da tentação de resíduos pagãos com relação a elementos da natureza virtualmente divinizados, a melhor solução foi inspirada na hierarquia platônica das realidades, de tal forma que, comentando a Escritura, o ser humano é posto no topo da hierarquia das criaturas, numa relação de domínio à imagem da soberania divina. A esse antropocentrismo soberano, hierárquico, positivo e otimista, se junta o seu contrário para dar conta da realidade: o ser humano pecou, se perdeu e decaiu de tal forma que a redenção se torna o grande drama do ser humano sobre a terra, redundando assim num “antropocentrismo negativo” e pessimista, e para tanto se utilizou exaustivamente o terceiro capítulo do Gênesis. Com a doutrina do pecado original, além do capítulo quinto da carta aos romanos, este antropocentrismo negativo ganhou força absorvente, e a redenção do mundo acabou sendo reduzida à abstrata redenção da alma, ainda que formalmente se professasse a ressurreição dos corpos. Todo interesse se reduziu a “Deus e alma” – e nada mais (Deum et animam scire cupio, nihil aliud – Sto Agostinho).
Ainda segundo Le Goff, o começo do segundo milênio conheceu certo apaziguamento e equilíbrio com a natureza, o que permitiu São Francisco de Assis cantar com as demais criaturas “irmãs”, e Santo Tomás podia pensar mais tranquilo sua TC com categorias ontológicas (LE GOFF, 1999, p. 7). A categoria aristotélica de “causa”, distinguindo uma causa “primeira”, o Criador, e causas “segundas” no interior da criação participando do ato criador divino – participação como recebimento e colaboração –, permitiu Santo Tomás utilizar junto com o conceito de creatio, como um sinônimo, o de emanatio, tomado de Plotino pela teologia cristã, sem que emanação tivesse algum sabor de panteísmo (Summa Theologica I-I, q.XLIV-XLV). Mas a TC continuou impenitente na hierarquia e submissão das criaturas, inclusive com o detalhe de que as superiores estão mais próximas do Uno – Deus e Criador – que está acima da hierarquia. Ora, quanto mais se desce na hierarquia mais se degradam as criaturas na multiplicidade e se afastam da perfeição divina. Além disso, o acento na “causa eficiente” em detrimento da causa exemplar e, sobretudo, da causa final, empobreceu a TC.
Na religiosidade cristã medieval, porém, para além da teologia erudita, teve mais impacto a relação existencial de caráter fraternal de São Francisco com as demais criaturas, inclusive com o sol e a terra, que impregnou a espiritualidade de empatia criatural e deixou uma herança sempre possível de ser resgatada e experimentada até nossos dias.
No entanto, esse tempo medieval de certo apaziguamento e equilíbrio não durou muito, pois desde os porões da Idade Média, com forte emergência no otimismo renascentista e nos tempos da modernidade, já na forma de sequestro da hermenêutica bíblica, sobretudo sequestro reducionista de Gênesis 1,26.28 – o domínio do homem sobre as demais criaturas – firmou-se uma relação hierárquica de poder, submissão e manipulação por parte do ser humano sobre a natureza. Costuma-se citar a visão de Francis Bacon, um dos epistemólogos das ciências modernas, de que saber é poder. Tal modo de saber ou intenção no saber deixa para trás a teoria como contemplação para utilizá-la como fonte de técnica, de tecnologia, apropriação e produção. Por isso é necessário, no método da ciência, segundo Bacon, “torturar” a natureza para que ela entregue seus segredos. Há o sequestro da própria ciência, primogênita da modernidade, na aplicabilidade do conhecimento não simplesmente para melhorar as condições de vida, mas para se apropriar e capitalizar, colonizar e acumular. Desde o século XVI, seja de forma extrativista e mercantilista, genocida e escravagista, seja de forma industrial e financeira, estrutura-se e globaliza-se o sistema capitalista, que é mais do que um sistema econômico: é um modo de estar no mundo, de compreender o mundo, de se relacionar e se apropriar do mundo, inclusive abusando do mundo. Pode-se constatar que o capitalismo é a secularização da cartesiana “ideia de infinito”: Deus me abençoa na missão de produção e reprodução de capital, como uma capitalização sem limites! Uma TC realmente cristã, nessas circunstâncias, só é relevante se for profética, contracultural e eficaz para experimentar o mundo de outra forma, aquela que se inspira na tradição bíblica e nos melhores momentos da tradição cristã segundo uma hermenêutica mais justa para com os textos e seus contextos. Ela pode ganhar novo frescor teórico ao dialogar com tradições não ocidentais, indígenas e autóctones, que mantêm uma postura mais respeitosa para com a alteridade das criaturas e de um mundo que existe muito além de um conjunto de recursos, como uma comunidade de vida inclusive anterior ao ser humano.
9. Para uma epistemologia adequada em termos de TC será sempre necessário, como um a priori, que se mantenha a reserva de alteridade e de mistério da criação – mysterium creationis – mesmo estendida no espaço e no tempo de forma histórica. Esse mesmo mistério permanece na compreensão do mal e do sofrimento desproporcional – o mysterium iniquitatis. Mas permanece também, por um lado, na compreensão ou aceitação da infinitude e da potência do amor, e, por outro lado, na compreensão da finitude e contingência de toda a realidade criatural, inclusive humana. Por isso a própria TC confessa a priori sua limitação e necessidade de permanecer – assumindo rigorosamente a tautologia – na abertura de todo sistema aberto e de um saber incompleto. Enfim, será necessário, com a temporalidade e a evolução, com a historicidade e a abertura ao futuro, com os riscos de regressão e de caos, manter o caráter processual: uma TC deve considerar, sob o caráter relacional de criação e alteridade de um Criador, três dimensões abrangentes na articulação de tempos e espaços: o princípio ou origem, a história ou drama de criação e originalidade contínua, e a esperança de uma finalização boa. Ou seja, uma origem como singularidade intransponível, um processo complexo e aberto em todos os estágios do macro e dos microcosmos, e o vislumbre da finalização ou plenitude do processo para além de todo relógio ou calendário. É o que Moltmann organiza como criação originária, criação continuada e nova criação – utilizando a categoria de novum a partir da promessa bíblica de futuro absoluto, escatológico, a participação da criação no Reino da Glória divina. Ou, escolasticamente falando: a causa final e razão última, que é também causa eficaz, é o sentido e compreensão última de todo o processo e da sua origem (MOLTMANN,1993, p. 263 et seq.). Esta tese fundamental da TC encontra um paralelo na nascividade originária, continuada e escatológica da condição humana, tendo a ressurreição dos mortos, ou a transfiguração gloriosa de nossos corpos mortais na comunhão divina, a mesma predestinação boa que o universo tem nos Novos Céus e Nova Terra. Estas duas afirmações da fé cristã têm uma conexão intrínseca.
10. É produtiva também, em termos de TC, a utilização da categoria de Wolfhart Pannenberg, tomada do grego: prolepsis – antecipação – que ele aplica à antecipação, na ressurreição de Jesus, da ressurreição dos mortos e começo da plenitude escatológica. Isso permitiu a Moltmann colocar vigorosamente o futuro absoluto da criação – o Reino da Glória divina, trinitária – como o ponto inicial de compreensão de todo o processo criacional, desde o seu primeiro instante originado na decisão divina de “predestinação” de toda a criação à comunhão da glória divina.
11. A categoria teológica de passivo divino, tomada da teologia bíblica de Gerhard Von Rad, também se aplica eficazmente em TC. Em sua Teologia do Antigo Testamento, Von Rad localiza no relato do Êxodo o acontecimento unificador que interpreta não só a história da fé de Israel e a razão dos textos bíblicos mais diversos e dispersos, mas também o sentido dos relatos da criação do universo e do ser humano sobre a terra nos primeiros capítulos do Gênesis. E, no entanto, não está em foco uma autorrevelação direta do Criador ou do Libertador de Israel, pois Deus não necessita de revelação de si mesmo, e só se dá a conhecer indiretamente, nos acontecimentos que ele cria e pelos quais ele salva. Sua revelação é para nós, para a criação, e por isso acontece no interior dos acontecimentos criadores e salvíficos. Através do Êxodo e do acompanhamento de seu povo, sabemos que é um Deus compassivo, libertador e criador de futuro desde a criação. Por um lado, a estrutura do passivo divino é própria do radical não narcisismo de Deus e de sua kénosis e shekináh amorosa desde a criação e desde seu acompanhamento histórico, e por outro lado é a abertura à corresponsabilidade humana, à seriedade da liberdade, da decisão e da ação humana no mundo, na esperança de uma plena interlocução e comunhão da criação com o Criador nos Novos céus e Nova Terra, o Reino da Glória.
2 O testemunho bíblico da fé na criação
Na variedade de gêneros literários das Escrituras está explícita ou implicitamente presente a confissão de fé em um Deus Criador. Assim, encontramos os textos narrativos dos dois primeiros capítulos do Gênesis – ou dos onze primeiros capítulos, segundo uma visão do drama da humanidade sobre a terra mais integrada à criação. Nos textos de contemplação e louvor dos salmos há reconhecimento da alteridade do Criador, como também no texto enigmático e quase cético do Eclesiastes, na alusão da sabedoria aliada à criação no livro da Sabedoria, no texto dramático de Jó, com a afirmação da obra divina de criação como resposta à tragédia absurda da vida pessoal de Jó sofredor. Os textos proféticos recorrem ao Criador e à sua fidelidade para afirmar a esperança e as possibilidades de nova criação. Assim, a Escritura testemunha, de forma disseminada, variada e constante, uma postura de relação com uma alteridade criadora. Não é originalidade absoluta, pois tal postura se encontra em muitas tradições religiosas desde as mais arcaicas. Mas é original o modo como se dá sua interpretação na Escritura. As imagens, analogias, metáforas, verbos de ação criadora, são eventualmente tomadas da cultura semítica mais ampla e do entorno cultural, herdadas de culturas mais antigas da Mesopotâmia, do Egito, depois da Pérsia e do helenismo. Há, no entanto, um filtro da fé eloísta e javista, com uma releitura que utiliza coerentemente os diversos elementos tomados das culturas, e que dão originalidade à Bíblia assim como a conhecemos. A estrutura mítica das narrativas de criação na Escritura toma mitologemas existentes, figuras e categorias míticas – por exemplo, a árvore e a fruta proibida, a serpente etc. – como tijolos de uma antiga casa para a construção de uma nova casa com nova arquitetura, um novo texto, com novo sentido e consequências originais.
O Novo Testamento, por sua vez, elabora a partir de Cristo e do Espírito Santo uma nova interpretação, uma releitura, das Escrituras judaicas. É o método de recapitulação ou recirculação. O Novo Testamento nos apresenta assim uma TC especificamente cristã, centrada em Cristo e integrante essencial da identidade cristã.
2.1 A Palavra com Espírito, origem da criação
No princípio estão DABAR e RUAH. “Disse Deus, no princípio, quando criou céus e terra: faça-se…” (Gn 1,1.3). Esta origem da criação a partir da Palavra divina inaugura as Escrituras, e o primeiro versículo de toda a Bíblia atravessa-a inteira até seu último versículo, no final do Apocalipse, em que o Espírito e a Esposa clamam: “Vem, Senhor!” (Ap 22,20b), ou seja, torna a Bíblia inteira uma “obra aberta” testemunhando uma criação que ainda não chegou a seu termo. O primeiro versículo da Bíblia não pode ser separado do seguinte, condição eficaz da palavra: O Espírito divino – a Ruah – na imagem de um imenso pássaro movendo suas asas dá movimento e temperatura “às águas”, infusão de vida juntamente com a ordem da Palavra sobre a criação ainda em caos. A Palavra manda que se faça, separa e abençoa, infunde consistência e bondade própria em cada ser, e, conforme interpretação de Agostinho, cria o mundo e o tempo conjuntamente: “o mundo com o tempo e o tempo com o mundo”.
Estamos diante de uma narrativa de sentido, e a pergunta, portanto, não é científica, mas de sentido teológico: o que isso significa teologicamente e quais as suas consequências? Por um lado, o respeito à absoluta transcendência divina do Criador. E por outro lado, a afirmação da fé de que a criação acontece a partir de uma decisão criadora, pois a palavra provém de uma manifestação pessoal, de uma vontade livre e incondicionada, que se manifesta naquilo que decide criar, e que captamos nas próprias criaturas como bondade criacional, intencionalidade que provém de sua bondade, de sua eudokía (Ef 1,5). Por isso podemos conhecer algo do Criador em cada criatura, e conhecer bem a criatura nos leva a uma boa ideia do Criador, uma afirmação agostiniana avalizada por Tomás e mais tarde pelo Concílio Vaticano I, na constituição dogmática Dei Filius, contra o exagero dos que tendiam a separar de tal forma a transcendência divina que afirmavam não se conhecer nada de Deus a partir das criaturas ou da razão.
O Criador age com Espírito – Ruah Yaweh – tal como move a palavra dos profetas e as posturas libertadoras e ordenadoras suscitadas em Moisés, em Samuel e em todos os que falam e agem com a potência do Espírito. Portanto, o que o Criador profere também faz acontecer. E sua potência coincide com sua bondade, por isso o que cria é bom, ganha bondade como consistência e autonomia, bondade criatural. É o que se pode entender da bênção que se inscreve em cada criatura – tudo o que ele faz é bom. Não se trata, segundo a narrativa, simplesmente de um impulso inicial, de uma criação geral ainda indefinida para que a própria criação evolua autonomamente, mas se trata de uma criação discriminada, cada criatura ganhando seu estatuto de criatura pela palavra criadora, que será acompanhada de espírito. Assim, segundo a dimensão ecológica da criação, não há criatura inútil e sem sentido, sem bondade e graça própria, e nada, ainda que frágil e mortal, é desprezível, pois o Criador, como confessa o sábio, criou por amor e ama o que criou: “Tu amas tudo o que criaste […] se alguma coisa tivesses odiado, não a terias feito. E como poderia subsistir alguma coisa, se não a tivesses querido?” (Sb 11, 24-25a).
A TC bíblica tem no primeiro capítulo da Escritura uma Ouverture reunindo os principais eventos da história e, sobretudo, da Promessa de futuro feliz da criação. Pois, segundo o final da narrativa, Deus tem seu eterno gozo sabático na criação, como o amado repousa com gozo os olhos na sua amada. O sábado é o tempo sem uma ação criadora que dê substância ao tempo, assim como os tempos anteriores. O sábado é a criação de um tempo através da bênção ao tempo. O Criador abençoa e assim cria um tempo especial, indicador do sentido, da direção, da promessa de gozo de toda criação e de toda a história da criação: a feliz convivência no gozo sabático da criação reunida em comunhão com o Criador – comunidade de vida e não hierarquia de seres. Assim, ao trabalho e à expansão da criação, com perseverança e paciência, correspondem a promessa e a convergência na direção da reunião e do gozo da comunidade sabática. Em termos simples: a beatitude, a felicidade da comunhão sabática, de estar face a face com Deus, é a razão teológica, causa final da criação, segredo de sua bondade, pelo que valem a pena também os sofrimentos do percurso histórico.
2.2 A ordem ecológica e maternal da criação
É próprio de narrativas clássicas terem uma ordem lógica de sentido. Pode-se encontrar na primeira página da Escritura uma ordem de fecundidade ecológica: cada criatura, a partir do seio primordial da luz, se torna também seio, um espaço e condição de fecundidade para as criaturas seguintes. Espaços ecológicos de fecundidade, que têm no seio materno o primeiro espaço humano e que servem analogicamente de parâmetro. Assim, depois do seio inaugural da luz como condição básica de toda criatura, há as “grandes águas”, a hidrosfera que também analogicamente é experiência humana originária no líquido amniótico, hidrosfera oceânica de nutrição. Da hidrosfera passamos à atmosfera, ao seio da respiração. E com a separação da “terra seca” se criam novos seios, de plantas e animais terrestres que respiram, e se estabelecem assim os três espaços ou seios de seres vivos: na água, na terra e no ar. Sobre a terra, animais não humanos e humanos têm em comum a nutrição de plantas, sementes e frutos. Curiosamente, a alimentação com carne animal não tem, segundo o relato bíblico, uma origem criacional, é mais tarde uma licença em momento crítico da decadência humana, dada a Noé após a devastação da terra pelo dilúvio, e isso lhe custará a inimizade e o pavor animal (cf. Gn 9,2-5).
Os céus são parte essencial da criação em conjunto com a terra, segundo o primeiro versículo bíblico, que se repete no final do relato e abre o capítulo seguinte, mas como um elemento inicial sem informações de detalhes em nenhuma das menções. Os céus, no conjunto de textos espalhados pela Bíblia, são o espaço imenso da habitação do Criador com a sua criação, e só são conhecidos de forma tão indireta quanto o próprio Criador, somente a partir de seus enviados quando descerem à terra: luz, calor, nuvens e sombra, dia e noite, chuvas, e finalmente anjos, enviados como parceiros dos seres humanos e de seu trabalho sobre a terra. Pode-se interpretar tal discrição como “não narcisismo divino”, um “passivo divino”, só conhecido através das ações benfazejas, orientadoras ou ordenadoras sobre a terra. Como em uma aliança esponsal, a terra, que ao contrário dos céus é a realidade visível e limitada, recebe a potência e a providência divina através do “exército” celeste, desde as chuvas até anjos – estes só conhecidos nos eventos de parceria, desde Abraão, Jó, Tobias, até a abertura do NT, na visita a Maria e nos sonhos de José, depois com Jesus no Getsêmani, e Pedro na prisão.
Mas os céus não ficam, segundo a narrativa global das Escrituras, apenas como uma retaguarda e uma condição de possibilidade de fecundidade para a terra. É também para onde se dirige o olhar das criaturas, face a face mais amplo, entre céus-e-terra. É o sentido e a meta para onde a criação continuada, histórica, terrestre, se dirige e volta seu olhar: para a comunhão de novos céus e nova terra. Sem os céus, a terra dá somente voltas sobre si mesma e perde orientação e sentido, perde a promessa e a esperança. Pode-se assim interpretar cada criatura como seio maternal para as criaturas seguintes na criação originária, mas também como seio de comunhão sabática para onde se dirige escatologicamente o desejo de toda criatura na nova criação.
2.3 A curvatura ética do humano, imagem e semelhança do Criador
Ao ser humano, tanto no final da primeira narrativa como na segunda narrativa dos dois primeiros capítulos do Gênesis, está reservada uma criação diferenciada. Não é nem melhor e nem o topo de uma hierarquia, é a sua condição de corresponsabilidade pelo conjunto da criação na terra. E para tanto, um aliado do Criador e das criaturas celestes. Assim se pode compreender a “imagem e semelhança” do ser humano com Deus: uma vocação e uma responsabilidade, o cuidado dos outros seres vivos – começando por nomear os animais, trazê-los à convivência na linguagem – e a vocação ao cultivo da terra, do jardim-pomar, em parceria com as chuvas celestes. Criado pela Palavra na condição de ser que tem palavra, capaz de resposta, torna-se também interlocutor e capaz de aliança e corresponsabilidade.
A primeira aliança e ao mesmo tempo relação de alteridade criatural se dá entre o homem e a mulher, da mesma carne e essência, mas também, pela palavra e pela saudação, se dá no reconhecimento de alteridade e transcendência. No segundo relato, o ser humano, tomado da terra – Adão – habitado pelo sopro divino, a Ruáh, ganha como sua alteridade o outro ser humano, e cuja relação tornará o humano um “seio”: Eva, mãe. A raiz hebraica indica um “vazio”, um espaço de renúncia de si para que outro possa vir a ser. É o nascimento do ser ético, do humanismo, espaço em kénosis para se tornar seio e fonte de vida para outros. Pode-se assim concluir a criação com coerência: toda criatura se torna seio maternal para novas criaturas, desde o seio da luz, depois das águas, do ar. O ser humano, no entanto, é a curvatura ética da criação, pois é vocacionado a ser o seio de responsabilidade pela história da criação inteira na terra.
Enquanto todos os seres vivos são vocacionados à convivência sabática, o ser humano é convocado à responsabilidade pela condução a essa convivência. Na primeira narrativa, a distinção entre a relação com animais e a relação entre seres humanos é que os primeiros participam da convivência enquanto os segundos são seres de correspondência, corresponsáveis pela convivência. Já na segunda narrativa, a ajuda terrestre representada pela mãe dos filhos de Adão corresponde perfeitamente à ajuda celeste, representada não só pelas chuvas e depois pelos anjos, mas eminentemente pela Ruáh, reconhecida também na Shekináh, a nuvem que envolve misericordiosa o povo no deserto e no templo, enfim o Paráclito, o Espírito consolador e confortador que acompanha e incrementa a história da criação.
De certa forma, o ser humano é somente e inteiramente representado pela sua condição de “seio” de responsabilidade, e, por isso, pela Mãe, o que sugere a doutrina cristã quando interpreta a antecipação da glória humana na figura de uma mulher e mãe terrena assunta aos céus. Se todo ser humano, segundo Agostinho, é Adão até ser assumido pela glória do Novo Adão, também todo ser humano tem a vocação de ser seio, de ser Eva, até a glorificação de todos na Nova Eva. Assim, Adão e Eva são categorias bíblicas que ultrapassam completamente sexo e gênero, são dois modos da vocação e da essência humana, de cada ser humano.
Apesar dos sequestros hermenêuticos do verbo “dominar”, “submeter” ou “reinar” que descontextualizaram no passado o primeiro relato de criação do ser humano e o salmo 8, a exegese contemporânea traduz com segurança tais verbos por “governar”, segundo a raiz hebraica desses verbos e sobretudo o contexto do reinado em Israel cuja vocação era cuidar, defender e cumprir a vontade de Deus a respeito do povo de Israel por parte do rei. Da mesma forma, os seres humanos são colocados em uma aliança de corresponsabilidade e de governo em vista da convivência sabática de toda a criação, como indica a encíclica Laudato Si’ (cf. LS n. 65-69). Não há no texto hierarquia de valor, e nem mesmo preocupação de ordem ontológica, mas vocação e responsabilidade, criação ética. O ser humano inaugura, segundo esta hermenêutica bíblica, a dimensão ética da criação.
2.4 O crescimento do humano, sua polivalência e a pedagogia divina
O mandato de crescer e se multiplicar acompanha a criação inteira como sua exuberância e expansão. À multiplicação humana, no entanto, se pode acrescentar um dado contextual delicado, a difícil sobrevivência humana, sobretudo tribal, complicada inclusive por guerra e destruição, que torna o dever de se multiplicar uma questão de sobrevivência.
O terceiro capítulo do Gênesis, embora celebrizado pelo imaginário que ilustra a doutrina do pecado original, introduz na narrativa a iniciação humana através da prova, assim como Abraão, Moisés, Elias, e o próprio Jesus têm suas provas iniciáticas. A prova é fonte de discernimento, de autotranscendência, mas também de integração do limite criatural, da fadiga, da dor e trabalho de viver, enfim da mortalidade, mas sobretudo da consciência e da livre escolha e suas consequências. Assim, segundo o terceiro capítulo do Gênesis, a criatura humana, vinda do pó da terra, graças à Ruáh, à mediação da ajuda do outro humano – a mãe-eva – e ao mais sagaz dos animais, a serpente, chega à sua maturidade, devendo então assumir o risco de sua existência e de sua responsabilidade, a polivalência implícita em suas possibilidades.
A falta, o pecado, é uma possibilidade adâmica que se concretiza tragicamente no fratricídio cometido pelo primogênito, Caim, que tem a “força divina”, segundo a etimologia do nome que a mãe lhe deu, mas que ao invés de cuidar de seu irmão frágil – Abel, que, como Eva, tem a mesma raiz hebraica sugerindo o vazio, agora da inconsistência – Caim decide matar. Com Caim e sua herança, ao longo de sua descendência – da qual também todo ser humano provém – a desumanidade e a destruição ética atingem o governo, a construção de cidades cainescas – a primeira foi construída por Caim para sua descendência – que se caracterizam por muralha e torre militar, a crescente violência de humanos entre si e de humanos em relação aos outros seres vivos até atingir a terra inteira com a imagem do dilúvio. A cultura, o ambiente, tudo se contamina com a falta de ética humana.
O Criador não permanece indiferente, porém, ao crescimento da violência e à destruição em sua criação, mas assume para si essa violência, e assim também coloca novos limites e novas provas, abre continuamente um espaço, uma oportunidade e um caminho novo para a criatura humana, desde a promessa adâmica, a marca de proteção a Caim, o arco-íris e a permissão de comer animais a Noé, como, na Lei, a permissão do divórcio (BARBAGLIO, 1991, p. 27-56) Finalmente, a menção ao surgimento de diferentes povos e línguas que mantêm a ambivalência de riqueza cultural da criação, por um lado, e confusão, fragmentação e dispersão, condição de estranheza e hostilidade, por outro lado. O Criador, assumindo para si a violência da criatura, arrisca a “bifrontalidade” ou a ambiguidade de uma figura benévola e violenta, ainda que de forma assimétrica, sempre com um passo a mais de benevolência sobre a própria violência, e que só a pedagogia no tempo irá separar como o joio e o trigo e superar toda violência.
Em nossa cultura científica, estas narrativas não coincidem com a evolução da realidade, são narrativas míticas etiológicas, que dão sentido, ou seja, a direção para onde somos convocados a continuar a criação superando provas e limites. Além disso, elas indicam o modo de providência divina junto à sua criação. Por isso as narrativas míticas escatológicas são centrais para a TC. As Escrituras hebraicas oferecem essas narrativas etiológicas como um grande contexto de fundo para começar, no capítulo doze, com a promessa a Abraão, a história do povo de Israel. A categoria de promessa, que conduz a vocação abraâmica de Israel, central também no êxodo e no profetismo, deságua no anúncio e aproximação do Reino de Deus em Jesus, enfim no texto apocalíptico da promessa de Novos Céus e Nova Terra. A TC bíblica é uma hermenêutica dessas narrativas e suas categorias.
2.5 O Primogênito da Criação: o Novo Adão e o Novo Caim
O NT centra a TC na figura do Messias. De forma litúrgica, com os cânticos de Colossenses 1,15-20 e de Efésios 1,3-14, completado por Efésios 1,20-23; 2,14-18, a teologia das cartas paulinas recapitula a criação, a história e a sua plenitude em Cristo. As imagens e afirmações extremamente compactas têm a função de colocar tudo sob um ponto único, que a tudo une e dá consistência, sentido e comunhão, não como o “uno” abstrato e impessoal do pré-socrático Parmênides, mas como a criatura por excelência, que é o próprio filho de Deus feito carne – ele “é antes de tudo e tudo nele subsiste […] é o Princípio, o Primogênito […] a Plenitude” (Cl 1, 17-19). Assim, ele é também o reconciliador, o pacificador, a unidade do que está disperso. Paulo, que batalhou pela unidade de um só cristianismo de judeus e gentios, combateu a tendência grega ao gnosticismo insistindo na carne e na condição “escandalosamente” humana do Filho de Deus, cabeça de toda a criação, mas combateu ainda mais a tendência judaizante de redução da religião às práticas legais da tradição, que reduziriam a experiência de criação e salvação a um gueto de méritos sem a graça e a bondade que caracterizam a criação. Tanto por sua experiência como por seu aprendizado, Paulo tem a Páscoa de Jesus, a sua cruz e ressurreição, como chave de leitura não só para sua antropologia – na tipologia Adão-Novo Adão – mas também para sua eclesiologia e sua TC. Há uma ação trinitária no evento centralizador da Páscoa, a origem no Pai, a potência no Espírito, a forma e a realização na figura de Cristo (GIL ARBIOL, 2018, p. 67-78).
Os textos evangélicos, narrativos, tomam títulos e categorias messiânicas presentes nas Escrituras para afirmarem a mesma centralidade e plena realização da criação, como da história, desde o cotidiano de Jesus na Galileia até Jerusalém. A figura do Eleito, chamado a ser Luz das nações, do Dêutero-Isaias, ainda que pela obediência e pela paciência no sofrimento, reverbera na narração do batismo junto à água e na confirmação junto à montanha. O título de “Filho do Homem” como juiz das nações do livro de Daniel se realiza a partir do perdão dos pecados e da antecipação do Sábado nas ações de Jesus, “Senhor do Sábado”. O sonho de Isaías 11, a reconciliação do cordeiro e do leão, acontece em torno do Messias no deserto, começo de sua missão, segundo Marcos (Mc 1,13). E no momento mais trágico da cruz, o executor gentio confessa o Filho de Deus, o inocente Cordeiro sobre o qual converge toda a violência do mundo (Mc 15,39b). Sua ressurreição é vitória sem violência, sem vencidos, não na forma de poder de espetáculo, mas de novo anúncio, vitória do Novo Caim, capaz de cuidar e de participar sua força até aos seus matadores, redimindo até o velho Caim. Realiza assim, de forma plena, a condição de criatura e seio das demais criaturas, de Novo Adão e Nova Eva, além de Novo Caim. A criação está assegurada, reconciliada, unificada, plenificada.
O evangelista João, como Paulo, enfrentando a gnose ao sublinhar a carne e o sangue do Filho de Deus, também unifica a criação em Cristo de forma compacta no prólogo e depois ao longo das narrativas, com seu “trabalho” para introduzir o sábado real através da cura. Justifica o seu trabalho de cura em dia judaico de sábado para poder, justamente ao sanar a criatura, introduzir no real e não só no ritual o Sábado: “Meu Pai trabalha até agora e eu também trabalho” (Jo 5,17). Assim, a fé no Filho de Deus encontrado na carne humana é também a fé e a esperança na criação até sua plenitude antecipada nele. A iconografia cristã representou esta centralidade luminosa de Cristo na criação.
Na abertura do livro do Apocalipse, o Filho do Homem, “Primeiro e Último” é descrito de forma sempre solene (cf. Ap 1,12-20). No meio do texto está a criança com a mãe, protegidos contra o Dragão (cf. Ap 12). Terminando a Bíblia cristã, depois da alusão a um juízo de ordem universal e à visão da Cidade Nova, não mais cainesca, agora no centro de Novos Céus e Nova Terra, de portas abertas e muros brilhantes, praça no lugar de templo etc., há a proclamação que torna toda a narrativa bíblica uma obra aberta pela promessa e pela esperança: “Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22,20b).
3 A criação como paradigma universal: a doutrina cristã
Ao longo da história da teologia cristã, desde dentro do NT, os contextos provocaram a pensar o mundo ou toda a realidade, como criação divina e, sobretudo, a compreender teologicamente o que significa um modo realmente bíblico e cristão de ser criação e não outros modos que disputavam a adesão da fé.
3.1 Um Criador antes da criação: o Pai e Poeta da criação e suas duas mãos na creatio ex nihilo
A dificuldade já enfrentada pelo livro de Jó se põe aos apologetas do cristianismo de forma filosófica: como combinar um único Deus Criador e o mal presente em tudo? O dualismo e a theomaquia, batalha entre um princípio divino do bem e um princípio divino do mal, ainda que seja entre um deus bom e o diabo, pareceriam mais coerentes com a experiência da realidade. Ao dualismo moral corresponderia um dualismo ontológico: matéria versus espírito, céus versus terra, visível versus invisível etc. A resposta cristã, por um lado, começa a elaborar uma teologia trinitária, com o bispo Santo Irineu (130-202) em seu texto Contra as heresias, IV, 7,4: O Criador, que detém em suas mãos todo o poder divino sem concorrência, tem “duas mãos”: o Filho e o Espírito Santo, uma reinterpretação própria de Irineu à teologia judaica da criação por intervenção da palavra divina (Dabar) na Lei, e do Espírito de Javé (Ruáh) na Sabedoria. Toda carne, seguindo a lógica da encarnação do Filho, é assim criação divina tanto quanto o espírito, o visível como o invisível. Não há conflito de poderes. O único Deus é Pai, e cria a partir de sua paternidade. Por isso se proclama primeiro que ele é Pai, depois que tem todo poder e cria todas as coisas. O mal não é eterno e nem criador, por isso será abatido no devir do mundo, segundo a promessa de uma escatologia para toda a criação. Dessa primeira reflexão amadurece o primeiro artigo do Credo cristão: Um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador (poetés) de céus e terra, de todas as coisas, visíveis e invisíveis. Ao primeiro artigo sobre o Pai Criador seguem o segundo sobre a encarnação e a história do Filho desde antes da criação, na criação e em sua escatologia, e o terceiro artigo sobre o Espírito Santo na condução da criação à vida eterna.
A outra contribuição marcante da patrística, a partir do mesmo Santo Irineu de Lyon e de Teófilo de Antioquia (MAY, 1994), foi a afirmação da creatio ex nihilo. Esta afirmação, que se estende até a escolástica – creatio ex nihilo est productio rei ex nihilo sui et subjecti – se contrapõe à crença de que a criação provenha da substância do próprio Criador (sui) ou de alguma substância tipo protoplasma pré-existente e coeterna (subjecti). Afirmar que antes da origem havia o nada é intrigante, e faz levantar sempre de novo a pergunta: “Porque há o ser e não o nada?”, pois o nada pareceria mais lógico do que o ser. Mas, por outro lado, o nada é inacessível à experiência humana. Bate-se assim numa singularidade, intransponível para a ciência e seu método. Em TC a afirmação da creatio ex nihilo continua sendo importante diante de especulações que sempre retornam, ao estilo do panteísmo de Spinoza no começo da modernidade, mas deve ser combinada com a creatio de Verbo, que tem o sentido de uma livre e incondicionada decisão transcendente e de um estabelecimento de relação por parte do Criador. Uma criação segundo a palavra, conformada ao Filho, indica também uma liberdade e uma decisão não arbitrárias, mas orientadas a partir das relações trinitárias. E com a creatio de Spiritu, cuja espaço é o panenteísmo – tudo está em Deus, em seu seio divino, como a alteridade da criança no seio da mãe, e Deus está em tudo, como o envolvimento do seio e a nutrição que vitaliza o corpo da criança no seio da mãe. Essa compreensão panenteísta da criação ganha verdade na potência, nutrição e atualização da criação. É a teologia trinitária da criação. Em que o Filho é a face visível do Pai, e o Espírito Criador é Uterum Patris – uma analogia patrística para além da sexualidade – o seio divino originário no qual tudo se cria e cresce.
Em conclusão, se a TC repousa sobre a confissão da creatio ex nihilo, é porque com ela se confessa também a creatio ex plenitudo Christi, segundo a primogenitura do Verbo encarnado, “por quem todas as coisas foram criadas”, e sua primazia histórica e escatológica em toda a criação. E creatio de Spiritu Sancto, como se confessa a respeito da encarnação do Verbo no seio da Virgem Maria no Credo. O Espírito Santo é mais especificamente a fonte da vida (Dominum et vivificantem), e nisso consiste seu poder e sua soberania incondicionada, assim como sua alteridade em relação às criaturas, mesmo estando em tudo o que vive. Deus Trindade criadora é, assim, ao mesmo tempo, o Deus mais íntimo do que o íntimo de cada criatura e, no entanto, o Deus que transcende incondicionadamente toda a criação. Entre a narrativa bíblica, com a recapitulação do NT, e a doutrina cristã há, assim, um nexo intrínseco que, na era das ciências modernas, tem consequências hermenêuticas renovadas. Em última análise, porque há o ser e não o nada, se compreende na gratuidade e na exuberância do amor que decide convidar outros, as criaturas, à felicidade da contemplação ou, melhor, à relação face a face como conteúdo e promessa de bem-aventurança ad extra Dei.
3.2 O mistério do mal, o sofrimento, a providência divina e as dores de parto da criação
A TC inclui, como assuntos intrinsecamente conexos, o problema do mal e a providência divina. A narrativa mítica e a filosofia abstrata já enfrentavam essas questões. As Escrituras também, de forma narrativa ou em salmos e textos de sabedoria, são fontes tradicionais. Nos primeiros momentos do cristianismo foi necessário pensar frente ao antagonismo entre estoicos e epicuristas. A doutrina cristã, dialogando com seus contextos, buscou equilíbrio entre dois extremos, mas manteve duas tendências, bem representadas por Agostinho na passagem à Idade Média, e Leibniz na passagem à modernidade.
a) Segundo a visão agostiniana, o mal é pecado e/ou consequência do pecado. Deus, no comentário de Agostinho, criou um mundo necessariamente bom, abençoado. Ele é teologicamente otimista. Mas antropologicamente pessimista: o mal foi introduzido na criação pelo pecado humano. É uma possibilidade do livre arbítrio e sua desgraça, pois só o bem conserva a liberdade saudável. Para Agostinho, até mesmo as desgraças de ordem cósmica são alguma consequência ou punição pelo mal cometido. A pergunta Unde malum? – de onde provém o mal? – deve ser corrigida pela pergunta Unde malum faciamus? – donde provém que façamos o mal? A doutrina do pecado original é a explicação agostiniana que entrou na espinha dorsal da tradição cristã ocidental para todo o mal. No entanto, a liberdade ferida não é inteiramente cancelada em favor de uma fatalidade sem saída. Mas precisa ser redimida e há um esforço para vencer o mal, pois, segundo o mesmo Agostinho, “Aquele que te criou sem ti não te salvará sem ti”, e de alguma forma, explica o decreto sobre a justificação do Concílio de Trento, resta a colaboração para com a graça da redenção. Na criação permanece inscrita a “lei eterna” posta por Deus, e a redenção é o ajustamento a essa lei eterna por obra da graça. Há, no entanto, uma hierarquia no ser como também na bondade, de tal forma que, para alcançar o que é superior, é necessário desprender-se do que é inferior, e o múltiplo, que está em baixo numa hierarquia que se degrada, chega ao esvaziamento de ser e, por isso inteiramente mal, malum privativum. Em Agostinho, o mal moral engloba o mal ontológico. O rigorismo moral, ascético, estético, litúrgico e político, que reaparece repetidamente na história do cristianismo como um agostinianismo extremado e unilateral, tendo o movimento jansenista na modernidade como um exemplo que deixou rastros até recentemente, se apoia normalmente nesta visão do mal.
b) A visão de Leibniz, no começo da modernidade, em sua Teodiceia, é praticamente o inverso, embebida do novo humanismo. Segundo Leibniz, estamos em uma criação necessariamente finita, e da finitude da natureza surgem os diversos males – a morte, a ignorância, o sofrimento etc. A perfeição, segundo uma lição escolástica já estabelecida, cabe somente à infinitude metafísica, própria de Deus. O mal é, sobretudo, imperfeição, limitação. Mas estamos “no melhor dos mundos possíveis”, a melhor possibilidade criadora de Deus. O que agora não é perfeito e causa sofrimentos tem esperança no desenrolar do tempo, pois o futuro tem garantia de superação. É o começo da ideia de progresso que vence limites e males, o grande mito da modernidade.
Paul Ricoeur, em O mal: desafio à filosofia e à teologia, resume a linguagem sobre o mal mostrando primeiro que se deve distinguir entre o mal que se comete, e que é imputável a um sujeito, e o mal que se sofre, que se recebe sem ser sujeito do mal que acomete e se abate sobre a vítima. Mas, num segundo momento, diante do excesso de mal que acomete, que submete ao sofrimento, a distinção não se mantém, e tudo se confunde no obscuro mistério que jaz no fundo de todo mal, até o menor – pois pode sempre deslizar para o excesso que mergulha no mistério, pois a lógica do mal que se comete, que pode ser imputado a um sujeito culpado pelo mal e reparado pela punição e castigo (que causa sofrimento reparatório ao sujeito que cometeu o mal), e o mal que simplesmente se sofre se junta no sofrimento excessivo e inocente enquanto excesso, mesmo em quem comete o mal. Assim, quando o mal que se sofre se torna incompreensível por não se ter consciência de alguma causa que o justifique, a pergunta não é de caráter ontológico ou cósmico e filosófico – Unde malum? – mas é de caráter pessoal e existencial: O que cometi de mal para merecer este sofrimento, para ser assim tão castigado? Assim, o mal excessivo, sem medida, sem merecimento à vista, que foi o caso de Jó, conduz ao Mysterium iniquitatis. Pode ser experimentado individualmente ou coletivamente, em todas as formas de tragédia, e não é novidade contemporânea experimentar o mal excessivo também ecologicamente, como acontece em nossos dias. Estaria em jogo aqui a própria criação divina?
A reflexão sobre o mal na criação nos conduz assim a outro tema conexo da doutrina cristã que tem os mesmos precedentes, tanto em termos bíblicos como nas tradições religiosas e filosóficas: a providência divina. Trata-se de uma questão também lógica: um Criador deve ter um propósito e cuidar que sua criação chegue a termo. Em última análise o Catecismo da Igreja Católica resume assim: “A Divina Providência consiste nas disposições pelas quais Deus conduz com sabedoria e ama todas as criaturas até o seu fim último” (CEC § 321). Essa curta conceituação inclui na providência o bom governo, a conservação e o incremento da criação para que atinja seu fim. Coloca-se também, como o problema do mal, entre dois extremos: o mero acaso sem propósito que testemunha o caos, e a fatalidade, que é também uma forma de entender o destino e a necessidade.
A provocação mais próxima ao cristianismo em seus primórdios proveio do estoicismo e sua doutrina da providência divina – prónoia – que se pode constatar na ordem cósmica, modelo e disposição para a ordem moral, uma ordem divina inscrita de tal forma no universo que se torna um destino – fatum stoicum. Abraçar a ordem, ainda que trágica, é virtude e amor fati. Contra tal postura estoica, o epicurismo, no outro extremo, assentiu a uma boa ou má Fortuna completamente aleatória e casual.
Aqui também os grandes nomes da tradição cristã se posicionam. Suas reflexões negam um mero acaso e afirmam uma “destinação” divina que, no entanto, não dispensa a livre adesão. Mas, como o mistério do mal, também os desígnios divinos não são inteiramente compreensíveis no presente da história, somente a partir do seu final haverá compreensão completa. Ou, na metáfora agostiniana do Criador como um Deus modulator, a criação é a sua modulação e sinfonia, que tem acordes dissonantes, mas só no último acorde, final, a sinfonia inteira se aclara, inclusive as suas dissonâncias. Tomás recorre novamente à relação de causa primeira e causas segundas, e surpreende quando se trata da criatura humana, que tem como sua natureza e lei natural a racionalidade e a liberdade graças à participação na lei eterna: Deus criou o ser humano de tal forma que seja capaz, mediante a racionalidade e a liberdade, de ser providência para si e para outros (Suma Teológica, I-II, q. XCI, a. II).
A TC oferece recurso tanto para o enfrentamento do mistério do mal e do sofrimento como para a compreensão do mistério da providência divina, não propriamente um misterioso Designer Inteligente, que seria um excesso de privilégio da racionalidade teológica e um otimismo pouco realista, mas algo aparentemente mais simples e pessoal: as relações trinitárias nas quais se inserem a criação e a providência. A narrativa trinitária – a disposição do Pai que nos abre caminho de vida em seu Filho, com o convite ao seu seguimento de forma livre e responsável, como também a unção do Espírito com seus carismas para que tenhamos a capacidade de seguimento – é a forma cristã mais adequada de desenvolver a compreensão da divina providência em sua criação. Nas relações trinitárias, desde a Páscoa de Jesus, se vislumbra a Nova Criação sem mais lágrimas ou luto, e tecida de louvor sabático antecipado, portanto dominical, já inaugurada pela Páscoa do Filho, ainda em meio a um mundo frequentemente obscuro e doloroso.
3.3 Estética, ética e espiritualidade da criação: a beleza, o cuidado, o louvor
A TC tem inspiração e consequências. Não é suficiente, portanto, buscar o significado das narrativas, é necessário perguntar pelas práticas que o significado produz e que dão a pensar. Para tanto, podemos nos servir dos tradicionais conceitos “universais” da ontologia medieval com um olhar escatológico sobre a criação, universais concretizados e antecipados historicamente na singularidade irredutível de cada acontecimento: a beleza, a bondade e a verdade.
Há, de fato, uma estética que envolve e ajuda a compreender a TC. Como constatou o físico brasileiro Marcelo Gleiser (1997, p. 315 et seq.), a terra não é tão formosamente redonda como geralmente se representa, mas sua representação esférica perfeita é mais efeito de nossa projeção estética, pois antes mesmo da ciência, o cosmos significou e guiou nosso olhar estético sobre o mundo como algo belo, que é o significado mesmo de cosmos. A beleza, a boa forma, pode ser considerada como algo inscrito na criação em vista de sua vocação, a de tornar-se um espaço de beleza, de chegar irrenunciavelmente à boa forma. Desde o mito mais arcaico até a ciência moderna, no entanto, o abismo e o caos acompanham o cosmos. Em termos bíblicos, como na teoria científica do caos, há inclusive certa dialética: a estrutura, a ordem e a beleza cósmica são precedidas e acompanhadas por uma condição caótica da realidade na sua base ou no seu entorno, mas o caos, em primeira instância, pode ser criativo e não apenas ameaçador e destrutivo. Assim também na Páscoa de Cristo, o sofrimento inocente, a cruz e a representação de caos apocalíptico narrado sobriamente por Marcos e Mateus, são uma estética do horror, do feio, do trágico, mas não são a palavra final a respeito da criação, pois há a manhã radiosa da Páscoa a partir de onde se dá o universal risus paschalis evocado por Dante Alighieri ao entrar no Paraíso. Dante, contemplando a doçura inebriante da luz e dos louvores, se extasia: “Parecia-me um sorriso do universo” (Cântico XXVII).
Da mesma forma, a bondade da criação – o bem que é buscado em tudo o que se busca – está garantida desde o princípio pela bênção, pelo olhar da criação que vê toda criatura como boa. É, desde o princípio, uma visão profética sobre a maldade, especificamente sobre os maus que parecem ganhar a melhor parte no mundo, algo meditado pelo salmista e pelo sábio com muita fadiga: há uma ética irrenunciável inscrita na vocação de toda criatura à bondade. Em tempos de exacerbação da globalização econômica, política e social, e de consequente crise ecológica, é mesmo urgente uma TC que porte uma ética planetária, o desejo e o clamor do bem.
Da mesma forma, a verdade – que em termos bíblicos não é em primeiro lugar algo cognitivo, é antes ser sinônimo de reconhecimento ético e de justiça. Não pode ser reduzida às ciências, embora tenha nelas aliadas privilegiadas – coincide com a bondade do mundo. A verdade histórica que revela o ser humano em sua ambiguidade de Caim, decidindo alterar o amor e o cuidado pelo ódio e pela destruição, necessita do socorro de sinais de um mundo finalmente verdadeiro, ou seja, autêntico e justo, reconhecido e respeitado em todas as suas criaturas, enfim redimido para chegar à plena verdade. A TC pode ajudar a ciência da alfabetização ecológica (Fritjof Capra) e, consequentemente, pode facilitar uma verdadeira “conversão ecológica” (Laudato Si’ n.216-221), não mais aversio et abstentio mundi, segundo antigo conceito de mundanidade, que era sinônimo de vaidade e extravio pelo mundo, mas conversio ad mundum, amor à criação.
Todas as criaturas, segundo esta TC bíblica e cristã, estão destinadas à comunhão sabática com o Criador, onde beleza, bondade e verdade poderão resplandecer na criação em sua plenitude. No tempo da criação a presença compassiva da Shekináh – a presença divina junto à criação, simbolizada na história de Israel através da coluna de nuvem e de fogo (cf. Ex 13,21-22; 40,34-38; Nm 9,15-23), uma forma criadora de o Espírito conduzir a história da criação – convoca à aliança a criatura ex nihilo por excelência, criada assim à imagem e semelhança do Criador (LEVINAS, 1961, p. 29). Ao ser humano, a criatura que se experimenta ex nihilo, cabe a livre decisão de ser o anjo ou o satã da terra, pois sua liberdade pode ser criativa ou destrutiva, ela integra sua dignidade e seu estatuto, ser verdadeiramente homo sapiens ou usar a sabedoria para destruir, como as armas nucleares que revelam o quanto se é homo demens. O ser humano não está fatalmente conectado com nenhum cordão umbilical ao Criador, não o encontra atrás ou no fundo de sua essência. Provém “do nada”, mas não é atirado ao mero acaso, pois até o acaso pode ser possibilidade e espaço criativo de aliança e de organização da criação. O ser humano é, de certa forma, o Designer inteligente no mundo, mas, como mostrou Agostinho, não basta a razão: é necessário que fé e razão sejam conduzidas pelo amor e culminem no amor, pois o Criador, antes de ser Razão, é Amor, e esta é a razão de existência da criação: encontrar-se no amor. O cuidado amoroso e inteligente da criação é a forma angélica e missionária da imagem e semelhança do Criador sobre a terra. Esta é a mais central consequência antropológica da narrativa teológica da criação.
Frei Luis Carlos Susin, Ocap. PUC RS. Texto original português. Recebido: 20/03/2020. Aprovado: 15/09/2021. Publicado: 24/12/2021.
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