As viragens na Teologia Contemporânea

Sumário

Introdução: o que se entende, aqui, por viragem?

1 Viragem histórica: a “história” como horizonte das teologias do século XX

2 Viragem social: o “reverso da história” como cenário das teologias da libertação

3 Viragens recíprocas e simultâneas: ecológica, intercultural, decolonial

Conclusão: Que tipo de relação vigoraria entre as distintas viragens?

Introdução: o que se entende, aqui, por viragem?

Imprescindível se faz esclarecer os termos que compõem o título do verbete no intuito de explicitar melhor o objetivo ao qual se propõe. Não se entende viragem como ponto matemático de inflexão a partir do qual se operaria uma ruptura com o passado como condição para se inaugurar algo “novo”. Concebe-se viragem como um movimento de reconfiguração metodológica da teologia com vistas à sua inserção no diálogo com novos paradigmas culturais. As distintas viragens testemunhariam, portanto, a consciência da teologia contemporânea de que a própria relevância constitui condição imprescindível para que recupere, vez por vez, sua perene atualidade.

O recorte por nós proposto mediante a formulação “teologia contemporânea” não diz propriamente respeito a uma rígida delimitação histórica, tarefa da qual se ocuparia a ciência historiográfica. Referimo-nos, aqui, à pluralidade de teologias produzidas no curso dos séculos XX e XXI como resultado de experimentações metodológicas ocorridas a partir das provocações do fenômeno histórico-cultural do Iluminismo. Pois foi, a partir de então, que a teologia cristã se descobriu diante do premente desafio de apresentar e, ao mesmo tempo, defender a positividade histórico-salvífica da fé e sua relevância em face da emergência da razão autônoma e autossuficiente não mais refém da tutela do conhecimento via autoridade.

1 Viragem histórica: a “história” como horizonte das teologias do século XX

O que caracteriza grosso modo as distintas correntes teológicas surgidas no século XX é sua preocupação em “acertar o passo da história”. As interpelações postas de forma contundente pelo Iluminismo provocaram nas teologias cristãs a consciência de um duplo descompasso: irrelevância e anacronismo. E o efeito dessa consciência foi descobrir-se numa espécie de limbo, uma situação intermediária e fechada em si mesma. Por um lado, a teologia cristã se descobre aquém dos novos desafios postos pela situação atual. Por outro, ela se reconhece alheia às próprias fontes. Na origem deste despertar de consciência encontra-se a emergência da historicidade como paradigma hegemônico da Modernidade ocidental. Por essa razão, denominador comum de todas as formas de teologia que surgiram no século XX é a assunção da História como paradigma.

Pode-se afirmar que o leitmotiv das teologias do século passado é a simultaneidade entre abertura ao tempo presente e volta às origens. No início do século XX, M.-D. Chenu expunha em modo sistemático as linhas características da reforma da teologia almejada no recém-constituído escolasticado dos Dominicanos, em Le Saulchoir, na Bélgica: afirmação do primado do dado revelado, assunção da crítica bíblica e histórica, tomismo aberto, atenção aos problemas do próprio tempo.

Ainda no mesmo opúsculo, o teólogo dominicano propunha a articulação da “fé in statu scientiae”, em sua dupla função positiva e especulativa, com a “fé solidária com o próprio tempo” (CHENU, 1937).  Expressão dessa preocupação é o título por ele dado a uma de suas principais obras – uma coletânea de artigos esparsos – publicada em dois volumes: La Parole de Dieu. 1. La foi dans l’intelligence; 2. L’Évangile dans le temps (CHENU, 1964). Anos mais tarde, em um artigo programático da assim chamada Nouvelle Théologie, publicado na revista Études, sob o título de “Les orientations présentes de la pensée religieuse”, J. Daniélou traçava as diretrizes da renovação da teologia: 1) o retorno às fontes (Escrituras, Padres da Igreja, Liturgia); 2) o contato com as correntes do pensamento contemporâneo; 3) o contato com a vida (DANIÉLOU, 1946, p. 5-21).

É precisamente nesse contexto de antecipações, resistências, recuos e avanços que se convoca e se celebra o Concílio Vaticano II. O tão falado aggiornamento, querido e proposto por João XXIII, é expressão da consciência do anacronismo e da irrelevância da Igreja e da teologia face aos novos e urgentes apelos do mundo de então. A urgência desse aggiornamento suscitou a “volta às fontes” ou o “retorno às origens” como potencialização da correspondência aos apelos do mundo dos anos 60 do século passado. Presente já na convocação do Concílio, essa consciência se explicita na Alocução de abertura do Vaticano II, proferida por João XXIII: a Gaudet Mater Ecclesia. Emblemático, nesse sentido, o fato que a Coleção de Teologia, em vários volumes temáticos, elaborada imediatamente após o Vaticano II e sob sua influência, tenha recebido de seus organizadores o sugestivo título de Mysterium Salutis. Compêndio de Dogmática histórico-salvífica.

Lendo a clássica obra de Rosino Gibellini, intitulada La teologia del XX secolo, damo-nos conta de que as correntes teológicas emersas no século passado se colocam, todas elas sem exceção, debaixo do arco-íris da História. É, portanto, no horizonte do paradigma da historicidade que se inserem todas as “viragens” (les tournants) teológicas do século passado: tanto a existencial-antropológica como a hermenêutica e, sucessivamente, a política e, por fim, a planetária. Gibellini distingue quatro tipologias consoantes ao modo de fazer teologia no decorrer do século XX: 1) Teologias da identidade; 2) Teologias da correlação; 3) Teologias políticas; 4) Teologias na era da mundialização (GIBELLINI, 2007, p. 559-560).

As Teologias da Identidade estariam preocupadas em afirmar a transcendência da Palavra de Deus (K. Barth) e atestar a absoluta superioridade da Revelação cristã em relação à filosofia e à sabedoria humana em geral (H.U von Balthasar). Por essa razão, a teologia é apresentada como “dogmática eclesial” (Barth), como “gramática da fé” (Lindbeck) ou como “algo que dá o que pensar” (Jüngel).

As Teologias da correlação se caracterizariam pela articulação entre identidade e relevância no interior da teologia cristã em relação à dimensão existencial, antropológica, cultural e experiencial humana. Aqui se inscrevem as conhecidas teologias: existencial (Bultmann), da cultura (Tillich), antropológica (K. Rahner), da experiência (Schillebeeckx), ecumênica e inter-religiosa (Küng), hermenêutica (Geffré e Tracy).

As Teologias políticas (Metz, Moltmann e Sölle) representariam a passagem do antropológico existencial para a esfera do político. Nesse sentido, elas propõem que se desentranhem os conteúdos sociais e políticos da mensagem cristã, recolocando assim a fé cristã no espaço público contra toda espécie de privatismo religioso segundo os moldes das sociedades burguesas pós-iluministas.

Concluindo, diríamos que praticamente todas as teologias surgidas na área geográfica do Atlântico Norte no curso do século passado pretendem responder à questão tão bem formulada por D. Bonhoeffer: como falar de Deus ao ser humano adulto e emancipado, autêntico filho da Ilustração europeia (GUTIÉRREZ, 1979, p. 546-558)? Todavia, nesse mesmo século XX, emergiam outras perguntas que não queriam calar. Essas provinham de outras latitudes, caracterizadas por relações distintas para com a Modernidade colonial ocidental. Essas questões emergiam, para todos os efeitos, do “reverso da história”.

2 Viragem social: o “reverso da história” como cenário das teologias da libertação

Gibellini considera o movimento de Ingresso da teologia na era da mundialização ainda como fenômeno no interior do paradigma da história. E nesse rol ele elenca toda a diversidade cultural e de gênero que irrompeu no seio da teologia cristã no decorrer do século passado, a saber: a Teologia da libertação (TdL) latino-americana, a Teologia da inculturação no continente africano, a Teologia das religiões no continente asiático, a Teologia feminista. Seria o movimento do irromper das teologias do terceiro mundo no universo da teologia cristã universal. Somos de opinião, todavia, que tais teologias surjam do “reverso da história” e não propriamente da história concebida, no horizonte da Modernidade colonial, como desenvolvimento linear e progressivo.

A explicitação dessa nova consciência – do “reverso” da história – teria se verificado durante a preparação de uma conferência de Gustavo Gutiérrez a ser proferida em Chimbote (Peru) em julho de 1968, poucas semanas antes da abertura da Assembleia dos bispos em Medellín, sobre a realidade vivida na América Latina como desafio para uma pastoral de promoção humana. O texto da conferência, publicado no ano seguinte sob o título Para una teología de la liberación, significou uma autêntica viragem na teologia, pois pela primeira vez e de modo explícito, se propunha uma “teologia da libertação” em alternativa à “teologia do desenvolvimento”. O próprio Gutiérrez é quem oferece um esclarecedor testemunho sobre o contexto de sua intervenção e sobre o seu alcance:

Para nós que tínhamos uma responsabilidade pastoral, eram os anos em que nos interrogávamos sobre a presença do Evangelho e da Igreja nesta ebulição de ideias, de experiências, de correntes e buscávamos critérios de discernimento. Nessa situação se efetuou em Chimbote uma reunião de sacerdotes e leigos para tentar compreender aquilo que vivíamos em nosso país. Foi-me confiado o relatório teológico sobre um tema que era então muito discutido: a teologia do desenvolvimento. Ao preparar meu relatório compreendi que era mais bíblico e mais teológico falar de uma teologia da libertação, ao invés de uma teologia do desenvolvimento. Ou seja, teologia da libertação como teologia da salvação nas concretas situações históricas em que o Senhor nos oferece a graça da salvação (GUTIÉRREZ, 1986, p. 125-126).

Como se vê, a singularidade da proposta da TdL latino-americana emerge a partir da maneira alternativa de se perceber a particularidade da realidade dos povos latino-americanos no cenário internacional. Não se aceita sem mais a tipologia do paradigma da história segundo o qual a realidade inteira seria capturada no bojo de um único e inexorável processo histórico linear caracterizado pelo progresso e pelo desenvolvimento. Desenvolvimento tinha se tornado, naqueles idos, palavra-chave do processo de recolonização encabeçado pelas nações ricas do hemisfério norte. Na época, falava-se em povos desenvolvidos para distingui-los dos assim chamados “subdesenvolvidos” ou “em vias de desenvolvimento”.

É o próprio Gutiérrez que, de resto, desde o início chama a atenção para o “fato mais relevante” no cenário sociopolítico, cultural e eclesial do continente: a “irrupção dos pobres” e seu clamor por libertação (GUTIÉRREZ, 1982, p. 215). Nesse sentido, a teologia da libertação nasce desbancando não apenas a ideia de desenvolvimento, mas, sobretudo, seu expediente sistemático de naturalização da riqueza e da pobreza. Falava-se, a tal propósito, de um processo linear e crescente envolvendo nações desenvolvidas e nações em desenvolvimento. Essa classificação, pretensamente natural, encobria a dimensão estruturalmente conflitiva da realidade do desenvolvimento. Reputava-se natural que as nações do Ocidente fossem mais desenvolvidas do que as nações dos continentes periféricos que, com o passar dos anos, se tornariam também elas desenvolvidas. Concebia-se desenvolvimento como um processo cujo crescimento econômico e cultural se daria de modo contínuo e linear, indo do mais primitivo e menos desenvolvido na direção do mais desenvolvido e “civilizado”.

Como se percebe, a “libertação” proposta pela TdL emerge como crítica estrutural ao que se considerava, então, natural: história ocidental como única história; desenvolvimento como crescimento linear e ilimitado. E, por isso mesmo, a TdL surge com a pretensão de se apresentar como teologia feita a partir do “avesso” da história. Não se fala ainda de uma história outra, mas não se admite sem mais o conceito naturalizado de uma história ocidental única que vai do natural e inculto ao civilizado e desenvolvido. O conceito de “libertação” deflagra o lado sombrio e intencionalmente esquecido dessa história.

Para exprimir essa reviravolta, surgem expressões que caracterizam o dissenso quanto à linearidade totalizadora da universalidade do paradigma da historicidade: “reverso da história”, “avesso da história”, “o não homem” como interlocutor privilegiado da TdL (GUTIÉRREZ, 1979), “Sitz im Leben und Sitz im Tode” (contexto vital e, ao mesmo tempo, contexto de morte) como lugar teológico, na dupla valência de ponto de partida e também de perspectiva da reflexão teológica (SOBRINO, 1989, p. 155). Como se pode ver, com a TdL temos uma primeira ruptura no tocante à imposição universal do paradigma moderno da História e mediante a deflagração do sistemático expediente de naturalização de processos históricos de desigualdade econômica, social e cultural. E isso se dá mediante a eleição do conceito libertação.

Nesse sentido, vale lembrar o que propunha J. L. Segundo, já nos inícios dessa nova teologia, no que diz respeito a uma necessidade básica para a TdL: pôr em movimento o círculo hermenêutico entre “libertação da teologia” e “teologia da libertação”. Trata-se de um processo recíproco e, por isso mesmo, simultâneo. Esta seria, em sua opinião, condição imprescindível para libertar a teologia clássica das amarras de sua falsa consciência universal. Explorar a autonomia relativa e a constitutiva mutualidade entre “libertação da teologia” e “teologia da libertação” seria conditio sine qua non para o exercício de uma autêntica TdL (SEGUNDO, 1975).

As intuições básicas e a metodologia específica da TdL foram sendo aos poucos incorporadas por outras teologias e pelo próprio Magistério. Daí a razão se utilizar o plural para se referir às ‘teologias’ da Libertação como, por exemplo, a teologia negra e a teologia feminista da libertação. Trata-se de um processo de expansão e consolidação da TdL também em outras latitudes e contextos históricos e culturais, nos quais as raízes da TdL foram se aprofundando e se interconectando sempre mais umas às outras (LIBANIO, 1987).

Simultâneo fenômeno se deu ainda nos terrenos específicos das minorias pobres e oprimidas do continente latino-americano. Com o passar do tempo, a concepção de “libertação” foi se desdobrando e, portanto, se explicitando sempre mais e o termo “pobre” ganhando feições cada vez mais concretas. É o que transparece, por exemplo, no prefácio escrito por Gustavo Gutiérrez à 14ª edição de seu Teología de la Liberación. Perspectivas, intitulado “Mirar lejos!”, que apareceu em 1990 e, portanto, 20 anos após a primeira edição. No intuito de salientar que o pobre pertence a uma coletividade social, Gutiérrez emprega expressões como: “povos submetidos”, “classes sociais exploradas”, “raças desprezadas” e ainda “culturas marginalizadas” (GUTIÉRREZ, 1990, p. 22). Ele sublinha ainda que falar do pobre, mais do que se referir apenas a uma categoria sociológica ou política, significa remeter-se a um complexo fenômeno: o “mundo do pobre” (GUTIÉRREZ, 1990, p. 22).

Nessa mesma linha, Victor Codina sublinhava uma necessidade imprescindível para a TdL, a saber: discernir um terceiro momento no movimento histórico da Ilustração, além dos dois já discernidos por Jon Sobrino (cf. SOBRINO, 1976, p. 177-208). Este terceiro momento no interior do Iluminismo, na opinião dele, seria caracterizado pelos desafios postos pela racionalidade simbólica, responsável, por sua vez, pela acolhida da alteridade que se manifestaria nas distintas diferenças: culturais, raciais, de gênero, religiosas etc. (CODINA, 1993, p. 271-296).

3 Viragens recíprocas e simultâneas: ecológica, intercultural, decolonial

Qual a razão de se considerar juntas as três viragens: ecológica, intercultural e decolonial? Pelo fato, precisamente, de nos encontrarmos diante de um processo por nós descrito como “desdobramento de um mesmo paradigma”. Com isso, não queremos misturá-las nem confundi-las, mas, ao contrário, distingui-las para que emerjam as dimensões e questões singulares propostas por cada uma dessas viragens. Somente em tal caso, salvaguardar-se-á a possibilidade de que se interpenetrem reciprocamente e, assim, se potencializem mutuamente. Pois, de fato, as dimensões peculiares sublinhadas por cada uma delas, ao se inter-relacionar com as demais, tornam possível um processo de potencialização simultânea e recíproca.

No que diz respeito à viragem ecológica, não se entende aqui ecologia apenas como sinônimo de meio ambiente. A preocupação com o ambiente constitui uma das dimensões da ecologia compreendida a partir de uma visão sistêmica. Por essa razão, a Ecologia seria mais bem descrita como uma nova arte, um novo paradigma a pautar nossas relações com o sistema-Vida e com o sistema-Terra. Concebe-se, portanto, ecologia como uma singular complexidade composta por quadro dimensões: ambiental, social, mental e espiritual/integral (BOFF, 2012).

A ecoteologia, por sua vez, constitui uma espécie de ponte entre ecologia e teologia e vice-e-versa (SUSIN; ZAMPIERI, 2015; MURAD, 2016). Ela é expressão, mais precisamente, de um discurso articulado que procura deslindar as mútuas e recíprocas implicações entre os desafios postos pela atual crise ecológica e o anúncio do “evangelho da Criação” próprio da fé cristã. De um lado, a crise ecológica se apresenta como um dos mais urgentes e complexos desafios para a tarefa teológica hodierna. De outro, o “evangelho da Criação” constitui a utopia permanente das relações harmoniosas e ternas que buscamos construir entre todos os seres, verdadeiros “filhos da Terra”, nossa Casa comum (TAVARES, 2010).

A ecoteologia, na perspectiva da libertação, salienta que a gravidade e urgência das questões atinentes ao discurso acerca do cuidado de nossa “Casa comum” exigem que todo discurso teológico responsável – e que, portanto, não se deixa tragar pela indiferença e pelo cinismo – se construa a partir da condição dos pobres e numa perspectiva utópico-libertadora. Um discurso acerca da tutela da vida no Planeta que não incorpore as questões da pobreza e da fome, da injustiça social e das contradições da globalização neoliberal peca por ingenuidade e conivência. Da mesma forma, um discurso acerca do cuidado e da sustentabilidade da vida no planeta Terra, nossa Casa comum, que não brote, de maneira esperançosa, dos sulcos fecundos do “evangelho da criação”, acabará sucumbindo a um pessimismo trágico.

A ecoteologia da libertação, portanto, salienta a necessidade de se “articular o grito da Terra com o grito do pobre” (BOFF, 1995; 1996, p. 75-88; 2000, p. 1889-207). E o pressuposto é de que a injustiça social e a crise ambiental são ambas provocadas por um sistema de morte, deflagrado como produto de um paradigma civilizacional, caracterizado pelo poder hegemônico do mercado, da tecnociência e da mídia (TAVARES, 2014a, p. 382-401). É este sistema, no fundo, o responsável último pelos processos em curso que, juntos, compõem o que temos justamente denominado de “crise ecológica”. A ecoteologia se inspira na utopia de um novo e emergente paradigma, o ecológico. Este se encontra ainda em fase de gestação, mas seus rebentos se revelam cada vez mais promissores. Fruto de um novo olhar, as novas relações propiciadas pelo emergente paradigma ecológico seriam fortemente marcadas pelos valores da complexidade, do cuidado e da sustentabilidade, entre outros (TAVARES, 2014b, p. 13-24).

No tocante à viragem intercultural, tem-se advertido a necessidade de uma transformação intercultural da teologia, expressa no propósito de se fazer teologia interculturalmente (MIRANDA, 2001; IRARRÁZAVAL, 2002; FORNET-BETANCOURT, 2007; TAVARES, 2015; 2018; HERRERA RODRÍGUES, 2019). Nesse intuito, formula-se uma tríplice crítica às teologias surgidas no contexto do século passado, todas elas sob o arco-íris do paradigma moderno da História. Critica-se: a afirmação de uma única História; a ideia imposta e difusa de contemporaneidade como expressão da assimetria entre as várias temporalidades e tempos diferentes; a assunção de uma história particular como a História universal. E a partir desse dissenso crítico, explicita-se a nova proposta escandida em três passos: o respeito às distintas temporalidades e à complexidade do Tempo; a simetria entre distintas temporalidades e entre “tempos” diferentes; a consciência de que o universal não é separado do local nem se contrapõe ao particular.

A Teologia intercultural, portanto, não é avessa à ideia de universalidade, como se poderia pensar apressada e superficialmente. Não propõe a fragmentação do mundo nem faz apologia de regionalismos ou de provincianismos. O que postula a teologia intercultural é uma universalidade a partir das diferenças culturais. A diversidade cultural não compromete nem inviabiliza a universalidade. A perspectiva do encontro e do diálogo é que possibilita, em última instância, a verdadeira universalidade, posto que a autêntica experiência de universalidade brota das experiências particulares e locais. Há uma comunicação que se dá pelas raízes, a partir de baixo, e por isso verdadeiramente inclusiva. Não existe universalidade desvinculada dos processos locais e particulares, visto que o universal não se dá separado do local nem tampouco contraposto ao particular. Qualquer tentativa de universalização que não brote das particularidades de cada situação e das diferenças de cada realidade local resultará fruto de imposição e de impostura. Uma concepção de universalidade que não se nutre do encontro e da partilha das diferenças se degenerará em uma mera tautologia.

A Teologia intercultural, enfim, não se satisfaz simplesmente com afirmar ou constatar a pluralidade das culturas; afirma que seu lugar teológico é constituído pela pluralidade de culturas em comunicação. Interculturalidade, aqui, “descreve relações simétricas e horizontes entre duas ou mais culturas, a fim de enriquecer-se mutuamente e contribuir a uma maior plenitude humana” (ESTERMANN, 2010, p. 33). Esse é precisamente seu momento “inter”. Trata-se, em suma, de uma teologia elaborada a partir do contexto do encontro e do diálogo entre as culturas e sob sua perspectiva. Pois como afirma Fornet-Bettancourt: “Não existe apenas uma pluralidade de histórias, a historicidade humana é temporalmente pluralista” (2009, p. 99).

A viragem decolonial vem se dando a partir do momento em que a teologia tem se sentido interpelada por questões suscitadas pelo grupo de estudos “Modernidad-Colonialidad” ao propor uma “viragem decolonial”: movimento que, partindo da análise da modernidade-colonialidade, culmina na perspectiva e discurso da decolonialidade[1]. Esta é a razão pela qual se insiste em concebê-la como movimento, processo, guinada, opção. Constata-se, portanto, que a lógica da colonialidade e a retórica da modernidade constituem, de fato, cara e coroa da mesma moeda e que, portanto, é justificável falar de um único fenômeno: “modernidade-colonialidade” (DUSSEL, 2000, p. 29-30; QUIJANO, 1997; PORTO GONÇALVES, 2003, p. 168; MIGNOLO, 2010; 2017). A colonialidade seria, portanto, a face “ocultada” da modernidade ocidental. Anibal Quijano, sociólogo peruano, insiste no fato de que a conquista e exploração violentas do “novo” continente não apenas precedem historicamente a constituição da Europa, mas são conditio sine qua non da sua imposição como protagonista do primeiro padrão de poder internacional: capitalista, colonial, eurocêntrico, racista, patriarcal (QUIJANO, 1997).

Se, de fato, a colonialidade se apresenta como “o lado mais escuro da modernidade” (MIGNOLO, 2017), também a teologia se sente instada a desvelar aspectos mantidos no encobrimento e que serviriam de contraponto ao projeto tão decantado da Modernidade ocidental que, no decorrer de séculos, dela tem se servido como uma de suas mais fortes bases ideológicas de sustentação. Por esta razão, adverte-se a necessidade de se operar, simultaneamente, uma verdadeira “descolonização da teologia”. Na impossibilidade de elencar e aprofundar, aqui, a complexidade dos aspectos mantidos no encobrimento, salienta-se apenas que a teologia decolonial se sente interpelada pelo sistemático processo de “naturalização” que constitui a espinha dorsal do inteiro projeto moderno colonial e que continua tendo vigência em nossos dias mediante expedientes de uma nova colonialidade global. Trata-se de tríplice “naturalização”, posto que à “naturalização” da desigualdade social entre colonizador e colonizado, mediante a “invenção da ideia de raça” (Quijano), e da racionalidade moderno-colonial veio se somar em tempos de globalização neoliberal a “naturalização” do mercado e da tecnociência como necessidades imperativas (TAVARES, 2019a, p. 77-101; 2019b, p. 481-488). Interpelada, portanto, pelas questões oriundas da viragem decolonial, a teologia se mostrará sensível aos desafios postos e às prospectivas abertas pela modernidade colonial a partir de sua constitutiva interrelação entre capitalismo, racismo, eurocentrismo e patriarcalismo.

Conclusão: Que tipo de relação vigoraria entre as distintas viragens?

Resta-nos, enfim, dizer uma palavra acerca da relação vigente entre as distintas viragens. Preferimos concebê-la em termos de “assunção” ou de “incorporação”. E o pressuposto é que fenômenos e mentalidades históricos não se encontram distribuídos ao longo de uma história linear e progressiva e classificados segundo critérios que justificariam a superação do mais recente em relação ao anterior, deixado para trás. Tal postura trairia o hábito reconhecidamente moderno e colonial, cuja pretensão é, entre outras, inventar um saber que se constitui, cada vez, a partir de um novo início. Daí a razão de se buscar a novidade, não raras vezes, de maneira obsessiva. Entretanto, não se quer negar o caráter de superação das três viragens simultâneas e recíprocas (ecológica, intercultural e decolonial) com relação à viragem social e dessa, por sua vez, com respeito à viragem histórica. Há sim um processo de superação entre as respectivas viragens, apenas que tal superação se dá a modo de incorporação, e não propriamente de supressão.

Sinivaldo S. Tavares, OFM. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Texto original português. Postado em dezembro de 2020.

 Referências

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[1] Para uma maior compreensão da genealogia dos “estudos decoloniais” e sua relação com os “estudos pós-coloniais” e também com os “estudos subalternos”, ver MELLA, 2016, p. 442-448; BALLESTRIN, 2013. Constatamos, não raras vezes, o uso indiscriminado dos prefixos “pós-” e “de-”, talvez pela carência de maiores referências com respeito a esclarecimentos terminológicos que, para além de mero jogo de palavras, são introduzidos com o fito de delimitar o estatuto epistemológico.