Lucas e Atos

Sumário

1 Lucas, escritor por ofício

2 O evangelho

2.1 Um escritor de tradição: Documento Q, Marcos

2.2 Divisão, unidade narrativa

2.3 Teologia básica

2.3.1 Intenção teológica

2.3.2 Da história de Jesus à história da Igreja

3 O livro dos Atos

3.1 Divisão e elementos fundamentais 

3.2 Mensagem básica

Conclusão teológica

Referências

1 Lucas, escritor por ofício

No final do século I dC, um cristão culto, talvez de origem pagã, que havia sido prosélito judeu e conhecia bem a Bíblia Grega (os LXX), escreveu a primeira história de Jesus e de seu movimento, seguindo modelos cristãos e helenísticos anteriores.

Muitos já tentaram compor uma diéguesis (relato) das coisas (pragmatôn) que aconteceram entre nós, seguindo o que as primeiras testemunhas oculares nos transmitiram, conver­tidos em servos da Palavra. De acordo com isso, eu também, depois de investigar tudo com diligência, desde as origens, decidi escrevê-lo em ordem, ilustre Teófilo, para que possa verificar a solidez dos ensinamentos que recebeu. (Lc 1,1-4)

Nós o chamamos de Lucas porque é assim que a tradição o chamou, mas ignoramos seu nome. Ele escreveu uma obra composta de duas partes (Evangelho e Atos), que estavam em princípio unidas, mas que a Igreja posteriormente separou, como se fossem dois livros. Alguns dizem que ele escreveu sua obra em Roma, porque lá culmina Atos, outros pensam que foi em Éfeso. Seja como for, ele escreve em um lugar onde se reconhecia e se aceitava dois escritos cristãos anteriores (Marcos e Q), porque ele os utiliza como base de seu escrito, e o compõe, sem dúvida, a serviço de sua Igreja.

Lucas também conhece relatos das coisas (pragmatôn) que aconteceram “entre nós”, começando por Jesus. Ele não os rejeita, mas pensa que podem ser concluídos e organizados melhor, para destacar a coerência (solidez) da tradição cristã. Ele não inventa o que escreve, mas matiza; ele não cria do nada, mas organ­iza e elabora o que os outros transmitiram, seja em voz alta, seja por escrito. As primeiras testemunhas da Igreja morreram, outros cristãos da geração posterior também estavam morrendo. Por essa razão, situando-se entre a segunda e a terceira geração cristã, ele sentiu a necessidade de oferecer uma visão geral dos atos que aconteceram entre nós, na época de Jesus e depois de sua morte (cf. introdução aos livros de Lucas e Atos: Lc 1,1-2; At 1,1-3).

Era escritor, conhecia a maneira de escrever de alguns autores helenísticos de seu tempo e sabia como pôr os discursos apropriados na boca das pessoas certas, na hora certa, graduando e interpretando o desenvolvimento e o significado dos atos. Mas era também um catequista cristão. Certamente, ele escreveu aos fiéis de sua igreja, a quem queria oferecer uma visão confiável da vida e da mensagem de Jesus; porém escreveu também para os de fora; é talvez o único escrito do NT endereçado a um público aberto, como indica o fato de ele “editar” suas obras, dedicando-as a “Teófilo” – que pode ser um personagem real ou simbólico, conforme o uso de seu tempo. 

Conforme apontado no começo de sua segunda obra, Lucas escreveu um logos (At 1, 1) ou tratado em dois volumes ou tomos. O primeiro, sobre as coisas que Jesus “fez e ensinou” (palavras-obras) até sua ascensão (Evangelho, Lc). O segundo sobre as “obras e palavras” de seus seguidores, que vão de Jerusalém até os confins da terra (Roma), levando a mensagem de Jesus (Atos, At). Ele não escreveu um “evangelho” estritamente dito, como Marcos, nem tampouco um livro da genealogia de Jesus como Mateus, mas um “tratado de história” dos acontecimentos e palavras de Jesus e de seus seguidores, em dois volumes, significativamente iguais em tamanho (Lc e At).

Como já foi dito, a igreja do século II separou as duas partes da obra e assim considerou a primeira (Lc) como uma unidade em si mesma, colocando-a ao lado dos outros evangelhos (Mc, Mt, Jo), de maneira que a segunda (At) passou a ser vista como um livro diferente. Esta decisão foi boa, embora tenha nos impelido a esquecer a profunda unidade e conexão entre as duas obras. De toda forma, a separação das duas partes (cada uma com a amplitude normal de um “rolo”) teve consequência positiva, pois nos permitiu separar o tempo do Jesus histórico (evan­gelho) do tempo do Cristo da fé, sentado à direita do Pai, dirigindo, por seu Espírito, a vida da Igreja.

A partir critérios internos, sua obra dupla tem três momentos fortes, que influenciaram poderosamente a liturgia cristã: (a) apoiando-se principalmente em seu “evangelho da infância” (Lc 1-2), a Igreja continua celebrando a festa do Natal; (b) da mesma forma, a Igreja torna visível e celebra a Páscoa cristã levando em conta os “quarenta dias” das aparições de Jesus, que culminam com a ascensão ao céu, que nenhum outro autor do Novo Testamento apresentou desta forma (cf. Lc 24 e At 1); (c) finalmente, apenas Lucas nos permite visibilizar e celebrar a festa cristã de Pentecostes, ou seja, a festa do Espírito Santo, enviado por Jesus para iniciar e promover a missão cristã em todo o mundo, ao longo dos tempos (cf. At 2).

Quando os cristãos de hoje celebram o Natal ou interpretam a ascen­são de Jesus como a culminância e o fechamento da Páscoa, estamos utilizando o esquema teológico, histórico e litúrgico de Lucas. Outros autores do Novo Testamento (como Paulo ou João) foram capazes de oferecer uma imagem mais profunda do mistério pascoal, no início da Igreja. Mas Lucas foi (com Mateus) o autor que mais influenciou a implantação do cristianismo posterior. 

2 O evangelho

 2.1 Um escritor de tradição: Documento Q, Marcos

Lucas é um helenista, homem da cultura grega, e era provavelmente um prosélito judeu (não nasceu judeu) antes de se tornar cristão. Ele conhece a Bíblia do Antigo Testamento (os LXX) e se informou, na medida do possível, dos principais momentos da vida de Jesus, estudando escritos anteriores (um possível documento Q, com as frases de Jesus, e o Evangelho de Marcos), consultando testemunhas e portadores da tradição cristã:

a. O documento Q (do alemão Quelle, Fonte) é um texto ou fonte oral dos Evangelhos de Mateus e Lucas, que continha uma coleção dos ditos e pensamentos de Jesus. Pode ter surgido na Galileia ou na Judeia, nos anos 40 ou 50 dC, oferecendo o testemunho mais significativo de um grupo de cristãos que teriam coletado, em forma apocalíptica-sapiencial, alguns dos ditados de Jesus, para expressar e expandir para eles sua experiência. Esse documento forma, com Marcos, o mais antigo testemunho extensivo da tradição dos evangelhos. Mas, ao contrário de Marcos, que continuou a ser empregado na igreja depois que grande parte de seu material havia sido coletado por Mateus e Lucas, o Q foi perdido, talvez porque já não havia mais interesse (seus materiais tinham sido preservados em Mt e Lc), talvez porque sua visão fosse limitada: ele só colecionava “palavras” de Jesus, ele deixou de lado o tema de sua morte e ressurreição.

b. Marcos. Depois de alguns anos, por volta de 70 dC, um autor chamado Marcos pensou que o documento Q, fechado em si mesmo, era deficiente (ele não capturou o enredo da vida de Jesus) e para remediar essas deficiências ele próprio escreveu um “evangelho”. O Q não tinha sido um “evangelho”, mas um resumo das palavras de Jesus, quase sem um fundo narrativo (sem história), para que pudessem se tornar independentes da vida-morte-ressureição de Jesus. Ao contrário disso, retomando as tradições da Galileia e de Jerusalém, Marcos escreveu um evangelho “narrativo”. Ele deixou de lado quase todas as “palavras” de Jesus, para apresentar ele mesmo como “Palavra”, portador pessoal da salvação de Deus, em uma linha próxima à de Paulo, ainda enfatizando mais a história de Jesus (não apenas sua morte). Marcos escreveu, assim, a mais poderosa das “narrativas cristãs”, apresentando Jesus como evangelho: a boa nova “pessoal” de Deus (o próprio Jesus como a boa nova).

c. A novidade de Lucas. Como Mateus, Lucas pensou que o projeto dos “ditados” (Q) era insuficiente, e que era necessário aceitar a “correção” de Marcos, pois a mensagem de Jesus era inseparável da jornada concreta de sua vida e morte e da experiência pascoal da Igreja. E nesse ponto, tanto Mateus quanto Lucas, de diferentes perspectivas e tradições, combinaram os textos de Q e Marcos, a fim de oferecer um evangelho em que se vinculam, na vida e na pessoa de Jesus, os ditos e atos de sua trajetória messiânica. Mateus faz isso a partir de uma tradição judaico-cristã, mais focada no cumprimento messiânico da Lei Judaica. Lucas faz isso do fundo da tradição cristã-helenística, para oferecer um evangelho mais apropriado aos gentios.

De acordo com isso, Lucas conhece e assume os textos de Q e Marcos, mas os interpreta de sua perspectiva eclesial, adicionando às duas “fontes” anteriores uma fonte diferente (que alguns chamaram de L, de Lucas), com um material muito significativo (evangelho da infância, parábolas de misericórdia, catequese da ressurreição etc.). Seria bom ser capaz de distinguir precisamente os três estratos do Evangelho de Lucas (narração de Marcos, ditados do Q, tradições próprias de sua Igreja, talvez em Éfeso, com as de Jerusalém…), mas o assunto é complexo, típico de especialistas (que não chegaram a um acordo sobre os detalhes), de forma que isso não será abordado aqui. Basta dizer que Lucas segue Marcos (que forma sua espinha dorsal), introduzindo em seu texto “alguns elementos” do Q, como em 6,12-7,35 e 9,57-17,4, ligando tudo, finalmente, com outras tradições eclesiais e com sua própria teologia, centrada no “caminho de Jesus para Jerusalém.” Alguns insistiram na necessidade de contato pessoal de Lucas com a Virgem Maria, mas não parece necessário apegar-se a isso.

2.2 Divisão, unidade narrativa

Lucas bebe de três “fontes” básicas, mas seu texto não é um simples mosaico, ele forma uma unidade literária (narrativa) e teológica, de modo que cada um de seus elementos tem que ser interpretado em conjunto, como destacaram os pesquisadores. Ele não escreve uma narrativa à qual, “depois”, algumas notas teológicas são adicionadas, a sua estrutura narrativa já tem um sentido teológico intenso. Com isso em mente, podemos dividir o evangelho em quatro partes, com um prólogo e um epílogo:

Prólogo (Lc 1,1-4). Lucas dedica o livro, escrito com os métodos histórico-literários de sua época, a todos aqueles que “amam Deus” (= Teófilo), como contribuição para o conhecimento do cristianismo, este entendido como um fenômeno religioso e cultural.

1. Introdução. Jesus, evangelho de Deus (Lc 1,5-4,13): (a) Anúncios do nascimento de João e Jesus (Lc 1,5-56); (b) Os dois nascimentos (Lc 1,57-2,52); (c) Primeira atividade de João e Jesus (Lc 3,1-4,13). Ao contrário de Marcos e em paralelo com Mateus (embora de uma forma diferente), Lucas começa com um “evangelho da infância” (parágrafos a e b), colocando Jesus no fundo da esperança de Israel, em paralelo com João Batista.

Lucas entrelaça o evangelho de Jesus na esperança e profecia de Israel, mas de maneira que a transborda e a ratifica. Na última seção (c), segue Marcos mais de perto. O centro desta seção é a “proclamação do evangelho”: “Eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: nasceu-vos hoje um salvador, que é o Cristo-Senhor” (Lc 2,10-11). Este “evangelho” ou boas novas resgata e substitui os “evangelhos imperiais”, em que foi anunciado o nascimento do novo imperador, como na Inscrição de Priene, do ano 9 aC, no qual o nascimento de Augusto é celebrado como o início de uma nova era de salvação.

2. Atividade na Galileia (Lc 4,14-9,50): (a) Manifestação e rejeição de Jesus (Lc 4,14-6,11); (b) Ensinamentos e milagres (Lc 6,12-8,56); (c) Revelação aos discípulos (Lc 9,1-50). Esses capítulos condensam a ação básica e a mensagem de Jesus na Galileia, na linha profética, aberta ao messianismo. Na primeira e última parte (a e c), segue mais Marcos. Na parte central (b), é mais próximo do Q. Em ambos os casos, o evangelista coleciona tradições das igrejas e da missão da Galileia. Todo o tema é apresentado e focado no “discurso de Nazaré” (Lc 4,16-30).

3. Subida a Jerusalém (Lc 9,51-19,27), com esses momentos: (a) Acompanhamento e confiança no Pai (Lc 9,51-13,21); (b) Alimentos cristãos (Lc 13,22-17,10); (c) Chegada do Reino (Lc 17,11-19,28). Esta seção começa com uma introdução solene, que enquadra e situa tudo o que se segue: “Quando se completaram os dias de sua assunção, ele tomou resolutamente o caminho de Jerusalém” (cf. 9,51).

Lucas introduz e reinterpreta aqui muito material do “Q”, não na forma de sabedoria separada da vida de Jesus, mas sim como expressão de um caminho que leva a Jerusalém (novo Êxodo). Isso significa que o material Q (que poderia se tornar doutrina gnóstica), vem a ser colocado e é compreendido no contexto de um caminho messiânico de entrega da vida. Este é o centro do evangelho: a ascensão a Jerusalém, como cumprimento das promessas de Israel, e como o início de um novo êxodo cristão.

4. Atividade em Jerusalém: Paixão e Ressurreição (Lc 19,28-24,49): (a) Entrada em Jerusalém e controvérsias com os chefes de Israel (Lc 19,28-21,4); (b) Discurso escatológico (Lc 21,5-38); (c) Julgamento e morte (Lc 22,1-23,56; (d) Ressurreição e aparições de Jesus (Lc 24,1-49). Lucas volta aqui para o esquema e temas de Marcos, com pequenas mudanças. Também essa seção começa com a “decisão” de completar a ascensão a Jerusalém (19,28, retomando o motivo anterior de 9,51), de modo que toda a mensagem e viagem anterior de Jesus na Galileia devem ser entendidas a partir de sua “oferta de salvação” em Jerusalém, em disputa com as autoridades da cidade.

Nesse contexto está o discurso escatológico da Lc 21, em que a “pressa” não é mais essencial. Quanto à paixão, Lucas tenta “desculpar” Pilatos, representante do governo romano, colocando a responsabilidade sobre os “hierarcas judeus” (nunca no povo de Israel, como tal). Finalmente, oferece uma verdadeira catequese de Páscoa, com o relato dos discípulos de Emaús e da grande aparição/missão a todos os discípulos, em Jerusalém (não na Galileia, como em Marcos 16,1-8 e Mt 28,16-20).

Epílogo. Ascensão (Lc 24,50-53). Serve para concluir o evangelho, fechando-o em si mesmo (no nascimento, vida e páscoa de Jesus). O Jesus de Mateus não saiu, mas está na Galileia com os seus, acompanhando-os na missão (“Estou com você…”: Mt 28,16-20). Em oposição, o Jesus de Lucas “vai embora”, deixa os seus em certo sentido, subindo para o céu em Jerusalém (como havia anunciado em 24,46-49). Esta “experiência de Páscoa e ascensão” de Jesus em Jerusalém (no Monte das Oliveiras, de acordo com a profecia de Zacarias 14) é a razão pela qual a história é retomada em Atos 1, onde começa o livro dos atos e missão de seus discípulos.

2.3 Teologia básica

2.3.1 Intenção teológica

Ela já está explicitada a partir do prólogo, onde Lucas disse: “Visto que muitos já empreenderam compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós (…) a mim também pareceu conveniente, após acurada verificação de tudo, desde o princípio, escrever-te de modo ordenado (…) para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste” cf. (Lc 1,1-4). Quais fatos? As coisas que Jesus fez e ensinou, até sua ascensão ao céu (At 1,1-2). Os outros (os primeiros passos da igreja) estão em Atos. Os eventos de Jesus foram realizados, de acordo com isso, à luz de todo o mundo (At 26,26). Eles não são objeto de uma mensagem intimista, típica de um livro de meditações, mas o tema de uma história que merece ser contada.

Como foi dito, Lucas parece o único escritor do NT que também escreve para os não crentes, oferecendo assim seu livro no mercado aberto de seu tempo. Ele não faz isso de forma arbitrária, ele não abandona a tradição, pelo contrário: ele conta com outros livros e testemunhas da igreja, especialmente Mc e Q. Ele seleciona suas fontes, mas o faz em um diálogo e assim, diferente de Marcos e, talvez, contra Mateus, ele foi capaz de aceitar tradições da Igreja de Jerusalém, ligadas à figura de Tiago, “irmão” do Senhor, no início do evangelho e de Atos (Lc 1-2; At 1-7).

Lucas pôde escrever desta forma porque compreendeu Jesus como o ponto de partida e centro de um profundo movimento religioso que já estava se tornando importante no mundo e que merecia ser contado. Ele pode escrever assim porque é um bom narrador, porque tem um bom argumento (Jesus) e sabe expô-lo não só em um plano querigmático (Marcos) ou catequético/eclesial (Mateus), mas em uma linha histórico-literária, transmitindo, ao mesmo tempo, a fé de sua Igreja (Roma, Éfeso…?), com um horizonte aberto à missão cristã, que começa a se espalhar pelo mundo conhecido. Ao longo dos anos, a inquietação daqueles cristãos que esperaram pelo fim do mundo e a vinda imediata de Jesus se transformou, deixou de ter um significado puramente cronológico. Certamente, Lucas sabe que “Jesus virá”, mas, enquanto isso, ele abre um longo tempo de vida crente para os cristãos. Desta forma, o interesse da mensagem de Jesus (o passado de sua história) se desloca para a igreja (Atos), deixando para trás a história de Jesus (evangelho).

2.3.2 Da história de Jesus à história da Igreja

Marcos e Mateus não podiam escrever uma “história da Igreja”, pois ela não formava uma parte separada da obra de Jesus. Esta história da Igreja não era um novo evangelho (Marcos), não adicionou nada além do que foi revelado em Cristo (Mateus). Certamente, Jesus também é para Lucas a origem, ponto de partida e centro de toda a salvação. Mas a história de Jesus como tal acabou (foi concluída na Ascensão), de modo que se abre um tempo de vida e missão para seus discípulos, quando também será necessário expor o surgimento da Igreja.

Nesse sentido (e em outros que se deveria especificar), Lucas está próximo do Jesus de João quando diz: “É de vosso interesse que eu parta; pois, se não for, o Paráclito não virá a vós. Mas se for, eu o enviarei” (Jo 16,7). É apropriado que Jesus tenha ido, porque só assim ele foi capaz de “abrir” um tempo de compromisso missionário e transformação para seus discípulos. Nesse sentido, Lucas pode continuar a dizer: “Em verdade, em verdade eu vos digo: quem crê em mim fará as obras que faço e fará até maiores do que elas, porque vou para o Pai” (Jo 14,12).

Devemos acrescentar que seu Evangelho (Lc), em um sentido autônomo, pode ser interpretado, em outro, como um “prólogo” do livro de Atos. Assim, dizemos que Jesus se foi (ascensão: Lc 24,50-53; At 1,1-11) para continuar promovendo a história da salvação. De acordo com isso, os cristãos não deixam de seguir Jesus para irem à igreja, mas o próprio Jesus os leva, por seu Espírito, à vida e missão da Igreja. O passado da história de Jesus, que termina na ascensão, torna-se um princípio de salvação para a Igreja, através do Espírito Santo. Jesus foi recebido na Glória de Deus Pai e dali, de sua altura divina, guia a história através do Espírito Santo. 

3 O Livro dos Atos

Como já dissemos, em princípio, o evangelho e os Atos formaram um único livro, mas os “editores” do cânone dividiram-no, tornando os Atos o início da vida da Igreja, como uma introdução às cartas de Paulo e ao restante das cartas “católicas” ou universais do NT. Pois bem, Lucas foi capaz de escrever essa história inicial da Igreja porque a considerava uma “realidade autônoma”, ao lado (e depois) dos evangelhos. Ele não o escreveu para simplesmente contar o que aconteceu (como cronista), mas para marcar o início e a direção do caminho cristão, e fará isso desenhando uma linha que será “canônica” ou normativa para a igreja posterior. Nesse sentido, ele deixa de lado uma série de tendências cristãs ou trajetórias que conhecemos, de alguma forma, a partir de outras fontes (contribuição das mulheres, vida e missão das comunidades galileias, o judeu-cristianismo de Tiago, os princípios da gnosis etc.). Seja como for, sua visão da implantação da Igreja tem sido essencial para a história posterior do cristianismo. Em um sentido geral, dois elementos podem ser especificados em sua primeira visão da Igreja:

Polo judeu, polo romano (Atos 1-15). O livro de Atos traça um caminho que leva de Jerusalém (primeiro polo: Pedro e os Doze, com Tiago), passando por Antioquia (helenistas), por Paulo a Roma (segundo polo), onde Paulo é mantido em cativeiro, abrindo de lá a Palavra de Jesus para todo o mundo. O polo judeu forma a raiz, que deve ser mantida: marca a origem e o destino israelita de Jesus (todo Lc) e o princípio da igreja (Atos 1-15); o polo helenístico ou romano oferece o cenário final e definitivo da igreja, que chegou a Roma, onde Paulo, na prisão, proclama abertamente o Evangelho (Atos 16-28).

‒ De Jerusalém a Roma (Atos 16-28). De acordo com essa visão dos dois polos, Lucas não escreveu a história de todas as igrejas (da Galileia, Síria, Egito…), mas o caminho que leva de Jerusalém a Roma. Esta foi uma opção transcendental para grande parte da história posterior do cristianismo, que continua ligada ao judaísmo (Jerusalém), mas integrada ao Império Romano. A Igreja tem outras características, mas na visão de Lucas, no fundo delas se expressa um único caminho, uma trajetória que vai de Jerusalém (judaísmo) a Roma (universalidade), através da obra do Espírito de Deus (de Cristo) que guia tudo.

3.1 Divisão e elementos fundamentais

O livro começa com um prólogo (Atos 1,1-11), que se junta ao evangelho anterior de Lucas e traça todo o projeto, no qual três partes se distinguem, talvez melhor do que as duas acima indicadas:     

1. Pedro. Igreja de Jerusalém: Atos 1,12-5,42 (anos 30/33 d.C.). Embora no início houvesse vários movimentos ligados a Jesus (galileus, mulheres, talvez grupos helenistas já latentes na própria Jerusalém), Atos assume que a igreja nasceu unida em Jerusalém, em torno de Pedro e dos Doze. Estes são os momentos destacados pelo texto: 1. Primeira comunidade (1,12-2,47); 2. Pedro e João (3,1-5,11); 3. Missão dos Doze (5,12-42).

Pedro é a figura histórica essencial neste início da igreja, e ele também começará e confirmará a abertura aos gentios (Atos 10; 15), embora mais tarde a missão universal seja assumida e realizada por Paulo. Compartilhando uma tendência que aparece em Ap 21,14, e talvez em Ef  2,20, Lucas identifica os apóstolos com os Doze, tomando-os como o princípio da missão da Igreja (mesmo que eles logo tenham desaparecido como um grupo).

2. Helenistas. De Jerusalém a Antioquia: Atos 6,1-14,28 (anos 33-48 d.C.). A primeira dissensão surge entre hebreus e helenistas em Jerusalém (alguns de língua semita, outros da língua grega) emerge. Este último abre a Igreja para os gentios de acordo com o seguinte movimento: 1. Helenistas e Estêvão (6,1-8, 3); 2. Missão de Samaria (8,4-40); 3. Conversão de Paulo (9,1-31); 4. Missão de Pedro (9,32-11,18); 5. Antioquia: “independência” dos cristãos (11,19-12,25); 6. Primeira missão de Paulo e Barnabé, por Chipre e Ásia Menor (13,1-14,28; anos 36-48 d.C.).

O desenvolvimento da Igreja aparece, assim, como uma experiência carismática, que já havia sido anunciada em Atos 2 (Pentecostes), traçando uma linha de abertura de Jerusalém para todos os povos. Esta implantação é realizada por meio dos helenistas (Atos 6-8) e culmina em Paulo (a partir de Atos 9), dando origem ao chamado Concílio de Jerusalém, onde a existência de “duas igrejas” em comunhão é admitida e ratificada: os judeu-cristãos de origem rabínica de Tiago, em Jerusalém, e os judeu-cristãos de origem pagã abertos, de uma forma ou de outra, aos gentios, a quem aceitam em suas comunidades (At 15).

3. Paulo. De Antioquia a Roma: Atos 15,1-28,29. Esta parte começa com a disputa entre os judeu-cristãos de Jerusalém e os pagãos-cristãos de Antioquia, e para resolvê-la é celebrado o “concílio”, no qual Tiago (Jerusalém) e Pedro (igreja original) aceitam a missão de Paulo entre os pagãos, sem a necessidade de “cumprirem” a lei judaica (Atos 15,1-15,35, 48/49 d.C.). A partir de agora, o protagonista da missão cristã será Paulo, que levará a Igreja a Roma, tornando-a universal.

Lucas simplifica dados, silencia comunidades alternativas e omite (até atenua) muitos elementos, mas sua visão tem um profundo sentido teológico, com esses principais momentos: 1. Duas missões de Paulo para a Ásia Menor e Grécia, fundando as igrejas do Leste do Império: (15,36-18,22 e 18, 23-21,14; anos 49-57 dC); 2. Subida para Jerusalém, para entregar a coleção dos gentios à Igreja mãe e, assim, ratificar sua comunhão messiânica com ela (21,15-23,30), com prisão e posterior encarceramento em Cesareia (23,31-26,32; anos 58-60 dC); 3. Prisioneiro de Roma, a ser julgado (27,1-28,28; ano 60 dC); 4. Epílogo (28.30-31; anos 60-62 dC). À espera do julgamento, na prisão domiciliar, Paulo proclama abertamente o Evangelho em Roma. A Igreja de Jesus chegou ao centro do Império.

Mc 16,1-8 e Mt 28,16-20 pressupõem que a missão cristã universal começou na Galileia. Lucas suprime essa alusão e afirma que a igreja começou e foi confirmada em Jerusalém (cf. Atos 1-7; 15), de onde se espalhou por todo o mundo. Ali Jesus subiu para completar seu trabalho, sendo crucificado (cf. Lc 9,51-24,52), e a Igreja emergiu como um grupo messiânico, em torno dos Doze, à espera da vinda do Messias crucificado (Atos 1-2).

Marcos e Mateus pensavam que a Igreja começara da Galileia (Mc 16, 7-8; Mt 28,16-20). Atos, por outro lado, assume que o caminho central da Igreja, iniciado e retomado em Jerusalém (concílio, cap. 15) se abre a partir de Jerusalém, pelos helenistas e pela Igreja de Antioquia, mas de tal forma que o próprio Paulo retorna a Jerusalém, para retomar dali (preso como Jesus, mas não executado) o caminho final para Roma, onde desemboca o caminho da Igreja, aberto de Roma a todas as nações (At 16-28).

3.2 Mensagem básica

Nenhum dos evangelistas sentiu a necessidade de “completar” o Evangelho com uma obra autônoma no desenvolvimento da igreja, pois o caminho e a tarefa da Igreja estavam contidos em Jesus. Lucas, por outro lado, fez isso, e nesse ponto alguns pesquisadores modernos o tomaram como o primeiro representante do “catolicismo primitivo”, o primeiro a transformar o evangelho em uma religião organizada e o cristianismo em estrutura eclesial. Mas isso não é totalmente verdade. O que Lucas quer descrever em Atos é a marcha e o caminho da igreja, como portadora de um evangelho universal, que chega a Roma e de Roma deve se abrir, como uma religião unitária ao mundo todo.

Nesse sentido, contra uma espécie de fragmentação ou divisão das igrejas, cada uma por conta própria (judeu-cristãos e helenistas, seguidores do discípulo amado, grupos gnósticos e missionários itinerantes de vários tipos), Lucas descreve uma história unitária, de tipo ideal em que todos os movimentos cristãos são englobados e unificados, em uma marcha que vai do primeiro polo (em Jerusalém, em torno de Pedro e os Doze) até o segundo polo (com Paulo em Roma). Este é um caminho histórico, mas ao mesmo tempo é um caminho “postulado”, é a expressão de um desejo de unidade de todas as igrejas, em torno de Pedro e Paulo.

Jerusalém e os Doze (At 1-5). A comunidade de Jerusalém aparece em Atos como um ideal escatológico. Nela são dados os sinais da mudança dos tempos, da transformação da humanidade (milagres). Os cristãos repartem e consomem os bens (como se o mundo fosse acabar muito em breve), mas ao mesmo tempo eles começam a acolher pessoas de outras nações e grupos (embora, na verdade, logo passem a se concentrar apenas nos judeus). Certamente, nesta igreja já aparecem crentes que querem “enganar” o Espírito (como Ananias e Zafira, Atos 5,1-11), mas eles não aparecem por si mesmos, mas como um aviso aos verdadeiros crentes.

Helenistas e a missão aos pagãos (At 6-12).  Apesar da tentação de se fechar em si mesma, a primeira comunidade é forçada a expandir-se, com base no testemunho dos chamados helenistas. Há tensões internas entre eles e os hebreus, mas são superadas, principalmente por causa da perseguição que obriga os helenistas a deixarem Jerusalém. E, sobretudo, o Espírito que se manifesta fora da comunidade constituída está presente e em ação: o episódio do centurião Cornélio é, neste momento, decisivo. Sem dúvida, também outros grupos surgem (em torno de mulheres, seguidores do discípulo amado e outros), mas Lucas os silencia, pois só vai querer se concentrar, na vida e obra de Paulo, que se converte a Cristo, e de Pedro, que tem que deixar Jerusalém , para cumprir sua tarefa em outros lugares, em um gesto de abertura universal.

Paulo e Bernabé (At 13‒15). Lucas se concentrou apenas na missão de Barnabé e Paulo, como uma expansão da Igreja no mundo pagão (impulso do Espírito, cf. Atos 13-14), forçando a abordagem da questão da divisão e unidade da igreja. Em Jerusalém, há cristãos que continuam exigindo a circuncisão de todos os crentes (eles devem se tornar judeus antes de se converterem a Cristo). Mas os representantes das várias igrejas (Pedro, Tiago, Paulo…) se reúnem no chamado Concílio de Jerusalém (Atos 15, ano 49), assumindo a diversidade das igrejas, ratificando a liberdade dos cristãos que vêm dos gentios. Este é o concílio constituinte do cristianismo, entendido como “comunhão de igrejas”, em torno da fé e testemunho de Cristo. Nesse “concílio” deveriam ser incluídas, pelo menos implicitamente, outras igrejas (de um tipo mais gnóstico, como a do discípulo amado), mas Lucas não as cita. Trata-se apenas das falas de Pedro – Paulo – Tiago.

Missões de Paulo (Atos 16-20). Lucas abandona a seu destino (ou deixa de fora a história) outras igrejas (como as de Pedro e Barnabé, ex-companheiro de Paulo), para se concentrar apenas na de Paulo, que se expande, como uma nova comunidade messiânica, libertada da lei, nos vários países do Oriente Médio: de Éfeso até a Macedônia e Acaia (Atenas e Corinto). O mundo, já preparado pelo Espírito de Deus, parece pronto para ouvir a voz de Paulo, a missão cristã. Com isso, este segundo livro de Lucas poderia ser intitulado Evangelho dos Atos do Espírito, com foco no grande diálogo de Paulo com o helenismo no Areópago de Atenas (Atos 17,16-34), onde se confirma o vínculo (e diferença) entre o cristianismo e o pensamento grego, entendido como um sinal de sabedoria universal.

‒ De Jerusalém a Roma (At 21-28). O fim do livro dos Atos conta o caminho que leva Paulo a Roma, passando por Jerusalém, onde ele é feito prisioneiro, depois de querer entregar a Tiago e à Igreja judaico-cristã de Jerusalém a coleção de comunidades dos gentios, como sinal de unidade das igrejas. Assim, a vida das igrejas gentílicas (da comunidade universal de Roma) continua precisar de sua relação (vinculação) com a Igreja judaico-cristã de Jerusalém, sem que Lucas diga como essas relações terminaram. Seja como for, Paulo é levado a Roma para ser julgado, porque, como cidadão romano, pôde apelar, como efetivamente apelou, à Corte de César, para expor ali, no centro do mundo então conhecido, a mensagem de Jesus. Paulo chegou a Roma, e lá pôde proclamar a Palavra, ainda que isso fizesse situação de prisioneiro (em prisão domiciliar) aguardando julgamento. Neste momento, Lucas pode interromper sua história. Ele sabia, sem dúvida, que a história continuava, e ele poderia contar muito mais, mas o que disse era suficiente. Ele traçou uma parábola eloquente do caminho universal da Igreja de Jesus, que se abre para o vasto mundo dos gentios em Roma, que nela convergem e são simbolizados (cf. Atos 28, 25-31).

Esta é a mensagem da dupla obra de Lucas, que se abre a partir das promessas de Israel, através de Jesus, por meio de Roma, a todas as nações. Existem outros caminhos, outras formas de entender e narrar o desenvolvimento da igreja, centrada na Galileia (cf. Mc 16,8) ou aberta ao Oriente (Mt 2,1-11). Mas esse caminho de lutas foi, e continua sendo, o mais significativo, nos moldes do evangelho paulino.

Conclusão teológica

Como apresentado, alguns historiadores modernos, especialmente protestantes, tomaram Lucas como o primeiro defensor do “protocatolicismo”, ou seja, da primeira interpretação do cristianismo como religião organizada. A novidade escatológica de Jesus (seu compromisso radical com a fé libertadora) teria sido perdida e, nesta brecha, teria emergido uma visão dogmática da história que tem seu princípio em Israel, se concentra em Cristo e avança através da Igreja até o cumprimento das promessas de Jesus, ou seja, até a plenitude dos tempos. Assim, pode-se dizer (com A. Loisy): Jesus anunciou o Reino de Deus, mas chegou a Igreja.

Lucas admitiria esse slogan, mas ele mudou seu significado dizendo: Jesus anunciou o Reino de Deus e, graças a Deus, a Igreja emergiu, como portadora desse anúncio, como garantia de continuidade do projeto de Jesus, como proclamação e princípio do Reino neste mesmo mundo, pela ressurreição de Jesus, pela obra do Espírito Santo, em relação à História Sagrada. Neste contexto, três “tempos” podem ser distinguidos e vinculados:

 ‒ Tempo do Pai, Antigo Testamento. No início da história está Deus (Deus de todos os povos: cf. At 17), como fonte de vida e criador. Desde o início, se entende o caminho de Israel. Lucas, o primeiro autor de origem pagã (não judaica) do Novo Testamento, é paradoxalmente aquele que mais defende o judaísmo, pois ele não o vê mais de dentro (como Paulo ou Mateus, que tem que lutar contra um “mau judaísmo”, para se destacar em Jesus o que eles pensam que é o bom judaísmo), mas de fora, como expressão já passada e muito bonita. Nesse sentido, os textos Lc 1-2 e At 1-5 são exemplares, destacando a raiz veterotestamentária da vida e realidade cristãs. Por isso, diante de Mc 16 e Mt 28 que centram a mensagem de Jesus na Galileia, Lucas funda a vinda de Jesus (cf. Lc 1) e a origem da Igreja (cf. At 1-5) no entorno do templo em Jerusalém. O evangelho está, portanto, integrado à história da profecia e esperança israelita como um desenvolvimento da promessa israelita.

‒ Tempo do Filho, Evangelho. No centro do tempo está Jesus, tal como vem a mostrá-lo em seu conjunto todo o evangelho (Lc). Certamente, o tempo de Jesus é delimitado entre nascimento e ascensão, de tal forma que apresenta contornos fixos e bem precisos dentro da história. Lucas aparece nesse ponto como o criador de uma visão do cristianismo como historia salutis, história da salvação, contra um tipo de teologia posterior da Igreja que teria interpretado o evangelho como uma verdade atemporal do tipo grego (na linha de uma ontologia filosófica). Nesta linha, como O. Cullmann mostrou, o verdadeiro intérprete e primeira testemunha da teologia especificamente cristã foi Lucas, ao entender a salvação como uma história, centrada em Jesus. 

‒ Tempo do Espírito Santo, Igreja (Livro dos Atos dos Apóstolos). A partir da Páscoa de Jesus, como expressão da vinda do Espírito Santo (Pentecostes) surgiu a etapa final da história, que é a época do Espírito Santo, que se mantém e avança até a Parusia ou revelação final de Jesus, quando realiza a obra da salvação e entrega o reino ao Pai, para que Deus seja tudo em  todos (1 Cor 15,28). O protagonista daquela época (e do livro dos Atos) é o Espírito Santo, que aparece, assim, como dom e presença do Jesus ressuscitado, de maneira que seu evangelho (Lc) ficaria inacabado se não fosse completado pelo evangelho do Espírito Santo (Atos). Como já dito, a ausência de Jesus é princípio de salvação: ele teve que superar sua antiga forma de existência humana, para enviar seu Espírito (cf. Lc 24,49; Atos 2,33), começando o tempo e o caminho da Igreja em Pentecostes (Atos 2).

Lucas escreveu, assim, uma cristologia histórica (uma teologia da história da salvação), de forte impostação litúrgica, definindo os momentos centrais da nova celebração cristã (Natal, Páscoa, Pentecostes). Sua visão de Jesus está ligada à missão eclesial (através do Espírito) e à esperança escatológica (à culminância futura da história). Neste contexto, podemos falar de uma cristologia pneumatológica (conduzida e aberta pelo Espírito Santo).

‒ Jesus, “função” do Espírito Santo, Nascimento. Jesus, o Filho de Deus, não podia nascer apenas pela obra de outros seres humanos, dentro de uma história geral da providência divina, mas teria surgido – como efetivamente surgiu – por particular influência de Deus, por meio do Espírito. O nascimento humano de Jesus pelo Espírito que age em Maria (cf. Lc 1,35) aparece, assim, como princípio da revelação de Deus.

‒ Jesus, portador do Espírito. Lucas formula a experiência do batismo: “O Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como pomba” (Lc 3,22). Jesus aparece, assim, como o Espírito Santo “corporalizado”, encarnado, em forma humana. Nesse sentido, alguns teólogos costumam falar da “Cristologia do Espírito”, ou seja, de uma cristologia do Espírito encarnado em Jesus. Devemos acrescentar que o Espírito não é apenas o início do nascimento (como em Lc 1,26-38) e o renascimento de Jesus (batismo), mas uma fonte de salvação messiânica, em uma visão libertadora (cf. Lc 4,18; At 10,38).

‒ O Espírito do Ressuscitado. Páscoa e Pentecostes. A novidade mais significativa da experiência pascoal, segundo Lucas, é o fato de que Jesus ressuscitado “recebeu o Espírito” de tal forma que pode se apresentar como o Emissor do próprio Espírito de Deus. Deste modo, ele mesmo diz: “Eis que enviarei a promessa do Pai, ou seja, o Espírito Santo” (cf. Lc 24,49). É o que o próprio Lucas diz, ainda mais precisamente, pela boca de Pedro, no primeiro sermão cristão: “Elevado à direita de Deus, recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou (…)” (At 2,33).

Xabier Pikaza, Salamanca. Texto original espanhol. Postado en diciembre del 2020.

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