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Pastoral social. Reflexão práxico-teórica

Sumário

Introdução

1 Especificidade

2 Desenvolvimento histórico

Referências

Introdução

A pastoral social ou o desenvolvimento práxico-teórico da dimensão social da fé é sem dúvida nenhuma uma das características mais importantes e mais impactantes da Igreja latino-americana na segunda metade do século XX. Ela marca decisivamente a recepção do Concílio na América Latina. Não por acaso, a Igreja latino-americana é conhecida e destacada por seu compromisso com a justiça social e por seu engajamento nas lutas populares. E esta imagem está sempre vinculada à atuação profética de bispos como Oscar Romero, Helder Câmara, Pedro Casaldáliga etc. e das pastorais sociais.

Para uma melhor compreensão da pastoral social, é necessário considerar tanto sua especificidade quanto seu desenvolvimento histórico.

1 Especificidade

A pastoral social tem a ver fundamentalmente com a dimensão socioestrutural da caridade cristã. É a diaconia ou colaboração organizada da Igreja na realização da justiça social, isto é, nos processos de reestruturação da sociedade a partir e em vista das necessidades e dos direitos dos pobres e marginalizados. Ela se constitui, assim, como fermento evangélico nas estruturas sociais. E num duplo sentido.

Por um lado, como denúncia e enfrentamento de toda forma de injustiça, exploração, discriminação e marginalização, bem como dos mecanismos que produzem essas situações; como afronta a um modo de estruturação e institucionalização de nossa vida coletiva, que nega a grandes setores da população até as condições materiais básicas de sobrevivência, impedindo-as de viverem com dignidade e de se realizarem como pessoas. Trata-se, aqui, em última instância, do enfrentamento do pecado que se materializa e se institucionaliza nas estruturas da sociedade ou do que, desde Medellín e Puebla, convencionou-se chamar “pecado social”.

Por outro lado, como anúncio eficaz de uma nova forma de organização da sociedade, isto é, como convocação a uma reinvenção e reestruturação da vida social: insistindo na inaceitabilidade da injustiça social; mobilizando pessoas e grupos a lutarem por seus direitos e a buscarem e criarem alternativas de vida; articulando e projetando essas lutas e alternativas; fortalecendo as lutas populares concretas com a força social da Igreja; explicitando e potencializando seu caráter salvífico. Trata-se, aqui, em última instância, da dimensão socioestrutural da graça, isto é, da ação salvífica e (re)criadora do Espírito de Deus no mundo. Também a estruturação de nossa vida coletiva deve se dar na força, no dinamismo e no poder do Espírito de Deus.

Nós nos deparamos, aqui, com a dimensão socioestrutural do pecado e da graça. Nossa fé não é indiferente ao modo como organizamos nossa vida coletiva (cf. Puebla n.513-520). A organização da sociedade pode estar mais ou menos de acordo com o Evangelho de Jesus Cristo; pode estar mais ou menos em sintonia com o dinamismo de vida suscitado por Jesus e seu Espírito: pode tanto permitir ou facilitar (dinamismo gracioso), quanto impedir ou dificultar (dinamismo pecaminoso), adquirindo, assim, um caráter estritamente teologal. As estruturas da sociedade não são simplesmente estruturas econômicas, políticas, sociais, culturais, de gênero etc. São também e sempre estruturas teologais, enquanto objetivação (institucionalização) e mediação (poder dinamizador) da graça ou do pecado. Daí sua importância central para a fé cristã.

Na medida em que a sociedade está organizada ou estruturada de tal forma que priva uma grande parte da humanidade até das condições materiais básicas de sobrevivência; que mantém a dominação e a exploração dos homens sobre as mulheres, dos brancos sobre os negros; que discrimina e marginaliza idosos, homossexuais, pessoas com deficiência etc.; que destrói a natureza, causa desequilíbrios socioambientais e compromete o futuro da própria espécie no planeta; ela “des-figura” a presença de Deus no mundo e se constitui como um obstáculo ao dinamismo de vida fraterna suscitado por Jesus e seu Espírito. Suas estruturas têm, assim, um caráter intrinsecamente pecaminoso. Enquanto tais, elas se apresentam e se impõem como um dos maiores desafios para a vivência da fé e para a ação pastoral da Igreja.

O desenvolvimento dessa dimensão estrutural da fé confere à pastoral social um caráter bem peculiar, nem sempre compreendido e aceito na sociedade em geral nem na própria comunidade eclesial. Mesmo entre pessoas que estimam, valorizam e até praticam as chamadas “obras de misericórdia”, há muita resistência à pastoral social em sentido estrito. É famosa a afirmação de Dom Helder Câmara: “se dou comida aos pobres me chamam de santo; se pergunto por que eles são pobres me chamam de comunista”. E o papa Francisco, falando de “terra, casa e trabalho” no encontro com os movimentos populares no Vaticano, dizia: “É estranho, mas se falo disto para alguns, o papa é comunista. Não se compreende que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho. Terra, casa e trabalho, aquilo porque lutais, são direitos sagrados. Exigi-lo não é estranho, é a doutrina social da Igreja” (FRANCISCO, 2014, p. 1). Mas aqui está a peculiaridade da pastoral social, enquanto dimensão socioestrutural da caridade cristã. Essa peculiaridade se mostra, sobretudo, em três de suas principais características: diálogo com as ciências, articulação com os movimentos populares e conflitividade social.

a) Para transformar a sociedade é necessário saber minimamente como ela funciona, como ela está organizada e estruturada e quais as reais possibilidades de transformação social em cada momento. Para isto é necessário analisar a realidade, recorrendo à sabedoria popular gestada e testada na experiência cotidiana e histórica de pessoas, comunidades e povos, e às ciências que procuram explicar os fenômenos sociais e que investigam as possibilidades e os caminhos de transformação.

b) Enquanto serviço à causa dos pobres e marginalizados, a pastoral social está estreitamente vinculada às lutas e organizações populares, sem que isso comprometa sua identidade eclesial; é aliada e parceira de todas as forças sociais (na medida em) que defendem e lutam pelos direitos dos pobres e marginalizados, independentemente de sua profissão de fé e de seu vínculo eclesial.

c) Na medida em que luta pela transformação das estruturas da sociedade, a Igreja acaba, direta ou indiretamente, se confrontando com os grupos que se beneficiam com a ordem social vigente. Todo processo de transformação da sociedade é tenso e conflitivo, pois envolve interesses muito concretos de grupos muito concretos. O conflito, aqui, é algo inevitável (Cf. Jo 15,20). É inerente à missão da Igreja lutar pelo direito dos pobres e marginalizados da sociedade. E acaba sendo também um teste ou uma prova da missão, pois estar “bem e em paz” com os exploradores e opressores do povo é sempre um sinal de infidelidade à missão. Não há neutralidade aqui…

2 Desenvolvimento histórico

A consciência explícita dessa problemática e desse desafio é relativamente recente na Igreja. Certamente, podemos encontrar indícios disso na Escritura e na Tradição da Igreja. Pensemos, por exemplo, na denúncia dos profetas contra a acumulação de riquezas, contra o salário não pago dos trabalhadores, contra a violação do direito das viúvas nos tribunais, contra a espoliação dos bens dos pequenos, contra um culto aliado à injustiça social e, sobretudo, em sua defesa radical do direito do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro. Pensemos também nas reflexões sobre a destinação universal dos bens e sobre a política como arte do bem comum, desenvolvidas na Tradição da Igreja. Tudo isso é indício do que estamos chamando aqui de dimensão socioestrutural da fé ou de pastoral social.

Mas sua consciência explícita começa a se desenvolver na Europa no século XIX, no contexto da complexificação da sociedade (revolução industrial, revolução francesa, revolução científica) e do desenvolvimento das ciências sociais. Ela se consolida na América Latina com as conferências de Medellín e Puebla e com as teologias da libertação. E, aos poucos, vai sendo assumida pelo conjunto da Igreja.

Um marco importante no surgimento da consciência da dimensão estrutural da fé é, não obstante suas ambiguidades e contradições, o chamado “catolicismo social” que se desenvolveu na Europa no contexto da revolução industrial e da situação da classe e do movimento operários nascentes. É neste contexto que se insere a encíclica Rerum novarum: Sobre a condição dos operários, do papa Leão XIII (1891). É a primeira intervenção oficial do magistério romano sobre a “questão social” e chegou a ser considerada como “carta magna” da atividade cristã no campo social (Pio XII) e como “texto fundador” da doutrina ou do ensino social da Igreja (Jean-Marie Mayeur). Ela pode ser tomada, em todo caso, como “ponto de partida” de uma tradição recente do pensamento social católico. Seja em relação ao magistério dos bispos de Roma que publicaram uma série de encíclicas sociais por ocasião dos sucessivos aniversários do texto de Leão XIII; seja em relação ao desenvolvimento da reflexão social e teológica sobre as questões sociais por parte de teólogos e cientistas católicos; seja, ainda, no que diz respeito à atuação de muitos católicos no campo social e político, tudo isso vai se desenvolvendo ao longo do século XX e ganha novo impulso, novas perspectivas e novas dimensões com o Concílio Vaticano II (1962-1965) e a Constituição Pastoral Gaudium et spes sobre A Igreja no mundo de hoje (1965).

Mas é na Igreja da América Latina e a partir dela que essa consciência se torna mais explícita e é levada às últimas consequências, tanto em termos teológicos, quanto em termos pastorais.

A Conferência de Medellín (1968), por exemplo, já falava de “estruturas opressoras” (introdução), “estruturas injustas” (Justiça, I), “violência institucionalizada” (Paz, 2, II) e apontava para a necessidade de “novas e renovadas estruturas” (Justiça, II). E a Conferência de Puebla (1979) reconhece que a pobreza “não é uma etapa casual, mas sim o produto de determinadas situações e estruturas econômicas, sociais e políticas” (n. 30) e chega a falar explicitamente de “dimensão social do pecado”, de “estruturas de pecado” ou de “pecado social” (cf. n. 28, 70, 73, 281, 282, 452, 487, 1258).

Além da percepção dessa dimensão estrutural da injustiça e de seu caráter pecaminoso, Medellín afirmava claramente que “criar uma ordem social justa, sem a qual a paz é ilusória, é uma tarefa eminentemente cristã” e que “a justiça e consequentemente a paz conquistam-se por uma ação dinâmica de conscientização e de organização dos setores populares” (Paz 2, II).

Essas intuições, que depois vão sendo aprofundadas e desenvolvidas na reflexão teológico-pastoral na América Latina e assumidas, em grande medida, pelo magistério romano para o conjunto da Igreja, estão na base do engajamento de cristãos, comunidades, grupos e mesmo da Igreja enquanto instituição nos mais diversos processos de organização e luta populares ou do que se convencionou chamar pastoral social, enquanto dimensão socioestrutural da caridade cristã.

Esse engajamento da Igreja nos processos de transformação da sociedade dá-se tanto através da atuação de cristãos em diversos movimentos e organizações sociais; quanto através de serviços, pastorais e organismos de apoio, acompanhamento e defesa de setores marginalizados e de suas lutas e organizações populares; quanto, ainda, pela tomada de posição da Igreja enquanto instituição e força social através de seus ministros e de seus organismos de animação e coordenação pastoral. E adquire configurações diversas segundo os lugares e as circunstâncias. Em termos gerais, pode-se dizer que até os anos 1980 deu-se uma ênfase maior nas questões de ordem econômica, social e política. A partir dos anos 1990, vão emergindo e se impondo com mais força as questões de gênero, étnico-raciais e ecológicas. E, mais recentemente, as questões inter-religiosas e (de modo muito conflitivo) as questões de diversidade sexual.

No caso concreto do Brasil, as pastorais sociais nasceram na década de 1970 como resposta pastoral aos desafios sociais do campo e da cidade. Surgiram para responder aos desafios que os povos indígenas e camponeses enfrentavam na Amazônia: o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) foi criado em 1972 e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 1975. A partir da segunda metade dos anos 1970, como resposta aos desafios provenientes do processo acelerado de urbanização, foram surgindo várias pastorais e organismos sociais: Centros de Defesa dos Direitos Humanos, Comissão de Justiça e Paz, Pastoral Operária, Pastoral da Mulher, Serviço Pastoral dos Migrantes, Conselho Pastoral dos Pescadores, Pastoral Carcerária, Pastoral do Menor, Pastoral da Criança, Pastoral do Povo da Rua, Pastoral Afro-brasileira, Pastoral da Pessoa Idosa, Pastoral dos Nômades etc. E, mais recentemente, a Pastoral da AIDS e, de forma muito tímida e conflitiva, a Pastoral da Diversidade Sexual.

Trata-se sempre, em todas as pastorais sociais, de responder pastoralmente a desafios provenientes de e vinculados ao modo de organização da sociedade (valores, costumes, leis, políticas, instituições econômicas, sociais, políticas, culturais etc.), o que só é possível a partir das vítimas (sujeito) e mediante constituição de força social (sujeito coletivo) capaz de afrontar esses mecanismos e provocar uma reestruturação da sociedade a partir das necessidades e dos direitos dos pobres e marginalizados. É a dimensão socioestrutural da fé. A evangelização tem uma dimensão estritamente social, no sentido de que o Evangelho deve configurar não apenas o coração das pessoas (conversão do coração), mas também a organização da sociedade (transformação das estruturas sociais). E, nesse sentido, a pastoral social se constitui e se configura como fermento evangélico das estruturas da sociedade.

Francisco Aquino Junior. Facaf/Unicap. Texto original em português. Postado em dezembro de 2020.

Referências

AQUINO JÚNIOR, Francisco de. Pastoral social: dimensão socioestrutural do reinado de Deus. Brasília: CNBB, 2016.

______. A dimensão socioestrutural do reinado de Deus: escritos de teologia social. São Paulo: Paulinas, 2011.

______. Nas periferias do mundo. Fé – Igreja – Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017.

______. Teologalidade das resistências e lutas populares. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/teopublica/126_cadernosteologiapublica.pdf Acesso em: 4 nov 2020.

CARDENAL, R.; MARTÍN-BARÓ, I.; SOBRINO, J. La voz de los sin voz: la palavra viva de Monseñor Oscar Arnufo Romero. San Salvador: UCA, 2007.

CNBB – Setor Pastoral Social. O que é pastoral social. São Paulo: Loyola, 2001.

CNBB – Comissão Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz. A missão da Pastoral Social. Brasília: CNBB, 2008.

FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.

_____. Carta Encíclica Laudato Si’. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

_____. Discurso do Papa Francisco aos participantes do Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Brasília: CNBB, 2015.

_____. Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Brasília: CNBB, 2015.

_____. Discurso do Papa Francisco aos participantes do III Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Brasília: CNBB, 2016.

OLIVEIRA, Pedro Ribeiro (org.). Fé e política: fundamentos. Aparecida: Ideias e Letras, 2004.

PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio de Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2011.

 

Pastoral da terra

Sumário

Introdução

1 Nascimento em tempo germinal

2 Prática que denúncia a grande mentira da propriedade

3 Os fundamentos desta Pastoral

4 Rosto rural da Igreja

5 A busca do Bem Viver

6 A memória dos mártires

7 Salvar a Amazônia para salvar a vida

Referências

Introdução

Trabalhos pastorais junto a camponeses já existiam há mais tempo, mas por motivos que explicitaremos a seguir, o serviço evangélico aos que tinham sua vida ligada ao cultivo da terra, e aos que viviam a ameaça de perder essa possibilidade de vida por causa das violências dos poucos que sempre desejaram apropriar-se de todas as terras do Brasil, nasceu em 1975, tomou o nome de Pastoral da Terra e contou com a Comissão Pastoral da Terra como sua articulação dinamizadora.

Nos tempos atuais, em que vivemos a recepção do Sínodo da Amazônia que, no Documento Final e na Exortação apostólica Querida Amazônia, propõe como parte das práticas eclesiais a “conversão ecológica”, necessária para assumir a “ecologia integral” proposta na encíclica Laudato Sí – sobre o cuidado da Casa Comum, do papa Francisco, o nome pastoral da terra pode sugerir ter sido uma profecia em favor de colocar em prática o Concílio Vaticano II, retomado agora de forma criativa. E se tivermos presente a realidade da estrutura hierárquica de então e de hoje, a prática da pastoral da terra foi, com certeza, uma profecia da ainda necessária necessidade de a Igreja ser uma igreja em saída. No caso, foi uma opção e uma prática de ir ao encontro dos povos, das comunidades e das pessoas ligadas aos territórios originários e ao cultivo da terra.

Como se deseja agora em relação à presença da Igreja na Amazônia, a pastoral da terra foi certamente uma profecia na direção de que a presença e o serviço eclesial precisam libertar-se de qualquer pretensão colonialista, partindo da escuta atenta aos irmãos e irmãs para, junto com eles, fazer o que sentiam necessário para defender seus direitos. E de escutar a todas e todos sem distinção de religião, de forma ecumênica e macroecumênica, com práticas iluminadas na parábola do Bom Samaritano, definidas a partir das necessidades e realizadas com os recursos disponíveis, como tão bem mostrou a encíclica Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social, do papa Francisco.

1 Nascimento em tempo germinal

A Comissão Pastoral da Terra, como serviço eclesial aos povos da terra, nasceu em junho de 1975. Foi uma das conclusões o Encontro de Pastoral da Amazônia Legal, realizado em Goiânia, Goiás. Mas sua gestação começou antes, e vale destacar algumas das iniciativas e o ambiente sociopolítico e eclesial em que ela foi sendo gestada.

O Brasil enfrentava o período mais duro de uma longa ditadura, iniciada em 1964 e que findaria somente em 1985. Com a imposição do Ato Institucional nº 5, o governo militar podia governar até acobertado por decretos secretos, sempre a serviço da doutrina de segurança nacional, e isso possibilitou multiplicar as práticas de perseguição a toda e qualquer pessoa ou organização que fosse identificada como subversiva, contrária à ordem nacional favorável às elites dominantes. Nesse contexto, só foram para o exílio as lideranças dos partidos que contestavam a ditadura e o sistema econômico que sobraram da perseguição e do massacre. E até os movimentos que promoviam educação e pastoral popular entraram no rol das atividades suspeitas, e muitas de suas lideranças foram presas, enfrentaram torturas e algumas chegaram a ser mortas. Acobertados pelo aparato militar que controlava as instâncias do Estado, grupos de extermínio, no campo e nas cidades, completavam o serviço repressivo através do assassinato de quem as elites definiam ser ameaças aos seus interesses.

Foi nesse contexto, nascido do golpe dentro do golpe militar[1], com a vitória dos setores mais radicais e violentos, que foram sendo dados os passos que resultaram na criação da CPT, na renovação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), na multiplicação de Comunidades Eclesiais de Base CEBs), na gestação de muitos outras pastorais sociais. E o que provocou o primeiro desses passos foi a prisão da Equipe Pastoral e do próprio bispo Dom Pedro Casaldáliga, em São Félix do Araguaia, MT.

De fato, a reflexão sobre o que se deveria fazer para evitar que o isolamento em que se encontravam as iniciativas populares facilitassem a repressão levou a assumir a estratégia de visitar e convidar diretamente um conjunto de bispos que acolhiam e apoiavam esse tipo de práticas em suas dioceses para um encontro nacional. Tendo como dinamizador Dom Tomás Balduino, bispo da Diocese de Goiás, e apoio direto de Dom Helder Câmara, as visitas conseguiram a reunião voluntária de 28 bispos em São Paulo. Com assessorias competentes, fizeram análise crítica da situação vivida pelo povo nas diversas regiões do país e decidiram publicar diversos textos sobre a realidade, criticando a ditadura e seu serviço a interesses contrários ao povo, deixando claro que não era justo e aceitável sacrificar a liberdade de iniciativa e de organização popular das pessoas que decidiam defender seus direitos. Assumiram, por isso, o compromisso de apoiar e defender esses direitos dos povos e das pessoas. Em relação às pessoas e comunidades, foram publicados dois textos: Eu ouvi os clamores do meu povo, assinado por bispos e superiores religiosos do Nordeste, e Marginalização de um Povo, o Grito das Igrejas, assinado por bispos do Centro Oeste. Em relação aos povos indígenas, o texto foi denominado Y-Juca-Pirama, o Índio, Aquele que deve morrer, de bispos e religiosos missionários.

Com essa determinação do grupo de bispos denominado não grupo, para deixar claro que não atuavam separados da CNBB, e sim como missão pessoal e coletiva, foi possível iniciar o mapeamento de práticas de educação e pastoral popular, consultando as pessoas sobre seu interesse em articular-se com iniciativas semelhantes. Foi realizado, como fruto, o 1º Encontro Nacional de Articulação, em Salvador, BA, em fevereiro de 1974. O planejado segundo encontro não aconteceu porque, em atividades realizadas durante o ano, a estratégia de articulação foi redefinida: como já existia o CIMI, a serviço da pastoral indigenista em âmbito nacional, percebeu-se ser mais realista promover a regionalização de suas atividades e, ao mesmo tempo, dar passos para que se articulassem as práticas realizadas no mundo agrário e no mundo urbano. Foi por isso que se deu início ao caminho que resultou no Encontro de Pastoral da Amazônia Legal, em que nasceu a Pastoral da Terra, e logo em seguida, em 1976, foram dados passos para a criação da Pastoral Operária, e depois, da Pastoral dos Migrantes, da Mulher Marginalizada…

Nesse mesmo período, multiplicaram-se, em algumas regiões e dioceses, as CEBs, criando a possibilidade da realização de seu 1º Encontro Intereclesial, em 1975, já contando com relações ecumênicas e com o apoio fundamental da leitura popular da Bíblia e da Teologia da Libertação.

A Pastoral da Terra foi fruto desse tempo germinal: as práticas que tinham como objetivo submeter as pessoas, povos e igrejas aos interesses de grandes grupos econômicos geraram, ao mesmo tempo, o seu contrário: construção de espaços de libertação. Vale consultar, nessa perspectiva, o livro Nas Pegadas do Povo da Terra – 25 anos da CPT (POLETTO; CANUTO, 2002), em que foi publicada uma documentação histórica sobre a fundação da CPT com depoimentos de participantes do Encontro de Goiânia, e tem um capítulo sobre esse tempo germinal.

2 Prática que denuncia a grande mentira da propriedade

A Pastoral da Terra nasceu como um serviço evangélico e eclesial às mulheres e homens do campo da Amazônia, de modo especial aos que enfrentavam a negação e agressões aos seus direitos à terra em que viviam e cultivavam. O CIMI já realizava isso em favor dos povos indígenas, ao seu direito ao território em que viviam há milênios. A CPT foi ao encontro, inicialmente, dos posseiros, camponeses que viviam em sua terra sem ter título legal de propriedade, mas que, segundo princípios constitucionais e conquistas deles próprios e de sua organização sindical, tinham direito de usucapião, e por isso, prioridade em relação a outros pretendentes desde que estivessem pacificamente na terra há mais de um ano.

Como a ditadura, através do Estatuto da Terra, prometera realizar a reforma agrária e, ao mesmo tempo, favorecer a modernização do campo, generalizaram-se os conflitos pela terra ao limitar a iniciativas de colonização com camponeses pobres, e ao privilegiar a entrega de grandes áreas a empresas nacionais e internacionais atuantes no país para integrar o Centro-oeste e a Amazônia à economia nacional. Na verdade, ao entregar títulos de propriedade às empresas a partir do escritório do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria – INCRA, autorizou e comprometeu-se a defender esses novos direitos legais quando foram demarcar as suas áreas. Ao encontrar nelas povos indígenas, comunidades quilombolas, comunidades de camponeses de diferentes tipos: produtores de alimentos, ribeirinhos, seringueiros, pescadores, os novos proprietários usaram todo tipo de autoritarismo e violência, sempre com o objetivo de expulsá-los das terras a que tinham direito, mesmo sem terem títulos legais.

Outra fonte de conflitos foi a colonização oficial. Os estudos sociológicos detectaram que seu real objetivo, ao contrário da propaganda, era o de orientar os sem-terra que lutavam por terra em suas regiões a migrarem para as áreas selecionadas. E que migrassem em número maior do que as vagas ocupadas pelas famílias selecionadas, para, com isso e com o abandono em que seriam deixados os assentados, houvesse mão-de-obra abundante e barata para os projetos das grandes empresas – essas, sim, promovidas como portadoras de tecnologias para modernizar a produção. Em Rondônia e nas beiras das grandes rodovias de “integração nacional”, para cada família selecionada e assentada, certamente duas ou mais tiveram que estabelecer-se por conta própria. Nascem, então, os núcleos de colonos em terras já destinadas ou que deveriam ser entregues às empresas, multiplicando as áreas conflitadas. As demais constituíram as novas cidades, ao lado das rodovias.

A atuação dos núcleos locais e regionais da CPT, visitando, dialogando, abrindo processos de formação e possibilitando apoios jurídicos aos povos e comunidades atingidas e agredidas pela leva de grandes proprietários criados pela ditadura, revelou e tornou pública a informação sobre o comprometimento do Estado com os novos senhores da Amazônia. Eles chegavam não só com títulos de milhares e até milhões de hectares de terra, e sim com recursos, provindos de privilégios, como a liberação de impostos e taxas para criaram fundos a serem investidos nas novas propriedades – ou para desviar para outras iniciativas mais lucrativas, como aconteceu em quase todos os casos investigados.

Por outro lado, a colonização promovida com recursos públicos não tinha o objetivo de criar áreas de pequenos proprietários para a produção de alimentos. Ela esteve sempre a serviço dos grandes projetos, já que, sem a atração de gente pela propaganda falsa da colonização, eles não teriam mão-de-obra barata e sempre disponível. Para quem se colocou ao lado dos colonos e dos que não conseguiram terra, como a CPT, através das pessoas e grupos que assumiram esta pastoral, a colonização viabilizou nova tomada de consciência e novas iniciativas. As famílias sem-terra que se deslocaram em grande número para as áreas de colonização revelaram o que impediu a efetivação da reforma agrária nas demais regiões do país: a terra estava em mãos de poucos e grandes proprietários em todas as regiões, e muita terra defendida como propriedade não passava de grilagem, roubo, fruto de agressões violentas aos que viviam nelas. E a própria colonização na distante Amazônia foi implementada com o objetivo de consolidar e regularizar a situação legal dos senhores de terra no Nordeste, no Sudeste e no Sul do país. Foi medida estratégica para evitar a luta por reforma agrária, que se aprofundava desde os anos 1950.

Agora mesmo, algo parecido está acontecendo, só que na Amazônia. O atual governo federal, aliado carnal da grilagem, do agronegócio, da mineração, e inimigo dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, está tentando de todas as formas a regulamentação de “propriedades sem título legal”, isto é, terras griladas, que ocupam uma área imensa da região, algo próximo a 27,8 milhões de hectares de terra, e com prejuízo calculado em 118 bilhões de reais (IMAZON, 2019). E o faz com o discurso de que isso é necessário para evitar conflitos e para dar segurança jurídica aos empreendedores. Em outras palavras, isso prova que, como em toda a história do Brasil desde a chegada dos colonizadores, em 1500, a grilagem é a porta de entrada das grandes propriedades. Isso nos ajuda a entender por que, dos cinco milhões de indígenas existentes em 1500, só restam pouco mais de 830 mil, e mesmo estes continuam submetidos aos novos decretos de extermínio, de que os grileiros e seus grupos de extermínio são executores. Dos títulos legais escorre sangue humano, junto com sangue dos demais seres vivos que foram mortos para implantar projetos genocidas e ecocidas de crescimento econômico.

Ao dialogar, nas demais regiões, sobre os motivos para que tantas famílias migrassem para as áreas de colonização, foi tomada a decisão de que a Pastoral da Terra era necessária também nelas. Por isso, no final de 1977, a CPT já contava com equipes regionais em 16 estados e, nos anos seguintes, tornou-se um serviço eclesial presente em todo o território nacional.

3 Os fundamentos desta Pastoral

Desde o início, e isso pode ser constatado na sequência dos Boletins da CPT, que teve seu primeiro número mensal publicado em janeiro de 1976, houve permanente necessidade e cuidado em relação à fundamentação bíblica e teológica desta nova pastoral. Não tanto com o objetivo de publicar teses e livros, e sim para alimentar a espiritualidade, manter uma mística profunda, fundamentar a esperança. Afinal, como e por que viver a fé cristã no meio dos conflitos pela terra que afetavam povos e comunidades? Por outro lado, se os conflitos, com massacres e assassinatos, existiam e eram conhecidos, poderia permanecer indiferente a eles quem vive e anuncia a fé cristã? Mais ainda, se a constatação foi a de que os que provocavam os conflitos e usavam da violência para aumentar o tamanho de suas propriedades mentiam ao dizer que os povos indígenas e camponeses eram pacíficos, quando na verdade os forçavam a não falar e denunciar, e mesmo matavam quem resistia, o não envolver-se nesses conflitos não significaria grave infidelidade ao seguimento de Jesus de Nazaré? O que faria o samaritano da parábola de Jesus de Nazaré? Por isso tudo, qual a missão que Deus confiava à Pastoral da Terra, aos seus agentes?

Para que essa dimensão da vida e da missão tivesse fundamentos firmes e seguros, foi muito importante a entrada do beneditino Marcelo Barros na CPT. Por estar na origem da leitura popular e orante da Bíblia, junto com Frei Carlos Mesters e tantas e tantos outros, sua contribuição foi a de relacionar a realidade da vida e da fé dos que enfrentavam conflitos pela terra com as mensagens da Bíblia, dos Santos Padres, do Concílio, de Medellín e da teologia da libertação nascente. Isso resultou num reforço aos envolvidos nos conflitos e aos agentes da Pastoral da Terra.

Esse caminho de busca, de reflexão e de celebração foi se aprofundando, ao ponto de levar Marcelo Barros unir-se ao padre José Caravias, missionário no Paraguai, para escrever e publicar o livro Teologia da Terra, fazendo parte da coleção Teologia da Libertação, publicado pela Vozes em 1988. Antes disso, em 1981, Marcelo já havia publicado, pela Vozes, o livro A Bíblia e a luta pela Terra (outros livros em: http://www.marcelobarros.com/page/lista-de-livros-publicados/).

É fundamental destacar duas coisas. A primeira é que, ao contrário do que acusavam pessoas que não concordavam com os trabalhos da Pastoral da Terra, seus agentes sempre apreciaram, aprofundaram e alimentaram sua vida e missão na busca de uma fundamentada fidelidade ao seguimento de Jesus de Nazaré, mesmo quando as áreas de atuação os levavam a atuar junto com irmãs e irmãos de outras igrejas cristãs e de outras religiões. Além disso, novamente contradizendo os acusadores, a Pastoral da Terra sempre foi promotora de celebrações, fossem ligadas aos desafios das lutas, às vitórias conquistadas, às iniciativas de estímulo à solidariedade com as pessoas injustiçadas, e de modo particular e mais desafiador, ao enfrentar os assassinatos, procurando buscar a mensagem presente no martírio de irmãs e irmãos. Poucas pastorais realizaram tantas Romarias da Terra e, depois de um tempo, Romarias da Terra e das Águas, quase sempre em áreas de conflito, com o objetivo de levar a mensagem e o convite para que mais e mais pessoas reforçassem esta Pastoral, para que a conquista da terra fosse, ao mesmo tempo, avanço na construção do Reino de Deus.

Com o passar do tempo, e fruto da escuta e da acolhida da presença e ação de Deus em cada povo e comunidade, a CPT vai se tornando macroecumênica de forma permanente, ao ponto de mudar sua relação com a CNBB para definir-se como entidade ecumênica. Ao contrário de isso significar abandono da busca de fundamentos para sua espiritualidade, a acolhida da visão e da vivência espiritual dos povos indígenas e negros em relação à terra, fez com que a Terra passasse a ser reconhecida como Pachamama, Mãe Terra, e as relações com ela tomassem a característica de território, e não mais de propriedade. Por isso, a luta pela terra tomou outro sentido, e a contestação do caráter reducionista da propriedade capitalista passou a ter um sentido de vivência espiritual. De fato, para estes povos o território não é nem pode ser uma propriedade. Ele é o espaço coletivo destinado a um povo, dado pela Mãe Terra. É nele e com ele que se constrói a identidade de cada povo. Por isso, a propriedade, de modo especial quando é usada para extrair os bens criados pela Terra e para enriquecer, não passa de uma ocupação não autorizada pela Mãe, uma usurpação de algum território que a Terra havia destinado a um povo.

4 Rosto rural da Igreja

A CPT sempre evitou assumir o que muitas pessoas desejavam: ser a entidade que atuaria em lugar das comunidades eclesiais. Ela procurou, com diferentes iniciativas, ser mobilizadora dessas comunidades para que assumissem a defesa dos direitos dos empobrecidos do campo. Junto com as demais pastorais sociais, articuladas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, contribuiu para que a dimensão social da fé fosse assumida por todas e todos os seguidores de Jesus de Nazaré (CNBB, 2001).

Uma contribuição significativa à vivência dessa dimensão social da fé foi dada pela CPT na assessoria à CNBB na elaboração do documento Igreja e Problemas da Terra, debatido e aprovado na Assembleia Geral de 1980, especialmente na fundamentação para incluir a diferenciação entre “terra de exploração” e “terra de trabalho”:

84. Terra de exploração é a terra de que o capital se apropria para crescer continuamente, para gerar sempre novos e crescentes lucros. O lucro pode vir tanto da exploração do trabalho daqueles que perderam a terra e seus instrumentos de trabalho, ou que nunca tiveram acesso a eles, quanto da especulação, que permite o enriquecimento de alguns à custa de toda a sociedade.

85. Terra de trabalho é a terra possuída por quem nela trabalha. Não é terra para explorar os outros nem para especular. Em nosso país, a concepção de terra de trabalho aparece fortemente no direito popular de propriedade familiar, tribal, comunitária e no da posse. (CNBB, 1980)

Isso possibilitou que a Igreja se posicionasse em relação à dimensão ética e social da propriedade, evitando os equívocos produzidos a partir da afirmação genérica de que a doutrina social da Igreja aprovava a propriedade de terra. A reação dos grandes proprietários de terra e de seus aliados, cuja riqueza é assentada sobre outras formas de propriedade privada e sobre a exploração do trabalho e a especulação, foi reveladora: isso seria infidelidade ao ensino da Igreja, que sempre defendeu a propriedade. Evidentemente, a prática e a boa nova de Jesus nunca deixaram dúvida em relação a quem explora os irmãos e irmãs e a quem usa a propriedade apenas para seu enriquecimento: ninguém pode servir a dois senhores: a Deus – presente no irmão e irmã – e ao dinheiro/riqueza (Mt 6,24).

Foi motivo de alegria o reconhecimento de ser o rosto rural da Igreja, mais ainda quando veio de Dom Pedro Casaldáliga, um dos que praticavam essa pastoral antes de seu nascimento como articulação nacional, um dos seus geradores. Mas a alegria é mais completa quando se torna prática qualitativa de cada comunidade cristã, e quando inspira também pessoas de boa vontade que não comungam a fé cristã, mas amam a humanidade e a Mãe Terra.

5 A busca do Bem Viver

A Pastoral da Terra contribuiu para que se aprofundasse a consciência de que “a Terra é de Deus”, confiada à humanidade e a todos os seres vivos, e por isso não podem ser legitimadas as práticas de apropriação que dividem e geram pobreza e miséria das pessoas, famílias, comunidades e povos que ficam sem acesso a ela. Esse tem sido o motivo para que a CPT buscasse de forma mais concreta caminhos de superação do que foi produzido pelas sociedades determinadas hegemonicamente pela economia capitalista, assentada na apropriação privada dos bens que servem para multiplicar sua riqueza, inclusive a força de trabalho criativo dos seres humanos. E é para que essa qualidade humana esteja disponível que a propriedade da terra sem limites é defendida como um absoluto. Para que tome a forma aparente de um direito, leis são formuladas e aprovadas pelas instituições estatais, e o sistema judiciário as assume como se fossem assentadas num alegado direito natural, e por isso, inquestionáveis. Na verdade, perderiam esse caráter se o Estado fosse administrado de fato por representantes de toda a população e seu funcionamento tivesse como objetivo a garantia de todos os direitos de todas as pessoas, a começar pelo direito à vida, à alimentação, à moradia, à educação, ao trabalho, à renda justa, à cultura, ao lazer… E para isso, que contasse com uma política de distribuição justa da renda e riqueza.

Na busca desse caminho, ou caminhos, a articulação mais direta com os povos indígenas significou um profundo aprendizado. De fato, antes de ser um anúncio teórico, o Bem Viver é um rico sistema de vida que os povos indígenas praticam há milênios.

Uma vez reconhecido, o Bem Viver se torna ponto de referência para avaliar tanto as relações entre as pessoas, como as relações com a Mãe Terra e o Cosmos. Torna-se, por isso, possibilidade de crítica das relações destruídas pelo sistema dominante capitalista, e alternativa de caminho para a construção de sociedades pós-capitalistas. Ele possibilita a releitura crítica da história, invertendo os atores: em vez de buscar os feitos dos diferentes construtores das sociedades comandadas pelos que foram implementando a destruição de bens naturais para gerar crescimento econômico concentrado e desigualdade, torna-se possível vê-los como portadores do poder que impediu que a humanidade avançasse contando com os valores presentes nas comunidades e povos indígenas. Não teríamos, com certeza, os terríveis desafios do aquecimento global e do anunciado colapso climático, já que são exatamente frutos do sistema que exige crescimentismo, produtivismo e consumismo, práticas que já não as aguentam nem os pobres nem a Terra, como repete o papa Francisco. Teríamos, mais uma vez com certeza, outra civilização.

A defesa dos diferentes biomas brasileiros significa que a CPT vai abandonando a visão antropocêntrica, e vai aprendendo a sentir-se parte da história da própria Terra. Ao lutar em favor de formas agroecológicas e agroflorestais de produção, significa que está reaprendendo a cuidar da terra, mas deixando-se, ao mesmo tempo, ser cuidada por ela. A vida humana depende da vida da Terra, e o conjunto dos seres vivos constituem uma grande comunidade da vida.

Caminhar na direção de sociedades de Bem Viver significa, na essência, reconstruir relações comunitárias e de cooperação nas comunidades e entre as comunidades dos diferentes povos que constituem a humanidade, e relações harmoniosas com todos os seres vivos e com a própria Mãe Terra. Só constroem esse caminho as pessoas que, como o papa Francisco, colocam em prática um processo constante de conversão ecológica, avançando na espiritualidade da ecologia integral.

6 A memória dos mártires

Enquanto a busca do Bem Viver é perseguida pelos que comandam e se servem do sistema dominante, centrado num tipo de economia que idolatra a propriedade – na forma de solo, minério, água, indústria, títulos de crédito e de dívidas, dinheiro, mercadorias – e coisifica também os seres humanos; que promove o consumismo, o desperdício e propõe o egoísmo e a indiferença como valores máximos; enquanto a guerra e o assassinato de lideranças são assumidos como estratégias válidas para impedir quem luta pelo direitos das pessoas e da Terra, a CPT mantém a missão de documentar e tornar público o número, as características e a injustiça presente em cada ameaça à vida, em cada morte violenta de irmãs e irmãos por causa da luta pela terra, que os pobres identificam com a luta pela vida, e que os ricos tentam justificar como garantia e ampliação de seus privilégios. Desde os anos 1980 até hoje, esse serviço prestado pela CPT, mesmo combatido pelos que se beneficiariam com o esquecimento, tornou-se referência e memória. Referência para quem estuda a dura realidade da luta pela terra no Brasil. Memória para quem continua na luta popular pela terra na forma de território de vida e convivência, de cuidado e cultivo de alimentos, de construção de sociedades de Bem Viver. Cada mulher e homem sacrificado nessa luta é lembrado como testemunho de que vale a pena seguir nesse caminho de libertação.

Todo ano é feita a publicação do livro Conflitos no Campo Brasil, que em 2019, no contexto de um governo federal escandalosamente comprometido com os grandes proprietários e claramente contrário aos direitos dos camponeses, especialmente os sem-terra, tem como subtítulo: Ninguém solta a mão de ninguém. Em mais de 240 páginas, junto com dados quantitativos, há análises críticas e, especialmente, os nomes dos que foram assassinados, para que a sua morte seja semente de esperança para os que lutam para que a Terra seja de fato Casa Comum, e não mais campo de batalha e de negação do direito à vida (CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DOM TOMÁS BALDUINO, 2018).

Nesse serviço em favor da memória, constam também os cristãos de comunidades, os e as religiosas, padres, que partiram mais cedo por terem assumido esse caminho de construção de um mundo mais humano. Mas todas e todos os sacrificados são mártires, testemunhas que tiveram o sangue derramado porque buscaram sociedades de Bem Viver, avançando na direção do Reino de Deus, vivido e anunciado por Jesus de Nazaré como algo já presente e meta plena a ser alcançada.

7 Salvar a Amazônia para salvar a vida

As dioceses e prelazias da Amazônia têm procurado, desde 1972, caminhar juntas através de encontros regionais, em que refletiram sobre a realidade e buscaram assumir formas de realização da sua missão que as levassem a ter um rosto amazônico. Segundo Dom Moacyr Grecchi, bispo do Acre e, depois, de Porto Velho, de saudosa memória, já o encontro de “Santarém definiu o rosto da Igreja na Amazônia” (GRECCHI, 2012).

Mas agora, tendo vivido um rico processo de escuta dos povos e comunidades em preparação ao Sínodo para a Amazônia, convocado pelo papa Francisco, e tendo aprovado um rico documento do Sínodo realizado no Vaticano (ASSEMBLEIA ESPECIAL DO SÍNODO DOS BISPOS PARA A REGIÃO PAN-AMAZÔNICA, 2019), abre-se o tempo de aproximar a palavra com a vida, o tempo pós-sinodal. Trata-se de implementar um processo de conversão nas diferentes dimensões da missão eclesial, visando ser ainda mais uma igreja com rosto amazônico. Para ser amazônico, o rosto deverá ter feições populares: indígenas, afrodescendentes, femininas, juvenis, de pessoas que vivem nas periferias urbanas, nas florestas, nas encostas dos rios. Ser de fato uma igreja em saída, que vai ao encontro e convive com as pessoas, comunidades e povos. E para isso, ter a coragem de renovar-se, de dar os passos que a realidade exige.

Caberá especialmente à Pastoral da Terra, junto com a Indígena, ambas participantes da articulação que constitui o Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, manter viva a consciência de que ou se consegue salvar a Amazônia, ou se agravarão perigosamente as mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global. O Brasil e os demais países da América do Sul, e o mundo todo, de diferentes maneiras, dependem da Amazônia para continuar tendo relativo equilíbrio hídrico. Por isso, a Ecologia integral, que se alcança com a conversão ecológica, é o caminho a ser seguido:

É urgente enfrentar a exploração ilimitada da “casa comum” e dos seus habitantes. Uma das principais causas de destruição na Amazônia é a atividade extrativa predatória, que responde à lógica da ganância, típica do paradigma tecnocrático dominante (LS 101). Diante da situação premente do planeta e da Amazônia, a ecologia integral não é mais um caminho que a Igreja pode eleger para o futuro neste território, é o único caminho possível, pois não há outra estrada viável para salvar a região. A depredação do território vem junto do derramamento de sangue inocente e da criminalização dos defensores da Amazônia. (ASSEMBLEIA ESPECIAL DO SÍNODO DOS BISPOS PARA A REGIÃO PAN-AMAZÔNICA n.67)

Será essencial, por isso, que a decisão do Sínodo de reconhecer que a Terra é sujeito de direitos e de que a agressão ao meio ambiente é pecado ecológico se tornem consciência popular e motivo para ampla mobilização em favor da vida da e na Amazônia, assim como nos demais biomas brasileiros:

74. Cabe a todos nós sermos guardiões da obra de Deus. Os protagonistas do cuidado, proteção e defesa dos direitos dos povos e dos direitos da natureza nesta região são as próprias comunidades amazônicas. São eles os agentes de seu próprio destino e de sua própria missão. Neste cenário, o papel da Igreja é de aliada. Eles expressaram claramente que querem que a Igreja os acompanhe, que caminhe com eles e que não lhes imponha um modo particular de ser, um modo específico de desenvolvimento que pouco tem a ver com as suas culturas, tradições e espiritualidades

84. (…) Comprometer-se ativamente no plantio de árvores, buscando alternativas sustentáveis na agricultura, energia e mobilidade que respeitem os direitos da natureza e os povos.

82. Propomos definir o pecado ecológico como uma ação ou omissão contra Deus, contra o próximo, a comunidade e o meio ambiente. É um pecado contra as gerações futuras e se manifesta em atos e hábitos de contaminação e destruição da harmonia do ambiente, em transgressões contra os princípios da interdependência e na ruptura das redes de solidariedade entre as criaturas (cf. Catecismo da Igreja Católica n.340-344) e contra a virtude da justiça.

Vale a pena encerrar esse texto com as palavras do cacique Raoni Metuktire, do povo Kayapó, publicadas no jornal The Guardian, desejando que o Sínodo da Amazônia defina “novos caminhos para a igreja e para uma ecologia integral” contando com a sabedoria e espiritualidade de todos os povos da região:

Por muitos anos, nós, os líderes indígenas e os povos da Amazônia, temos avisado vocês, nossos irmãos que causaram tantos danos às nossas florestas. O que você está fazendo mudará o mundo inteiro e destruirá nossa casa – e destruirá sua casa também.

Temos deixado de lado nossa história dividida para nos unirmos. Apenas uma geração atrás, muitos de nossos povos estavam lutando entre si, mas agora estamos juntos, lutando juntos contra nosso inimigo comum. E esse inimigo comum são vocês, os povos não-indígenas que invadiram nossas terras e agora estão queimando até mesmo aquelas pequenas partes das florestas onde vivemos, que vocês deixaram para nós. O presidente Bolsonaro, do Brasil, está incentivando os proprietários de fazendas perto de nossas terras a limpar a floresta – e ele não está fazendo nada para impedir que invadam nosso território.

Pedimos que você pare o que está fazendo, pare a destruição, pare o seu ataque aos espíritos da Terra. Quando você corta as árvores, agride os espíritos de nossos ancestrais. Quando você procura minerais, empala o coração da Terra. E quando você derrama venenos na terra e nos rios – produtos químicos da agricultura e mercúrio das minas de ouro – você enfraquece os espíritos, as plantas, os animais e a própria Terra. Quando você enfraquece a Terra assim, ela começa a morrer. Se a Terra morrer, se nossa Terra morrer, nenhum de nós será capaz de viver, e todos nós também morreremos.

Por que você faz isso? Você diz que é para desenvolvimento – mas que tipo de desenvolvimento tira a riqueza da floresta e a substitui por apenas um tipo de planta ou um tipo de animal? Onde os espíritos nos deram tudo o que precisávamos para uma vida feliz – toda a nossa comida, nossas casas, nossos remédios – agora só há soja ou gado. Para quem é esse desenvolvimento? Apenas algumas pessoas vivem nas terras agrícolas; eles não podem apoiar muitas pessoas e são estéreis.

Você destrói nossas terras, envenena o planeta e semeia a morte, porque está perdido. E logo será tarde demais para mudar.

Então, por que você faz isso? Podemos ver que é para que alguns de vocês possam obter uma grande quantia de dinheiro. Na língua Kayapó, chamamos seu dinheiro de piucaprim, “folhas tristes”, porque é uma coisa morta e inútil, e traz apenas danos e tristeza.

Quando seu dinheiro entra em nossas comunidades, muitas vezes causa grandes problemas, separando nosso pessoal. E podemos ver que faz o mesmo em suas cidades, onde o que você chama de gente rica vive isolado de todos os outros, com medo de que outras pessoas venham tirar seu piucaprim. Enquanto isso, outras pessoas passam fome ou vivem na miséria porque não têm dinheiro suficiente para conseguir comida para si e para seus filhos.

Mas essas pessoas ricas vão morrer, como todos nós vamos morrer. E quando seus espíritos forem separados de seus corpos, seus espíritos ficarão tristes e vão sofrer, porque enquanto vivos fizeram com que muitas outras pessoas sofressem em vez de ajudá-las, em vez de garantir que todos os outros tenham o suficiente para comer, antes de alimentar a si próprio, como é o nosso caminho, o caminho dos Kayapó, o caminho dos povos indígenas.

Você tem que mudar a sua maneira de viver porque está perdido, você se perdeu. Onde você está indo é apenas o caminho da destruição e da morte. Para viver, você deve respeitar o mundo, as árvores, as plantas, os animais, os rios e até a própria Terra. Porque todas essas coisas têm espíritos, todas elas são . alimentares murcharão e morrerão também.

Todos nós respiramos esse ar, todos bebemos a mesma água. Vivemos neste planeta. Precisamos proteger a Terra. Se não o fizermos, os grandes ventos virão e destruirão a floresta.

Então você sentirá o medo que nós sentimos. (RAONI, 2019)

Ivo Poletto[2]. Comissão Pastoral da Terra. Texto original em português. Postado em dezembro de 2020.

 Referências

ASSEMBLEIA ESPECIAL DO SÍNODO DOS BISPOS PARA A REGIÃO PAN-AMAZÔNICA. Amazônia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral. Documento final. 2019. Disponível em: http://www.sinodoamazonico.va/content/sinodoamazonico/pt/documentos/documento-final-do-sinodo-para-a-amazonia.html Acesso em: 4 nov 2020.

BARROS, M.  A Bíblia e a luta pela terra. Petrópolis: Vozes, 1981.

______. Tierra de la Fraternidad. Quito: Cuenca, 1989.

______. A festa dos pequenos. São Paulo: Paulus, 1995.

______. Os pequenos possuirão a terra. São Paulo: CONIC/CESE, 1997.

BARROS, M.; CARAVIAS, J. Teologia da Terra. Petrópolis: Vozes, 1988.

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DOM TOMÁS BALDUINO. Goiânia: CPT Nacional, 2018. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/cedoc-dom-tomas-balduino-da-cpt/81-banner/banner-cedoc. Acesso em: 4 nov 2020.

CNBB. Setor de pastoral social. O que é a pastoral social? Brasília: CNBB, 2001. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/cartilhas/dht/cartilha_pastoral_social.pdf. Acesso em: 4 nov 2020.

CNBB. Igreja e problemas da terra. Brasília: CNBB, 1980. Disponível em: https://pstrindade.files.wordpress.com/2015/01/cnbb-doc-17-igreja-e-problemas-da-terra.pdf. Acesso em: 4 nov 2020.

FRANCISCO. Encíclica Laudato si’. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus, 2013.

______. Exortação pós-sinodal Querida Amazônia. São Paulo: Paulinas, 2020.

______. Encíclica Fratelli tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Loyola, 2020.

GRECCHI, M. Santarém definiu o rosto da Igreja na Amazônia. IHU On-line. Entrevista, 4 julho 2012. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/511154-dom-moacyr-grecchi-santarem-definiu-o-rosto-da-igreja-na-amazonia- Acesso em: 12 set 2020.

IMAZON. Estudo indica prejuízo de R$ 118 bilhões ao país com a privatização de terras na Amazônia. Publicação site em 17 jun 2019. Disponível em: https://imazon.org.br/imprensa/estudo-indica-prejuizo-us-118-bilhoes-ao-pais-com-privatizacao-de-terras-na-amazonia/ Acesso em: 6 nov 2020.

POLETO, I.; CANUTO, A. Nas pegadas do povo da terra. 25 anos da Comissão Pastoral da Terra. São Paulo: Loyola, 2002.

RAONI. Nós, povos da Amazônia estamos cheios de medo. Em breve vocês também terão. The Guardiam. 2019. Disponível em: http://midianinja.org/news/nos-povos-da-amazonia-estamos-cheios-de-medo-em-breve-voces-tambem-terao-diz-cacique-raoni/ Acesso em: 3 jan 2021.

SILVA, D. A. Ato institucional nº 5. Mundo Educação UOL. Disponível em: https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historiadobrasil/o-ato-institucional-n-5-ai-5.htm. Acesso em: 4 fev 2020.

[1] SILVA, D. A. (Mundo Educação – UOL): O ano de 1968 ficou marcado na história como um ano de manifestações pelo mundo todo. Na Europa, nos Estados Unidos e na China milhares foram às ruas protestar contra as condições de trabalho e educação e contra a Guerra no Vietnã, por exemplo. No Brasil, uma onda de revolta e resistência à ditadura civil-militar ocorreu em todo o país. Para contê-la, o general Costa e Silva decretou o Ato Institucional nº 5, o AI-5, considerado como um golpe dentro do golpe, fortalecendo o poder autoritário dos militares.

[2]IVO POLETTO, filósofo, teólogo e cientista social. Foi o primeiro secretário executivo da Comissão Pastoral da Terra, entre 1975 e 1980, continuando como assessor nacional até 1992. De 1093 a 2002 foi assessor da Cáritas Brasileira. Foi membro da equipe de educação cidadã do Programa Fome Zero em 2003 e 2004. Assessorou as pastorais sociais entre 2005 até 2010, e assumiu a assessoria do Fórum Mudanças Climáticas e Justiço Socioambiental em 2010, e nele atua até os dias atuais. É autor do livro Brasil: oportunidades perdidas – Meus dois anos no governo Lula. Ed. Garamond, Rio de Janeiro, 2005, e organizou a publicação, entre outros, do livro Uma Vida a Serviço da Humanidade – Diálogos com Dom Tomás Balduino. Editora Lpyola: São Paulo, 2002.

Música Ritual Cristã

Sumário

Introdução

1 A música como expressão da vida humana

2 A música na tradição judaico-cristã

2.1 O “cântico de Moisés” e o “cântico do Cordeiro”

2.2 Os “louvores” do Senhor

2.3 Cantores e instrumentistas

3 A música ritual cristã

3.1 A música como rito

3.2 Repertório litúrgico

3.3 Critérios para a escolha do repertório litúrgico

4 A título de conclusão

Referências

Introdução

Dada a amplitude do tema em questão, optamos por abordá-lo sob três eixos, a saber: 1) a música como expressão da vida humana; 2) a música na tradição judaico-cristã; 3) a música ritual cristã. Optamos, igualmente, pelo uso do termo “música ritual” para designar aquela música ligada aos ritos dos diversos povos e culturas, e “música ritual cristã” para a música utilizada na liturgia cristã.

1 A música como expressão da vida humana

Desde sua origem, a vida humana é povoada de sons. A experiência da escuta dos primeiros sons remonta ao seio materno. No mundo intrauterino, o novo ser é gestado num ambiente potencialmente sonoro, a começar pelos sons advindos do próprio corpo de sua genitora e da reverberação de outros, provenientes do mundo exterior. Após o nascimento, o recém-nascido vai, aos poucos, ampliando sua capacidade de escuta, a partir dos múltiplos sons vindos do novo mundo que o cerca: da natureza em si e daqueles produzidos pelos humanos. É mediante essa escuta que a criança, de forma gradativa, reage e emite seus próprios sons.

            A música é resultante da “organização” de sons, desde sua forma mais elementar até complexas estruturas, envolvendo instrumentos musicais e a voz humana. Aliás, pode-se afirmar que a origem da música se confunde com a gênese do ser humano e, igualmente, assegurar que ela exerce extraordinário poder sobre os humanos. Esse poder é capaz de influenciar comportamentos, de transformá-los positiva ou negativamente e transportá-los de um extremo a outro, a ponto de converter tristeza em alegria, agitação em serenidade, desespero em esperança… e vice-versa. É provável que a célebre “classificação” dos modos gregorianos, de Adão de Fulda (†1490), tenha a ver com isso:

Omnibus est primus, sed alter est tristibus aptus;

tertius iratus, quartus dicitur fieri blandus;

quintum da laetis, sextum pietate probatis;

septimus est iuvenum, sed postremus sapientum.

(O primeiro se presta a todos os sentimentos, o segundo para sentimentos tristes;

o terceiro para a ira, o quarto tem caráter lisonjeiro;

o quinto é alegre, o sexto é para devotos,

o sétimo é dos jovens, mas o oitavo é dos sábios.)

Outro provérbio medieval, igualmente, reza:

Primus gravis, secundus tristis;

tertius misticus, quartus harmonicus;

quintus laetus, sextus devotus;

septimus angelicus, octavus perfectus.

(O primeiro modo é sério, o segundo triste,

o terceiro místico, o quarto harmônico,

o quinto alegre, o sexto devoto,

o sétimo angélico, o oitavo perfeito.)

Enfim, a música acompanha as pessoas, em circunstâncias diversas da vida, como no lazer, no trabalho, na terapia ocupacional e medicinal, na festa, no luto… Contudo, a qualidade dessa “presença” e o grau de intensidade em que esta ou aquela música atinge cada pessoa dependerão da índole cultural de cada povo ou grupo, inclusive de suas disposições interiores e exteriores.

No âmbito religioso, a música ocupa lugar privilegiado, a ponto de exercer um tipo de “poder espiritual”. Para muitas tradições, além de favorecer o contato direto com a divindade, ela possui atributos divinos e, por isso mesmo, é capaz de levar as pessoas ao transe, ao êxtase, à hipnose. Já em tempos remotos, tinha-se também a consciência de que a música era possuidora de uma virtude mágica, capaz de dispor, a favor ou contra a pessoa, espíritos bons ou maus. Disso se explica a predileção dos povos antigos pela música nos seus cultos e sacrifícios.

Contudo, vale o alerta de que o conceito “música” deve ser entendido, aqui, em sentido amplo, abarcando “desde os gritos ou os ruídos mais ou menos rítmicos, conseguidos com a percussão das mãos sobre frutas ou troncos vazios, até a música mais artística com melodias cantadas ao som de instrumentos musicais mais elaborados” (BASURKO, 2005, p. 51).

2 A música na tradição judaico-cristã

Dentre os diversos povos, o de Israel se destaca como um povo eminentemente musical. A Sagrada Escritura é a melhor referência disso. Nesse livro sagrado, encontram-se abundantes referências à música, tanto ligada à voz humana quanto aos diversos instrumentos musicais. “A música instrumental, unida à dança, à poesia e ao canto, colaborou com a constante renovação do Povo de Deus, memorizando o conteúdo de sua História Sagrada” (MONRABAL, 2006, p. 16).

A título de curiosidade, vale dizer que a palavra “cantar”, bem como suas derivadas, é tida como a mais utilizada na Bíblia: no Antigo Testamento, ocorre 309 vezes; no Novo Testamento, 36 vezes (cf. RATZINGER, 2019, p. 121). Disso se deduz que, quando o ser humano se propõe entrar em contato com a divindade, o simples falar é insuficiente. O canto é expressão mais eloquente para o diálogo amoroso das criaturas com seu criador: “Eu te louvarei entre os povos, Senhor, a ti cantarei salmos entre as nações, pois a tua misericórdia elevou-se até os céus e até as nuvens, a tua fidelidade” (Sl 57,10-11).

2.1 O “cântico de Moisés” e o “cântico do Cordeiro”

Não por acaso, a experiência fundante da fé de Israel — a travessia do Mar Vermelho — foi celebrada com um “cântico” (Ex 15,1-18). Esse “cântico de Moisés”, além de ser paradigma da experiência libertadora de Deus vivida pelo povo da Primeira Aliança, é, também, a primeira referência do cantar na Sagrada Escritura. Desse louvor originário desabrocharam os salmos e demais cânticos bíblicos, poemas que, além de fazer alusões a instrumentos musicais e aos diversos modos de cantá-los, expressam, sobretudo, experiências de vida convertidas em oração e canto: luto, lamento ou acusação, temor, esperança, confiança, gratidão, alegria etc. “Os salmos brotam, muitas vezes, de experiências muito pessoais de dor e de realização, depois conduzem, contudo, à oração comum de Israel, assim como se nutrem do fundamento comum das ações já realizadas por Deus” (RATZINGER, 2019, p. 123). Não sem razão, alguns Padres da Igreja veem nesses hinos o resumo de toda Escritura.

Se o “cântico de Moisés” (Ex 15,1-18) é paradigma para o povo da Primeira Aliança, o “cântico do Cordeiro” (Ap 15,2-4) é, igualmente, paradigmático para o povo na “nova e eterna Aliança”. Na verdade, esses dois cânticos constituem uma moldura que abarca toda a Sagrada Escritura. Daí, seu uso regular na liturgia.

Na tradição judaica, o “cântico de Moisés” era entoado na oração matinal do Shabat, depois do sacrifício vespertino e, por suposição, na liturgia pascal, de forma especial no sétimo dia da Páscoa (cf. BASURKO, 2005, p. 180). A razão primordial desse cantar consiste na dinâmica do memorial que, além de atualizar a experiência do evento fundante da libertação de Israel da servidão do Egito, inclui a perspectiva futura, quando se cantará o “canto novo”, nos dias do Messias. Na liturgia cristã, esse cântico é entoado na Vigília Pascal, logo após a proclamação da terceira leitura (Ex 14,15-15,1), e na Liturgia das Horas, no Ofício de Laudes do sábado, da primeira semana do saltério.

O “cântico do Cordeiro”, por sua vez, aparece relacionado com o “cântico de Moisés”:

Vi como que um mar de vidro misturado com fogo; e todos aqueles que saíram vitoriosos do confronto com a fera, com a sua estátua e com o número do seu nome, estavam de pé sobre o mar de vidro, tendo nas mãos harpas de Deus. Entoavam o cântico de Moisés, o servo de Deus, e o cântico do Cordeiro: “Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus, Todo-poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações! Quem não temerá, Senhor, e não glorificará o teu nome? Só tu és santo! Todas as nações virão prostrar-se diante de ti, porque tuas justas decisões se tornaram manifestas” (Ap 15,2-4).

A título de exemplo, apontaremos algumas correspondências significativas entre os dois cânticos, a saber: a) a imagem do “mar de vidro misturado com fogo”, alusão ao Mar Vermelho do Êxodo; b) os protagonistas “vitoriosos do confronto com a fera”, alusão aos que atravessaram o Mar Vermelho a pé enxuto, enquanto os egípcios foram tragados pelas águas; c) as imagens (tipológicas) de “Moisés” e do “Cordeiro”; d) os gestos litúrgicos: “de pé”, “cantavam…”, comuns nos respectivos relatos.

Em suma, pode-se afirmar que o “cântico do Cordeiro” é um sumário do “cântico de Moisés”, bem como de toda a História da Salvação, uma vez que seu texto se limita a cantar, genericamente, as “grandes e admiráveis obras do Todo-poderoso” e a reafirmar que os caminhos de Deus são “justos e verdadeiros” e que suas “justas decisões se tornaram manifestas”. E mais: o “cântico do Cordeiro”, é, na verdade, o “cântico novo” que trouxe a redenção definitiva. “É a resposta nova admirativa diante da novidade da Jerusalém celeste, onde aquele que está sentado em seu trono fez novas todas as coisas” (BASURKO, 2005, p. 192). O “cântico do Cordeiro” é entoado na Liturgia das Horas, no ofício vespertino da sexta-feira.

2.2 Os “louvores” do Senhor

Os salmos e demais cânticos bíblicos constituem um patrimônio memorial da oração de Israel. Nesses “louvores” estão expressos sentimentos que brotam das profundezas do coração humano, perante aquele que, desde sempre, se manifesta como criador, libertador, protetor, defensor… Os diversos gêneros (louvor, ação de graças, súplica…) nos permitem entrever o estado da “alma sedenta” que procura o Deus vivo (Sl 42/41,1). O saltério guarda

um mistério, para que as gerações não cessem de voltar a esse canto, de se purificar nessa fonte, de interromper cada versículo, cada palavra da antiga prece, como se seus ritmos tivessem a pulsação dos mundos. Pois o mundo nele se reconheceu. Como narra a história de todos, ele tornou-se o livro de todos, infatigável e perspicaz embaixador da palavra de IHVH junto aos povos da terra. Também aí ele se insinuou em toda parte: em todos os batismos, em todos os casamentos, em todos os enterros, em todas as igrejas. Está presente em todas as festas e em todos os lutos de quase todas as nações (CHOURAQUI, 1998, p. 13).

Os cristãos, desde cedo, lançaram mão desses poemas sagrados. Nossos pais e mães na fé se inserem na oração de Israel, conscientes de estarem entoando um “canto novo”, pois

O Espírito Santo, que inspirou Davi a cantar e a rezar, o faz falar de Cristo, ou melhor, o faz tornar boca de Cristo e, desse modo, nós, nos salmos, mediante Cristo, falamos ao Pai no Espírito Santo. Esta interpretação conjuntamente pneumatológica e cristológica dos Salmos, porém, não se refere apenas ao texto, mas envolve o elemento musical: é o Espírito Santo que ensina a cantar primeiro a Davi e depois, por meio dele, a Israel e à Igreja (RATZINGER, 2019, p. 124).

É sobretudo na Liturgia das Horas que esses “louvores” revelam seu poder de elevar as mentes, de despertar os corações para os mais profundos afetos, bem como de propiciar o consolo, a fortaleza e o ânimo. “Quem salmodia sabiamente irá percorrendo versículo por versículo, meditando um após outro, sempre disposto em seu coração a responder como exige o Espírito que inspirou o salmista e assistirá igualmente as pessoas devotas, dispostas a receber a sua graça” (IGLH n. 104). A esse duplo movimento de recitação e de escuta, Goffredo Boselli chama de “inteligência espiritual” ou “inteligência dos sentidos”. Essa “inteligência” pressupõe uma equilibrada integração dos sentidos na ação litúrgica, pois estes são uma “via privilegiada” para se chegar ao sentido, ao conhecimento do mistério (cf. BOSELLI, 2019, p. 155-159).

2.3 Cantores e instrumentistas

Os “ministérios” de cantores e instrumentistas, em Israel, advinham da tribo de Levi e eram exercidos de acordo com grupos familiares, como o que vem narrado no Primeiro Livro das Crônicas:

Davi ordenou aos filhos dos levitas que designassem dentre seus irmãos os cantores, para fazerem ressoar sua alegria com instrumentos musicais, harpas, cítaras e címbalos. […] Os cantores Hemã, Asaf e Etan tocavam címbalos de bronze. Zacarias, Oziel, Semiramot, Jaiel, Ani, Eliab, Maasias e Banaías tocavam em alaúdes de tom soprano. Matatias, Elifalu, Macenias, Obed-Edom, Jeiel e Azazias faziam o acompanhamento em cítaras de oitava. Conenias, chefe dos levitas encarregados, homem entendido, dirigia o ofício. […] Os sacerdotes Sebanias, Josafá, Natanael, Amasai, Zacarias, Banaías e Elieser tocavam trombetas diante da arca de Deus (1Cr 15,16.19-22.24).

Inclusive alguns salmos conservam as indicações dessas famílias: “Asaf” (Sl 50/49; 73/72-83/82); “Coré” (Sl 42/41; 44/43-49/48); “Etan” (89/88) etc.

Outro significativo relato escriturístico deixa-nos entrever a beleza e a dignidade do serviço litúrgico-musical prestado no Templo de Jerusalém:

Todos os cantores levíticos, Asaf, Hemã, Iditun, com seus filhos e seus irmãos, lá estavam, vestidos de linho, com címbalos, harpas e cítaras, do lado oriental do altar, junto com cento e vinte sacerdotes que tocavam as trombetas. Quando todos unidos se puseram a tocar e a cantar, ouvia-se como uma única voz louvando e agradecendo ao Senhor: “Sim, ele é bom, sua misericórdia é para sempre” (2Cr 5, 12-13).

Uma vez que a música instrumental estava intimamente ligada aos sacrifícios, ela perdeu sua razão de ser com a destruição do Templo de Jerusalém. Tal silenciamento era expressão de luto por aquela tragédia. Agregada a essa motivação, uma “corrente espiritualista” no judaísmo — existente já antes da queda do Templo — desprezava o uso de instrumentos musicais no culto. Dentre os principais mestres dessa doutrina do “culto espiritual”, destaca-se Filon de Alexandria (15 aC-45 dC). Não existindo mais o Templo, a função dos levitas se reduz a dois privilégios, no culto sinagogal: ser convocado para fazer uma leitura e servir nas abluções dos sacerdotes antes de recitar a bênção da congregação. A função de “cantor” continua sendo muito apreciada, porém qualquer pessoa poderá exercê-la, desde que tenha uma bela voz (cf. MONRABAL, 2006, p. 24).

Na tradição cristã, nos sete primeiros séculos, praticamente não se usavam instrumentos musicais na liturgia. Na literatura patrística, por exemplo, encontramos total rejeição ao seu uso. Os instrumentos eram vistos pelos Padres como símbolo da vida pagã, estigmatizada pela idolatria e pela imoralidade. Inclusive a “renúncia ao diabo e a todas as suas obras”, que os catecúmenos deviam fazer na fonte batismal, incluía também a renúncia aos “espetáculos e cantos” dos pagãos (cf. BASURKO, 2005, p. 127-128).

Mesmo desaprovando o uso de instrumentos musicais na liturgia, os Padres nos legaram uma expressiva e edificante literatura (alegórica) sobre os instrumentos musicais. No interior dessas alegorias, escondem-se aspectos espirituais e doutrinais. O alvo direto dessa literatura é o mundo pagão e suas ameaças à integridade da fé. Dentre as inúmeras imagens alegóricas sobre os instrumentos musicais em geral, usadas pelos Padres, destacamos as da cítara e da lira.

A imagem da cítara — relacionada com a atuação do Espírito na assembleia que canta — se processa da seguinte forma: assim como as diferentes cordas da cítara que, graças à habilidade do tocador, produzem uma melodia harmoniosa, também a Igreja (as cordas vivas), dirigida pelo Espírito Santo, une sua voz na mais perfeita harmonia. Em outras palavras, a função do Espírito é unificar a comunidade que canta. Já a figura de Cristo aparece como o músico que realiza a união artística dos sons das diversas cordas da lira e faz subir até o Pai um maravilhoso concerto. Muitas vezes o próprio Cristo vem representado como um instrumento de Deus, e a cítara, com a sua paixão: as cordas estendidas sobre a madeira nesse instrumento musical são tidas como imagem do corpo de Cristo estendido sobre o madeiro da cruz (cf. BASURKO, 2005, p. 113-116).

Os Padres são unânimes em afirmar que a voz humana é o instrumento mais perfeito para o louvor a Deus, e se esforçam em convencer os fiéis — na sua maioria neoconvertidos do mundo pagão — que o canto puro é superior ao som de qualquer instrumento musical feito por mãos humanas. “O povo de Deus, reunido no templo para o canto de hinos e salmos, é agora a cítara espiritual que substitui e supera os instrumentos usados pelo povo judeu”. Eusébio de Cesareia chega a dizer que “superior a qualquer saltério material é a multidão que, estendida por toda o orbe, celebra ao Deus que está sobre todas as coisas, com um mesmo canto e com uma mesma harmonia”. Para Eusébio, o cantar é superior ao salmodiar. Este último ainda carece de ações corporais (do uso de instrumentos como o saltério), enquanto o cantar é mais nobre e mais espiritual — desprovido de suporte instrumental —, mais em consonância com a contemplação e a teologia.

Em suma, não só a voz, mas o ser humano como um todo é, para os Padres, o mais perfeito instrumento musical, como bem resume Santo Agostinho: “Vós sois a trombeta, o saltério, a cítara, o tímpano, o coro, as cordas e o órgão”. Portanto, para os santos Padres, os instrumentos eram considerados no sentido “espiritual”.

Vale lembrar que, mesmo depois da introdução gradativa de instrumentos musicais no culto, persistia certa ambiguidade a respeito do que era e do que não era lícito se fazer em matéria de música. Aliás, esse dilema se arrastou por todo o segundo milênio. Ainda no início do século XX, Pio X, em seu Motu Proprio Tra le Sollecitudini (1903), admite o órgão na Igreja; tolera alguns instrumentos de sopro; proíbe o piano, o tambor, o bombo, pratos, campainhas e semelhantes (cf. TLS n. 14s). Pio XII, na encíclica Musicae Sacrae Disciplina (1956), elogia o uso do órgão e admite o uso de violinos e outros instrumentos de arco, todavia continua reticente quanto ao uso de instrumentos tidos como “rumorosos” e “barulhentos” que são “destoantes do rito sagrado e da gravidade do lugar” (cf. MSD n. 28-29).

Todas as pendências sobre o uso dos instrumentos musicais na liturgia parecem ter chegado a termo com a reforma do Concílio Vaticano II. A Constituição Sacrosanctum Concilium (1963), além de classificar o “órgão de tubos” como o instrumento mais apropriado para a liturgia, admite que outros instrumentos possam ser igualmente usados, desde que haja o “consentimento da autoridade competente” e, dependendo da região, que estes sejam adaptados às circunstâncias e aos costumes do lugar (cf. SC n. 120).

A Instrução Musicam Sacram (1967), além de reconhecer a utilidade e a importância dos instrumentos musicais na liturgia, apresenta-nos também suas principais funções: sustentar o canto, facilitar a participação e criar a unidade da assembleia. Adverte-nos que o som dos instrumentos jamais deverá cobrir as vozes, de sorte que dificulte a compreensão dos textos. E mais: estes devem “se calar quando o sacerdote ou o ministro pronuncia em voz alta algum texto, por força de sua função própria”. Quanto aos solos instrumentais, a mesma Instrução — tomando como referencial a liturgia eucarística — prevê quatro momentos adequados para esse tipo de música: no início, durante a procissão de entrada do presidente e demais ministros; enquanto se faz a procissão e a preparação das oferendas; na comunhão e no final da missa (cf. MS n. 62-65).

Quanto à música puramente vocal, pouco se sabe como esta era executada nos três primeiros séculos da era cristã. Quanto aos corais, seu surgimento remonta ao século IV. Eram formados de homens, sobretudo de monges que, inicialmente, ficavam agrupados nas primeiras filas da assembleia. Não se trata, ainda, de cantores especializados, mas de pessoas que auxiliavam o canto da comunidade, executando aquelas partes mais difíceis de entoação dos salmos, hinos, aclamações, ladainhas e respostas.

No intuito de difundir o canto gregoriano em toda a Europa, aparecem, por volta do século VII, as chamadas Scholae Cantorum, que, na realidade, eram coros de meninos e de clérigos altamente especializados. Isto se fez necessário porque o canto se tornara mais rebuscado e de difícil execução. Consequentemente, os corais passaram a monopolizar o canto litúrgico, enquanto o povo se contentava na condição de ouvinte da “divina música”.

Essa situação se agravou ainda mais com o surgimento da polifonia vocal clássica, no início do segundo milênio. A partir de então, gradativamente, a música da Igreja latina foi se confundindo com a música de concerto, atingindo seu ápice nos séculos XVIII e XIX. A separação entre coral e assembleia se deu de tal forma que nas igrejas não podia faltar o “coro” — lugar elevado normalmente por cima do hall de entrada do templo, reservado aos músicos.

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II não aboliu o coral, apenas estabeleceu critérios claros quanto ao seu ministério na assembleia litúrgica. Um coral, bem formado e orientado, poderá prestar um importante serviço à assembleia, exercendo um ministério múltiplo, seja reforçando o canto litúrgico da assembleia, em uníssono, ou enriquecendo as melodias executando arranjos a mais vozes. Por exemplo: as formas litânicas do “Senhor, tende piedade de nós”, do “Cordeiro de Deus”; ou ainda a forma antifonal (coro e assembleia executando um mesmo canto, de forma alternada) são meios eficazes de integração entre coro e assembleia. Além dessas possibilidades, o coral também poderá entoar uma peça, ou motete durante a procissão e preparação das oferendas, durante ou após a comunhão.

É sempre oportuno lembrar que alguns cantos, em princípio, nunca deveriam ser executados somente pelo coral, como o “Glória” e o “Santo”. Pelo fato de esses hinos pertencerem à comunidade toda, eventuais arranjos a vozes para coro nunca deveriam impedir, mas antes, favorecer e reforçar a participação do povo. E quanto aos cantores e instrumentistas, seu melhor lugar é próximo aos demais fiéis, uma vez que seu ministério é exercido em função da participação da assembleia no mistério celebrado.

3 A música ritual cristã

Nesta seção, a abordagem sobre a música ritual cristã se limitará a três pontos, a saber: a) a música como rito; b) o repertório litúrgico; c) critérios para a escolha do repertório.

3.1 A música como rito

Como dito anteriormente (item 1), a música ocupa amplo espaço na vida dos humanos e se presta a diversas utilidades. Contudo, há um tipo de música que possui caráter próprio e se reveste de densidade “sacramental”, quando executada numa ação ritual. Essa “música ritual”, nas diversas tradições religiosas, possui vínculo estreito com o “mistério” celebrado.

Por música ritual, entendemos toda prática musical e instrumental que, na celebração, distingue-se das formas habituais, seja na palavra falada, seja nos sons ou barulhos ordinários. O domínio sonoro assim designado amplia o que, normalmente, define-se como “música” ou como “canto” em certos ambientes culturais (UNIVERSA LAUS, 1980, n. 1.4).

Aldo Terrin, ao tecer considerações sobre a música ritual em civilizações antigas, como Mesopotâmia, Egito, Índia védica, China…, aponta a relação intrínseca entre música e rito, e ressalta, igualmente, o “poder” que essa música exerce sobre as pessoas, nestes termos:

não é mais uma música de acompanhamento, mas uma música que entra para “preformare” e “performare” o rito com objetivos catárticos, apotropaicos, iniciáticos e entusiásticos. Nesses casos, a música não é apenas parte integrante, mas parte constitutiva do rito, acompanhando-o quase que necessariamente, fazendo parte da sua essência. Nesse contexto, pode-se dizer que o rito desliza para o fato musical e quase que se confunde com ele (TERRIN, 2004, p. 298).

Contudo, o mesmo autor nos previne de que não se trata de qualquer música, mas de uma autêntica “música ritual”. Esta, por sua vez, deve adequar-se ao todo simbólico do rito, funcionando como seu apoio e seu comentário. Em última análise, é o rito que, em virtude de sua própria natureza, deve apropriar-se de uma particular estrutura musical. Uma vez que o rito não comporta elementos estranhos à sua natureza, a música ali utilizada jamais deverá ser arbitrária ou autônoma (cf. TERRIN, p. 311-312).

Nessa mesma esteira, se enquadra a música ritual cristã. Esta, por sua vez, expressa o mistério pascal de Cristo, eixo axial da liturgia cristã. Joseph Gelineau recorda que a Igreja, desde seus primórdios, buscou solucionar questões relacionadas à admissão ou não desta ou daquela expressão da arte musical emergente, no seu culto. Ao longo da história, três princípios se tornaram basilares: a) a música não deve servir a dois senhores, ou seja, o mundo ou os demônios de um lado, e o Deus de santidade do outro (princípio moral); b) a música não deve recusar seu serviço ao verdadeiro Deus e nunca servir-se a si mesma — arte pela arte (princípio teológico); c) a música não deve desorientar os fiéis (princípio pastoral), ou seja, tornar-se um corpo estranho, no conjunto da ação litúrgica (cf. GELINEAU, 1968, p. 54).

Buscando vincular exemplos da história da música ritual cristã a cada princípio acima, J. Gelineau destaca: a) a irredutibilidade da Igreja, nos sete primeiros séculos, quanto ao não uso de instrumentos musicais na liturgia. Estes eram tidos como símbolo do paganismo; b) o embate advindo do “mundo das belas artes” — do belo pelo belo —, desvinculado da “estética litúrgica”; c) algumas formas de polifonia que tornavam o texto litúrgico ininteligível, sobressaindo apenas o complexo jogo das vozes. Essa questão foi discutida, inclusive, no Concílio de Trento (cf. IBID p. 54-61).

Em suma, nada deve dificultar a participação dos fiéis no mistério celebrado. Como bem nos ensina o Concílio Vaticano II, a ação litúrgica é ação de Cristo e de seu corpo, a Igreja, realizada mediante sinais sensíveis que significam e realizam a salvação (cf. SC n. 7). A música ritual, por sua vez, jamais poderá causar estranheza nos fiéis ou torná-los espectadores passivos ou indiferentes.

3.2 Repertório litúrgico

Passadas cinco décadas pós-Concílio Vaticano II, a reflexão teológico-litúrgico-musical tende a direcionar seu foco para a questão do “repertório litúrgico”. Isso se faz necessário perante a avalanche de novas composições, surgidas nesse período, e porque, infelizmente, nem tudo pode ser aproveitado para o uso litúrgico.

Repertório é, portanto, o conjunto de cantos que cada comunidade escolhe para uso nas celebrações, ao longo do ano litúrgico. Pressupõe uma escolha objetiva e cuidadosa, respaldada por um código de critérios, oriundos da própria natureza da liturgia. A ideia de repertório está intimamente ligada à de rito. O rito, por sua própria natureza, é repetição, memória, consenso coletivo.

A sedimentação de um repertório se dá mediante a repetição. A pedagogia intrínseca de repetir, em cada tempo ou festa, um repertório básico de cantos, leva os fiéis a uma vivência espiritual mais intensa do mistério celebrado graças à ação renovadora do Espírito Santo. Todavia, esse princípio não descarta a possibilidade de ampliação dos repertórios que, naturalmente, deverá acontecer na caminhada de cada comunidade.

Um repertório bíblico-litúrgico que permanece vivo na memória dos fiéis, além de facilitar sua execução como tal, também resgata a dimensão de memorial — essencial para a liturgia. A ordem de iteração dada por Jesus (“fazei isto em memória de mim”), atualizada em cada ação litúrgica, também se aplica à música ritual. Esta se põe a serviço da recordação dos fatos salvíficos, um passado significativo que aflora nos acontecimentos, no hoje da comunidade cristã e a projeta para o futuro, para a plena configuração ao corpo glorioso de Cristo. “Assim, na liturgia cristã, a música ritual vem carregada de ‘sacramentalidade’: é atuação transformadora de Deus em nós, que nos faz participantes de sua vida divina, que aprofunda em nós a vida pascal e nos mantém no caminho do seguimento de Jesus” (BUYST, 2008, p. 8).

O repertório litúrgico também se sedimenta mediante consenso coletivo. No entanto, não convém que esse consenso se restrinja a gostos meramente subjetivos, mas a ele se deve agregar o caráter objetivo da ação litúrgica.

Na liturgia, a beleza de um canto ou de uma música não existe independentemente da celebração, do local, do rito e da assembleia que os acolhe. Certamente, o canto e a música podem manifestar e engrandecer a verdade que uma assembleia vive. Mas o que importa é o estado de escuta do canto desta assembleia, a disponibilidade que a embeleza e a abre para a beleza que advém (UNIVERSA LAUS, 2002, n. 2.8).

Enfim, todas as celebrações litúrgicas (sacramentos, sacramentais, exéquias…) devem ter seu repertório.

3.3 Critérios para a escolha do repertório litúrgico

O princípio conciliar de que a música ritual deve estar plenamente configurada à lex orandi, como “parte necessária ou integrante” dos diversos ritos, tem por finalidade levar os fiéis à participação ativa e frutuosa no mistério celebrado. Tudo o mais vem corroborar isso: a beleza das formas, o perfeito “casamento” entre texto e demais expressões musicais, a nobre simplicidade etc. A título de síntese, apresentaremos alguns critérios para a escolha do repertório litúrgico, quanto ao texto e quanto à música.

Na tradição musical da Igreja, o texto sempre teve a primazia. A melodia e demais expressões musicais, por sua vez, deverão explicitá-lo e nunca obscurecê-lo. Isso pressupõe critérios objetivos, como:

a) Critério bíblico-litúrgico. Os textos “sejam tirados da Sagrada Escritura e das fontes litúrgicas” (SC 121). J. Gelineau sintetiza, de forma magistral, a aplicação desse critério na tradição litúrgica da Igreja, nestes termos:

Da palavra bíblica é de onde vieram as melhores peças dos repertórios latinos e orientais […]. Mas, da palavra bíblica recitada, memorizada, saboreada, meditada, repetida, proclamada, anunciada, cantada, saíram as salmodias, as respostas, as antífonas breves ou longas; sobre este tronco sólido, brotarão depois os tropários e os hinos (GELINEAU, s.d., p. 68).

b) Critério da função ministerial. A música ritual é parte necessária ou integrante da ação litúrgica e será tanto mais litúrgica quanto mais intimamente estiver ligada à ação litúrgica, quer exprimindo mais suavemente a oração, quer favorecendo a unanimidade, quer, enfim, dando maior solenidade aos ritos sagrados. Sua finalidade é a glória de Deus e a santificação dos fiéis (cf. SC n. 112).

A funcionalidade ritual não pode ser encarada unicamente a partir do rito bruto (o significante). Ela implica também e sobretudo seus destinatários, a sensibilidade deles, a cultura, as disposições, as reações conscientes e inconscientes que eles têm. Não basta que o salmo seja de forma responsorial para que ele tenha efetivamente resposta da assembleia à Palavra. […] Quando se é realmente parte integrante, torna-se impossível isolar, num canto, o resultado sonoro da ação global em que está inserido. A estética de um canto litúrgico não é apenas a de um texto com sua música, mas a de toda a celebração em que o canto intervém (GELINEAU, 1968, p. 116-117).

c) Critério do “tempo litúrgico”. Este critério possui estreita relação com o anterior. Os tempos e festas do ano litúrgico são parte integrante da ação litúrgica. A música ritual, assim como os demais elementos que compõem a celebração, deve expressar a espiritualidade de cada tempo ou festa do calendário litúrgico.

d) Critério estético. A música ritual privilegia a linguagem poética. Afinal, toda autêntica experiência de oração é, antes de tudo, uma experiência poética. Esta linguagem é a que mais se ajusta ao caráter simbólico da liturgia. Portanto, não basta que seu conteúdo tenha inspiração bíblica. Explicitações óbvias, redundâncias, moralismos, intimismos e chavões desqualificam a música ritual. A melodia, por sua vez, além de realçar o sentido teológico litúrgico-espiritual dos textos, deve ser acessível à grande maioria da assembleia. Todavia, vale o alerta de não confundir “acessível” com banal, superficial.

e) Critério da originalidade. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no ano de 1976, já havia alertado para a observação deste critério:

Em relação aos textos, evitem cantos com letras adaptadas. Além de ferir os direitos do autor, tal adaptação, por si mesma, revela a inconveniência do original que será mentalmente evocado, evidenciando empobrecimento da celebração litúrgica e desvirtuando o seu sentido (CNBB, 1976, n. 3.9).

O mesmo critério se aplica às demais expressões musicais: sejam evitadas adaptações de canções populares, trilhas de filmes e novelas etc.

f) Critério da inculturação litúrgica. A música ritual não pode prescindir da cultura musical do povo, de onde provêm os participantes da assembleia celebrante. A partir desse “ambiente” cultural, os compositores deverão buscar expressões musicais que melhor encaixem na espiritualidade de cada tempo ou festa do ano litúrgico. A etnomúsica religiosa pode ser uma preciosa fonte. Inculturação tem a ver com participação. Por música ritual inculturada entende-se aquela que, como parte integrante da liturgia, expressa o mistério através da linguagem musical típica de um povo. Assim, a música cumprirá, de forma mais eficaz, sua função mistagógica de introduzir os fiéis na vivência do mistério pascal de Cristo, uma vez que estes veem nessa música o “jeito” da sua própria cultura.

No âmbito da inculturação da música ritual, a Igreja na América Latina tem se esforçado na sedimentação de repertórios litúrgicos que melhor expressem as características culturais de seus povos. No caso do Brasil, por exemplo, merecem destaque duas referências significativas: a) o Hinário Litúrgico da CNBB, que contém amplo repertório para celebrações da eucaristia, da Palavra, dos demais sacramentos e sacramentais, abrangendo todo o ano litúrgico; b) o Ofício Divino das Comunidades, que, desde 1988, tem sido um suporte valioso para as comunidades eclesiais celebrarem a Liturgia das Horas, mediante uma linguagem poética e musical populares.

4 A título de conclusão

Numa visão panorâmica, pudemos constatar que a música é uma arte que sempre acompanhou a vida humana e também possui estreita relação com o transcendente. Os diversos povos descobriram que a linguagem musical é um meio eficaz de comunicação entre o ser humano e os deuses. A partir dessa descoberta, esses povos utilizaram a música como parte integrante de seus ritos. Nessa mesma esteira, encontra-se a tradição judaico-cristã.

Vimos, igualmente, que a música é elemento indispensável na ação litúrgica e, quando bem elaborada (simbiose entre texto e demais expressões musicais) e devidamente integrada no momento ritual, nos arremessa, pela força do Espírito Santo, ao inefável de Deus. Todavia, essa “integração”, no seu sentido pleno, não se dá de forma automática. Pressupõe uma permanente formação teológico-litúrgica do clero, dos agentes litúrgico-musicais (regentes, salmistas, corais, instrumentistas) e de todo o povo de Deus. Aliás, existe uma estreita relação entre “formação” e “participação”: a formação é condicionante da participação. A Sacrosanctum Concilium reconhece que a liturgia é a primeira e necessária fonte, da qual os fiéis podem haurir o espírito genuinamente cristão. E, para que isso seja levado a efeito, é imprescindível uma adequada formação do clero e de todo o povo (cf. SC n. 14b).

Acreditamos que essa formação permanente poderá acontecer mediante três níveis da pastoral litúrgica, a saber:

a) Em “reuniões semanais” da equipe de celebração. Nesses encontros semanais – ocasião em que se avaliam as celebrações anteriores e se preparam as seguintes –, deverão participar todas as pessoas escaladas para o exercício de algum ministério nas celebrações do próximo fim de semana (leitores, salmistas, ministros extraordinários da comunhão eucarística, acólitos, sacristães), bem como outros fiéis interessados. O ponto alto dessas reuniões é a meditação da Palavra de Deus (partindo sempre do evangelho) e sua incidência no “hoje” da comunidade de fé.

b) Em “reuniões mensais” dos grupos conforme sua condição ministerial. Cada grupo (músicos, leitores e salmistas, ministros extraordinários da comunhão…) deve se reunir, mensalmente, para encontros de formação teológico-litúrgica mais sistemática e de avaliação quanto ao desempenho do respectivo ministério nas celebrações.

c) Em encontros “ocasionais”. Trata-se de encontros ampliados de integração dos diversos grupos (músicos, leitores, salmistas, ministros extraordinários da comunhão eucarística…), com duração de um dia ou fim de semana. Essa modalidade de formação poderá ter o formato de um “retiro” ou “minicurso” e ser realizada, preferencialmente, por ocasião do início de um novo tempo litúrgico. Tais encontros deverão constar no planejamento anual das atividades da comunidade.

Todo esse esforço tem como principal objetivo a participação ativa, consciente e plena de todo o povo sacerdotal na ação litúrgica e seus consequentes frutos no agir cotidiano. Afinal, a razão última de nosso cantar reside naquele “que está sentado no trono e ao Cordeiro”, pois só a eles pertencem o louvor, a honra, a glória e o domínio pelos séculos dos séculos (cf. Ap 5,13b).

Joaquim Fonseca, OFM – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e Instituto Santo Tomás de Aquino, Belo Horizonte. Texto original português. Postado em dezembro de 2020.

Referências

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BOSELLI, G. O sentido espiritual da liturgia. Brasília: Edições CNBB, 2019.

BUYST, I.; FONSECA, J. Música ritual e mistagogia. São Paulo: Paulus, 2008.

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____. Canto e música na liturgia: princípios teológicos, litúrgicos, pastorais e estéticos. Brasília: Edições CNBB, 2005.

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Mística medieval: séculos XIII e XIV

Sumário

Introdução

1 Elementos contextuais: as condições para o surgimento da nova mística

2 Nova atitude em relação ao mundo: “laudato sie, mi signore, cun tucte le tue creature

3 Ação e contemplação: “a excelência de Marta sobre Maria”

4 Aniquilamento e nobreza: sob a influência do Areopagita

5 Mística medieval e poesia trovadoresca: “mulheres trovadoras de Deus”

Considerações finais

Referências

Introdução

Tendo em vista a compreensão de revelação do Concílio Vaticano II[1], podemos afirmar que a espiritualidade cristã evolui na história em continuidade com a tradição. Em seu estudo histórico The presence of God: a history of Western Christian mysticism[2], Bernard McGinn distingue três grandes tradições espirituais. A primeira, iniciada no século IV, tem como referência o monaquismo; a segunda começa no século XIII, nos movimentos mendicantes e nas beguinarias; e a terceira tem início no século XVII e estende-se até a atualidade. A mística cristã medieval[3], objeto deste estudo, tem então seus inícios nos anos 1200 e é devedora da tradição inaugurada pela patrística, florescendo com elementos acrescentados pelos cistercienses e cônegos da Abadia de São Vítor (MCGINN, 2012, 199-200). Dentre esses elementos se destacam, a ênfase na experiência, a linguagem amorosa erótica e a tentativa de introduzir o modelo escolástico para ordenar a doutrina da contemplatio. A compreensão do caminho da perfeição desse período vai modelar o cristianismo medieval subsequente (MCGINN, 2017, p. 15-16). Até o século XI, nos meios monásticos ocidentais, dava-se ênfase mais à contemplação que à experimentação dos mistérios divinos, e apenas no século XII aparecerão as primeiras obras que descrevem de maneira mais sistemática a passagem da reflexão à iluminação no conhecimento dos mistérios divinos. No século XIII, enfim, essa corrente vai ganhar o mundo dos leigos e das mulheres (VINCENT, 2009, p. 259).

Considerando as condições contextuais dos séculos XII e XIII, buscamos levantar alguns elementos para caracterizar a nova mística. Destacamos a nova relação com o mundo, referenciada pela centralidade da pobreza evangélica; a busca de uma nova forma de síntese entre vida contemplativa e vida ativa; o desenvolvimento de uma mística do ser apoiada na releitura da Teologia Mística de Dionísio, o Areopagita, e o aprofundamento de uma mística poética do amor de estilo trovadoresco.

2 Elementos contextuais: as condições para o surgimento da nova mística

Os séculos XII e XIII serão séculos de grandes transformações: efervescência política, econômica, intelectual e espiritual. No século XII, o renascimento do comércio transforma a Europa Ocidental, libertando-a do imobilismo de uma organização social baseada unicamente nas ligações do homem com a terra, conforme afirma Henri Pirenne:

Os quadros do sistema feudal, que tinham, até então, encerrado a atividade econômica, quebraram-se e toda a sociedade se impregna de um caráter mais maleável, mais ativo e mais variado. De novo, como na antiguidade, o campo se orienta para as cidades. Sob a influência do comércio, as antigas cidades romanas reanimam-se, repovoam-se, aglomerações de mercadores agrupam-se junto dos burgos, estabelecem-se ao longo das costas marítimas, nas margens dos rios, na confluência das ribeiras, nos pontos de encontro das vias naturais de comunicação (PIRENNE, 1977, p. 82).

Emerge, nesse contexto, uma nova classe social entregue ao exercício do comércio e à indústria, que aos poucos vai ganhando o status de uma ordem privilegiada que forma uma classe jurídica distinta e goza de um direito especial. Esta nova classe social ganha força suficiente para reivindicar para si a liberdade que até então era monopólio da nobreza. No âmbito das cidades, a liberdade será um atributo natural do cidadão. Pelo comércio e pela economia urbana, o antigo regime senhorial se transforma.

A circulação, que se torna cada vez mais intensa, favorece necessariamente a produção agrícola, desloca os quadros que a tinham manietado até então, arrasta-a para as cidades, moderniza-a e, ao mesmo tempo, liberta-a. Desprende o homem do solo a que tinha estado por tanto tempo sujeito. Substitui cada vez mais amplamente o trabalho servil pelo trabalho livre (PIRENNE, 1977, p. 166).

No interior dessa transformação econômica, política e social, opera-se também uma transformação cultural e religiosa. Observa-se uma mudança nos métodos de educação avançada, unida à instrução em língua vernácula. Consequentemente, crescem o número de leigos que sabem ler e a porcentagem de mulheres, religiosas e leigas, alfabetizadas (MCGINN, 2017, p. 17-18).

O pensamento, no contexto de grandes mudanças no estilo de vida das pessoas em vista da evolução tecnológica, da nova organização do espaço, administração do dinheiro, enfim, da nova conjuntura técnica e social, vai tornar-se mais especulativo e crítico. Surge a escolástica, novo modo cientificamente organizado e academicamente profissional de buscar o intellectus fidei. O método escolástico, afirma Bruno Forte, revela esse novo espírito inquieto e sedento de esclarecimento presente na cultura:

na tensão entre o “sic” e o “non”, atraído por argumentações opostas, que colhem momentos e aspectos diversos da realidade e que fazem “problema”, o espírito descobre-se a si mesmo como problemático e inquieto, sedento de análises e distinções esclarecedoras (FORTE, 1991, p. 100).

Enquanto a teologia patrística e monástica, que dominou até a alta Idade Média, é contemplativa, simbólica e totalizante, atenta à trama profunda da realidade imersa no mistério, a mentalidade escolástica vive da análise metódica e crítica, do raciocínio dialético[4]: “posto na presença de proposições opostas, o espírito deve encontrar uma razão em favor de um dos termos da alternativa, ou alguma distinção que permita atribuir a cada um sua parte da verdade” (FORTE, 2002, p. 103).

Começam também a aparecer nas cidades inúmeras fundações religiosas de caráter laical. Segundo informa o historiador André Vauchez, uma grande explosão espiritual ocorre fora da instituição eclesiástica (VAUCHEZ, 1995, p. 65-129). Analisando testemunhos indiretos (especialmente as condenações formuladas nos concílios ou contidas nos penitenciais), se descobre um conjunto de práticas religiosas populares que acabam determinando o desaparecimento de uma concepção de fé cristã caracterizada por sua dimensão de mistério e espera dos últimos tempos (própria da patrística) e o surgimento de outro conjunto de representações, fundamentadas na descoberta do Cristo histórico, na valorização da vida moral e na importância dada aos ritos e gestos.

Duas seções gerais do IV Concílio de Latrão (1215) indicam as grandes preocupações espirituais desses novos tempos: vida apostólica (vita apostolica) e renovação pastoral (cura animarum). A primeira diz respeito ao propósito de um encontro com o mundo voltado para fora, entendendo que pregar e evangelizar são elementos centrais para uma vida inspirada em Cristo e nos apóstolos; os componentes essenciais dessa vida serão penitência, pobreza e pregação. A segunda preocupação está associada ao combate à heresia, aos sacramentos, às devoções e também às pregações, que serão centrais na vida religiosa da Idade Média tardia. No contexto da reforma pastoral, a mensagem proclamada será centrada na penitência e na Eucaristia. O mesmo concílio incentivou a renovação da pregação, ordenou a recepção anual da penitência e da comunhão, e definiu a realidade da presença do Corpo e Sangue de Cristo na Eucaristia, adotando o termo “transubstanciação”. A reforma pastoral promoverá também uma explosão devocional, destacando-se a devoção à Paixão de Cristo e a Maria (MCGINN, 2017, p. 19-30).

Nesse contexto se desenvolve, segundo McGinn, um novo modo de entender e apresentar a consciência direta da presença de Deus, uma nova mística que, ao contrário da mística medieval dos inícios, de viés monástico, caracterizada pelo abandono do mundo e a constituição de uma elite espiritual, será impulsionada por processos de democratização e secularização, isto é, pela convicção de que todos podem gozar da consciência imediata da presença de Deus, que pode ser encontrado no âmbito secular, em meio à experiência cotidiana. Para o autor, três processos devem ser destacados nesse desenvolvimento: as novas atitudes quanto à relação entre mundo e claustro; uma nova relação entre homens e mulheres – que abre espaço à contribuição feminina para a espiritualidade; e o recurso a novas linguagens e modos de representação da experiência mística.

3 Nova atitude em relação ao mundo: “laudato sie, mi signore, cun tucte le tue creature

Diferente da mística monástica, que orientava a fuga do mundo para o claustro, onde se poderia, através de exercícios espirituais, chegar a Deus, o movimento evangélico na Idade Média tardia, motivado por novas maneiras de entender a vida apostólica, vai promover uma outra relação com o mundo. Exemplar para a compreensão desse elemento novo que caracteriza a mística medieval é o itinerário espiritual de Francisco de Assis (1181 ou 1182 –1226). Jovem de hábitos cavalheirescos, pertencente à burguesia comercial urbana emergente, segundo informa Le Goff (2001), e grande esbanjador. Admirava a fina poesia trovadoresca e era também, como bom cavaleiro, atraído pela guerra e pelo ofício das armas. Convertido pelo encontro com Cristo crucificado, vai experimentar a pobreza como lugar de salvação e uma relação com o mundo marcada pela fraternidade com toda a criação. Não vai se refugiar na solidão do deserto ou da fuga do mundo, mas vai ao encontro da cidade, rompendo, neste sentido, com o monaquismo.

Das narrativas de sua conversão, a qual começa com uma enfermidade que o leva a refletir sobre o destino humano e as relações entre o homem interior e o homem exterior, destacam-se alguns eventos. O primeiro é relacionado à renúncia aos bens paternos. Conta-se que o jovem, comovido com a deterioração da igrejinha de São Damião, pega tecidos da casa do pai e, sem autorização, vende-os e oferece o fruto da venda ao padre. Enfurecido, o pai o encarcera em casa. Solto pela mãe, procura abrigo junto ao bispo, o qual testemunha o ato solene de renúncia que marca a ruptura de Francisco com a vida anterior. Faz parte da memória franciscana o momento em que ele renuncia a todos os bens da família e entrega tudo ao pai, inclusive as roupas que estava usando. Despido diante do progenitor e de outras testemunhas, teria manifestado, por meio desse ato simbólico, seu despojamento absoluto (LE GOFF, 2001, p. 66). Outro evento marcante é o beijo no leproso, testemunho da vitória à repugnância pela experiência de misericórdia. Lembrado em seu Testamento, esse evento fez entrar na vida de Francisco “o tema da repugnância vencida, da caridade para com os que sofrem, a novidade de ter o corpo como irmão, […] o serviço aos mais infelizes, para os mais pequeninos” (LE GOFF, 2001, p. 67). Também na Igreja de São Damião, diante do crucifixo, Francisco ouve de Deus o chamado para restaurar a sua casa. Interpreta que deveria trabalhar na reconstrução material das Igrejas e vai trabalhar como pedreiro em São Damião, São Pedro e Porciúncula, oratório próximo a dois leprosários que será, segundo São Boaventura, o lugar que Francisco mais amou. Lá, ao ouvir do padre, na missa, o trecho do Evangelho de Mateus, capítulo 10, sobre a missão dos apóstolos, “transbordando de alegria”, entende a sua própria missão:

descalça os sapatos, joga fora seu bordão e não conserva mais do que uma única túnica, que amarra com uma corda à maneira de cinto. Essa túnica, enfeita-a com uma imagem de Cristo e a confecciona tão áspera que aí crucificará sua carne com seus vícios e seus pecados, tão pobre e tão feia que ninguém no mundo a invejará (LE GOFF, 2001, p. 68-69).

O encontro com Cristo na escuta do Evangelho é central para ele. Francisco, afirma Velasco, assume o Evangelho como mestre e busca uma perfeita imitação da vida de Jesus Cristo. Sua relação mística com o Evangelho o lança no mistério de Deus experimentado como amor. Sua compreensão profunda de Deus enquanto Pai floresce na abertura ao outro e numa vida virtuosa que se expressa de forma original. Não em termos de mandamento e proibições, mas de bem-aventurança. A prática das virtudes será fonte de alegria: “A forma de vida enormemente exigente contida nas bem-aventuranças aparece assim ao mesmo tempo como resultado da alegria de quem descobriu o tesouro, a pérola preciosa do reino” (VELASCO, 2001, p. 127).

A pobreza vivida na radicalidade, portanto, tem também um lugar fundamental no itinerário místico de Francisco. Apoiada no seguimento a Cristo pobre, não será alcançada por esforço heroico, mas pelo amor e adoração a uma vida simples. Pobreza será despojamento e vai se referir a todo tipo de riqueza: “à da própria vontade, à do saber e a ciência, à da função que se exerce, até chegar a exigir a expropriação da própria pobreza, relativizada em comparação com o amor e a expropriação de si mesmo” (VELASCO, 2003, p. 67). No bojo dessa mística, a pobreza será vivida tal qual uma exigência advinda do reconhecimento de Deus como Bem supremo:

O reconhecimento de Deus como Deus, Bem supremo, exige do homem deixar de ser o centro, abandonar o espírito de posse e de domínio e adotar a atitude de desprendimento ou deslocamento que, radicalizando até o desprendimento de si mesmo, abre no homem o vazio que será preenchido por Deus (VELASCO, 2001, p. 137).

Essa vivência radical da pobreza que contempla o aniquilamento de si estará presente de maneira muito significativa na mística medieval. A “Senhora santa Pobreza”, louvada e cantada por Francisco como virtude, é, para ele, condição para uma maior abertura a Deus e, por isso também, para uma relação solidária com os mais pobres.

Contudo, o traço mais saliente da mística de Francisco é a sua consciência da fraternidade universal. Sua relação com Deus, vivenciada como imitação de Cristo, leva-o a propor “como programa um ideal positivo, aberto ao amor de todas as criaturas e de toda a criação enraizado na alegria” (LE GOFF, 2001, p. 114). Sua obra-prima lírica, o Cântico do irmão Sol, na qual ele louva o Senhor com todas as suas criaturas, dizendo “Laudato sie, mi signore, cun tucte le tue creature”, expressa essa experiência mística de confraternização fundada, segundo McGinn (2017, p. 92), na crença trinitária em Deus Criador, Redentor e Salvador, este revelado em Jesus Cristo como Senhor e Servo crucificado, e traz como novidade a experiência imediata da presença de Deus no cosmo e em cada um de seus elementos:

seu cântico mostra uma novidade por causa da solidariedade que ele exprime entre a ordem humana e cósmica, e também por causa do modo como transmite uma experiência do mundo como uma harmoniosa e única teofania de Deus […] Francisco apresenta uma mística especificamente cristã da natureza, na qual a presença de Deus é experimentada como luminosamente real e imediata no cosmo como um todo e em cada um de seus elementos, na medida em que refletem algum aspecto da plenitude divina (MCGINN, 2017, p. 94).

4 Ação e contemplação: “a excelência de Marta sobre Maria”

Ajudam também a compreender essa nova relação com o mundo os sermões de Mestre Eckhart (1260-1328), teólogo dominicano e um dos grandes expoentes da mística renana. No contexto da problemática da tensão entre contemplação e ação, que marca a diferença da mística desse momento em relação à monástica, pode ser citado o sermão 86 da obra alemã, conhecido como “A excelência de Marta sobre Maria”. Sem negar a importância do despojamento que faz parte da simbólica do deserto, tão preciosa para a perspectiva monástica, esse sermão ajuda a compreender a dinâmica paradoxal da relação com o exterior que caracterizará a nova mística: a vivência do compromisso amoroso com o mundo por aquele que passa pelo deserto, isto é, que vive um processo de despojamento. Surpreendentemente, na interpretação dessa passagem, que geralmente serve ao enaltecimento da contemplação em oposição à atividade, Eckhart fala sobre a dimensão ativa do desprendimento.

Nesse sermão, Eckhart destaca duas posturas relativas à vida espiritual. A de Maria, sentada aos pés de Jesus, e a de Marta, ocupada em servir o Mestre. Põe em questão o sentido da contemplação e da ação, integrando as duas atitudes num mesmo processo. Referindo-se à passagem do Evangelho de Lucas, capítulo 10, versículos 38‑40, inicia o sermão fazendo a distinção entre as duas atitudes, citando as razões que motivam cada atitude:

Três razões fizeram Maria sentar-se aos pés de Jesus. A primeira era esta: a bondade de Deus tinha preso a sua alma ao Senhor. A segunda era um grande, indizível desejo; ela suspirava por algo, sem saber o quê! O terceiro era o doce consolo e a delícia que ela hauria da palavra eterna que fluía da boca de Jesus.

Também Marta era movida por três razões, que a fizeram movimentar-se e servir ao caríssimo Senhor Jesus. Uma era a sua idade de matrona e o modo de ser empenhada e dedicada ao extremo. […] A outra razão provinha de uma sábia ponderação que sabia orientar a atividade externa para o melhor que o amor possa ditar. O terceiro motivo: a suma dignidade do caro hóspede (ECKHART, 2006, p. 170).

Marta, que por sua idade de matrona tem grande sabedoria de vida, pede ao Senhor que ordene a Maria que a ajude. Suspeitamos, pondera Mestre Eckhart, que Maria estava ali sentada mais por causa do doce sentimento do que por causa do aproveitamento espiritual. Marta, interpreta ele, “temia que Maria ficasse parada neste suave sentimento, sem nenhum progresso” (ECKHART, 2006, p. 172).

A resposta de Jesus, continua ele, não foi em tom de censura a Marta. Ele lhe diz que Maria ainda iria chegar à condição que ela almejava. Três elementos são destacados por Eckhart na resposta de Jesus: o fato de ele chamar Marta duas vezes pelo nome, a preocupação dela e a sua relação com as coisas, e a consideração sobre a “única coisa necessária”.

Jesus, levado por seu eterno saber, chama Marta pelo nome duas vezes. Com isso queria indicar que ela possuía a graça temporal e eterna daquele cujo nome está registrado no livro que é o próprio Verbo Eterno, tal qual aqueles que, testemunha a escritura, tiveram o seu nome pronunciado por Deus: Moisés e Natanael. “Na primeira vez que disse ‘Marta’, demonstra sua perfeição nas obras temporais. Quando pronunciou pela segunda vez o nome ‘Marta’, demonstrou tudo que pertence à bem-aventurança eterna, da qual ela nada carecia” (ECKHART, 2008, p. 128).

Por possuir o bem temporal e eterno, Marta é cuidadosa, isto é, em todos os afazeres se encontra sem impedimentos. Sua preocupação pelas ocupações é a daqueles que estão juntos às coisas e não dentro delas, que realizam seus afazeres sem entrave porque ordenam e dispõem das coisas segundo o exemplo da divina luz. “Pois quem trabalha na luz ascende a Deus livremente e sem mediações: sua luz é seu sustento e seu sustento é sua luz” (ECKHART, 2006, p. 174). “Uma coisa só é necessária”, diz Jesus a Marta, “eu e tu envoltos e unidos pela luz eterna” (ECKHART, 2006, p. 174).

Três são os caminhos para dentro de Deus, ensina Eckhart, o primeiro é procurar a Deus em todas as criaturas, com múltiplo empreendimento (com discernimento interno e não a partir de motivações exteriores) e amor ardente. O segundo caminho é o arrebatamento, o caminho sem caminho. É quando se é elevado “pelo Pai celestial num abraço amoroso, com uma força avassaladora, sem estar ciente disso, num espírito voltado para o alto, acima de todo o intelecto, no poder do Pai celestial” (ECKHART, 2008, p. 130). O terceiro é o que se chama “caminho”; o caminho que já é lar, que é o próprio Cristo, “caminho, verdade e vida”. Nesse caminho somos conduzidos para dentro de Deus pela luz da palavra de Cristo, envolvidos no amor do Espírito de ambos.

No contexto deste terceiro caminho, podemos compreender que a obra operada de maneira ordenada nos dispõe a Deus e se constitui numa mística do serviço. A atitude espiritual ativa de Marta possui uma excelência em relação à atitude contemplativa de Maria, afirma Eckhart, pois a matrona Marta revela, em sua ação, uma vivência ordenada da vontade:

A vida virtuosa possui três pontos relacionados com a vontade. O primeiro é este: renunciar à vontade em Deus, pois é indispensável que se recuse plena e totalmente o que se conhecerá então, seja na recusa ou na aceitação. Há, pois, três tipos de vontade. A primeira é uma vontade sensível, a segunda uma vontade racional e a terceira uma vontade eterna. A vontade sensível ordena instrução, ela quer que ouçamos mestres verdadeiros. A vontade racional consiste em que tomemos pé em todas as obras de Jesus Cristo e dos santos, o que significa que palavra, conduta e operação sejam ordenadas, de maneira igual, ao que há de mais elevado. Quando tudo isso for cumprido, então Deus irá conceder outra coisa ao fundo da alma: é a vontade eterna, com o mandamento amoroso do Espírito Santo. Então a alma diz: “Senhor, fala em mim o que é a tua vontade eterna”. Se a alma se satisfizer assim com o que dissemos antes, e se isso agradar a Deus, então o Pai amado pronunciará sua palavra eterna na alma (ECKHART, 2008, p. 132).

Maria, aos pés de Jesus, assentada pelo prazer e pela doçura, ainda não era a Maria que estava destinada a ser, “um corpo bem exercitado, obediente a uma alma sábia”, aquela que, tendo ouvido a Jesus e aprendido a viver, depois da ressurreição do filho e a recepção do Espírito Santo, pôr-se-ia a servir e ensinar.

Portanto, a maturidade espiritual rumo a uma vida intensiva de fé, a uma experiência direta de Deus, para além das mediações é, segundo Eckhart, caminho de integração entre contemplação e ação. Uma postura não exclui a outra. A contemplação sem ação pode paralisar o crescimento espiritual; a ação sem a contemplativa entrega de si à vontade divina, por sua vez, será apenas esforço para a expiação de culpas ou para afastar o medo do castigo eterno. A verdadeira bem-aventurança é, portanto, fruto de uma vida de contemplação na ação.

5 Aniquilamento e nobreza: sob a influência do Areopagita

Para Mestre Eckhart, a pobreza, assumida de forma radical, como aniquilamento, é também central. A nobreza do humano é uma condição alcançada no processo de aniquilamento, isto é, um processo que implica desprender-se de tudo que significa segurança, para chegar à liberdade perfeita daquele para quem uma única coisa é necessária: Deus. O homem nobre, define ele, invertendo o sentido mundano de nobreza, é aquele que “partiu para uma terra distante, a fim de tomar posse de um reino, e regressou” (ECKHART, 2006, p. 90); é aquele que avança no caminho do desprendimento, degrau a degrau, até o limite que implica despojar-se da própria imagem humana para assumir a imagem divina; é quem tem o Filho de Deus no fundo da alma como uma fonte divina. Sai do conforto e da proteção da casa onde se pode contar com o “leite” da mãe, aparta-se dela, distancia-se do seu colo e “corre a buscar, pressuroso, a doutrina e o conselho de Deus e da sabedoria divina, dando as costas à humanidade e voltando o rosto para Deus, deixando o regaço da mãe e sorrindo para o pai” (ECKHART, 2006, p. 92).

Os primeiros degraus no caminho para a santidade, para Eckhart, são aqueles em que se pode contar com o exemplo das pessoas boas e santas, a proteção da mãe (a Igreja) e a segurança das mediações que a vida de fé apoiada na instituição oferece. A maturidade espiritual, no entanto, na perspectiva mística, supõe a disposição para ascender a outros degraus.

O terceiro degrau é aquele em que se experimenta alegria, doçura e bem-aventurança na profunda união de amor com Deus, de tal modo que aquilo que é alheio e dessemelhante causa aborrecimento. Este é, segundo a perspectiva desse místico, um estágio de risco, pois as delícias dessa experiência podem, fazendo a pessoa pensar que já se acha numa atitude espiritual suficiente, paralisar o processo de amadurecimento da vida espiritual.

No quarto degrau, o maior crescimento no amor e na fixação em Deus promove a disposição para “enfrentar com vontade e gosto, com sofreguidão e alegria, toda espécie de provação, de tentação, de contrariedade e de padecimento” (ECKHART, 2006, p. 92). O quinto degrau é o da paz interior. Este estágio de aprofundamento espiritual é aquele em que se descansa “tranquilamente na riqueza e na superabundância da suprema e inefável sabedoria” (ECKHART, 2006, p. 92).

O coroamento desse caminho místico se dá, explica Eckhart, no sexto degrau, que consiste “no despojar-se da imagem (humana) e no revestir a imagem da eternidade divina, pelo esquecimento total e perfeito da vida transitória e temporal, de tal modo que, feito filho de Deus, e atraído por Deus, o homem se transmute em imagem de Deus” (ECKHART, 2006, p. 93).

Para ser um “homem nobre”, é preciso “partir”, “apartar-se de todas as imagens e de si mesmo, e distanciar-se e desassemelhar-se de tudo isso, se é que realmente quer e deve acolher o Filho e tornar-se filho no seio e no coração do pai” (ECKHART, 2006, p. 94). O homem nobre é aquele que, com tudo o que é e tem, sujeita-se e obedece a Deus; “levantando os olhos ao céu, contempla a Deus e não o que é seu”. “Convém saber”, continua Eckhart, “com efeito, aqueles que conhecem a Deus sem véu, conhecem ao mesmo tempo as criaturas” (ECKHART, 2006, p. 95).

O despojamento de tudo e de si mesmo que se dá nesse “processo negativo” – o qual implica retirar aquilo que recobre o mais essencial – possibilita, ao homem que partiu, regressar. Tendo contemplado a Deus sem véu, o homem nobre conhece que Dele vem o ser de toda a criatura, pois “Deus dá, primeiro, o ser a toda criatura e, depois, no tempo, mas sem tempo, (dá) a cada um em particular tudo o que lhe (isto é, ao ser) pertence” (ECKHART, 2006, p. 97). Vê-se aqui, claramente, que a referência à Teologia Mística de Dionísio Areopagita foi fundamental na constituição da mística medieval.

A expressão “Teologia Mística” remonta à obra de Pseudo-Dionísio, o Areopagita, escritor monástico que viveu por volta de 500 d.C., provavelmente na Síria, a qual teve grande influência sobre o Ocidente latino. Além de cunhar o termo “Teologia Mística”, deu expressão sistemática a uma visão dialética da relação de Deus com o mundo que foi fonte dos sistemas especulativos por pelo menos mil anos. Nesse tratado, “místicas” são revelações dos mistérios simples, absolutos e imutáveis da teologia revelados na treva superluminosa do silêncio que ensina ocultamente. Revelações a que se chega quando se deixa de lado “as sensações, as operações intelectuais, todas as coisas sensíveis e inteligíveis, tudo o que não existe e que existe” para unir-se com Aquele que está acima de todo o ser e de todo conhecimento num abandono irrestrito, absoluto e puro (MARIANI, 2009, p. 362-363).

Segundo Pseudo-Dionísio Areopagita, o acesso ao “princípio supernatural”, se dá mediante a remoção. Para ver através da cegueira e da ignorância, e para conhecer o princípio superior à visão e ao conhecimento, explica Dionísio, é preciso ir removendo todas as coisas “do mesmo modo pelo qual aqueles que modelam uma bela estátua aplainam-lhe os impedimentos que poderiam obnubilar a pura visão de sua arcana beleza, sendo capazes de mostrá-la plenamente, mediante remoção” (PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA, 2005, p. 21). A teologia ou teosofia, sabedoria de Deus, implica uma dialética ascendente que envolve afirmações e negações que, para ele, “devem ser louvadas com procedimentos contrários”:

Com efeito, afirmamos, quando partimos dos princípios mais originários e descemos através dos membros intermédios às últimas coisas; no caso das negações, todavia, removemos tudo, quando subimos das últimas coisas às mais originárias, para conhecer a ignorância escondida em todos os seres por todas as coisas cognoscíveis, e para ver a treva supernatural escondida por todas as luzes presentes nos seres (PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA, 2005, p. 21-22).

Dionísio vai mostrar que a relação com Deus absolutamente transcendente implica o êxtase operado através do procedimento da negação (remoção), com a finalidade última da união transformadora (divinização) pelo amor que é Deus, absolutamente transcendente e totalmente presente em toda a criação. Mística é, para ele, qualidade da teologia, um tipo de sabedoria de Deus na qual penetram os iniciados que se dispõem a despojar-se do próprio saber e, abandonando-se de forma irrestrita, absoluta e pura, deixam-se conduzir para o alto e viver Naquele que a tudo transcende, unindo-se ao princípio superdesconhecido segundo o melhor de suas faculdades, mas conhecido além da inteligência (PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA, 2005, p. 18).

A Idade Média tardia vai reler Dionísio, enfatizando, no itinerário que leva ao encontro do Mistério, o processo de despojamento ontológico pelo qual necessita passar nossa humanidade. O acolhimento da verdade inefável de Deus exige, segundo escritos desse período, o conhecimento dos limites da inteligência e da vontade próprios da condição humana. Uma literatura mística se afirma e se desenvolve como expressão da busca pelo divino dentro da alma e como experiência de unidade com Deus, unio mystica. Claramente influenciada por Dionísio Areopagita, essa literatura anuncia que no fundamento de todo esforço de falar sobre Deus existe uma experiência indizível a que se chega pelo despojamento de tudo, inclusive de si mesmo. No despojamento até o limite do aniquilamento de si, o místico experimenta um grande esvaziamento que o capacita para a acolhida da verdade de Deus, acolhida esta que transforma seu pensar e seu querer.

6 Mística medieval e poesia trovadoresca: “mulheres trovadoras de Deus”

O tema do amor infinito, maior que tudo, ocupou, portanto, um lugar importante na mística medieval. Procurou-se uma maneira de falar sobre esse imenso amor misericordioso de Deus que, vindo ao encontro do humano, opera na alma (que é o princípio transcendente do humano) um êxodo, uma saída de si, uma transformação ontológica que, divinizando-a, capacita-a para o encontro com o mistério. Foi na poesia trovadoresca que se encontraram os recursos de expressão para essa experiência do amor que, segundo muitos místicos e místicas, não achava lugar na linguagem.

De fato, afirma Rougemont, observa-se, entre a mística e a poesia trovadoresca, mais do que uma analogia de palavras: pode-se verificar uma relação entre essas duas realidades, a realidade da paixão amorosa cantada pelos trovadores e a da transformação de amor relatada pelos místicos (ROUGEMONT, 1999, p. 127). No centro das cantigas de amor dos trovadores, existe um amante que se entrega de corpo e alma a uma paixão incontrolável e ao dedicado serviço amoroso à mulher amada, uma dama, em geral inatingível por estar espacial ou socialmente inacessível (BARROS, 2008). A fidelidade a esse amor impossível, exaltada pela poesia trovadoresca, faz ver a dimensão transcendente do amor, livre dos condicionamentos naturais (do encontro genital) e dos limites institucionais (do casamento). O trovador exalta o amor casto que é Eros supremo, que transporta a alma para a união luminosa além desta terra (ROUGEMONT, 1999, p. 64). Canta o amor infinito que transforma a vida porque promove uma ascese do desejo. Embora esteja voltado a um objeto inacessível, o amor cortês supõe, por outro lado, uma recompensa suprema, uma grande alegria (joy) advinda da descoberta do amor sem fim, pelo impedimento da posse do amado. O amor puro alimenta indefinidamente o desejo e engendra um aperfeiçoamento interminável. O sofrimento pela paixão jamais satisfeita é, ao mesmo tempo, alegria de viver o amor na liberdade, a salvo do declínio e do cansaço.

Do mesmo modo, no paradoxo da experiência do desejo dirigido a Deus – Mistério Santo, amado indisponível à posse do amante –, o místico, a mística, descobre também a transcendência do amor no processo de ascese do desejo. A mística é também relato da transformação operada pela busca do amor infinito, que, em sua transcendência, é maior do que tudo o que se pode pensar ou querer. Tanto a mística quanto a cortesia vão se referir a um amor faminto, desejante, que não pode ser saciado. Amor que é dor da distância, mas também alegria, porque traz como fruto a “liberdade perfeita”.

No contexto da relação entre mística e poesia trovadoresca, informa McGinn, destacaram-se algumas mulheres, que começam, depois de 1200, a assumir um lugar proeminente na tradição mística, possível, nesse momento, graças ao surgimento de novas formas de cooperação entre homens e mulheres na busca por uma vida apostólica e um conhecimento amoroso de Deus. Acrescenta-se, também, vinculado a essa nova relação entre gêneros no âmbito da mística, o aparecimento de novas formas de linguagem associadas ao uso da língua vernácula. Hagiografias, visões e também o uso da poesia para exprimir a experiência mística ganharam novo significado:

O latim estava, quando muito, semivivo na Idade Média – nunca era a língua aprendida primeiro, vivia ligado a uma elite cultural dominada por homens, e que era regulado por modelos herdados de propriedade linguística que tornavam difícil a inovação, embora não fosse impossível. As línguas vernáculas que estavam começando a se tornar línguas cultas no pleno sentido por volta de 1200 ofereciam, ao contrário, notável potencial para uma inovação criativa (MCGINN, 2017, p. 42).

A Minne-mystik ou “mística cortesã”, fenômeno próprio dessas novas condições, vai combinar a mística dos comentários monásticos ao Cântico dos Cânticos com os temas do fin’amour cortesão, possibilitando um novo aprofundamento. As beguinas, mulheres com novo estilo de vida religiosa não conventual, estão entre os autores exemplares desses escritos místicos que têm como traço característico o caráter ao mesmo tempo especulativo e experimental.

Nos escritos dessas “trovadoras de Deus”, segundo Épiney-Burgard e Zum Brunn (2007), o simbolismo do amor cortês se funde à expressão metafísica do amor a Deus, graças à convivência com a cultura profana e religiosa que o ambiente urbano onde vivem lhes proporciona. As beguinas são mulheres de origem nobre ou burguesa que viviam em comunidades, sob a orientação de uma mestra e com o compromisso de uma vida de oração e austeridade. Sobreviviam do próprio trabalho: tecelagem, bordado, costura, ensinamento de crianças e serviços de damas idosas. Eram adeptas do evangelismo, buscavam conhecer textos bíblicos na sua literalidade, e valorizavam a liberdade de pregação, o amor à pobreza, a contestação do mundo e o estilo de vida mais que a doutrina.

O ideal proposto por essas místicas é o da “alma nobre”, identificada com o cavaleiro que aceita todas as provas impostas por sua dama, como na novela cortesã. Deus é a Dama Amor, “amor de longe”, almejado por desejo profundo e às vezes violento, objeto de amor impossível de se possuir. Para algumas mulheres do século XIII, afirma McGinn:

o anseio parece tornar-se mais importante do que a posse; quer dizer, em alguns casos, a fruição do amor vem residir na paradoxal não fruição do contínuo anseio pelo Amado. […] em certo número de mulheres místicas […] há uma fusão paradoxal de estados na qual a ausência é presença e vice-versa (MCGINN, (2017, p. 259).

Para Marguerite Porete (1260-1310), uma das beguinas destacáveis desse período, o Fino Amor é o Espírito Santo, Deus que habita a alma despojada de tudo, até das faculdades de pensar e de querer, faculdades fundamentais que determinam o ser. É ele, canta a Alma aniquilada em sua obra O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do Amor[5], que a faz encontrar os versos da canção com os quais pode louvar seu bem-amado, seu Amor de longe, aquele que permanecerá, em sua transcendência, sempre inacessível às possibilidades humanas, inalcançável pela inteligência e pela vontade. Aquele do qual nada se sabe dizer, mas de cuja bondade não se pode deixar de falar:

Amor me fez, por nobreza,

Esses versos de canção encontrar.

Ela é da Deidade pura,

Sobre a qual a Razão não sabe falar,

E um amado

Que tenho, sem mãe,

Que proveio

De Deus Pai,

E de Deus Filho também.

Seu nome é Espírito Santo,

Com o qual tenho no coração tal união,

Que me faz viver na alegria.

Esse é o país da nutrição

Que o amado dá se o amamos.

Nada lhe quero pedir,

Pois grande seria minha maldade.

Devo, sobretudo, confiar-me

Ao amor de tal amante.

(PORETE, 2008, p. 200)

O livro de Marguerite Porete constitui uma alegoria mística sobre o caminho que conduz a alma à união perfeita com seu criador e Senhor e se estrutura como um diálogo em que os principais interlocutores são o Amor, a Razão e a Alma aniquilada personificados.

Deus, para Marguerite Porete, “trovadora de Deus”, é amor cortesia que com grande delicadeza transforma a alma pela autocomunicação de seu maior tesouro, a liberdade perfeita. Aniquilando-se, reconhecendo-se nada, a alma amorosa de Deus se abre para ter sua razão e vontade transformadas. De Deus recebe mais saber do que o contido nas escrituras, mais compreensão do que a que está ao alcance da capacidade humana. A alma, sendo nada, possui tudo e não possui nada, vê tudo e não vê nada, sabe tudo e não sabe nada. Recebida gratuitamente de Deus, a liberdade perfeita é conquistada pela alma, num itinerário doloroso que implica o desprendimento de tudo o que representa alguma segurança: mandamentos, virtudes, conselhos, natureza, espírito, vontade e desejo, o qual é o grande motor que alavanca a alma para o encontro com a Deidade. Para ela, a alma que não se dispõe a perder sua vontade não está preparada para falar à “Dama Divino Amor” em sua câmara secreta. A bem-amada é aquela que não teme perda nem ganho, senão somente pelo bom prazer de Amor, pois, de outro modo, ela encontraria seu próprio interesse e não o dele (MARIANI; AMARAL, 2015, p. 93).

Por suas ousadas aspirações espirituais vivenciadas fora de controle institucional, essas mulheres foram colocadas sob suspeita, pois revelaram em seus escritos o potencial crítico da mística. A experiência de Deus como mistério indisponível, combinada à percepção do limite da condição humana diante da realidade divina e a impossibilidade de abarcá-lo, aparece nesses escritos como uma fina percepção da nobreza que se adquire através da humildade e do aniquilamento, e oferece clareza em relação à relatividade de todas as mediações que servem de amparo nesse caminho humano de busca por Deus, mas que acabam sendo, muitas vezes, transformadas em segurança de salvação.

Nos relatos encontramos descrições de processos que implicam o atravessamento das mediações: acolhimento, submissão e posterior superação de todo recurso oferecido pelas instituições como formas de relação com Deus, em favor de uma proximidade maior. Isso quer dizer que Deus, em seu amor misericordioso, opera na alma (que é o princípio transcendente do humano), um êxodo, uma saída de si, uma transformação ontológica que a capacita para o encontro, isto é, para a união mística com o mistério. O centro da experiência mística é a união íntima com o divino (MARIANI; AMARAL, 2015, p. 89).

No horizonte dessa mística está, portanto, a união com Deus, que transforma a alma para uma relação livre com o mundo, relação nem sempre aceita e compreendida pelas instituições religiosas. Marguerite Porete foi condenada à fogueira pela incompreensão de sua obra entre as pessoas de religião, apesar de ter sido aprovada por importantes representantes da teologia de seu tempo[6]. Morreu queimada em Paris, no dia 1º de junho de 1310, impressionando a assistência comovida, conforme o testemunho das crônicas da época, por seu silêncio e pelos sinais de penitência, nobreza e devoção.

Considerações finais

Olhando para o florescimento da mística na Idade Média tardia, percebe-se que esse não foi tempo de trevas como julgaram os iluministas. Muita inspiração espiritual se capta na tradição mística desse período, que já anuncia a necessidade de uma “mística de olhos abertos” (conforme denomina Metz, 2013) que se desenvolverá no ocidente, posteriormente, com o advento da modernidade.

O resgate do valor da pobreza evangélica, o esforço de harmonizar contemplação e ação, a valorização de uma racionalidade ampla, intuitiva poética, a dimensão crítica provocada pela experiência de intimidade com Deus e muitos outros elementos podem ser encontrados no estudo de textos de homens e mulheres desse período.

Ceci M. C. Baptista Mariani. PUC Campinas. Texto original português. Postado em dezembro de 2020.

Referências

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MARIANI, C. M. C. B.; AMARAL, M. J. C. A mística como crítica nas narrativas de mulheres medievais. Revista de Cultura Teológica, São Paulo, v. 23, p. 85-107, jul./dez. 2015.

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[1] Sobre a noção conciliar de revelação, vale conferir a obra de J. B. Libanio, Teologia da revelação a partir da modernidade, 1992.

[2] A obra de McGinn, dedicada à história e teologia da mística cristã ocidental, foi publicada em quatro volumes. Os dois primeiros, já traduzidos em português, foram publicados pela editora Paulus. Estudam o primeiro grande período da mística cristã até o século XII, o terceiro volume compreende o período posterior até o século XVI, de florescimento das “escolas” clássicas de mística. O último volume é sobre a crise da mística, os desafios internos e externos enfrentados desde o século XVI até os dias de hoje.

[3] O presente verbete é consagrado a alguns autores da mística latina e necessita ser completado com o estudo de outros autores importantes desse período fecundo da história da mística cristã.

[4] É referência importante para a compreensão da transformação filosófica-teológica desse momento a figura da Pedro Abelardo. A este propósito, é interessante o trabalho em língua portuguesa de Orlando Vilela, O drama Heloísa Abelardo.

[5] Tradução brasileira de Sílvia Schwartz, publicada pela Editora Vozes.

[6] O livro de Maguerite foi, antes da sua primeira condenação em 1306, avaliado e aprovado por três nomes importantes, representantes dos grandes grupos que participavam das discussões teológicas da época: um frade menor, um monge cisterciense e um mestre em teologia da Universidade de Paris. O texto da aprovação figura à maneira de epílogo nos manuscritos das versões latina e italiana e a modo de prólogo na versão inglesa.


Memorial

Sumário

1 O conceito bíblico de memorial

1.1 Memorial: no Antigo Testamento

1.2 Memorial: no Novo Testamento

2 O memorial eucarístico

2.1 O memorial e a compreensão mistérico-sacramental da eucaristia

2.2 A eucaristia, sacrifício memorial

2.3 No memorial vivemos o “tempo sacramental” ou “tempo redimido”

1 O conceito bíblico de memorial (cf. CHENDERLIN, 1982; NEUNHEUSER, 1992)

A importância teológica do conceito de “memorial” tem sua raiz na ordem de Jesus na última ceia, ao instituir a eucaristia: “Fazei isto como meu memorial” (cf. 1Cor 11,24-25; Lc 22,19). Jesus o diz em seu contexto histórico e cultural, a partir do horizonte veterotestamentário e judaico que lhe é próprio. Cabe, pois, voltar às raízes bíblicas de memorial/anámnesis/zikkaron.

“Memorial” – e não memória – é a melhor tradução do grego anámnesis que ocorre nas palavras de Jesus na última ceia ao instituir a eucaristia e expressa o que ele mandou fazer todas as vezes que comemos do pão e bebemos do vinho eucaristizados (cf. 1Co 11,24-25). A palavra grega, por sua vez, traduz o hebraico zikkaron que se encontra, por exemplo, em Ex 12,14, na narrativa da instituição da ceia pascal judaica.

1.1 Memorial: no Antigo Testamento (cf. EISING, 1977)

O primeiro a dizer é que zakar (qal), mimneiskomai (“lembrar/lembrar-se”), na Bíblia, não é mera ação de uma subjetividade que se aferra ao passado. Não é retrospecção histórica ou psicológica. Poderia dizer-se que “lembrar” é um verbo performativo, realiza algo, expressa uma ação com consequências para o presente e o futuro e, com isso, uma ação que, desde o passado, irrompe no presente, abrindo futuro. Para tomar um caso profano, não litúrgico, pense-se na “recordação” do copeiro do Faraó em Gn 40,14.23 e 41,9. “Lembrar-se” de José é intervir em favor dele. Quando o mesmo verbo aparece no contexto religioso do culto ou da oração, sua dimensão performativa se reforça, pois, quando Deus “se recorda”, atua salvificamente de acordo com suas promessas. Basta considerar que, em 68 ocorrências veterotestamentárias do verbo zakar em qal (um dos modos da conjugação verbal do hebraico), Deus é o sujeito do “lembrar-se” e o objeto é sua ação em prol da humanidade, e quando o sujeito de zakar é o ser humano, 69 vezes o objeto do ponto de vista gramatical é Deus ou sua ação salvífica. Essa menção significa que o passado recordado se torna atuante, cheio de eficácia de salvação. Tal perspectiva é comprovada pelo oposto, quando se considera um texto como Sl 34,17 ou 9,7: Deus apaga a lembrança do ímpio. Seu desaparecimento, como se nunca tivesse sido, é atribuído a Deus. De onde se deduz que o “recordar-se” de alguém, por parte de Deus, é algo que pertence, por assim dizer, à ordem ontológica, é existir diante de Deus e pela ação de Deus. “O ser humano vive, porque Deus se lembra dele e este tem o dever de louvar a Deus, lembrando suas maravilhas” (EISING, 1977, p.586). Por parte de Deus zakar é uma ação criadora em favor de seu povo (cf. EISING, 1977, p.591). O “lembrar(-se)” é, pois, eficaz, produz efeito.

O sujeito da ação de “recordar-se” pode ser Deus ou o ser humano, mas o complemento, quando em contexto religioso, é a aliança, ação salvífica de Deus, e a resposta humana positiva ou negativa.

Desta forma, o grupo semântico em torno à palavra “memorial” não deve ser estreitado só para um lado, como se um aspecto excluísse o outro. Ao afirmar que o memorial visa a lembrar a Deus, não se exclui que vise também a lembrar ao ser humano e vice-versa.

No contexto da aliança, o grupo de palavras evoca o modo de petição persistente e espalhado, acoplado com a ação de graças, no qual se pede a Deus pelo povo […] para que “se lembre de suas promessas de aliança”, uma prática que, simultaneamente, sublinha que os pedintes estão eles mesmos lembrando-se delas (CHENDERLIN: 1982, p. 216-217, § 448).

Com o conceito de zikkaron à ideia de “lembrar(-se)” se acrescenta a de sinal e, por isso, é muitas vezes ligada a ‘ôt, sinal (cf. Js 4,6.7; Ex 13,9; Nm 17,3.5; Ex 12,13-14). E esse sinal pode ser tanto para Deus, como para o ser humano. E, portanto, ter a finalidade de lembrar a Deus como a de lembrar ao ser humano.

“Lembrar” aparece, pois, como uma referência ao passado que se faz no presente. Mas é preciso acrescentar também sua intencionalidade com relação ao futuro. Is 47,7 e Qo 11,8, por exemplo, mostram como também o futuro pode ser objeto do “lembrar-se”. O futuro pode ser lembrado porque virá, com toda a certeza, e terá consequências que se podem prever. Ou ainda, porque nele se realizarão as promessas de Deus, já conhecidas. Ao presentificar culticamente a passada ação salvífica de Deus, atualiza-se a promessa de salvação ligada ao evento e assim já acontece salvação. Lançar a Deus um clamor que recorda suas promessas desperta a esperança: elas hão de cumprir-se. Dizer ao ser humano que se “lembre” das ações de Deus na história incita à obediência, à observância dos mandamentos e, consequentemente, a acolher a salvação de Deus.

A anamnese é assim um “lembrar-se” da origem que permanece decisiva para o presente e para o futuro. Lembra-se o passado para interpretar o presente e possibilitar o futuro (cf. FABRY, 1993, p. 590). O culto de Israel é sempre uma anamnese. As festas – muitas delas ou até mesmo todas – originárias de uma religião da natureza são historizadas, tornam-se no Antigo Testamento anamnese dos grandes feitos de Deus: a libertação do Egito (Páscoa), a concessão da Torá (Pentecostes), a estadia do povo no deserto (Festa das Tendas). Desta maneira as festas testemunham a presença permanente de Deus na história, conjugando recordação do passado, significado permanente e perspectiva escatológica. Assim se vê que não se trata de puro girar em torno a algo que se foi e não volta mais e está cada vez mais longínquo, mas à anamnese é própria uma força atualizante que revela que a ação de Deus se mantém no presente. Recordar é uma mediação entre a ação de Deus no passado que, como tal, permanece no passado e não se repete, e a significação permanente dessa mesma ação que tem suas raízes e origens naquele passado que se evoca na anamnese e é mediada para o hoje através de uma celebração ou de determinado gesto litúrgico, como a realização da ceia pascal cada ano.

1.2 Memorial: no Novo Testamento (cf. MICHEL, 1942)

A complexidade dos termos memorial/anámnesis/zikkaron, lembrar/zakar/mimimneiskomai permanece presente no Novo Testamento. “A palavra de Jesus mostra sua força ao permanecer viva na lembrança dos discípulos” (MICHEL 1942, p. 681). Pedro se lembra da profecia de Jesus sobre sua negação e, por isso, chora amargamente (cf. Mc 14,72; Mt 26, 75; Lc 22,61-62). Mas é especialmente depois da ressurreição que se manifesta a eficácia da “lembrança” dos discípulos (cf. Lc 24,6.8). O Evangelho de João insiste nesse aspecto como fonte de fé e de conhecimento (cf. Jo 2,22 e 12,16). “Recordar-se” é verdadeiro conhecimento, porque resulta da ação do Espírito (cf. Jo 14,26). “O Espírito Santo confirma, consolida, esclarece a obra de Jesus e assim traz consigo uma recordação definitiva, conclusiva” (MICHEL 1942, p.681). A Tradição, no sentido teológico forte do termo, é esse “recordar-se” que se dá pela ação do Espírito Santo na transmissão da Palavra, na conformação cristã da existência através do amor ao necessitado (cf. Hb 13,3), na celebração da liturgia. Não se trata de uma recordação historizante, nem intelectualista, nem doutrinária, mas de uma vivificação pela Palavra numa vivência celebrada na liturgia sob a ação do Espírito de Cristo. É fundamental para a compreensão do memorial/anámnesis/zikkaron no sentido neotestamentário essa afirmação do Espírito Santo como fonte e penhor do realismo salvífico que nela se opera.

Graças à atuação do Espírito Santo o memorial é eficaz, não corre o perigo de ser a nuda commemoratio que o Concílio de Trento excluiu como explicitação do que acontece na eucaristia (cf. DH n. 1753). Atuando o Espírito de Cristo, pode-se reconhecer a eficácia do memorial. Ele é capaz de tornar perene o sacrifício de Cristo e fazer de nós participantes de seu mistério salvífico.

No tocante à temporalidade do memorial, o Novo Testamento acrescenta um aspecto novo e essencial. As promessas de Deus se cumpriram definitivamente em Jesus Cristo (ele é o “sim” de Deus, cf. 2Co 1,20), chegaram os tempos escatológicos (cf. Hb 1,1), o futuro se torna presente, porque na ressurreição de Jesus os discípulos apalparam com as mãos (cf. 1Jo 1,1) o futuro que nos cabe. A memória é assim também “memória do futuro”.

É tendo em mente toda essa riqueza semântica do termo bíblico memorial/anámnesis/zikkaron que se deve entender a ordem com que Jesus estabeleceu a iteração do rito criado por ele na última ceia. A interpretação da ordem de iteração como “Fazei isto para manter viva a minha memória” estreita e mesmo deturpa o sentido de “memorial”. Primeiramente, porque entende “memória” no sentido psicológico intimista. Se não se repete sempre o que Jesus fez, ele cairá no esquecimento. Dependeria da ação humana o manter-se viva a lembrança do Senhor e sua ação salvífica. Nesse caso, o memorial seria mera ação humana e dependeria de nossa iniciativa a presentificação do mistério pascal e nossa participação na salvação que nos foi dada por Cristo. Não fazemos o memorial “para manter viva” a memória de Jesus, senão que Deus mesmo nos convoca (como ekklesia) para celebrarmos o memorial e assim nos leva a “manter viva” a memória de Jesus.

Em outras palavras: o memorial é dom. O memorial é ação do Espírito Santo em sacramento, em mistério, em semelhança, segundo a dinâmica própria da ação sacramental (cf. GIRAUDO, 2003, p. 509-512). É primeiramente ação de Deus que nos convoca (ek-klesía) para, na força do Espírito Santo, realizarmos o sinal (ôt) que é memorial (zikkaron) do mistério de Cristo. O sinal é o gesto de tomar pão e vinho conforme a ordem de Jesus. Ele se torna memorial quando pronunciamos sobre as oferendas a ação de graças pela obra salvífica consumada por Cristo. Memorial é pura graça, porque obediência à ordem do Senhor. É Cristo quem age no Espírito Santo para tornar-nos “contemporâneos” do Calvário e do sepulcro do Ressuscitado, comungando do pão que faz de nós corpo de Cristo a ser entregue pelos demais.

O conceito de memorial/anámnesis/zikkaron não corresponde, portanto, ao uso corriqueiro do vocabulário de “lembrança, memória” que denota subjetivismo. Numa hora nostálgica volto meu pensamento ao passado e “recordo” os momentos alegres ou as passagens dolorosas da vida. O passado permanece passado, o presente é alimentado por uma recordação que desperta determinados sentimentos e a vida continua. É pura nostalgia. No contexto bíblico, litúrgico, teológico, memorial é muito mais; é uma instituição estabelecida por Deus que nos reporta ao passado, dá sentido ao presente e nos abre para o futuro.

2 O memorial eucarístico

As raízes bíblicas e judaicas de “memorial” e seu uso no contexto da instituição da ceia pascal judaica (cf. Ex 12,14) iluminam a eucaristia como a páscoa cristã, já que ela é obediência à ordem de iteração dada pelo Senhor na última ceia que os Evangelhos Sinóticos identificam como uma ceia pascal (cf. GIRAUDO, 2003, p. 127-143. GIRAUDO, 1989, p. 162-186).

2.1 O memorial e a compreensão mistérico-sacramental da eucaristia

A compreensão judaica do memorial pascal fica muito clara a partir do dito atribuído pela tradição talmúdica ao Rabi Gamaliel, que seria ou o próprio mestre de Paulo no judaísmo (cf. At 22,3), ou seu neto homônimo. Ele resume de forma lapidar o que todo judeu piedoso vivia ao comer anualmente o cordeiro pascal, os pães ázimos e as ervas amargas (cf. GIRAUDO, 2003, p. 112-115; GIRAUDO, 1989, p. 143-146):

Em toda geração e geração, cada um é obrigado a ver-se a si próprio como tendo ele mesmo saído do Egito, como foi dito “E anunciarás a teu filho naquele dia, dizendo: É por causa disto que o Senhor fez por mim [o que ele fez], quando saí do Egito” [Ex 13,8]. Não somente a nossos pais remiu o Santo – bendito seja Ele! –, mas também a nós remiu com eles, conforme está dito: “E nos fez sair de lá, para nos fazer vir e dar-nos a terra que tinha jurado a nossos pais” [Dt 6,23]. (GIRAUDO, 2003, 112s; negrito meu, itálico do autor)

Primeiro observe-se o que está em itálico, a saber: expressões que incluem no evento fundante – a libertação do Egito – aquele que agora celebra a páscoa. Não foram eles só, os nossos pais, mas nós hoje que saímos do Egito, a nós o Altíssimo redimiu. Essa perspectiva é confirmada por outro momento do ritual de Páscoa: a alegoria dos quatro filhos. O segundo filho, classificado como malvado, não se inclui na salvação operada na libertação do Egito e assim tampouco na comunidade de Israel, negando, portanto, suas raízes (cf. GIRAUDO, 1989, p. 137; GIRAUDO, 2003, p. 107).

É tão fundamental saber-se incluído na celebração da intervenção histórica e irrepetível de YHWH que não fazê-lo exclui do efeito salvífico próprio à ação divina. Trata-se, pois, de uma compreensão mistérico-sacramental da ceia pascal, em que está em jogo a noção de memória sacramental. Este é o primeiro ponto que é preciso ter presente para compreender a eucaristia como memorial.

Um segundo ponto a observar na cláusula de Gamaliel é o que está em negrito. Trata-se da interpretação de Ex 13,8. “É por causa disto”. Pode-se perguntar “disto” quê? No caso da Páscoa judaica: do cordeiro, do ázimo e das ervas amargas (cf. Ex 12,1-14). Vale dizer: os elementos essenciais que não podem faltar na ceia pascal judaica são os sinais sacramentais que reportam figurativamente os participantes da ceia ao evento pascal da passagem do Mar Vermelho (cf. Ex 14,15-31), evento único e irrepetível. Os comensais de hoje se tornam presentes em mistério ao evento fundador, são transportados por esses sinais à passagem do Mar que, como todo acontecimento histórico, não se pode mais repetir. A Páscoa de hoje é a mesma Páscoa dos pais. Sob o aspecto salvífico, no plano mistérico-sacramental, não há diferença entre o cordeiro, o ázimo e a erva amarga daquela última ceia do Egito e os mesmos elementos da Páscoa atual. E “é por causa disto” (do cordeiro, do ázimo, da erva amarga) que o Senhor nos remiu.

Essa perspectiva da ceia pascal judaica esclarece o sentido da eucaristia. Com a mesma intenção de instituir um zikkaron/memorial/anámnesis, Jesus partiu o pão e distribuiu o cálice. A perspectiva mistérico-sacramental herdada do judaísmo permite compreender o alcance do gesto de Jesus. Plagiando a admoestação de Gamaliel cabe dizer:

De geração em geração, cada um de nós é obrigado a ver-se a si próprio – com os olhos penetrantes da fé – como tendo estado lá no Calvário na primeira Sexta-feira santa e diante da tumba vazia na manhã da ressurreição. Pois não só nossos pais estavam lá; mas também nós todos, reunidos hoje aqui para celebrar a eucaristia, estávamos lá com eles, prestes a morrer na morte de Cristo e a ressurgir em sua ressurreição (GIRAUDO, 2003, p. 90; GIRAUDO, 1989, p. 116).

Nos sinais do pão e do vinho deixados por Jesus, nós nos tornamos hoje salvificamente contemporâneos do evento redentor da morte e ressurreição do Senhor. Em mistério ou sacramento, participamos do acontecimento histórico único e irrepetível que trouxe a redenção para nós. Por este pão e este vinho sobre o qual se pronunciou a ação de graças do memorial e para os quais se suplicou a vinda do Espírito Santo, somos realmente transportados – na fé – ao evento fundador e participamos dele. “É por causa disto” (do sinal do pão e do vinho sobre os quais se pronunciou o memorial de ação de graças) que somos remidos (cf. JOÃO PAULO II, 2003, n. 4; GIRAUDO, 2008, p. 51).

A transposição da mistagogia judaica para a eucaristia permite captar melhor o realismo da eucaristia: pelo memorial da entrega do Senhor sob os sinais do pão e do vinho nós nos apropriamos da redenção em Cristo e ele se torna presente, como o verdadeiro Cordeiro que tira o pecado do mundo. Também nós podemos dizer: este pão que agora partimos, é aquele que Jesus partiu significando profeticamente seu corpo entregue por nós; este vinho que está agora aqui no cálice é aquele vinho que Jesus bebeu na última ceia, anunciando profeticamente seu sangue derramado (cf. GIRAUDO, 1989, p. 221-222. GIRAUDO, 2003, p. 168-169).

2.2 A eucaristia, sacrifício memorial

A partir do realismo salvífico do memorial, pode-se reconhecer a eucaristia como sacrifício. Neste ponto, o primeiro a fazer é sublinhar que o caráter sacrifical da eucaristia não empana a unicidade do sacrifício de Cristo. Ele é o sacerdote único da nova e eterna aliança; seu sacrifício também é único, pois não é ritual, mas histórico, vivencial, existencial e, como todo fato histórico, irrepetível. Para expressá-lo, no entanto, o autor da Epístola aos Hebreus lança mão de vocabulário cultual, ritual e sacerdotal, mas o transforma intrinsecamente, aplicando-o à realidade profana da existência histórica de Jesus. A constante referência ao culto levítico serve para distanciar-se dele e mostrá-lo superado pelo culto histórico realizado por Jesus, que culmina em sua morte de cruz. Como acontecimento histórico, com todos os horrores das torturas a que são submetidas pessoas condenadas como malfeitores, o sacrifício de Cristo é absolutamente irrepetível, aconteceu de uma vez para sempre (cf. Hb 9,12 e 26) e, com isso, aboliu todos os sacrifícios. Destarte, Cristo é o fim do sacerdócio e dos sacrifícios, como o é da Lei (cf. Rm 10,4). Fim significa ao mesmo tempo “término” e “meta”. Nesse sentido, Cristo é o fim e a realização de todo sacerdócio, e sua vida, culminando na cruz e na ressurreição, é o fim e a realização de todo sacrifício. Nessa condição tornam-se desnecessários ulteriores sacrifícios, pois por sua vida realizou definitivamente, escatologicamente, a pretensão de todo ato sacrifical: apresentar-nos a Deus e ser acolhidos com um olhar benévolo.

A partir dessa afirmação irredutível da unicidade do sacerdócio e do sacrifício de Cristo ilumina-se o sentido da eucaristia e de seu caráter sacrifical. A eucaristia não é o pendant neotestamentário dos sacrifícios do templo. No templo de Jerusalém (e nos sacrifícios de todas as religiões), cada sacrifício é um novo ato sacrifical, distinto do anterior, de forma que podem ser numerados, e trinta sacrifícios valem mais do que dez. A eucaristia, ao contrário, é todo o Calvário e nada mais que o Calvário. E nada lhe acrescenta.

Para compreender como, apesar da unicidade e suficiência do sacrifício de Cristo, a eucaristia pode ser e é “sacrifício <no sentido> verdadeiro e próprio” (DH n. 1751), vem em ajuda o conceito de memorial. Ele permite que se veja a eucaristia como totalmente relacional ao sacrifício da cruz. É sacrifício porque memorial; é sacrifício porque sacramento do único sacrifício (cf. AVERBECK, 1967).

2.3 No memorial vivemos o “tempo sacramental” ou “tempo redimido” (PAMPALONI, 2008, p. 87-103)

Se o memorial nos torna contemporâneos à ação histórica que é a morte de Jesus e sua manifestação aos discípulos como Ressuscitado, pode-se explicá-lo distinguindo entre “tempo físico” e “tempo sacramental”. Respondendo ao questionamento de Calvino que negava a presença de Cristo no pão eucarístico, porque estando ele no céu, à direita do Pai, não poderia estar, ao mesmo tempo, na terra sob as espécies de pão e de vinho, o Concílio de Trento faz uma importante distinção entre “espaço físico” e “espaço sacramental”, declarando não haver contradição entre ambos (cf. GIRAUDO, 2003, p.540). A presença de Cristo no céu, à direita do Pai, não obsta que ele esteja presente para nós sacramentalmente em sua substância, em muitos outros lugares, “segundo um modo de existência que, embora mal o possamos exprimir em palavras, podemos reconhecer pelo pensamento iluminado pela fé como possível para Deus e no qual devemos crer firmemente” (DH n. 1636).

Em outras palavras: não há contradição entre a presença física – que, por definição é única – e a presença sacramental, múltipla, em todas as eucaristias que se celebram na face da terra. Da mesma forma, deve ser possível afirmar que não há contradição entre o tempo físico em que se realizou o sacrifício do Calvário e sua perpetuação em cada “hoje” das celebrações eucarísticas. O conceito de “tempo sacramental” é muito feliz por evocar que é em sacramento, em mistério, que, pelas palavras de Cristo e a invocação do Espírito Santo (cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2003, n. 1333; TABORDA, 2015, p. 287-309), nos tornamos aqui e agora contemporâneos do evento do Calvário e da experiência feita pelas mulheres na manhã do domingo junto à tumba do Ressuscitado.

Massimo Pampaloni sugere que entendamos o “tempo sacramental” como uma irrupção de Deus no tempo cronológico, qualificando a este como “tempo redimido” (PAMPALONI, 2004, p. 98-100; TABORDA, 2015, p. 79-84). Na liturgia vivemos imersos na antecipação sacramental do tempo redimido que é o “tempo” que experienciaremos na comunhão definitiva e escatológica com Deus. O tempo litúrgico é, pois, tempo redimido que não vive a fragmentação do aqui-e-não-lá, do agora-e-não-depois. A liturgia não é repetição do passado; mas, transportando-nos pela fé e pelos sinais sacramentais ao evento fundador, é, cada vez que se celebra, um passo ulterior em nossa caminhada rumo à definitividade da união plena com o Senhor no corpo eclesial escatológico.

Nossa contemporaneidade com o passado e o futuro é possível graças à ressurreição de Cristo, porque, tendo subido aos céus, nele já se realiza essa junção. Poderíamos ilustrá-lo através de duas perspectivas bíblicas que se encontram, respectivamente, na Epístola aos Hebreus e no Apocalipse.

No Apocalipse o vidente vê o Cordeiro que está no centro do trono, de pé e como que imolado (cf. Ap 5,6). O Cordeiro é o Ressuscitado na glória do Pai. Está de pé, como um triunfador, como alguém que possui uma especial dignidade e pode ficar de pé diante de Deus (cf. At 7,55). Mas ele está “como que imolado”, porque o Ressuscitado é o Crucificado e Jesus está na glória do Pai com toda sua história que culmina e se resume em sua morte. Nós – cada um de nós – somos o que nos tornamos no decorrer de nossa história. Ninguém nasce pronto; fazemo-nos dia a dia, através de nossas decisões em face aos embates que sofremos, diante das circunstâncias em que transcorre nossa existência, do cenário em que vivemos. Fazemo-nos a nós mesmos cada dia, e somente no momento da morte podemos dizer quem verdadeiramente somos, pois só então entramos na definitividade. Por isso Jesus, por ser verdadeiro homem, está junto do Pai com sua história, sua vida de entrega até à cruz.

Na Epístola aos Hebreus, Cristo é apresentado como o verdadeiro sacerdote que supera e realiza o sacerdócio levítico. Ponto de partida é a liturgia do Dia do Perdão (Yom Kippur), o grande dia da expiação, a festa máxima do templo de Jerusalém (cf. Lv 16,3-34). Nesse único dia do ano, o Sumo Sacerdote (e somente ele), para oferecer a Deus o sangue das vítimas, atravessava o véu que separava do olhar profano a parte mais sagrada do templo, o Santo dos Santos. Mas, para que pudesse ter acesso à presença do Altíssimo, precisava purificar-se dos próprios pecados pelo sacrifício de novilhos e bodes.

O autor da Epístola aos Hebreus vê nessa liturgia do templo uma “sombra dos bens futuros” (Hb 10,1). O verdadeiro sacerdote é Cristo que entrou de uma vez por todas no verdadeiro Santo dos Santos, o céu, sem precisar purificar-se previamente, porque feito semelhante a nós em tudo, menos no pecado (cf. Hb 4,15). E ele entrou não por um ato ritual, mas por um ato histórico, sua morte como condenado, posto para fora do lugar sagrado e mesmo da Cidade Santa, tendo que levar sobre si a ignomínia da cruz (cf. Hb 13,12-13). Seu sacrifício é ele próprio, sua vida, sua história. Por isso mesmo supera todo culto antigo e lá está, junto do Pai, a interceder para sempre por nós (cf. Hb 7,25), apresentando ao Pai sua vida desde a entrada no mundo (cf. Hb 10,5-7) até a morte na cruz (cf. Hb 13,12). Ele é, como diz a liturgia, “ao mesmo tempo sacerdote, altar e cordeiro” (MISSAL ROMANO, Prefácio da Páscoa V).

Em vista dessas duas perspectivas bíblicas do Apocalipse e da Epístola aos Hebreus, houve quem postulasse a admissão de um “sacrifício celeste” (LEPIN, 1926, p. 737-758). A história de cada um é o que o identifica como esta pessoa (é o “corpo” da pessoa). Ora, na plenitude escatológica, não perdemos nossa identidade; pelo contrário, afirmamo-la, pois também lá “carregaremos” – para o bem e para o mal – nossa própria história, que é a história de nossa liberdade. O mesmo vale do Cristo glorioso, de forma que o “sacrifício celeste” não é “outro sacrifício”, ao qual se referiria a eucaristia, mas o mesmo sacrifício do Calvário perenizado na glória como “sacrifício celeste” que serve como mediação para que, celebrando a eucaristia, nos tornemos contemporâneos do sacrifício da cruz perpetuado pela existência de Cristo na eternidade, o vencedor da morte que porta em seu corpo as chagas do Crucificado (cf. Jo 20,20 e 27).

Em suma: o memorial eucarístico faz Cristo presente e, com ele, sua vida, morte, ressurreição, manifestação no Espírito, parusia, porque em seu mistério pascal Cristo redime o tempo. Pelo memorial, sob a ação do Espírito Santo (epiclese), participamos desse “tempo redimido” e, com isso, Cristo se torna presente a nós e em nós, transformando-nos, pela comunhão, em seu corpo eclesial. Por isso, na oração eucarística, depois de louvar o Pai, recordando (= memorial) o que fez por nós em seu Filho Jesus e em vista dele, suplicamos que envie o Espírito com a dupla finalidade: transformar os dons do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo, a fim de que, comungando, nós possamos ser transformados no corpo eclesial (cf. GIRAUDO, 2003, p. 306-318; GIRAUDO, 1989,p. 436-439).

Francisco Taborda SJ – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Texto original português. Postado em dezembro de 2020.

Referências

AVERBECK, W. Der Opfercharakter des Abendmahls in der neueren evangelischen Theologie. Paderborn: Bonifatius-Druckerei, 1967.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo; Petrópolis: Loyola, Paulinas, Ave-Maria, Paulus, Vozes, 1999 (reimpressão: junho de 2003).

CHENDERLIN, F. “Do This as My Memorial”.  The Semantic and Conceptual Background and Value of ‘anamnesis’ in 1 Corinthians 11:24-25. Rome: Biblical Institute Press, 1982.

EISING, H. zakar. In: BOTTERWERK, G; RINGGREN, H. (eds.). Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament. v. 2. Stuttgart; Berlin; Köln; Mainz: Kohlhammer, 1977. p. 571-593.

FABRY, H.-J. Anamnese. III. Biblisch. In: KASPER, W. et al. (eds.). Lexikon für Theologie und Kirche. 3.ed. v. 1. Freiburg; Basel; Rom; Wien: Herder, 1993. p. 590-591.

GIRAUDO, C. Eucaristia per la Chiesa: Prospettive teologiche sull’eucaristia a partire dalla lex orandi. Roma: Gregorian University Press; Brescia: Morcelliana, 1989.

______. Num só corpo: tratado mistagógico sobre a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2003.

______. Admiração eucarística: para uma mistagogia da Missa à luz da encíclica Ecclesia de Eucharistia. São Paulo: Loyola, 2008.

JOÃO PAULO II. Encíclica Ecclesia de Eucharistia, 17 de abril de 2003. Disponível em: http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_20030417_eccl-de-euch.html Acesso em: 27 fev 2020.

LEPIN, M. L’idée du sacrifice de la Messe d’après les théologiens depuis l’origine jusqu’à nos jours. Paris: Gabriel Beauchesne, 1926.

MICHEL, O. Mimineiskomai ktl. In: KITTEL, G. (ed.). Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. v. 4. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1942. p.678-687.

NEUNHEUSER, B. Memorial. In: SARTORE, D.; TRIACCA, A. M. (org.). Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 723-736.

PAMPALONI, M. A liturgia como pastor do tempo. In: BARROS, P. C. (org.). A serviço do Evangelho: estudos em homenagem a J. A. Ruiz de Gopegui, SJ, em seu 80º aniversário. São Paulo: Loyola, 2008. p. 87-103.

______. Lettura strutturale del Sermone In Ascensione Christi di Gregorio di Nissa: teologia e percorsi sacramentali del testo. Roma: Facoltà di Scienze Ecclesiastiche Orientali. Pontificio Istituto Orientale, 2004 (pro manuscripto).

TABORDA, F. O memorial da Páscoa do Senhor: ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2015.

Ecologia integral e ética planetária

Sumário

Introdução

1 Ecologia integral: um “novo” paradigma

2 A emergência de uma “ética planetária”

2.1 A “impotência da ética” e o desafio de uma ética planetária

2.2 Dignidade dos pobres – dignidade da Terra

2.3 Dignidade da humanidade ou do gênero humano

2.4 Dignidade da Terra e de sua Comunidade de vida

Conclusão: uma “nova” ética para um paradigma “novo”

Referências

Introdução

Nosso intuito, aqui, é sondar os eventuais desdobramentos da relação entre “ecologia integral” e “ética planetária”. Constatamos, de início, que paradigmas emergentes postulam uma total recomposição da vida em sua complexidade. Neste sentido, testemunhamos uma mútua implicação entre processos de esgotamento do velho paradigma e paisagens e sendas descortinadas a partir do paradigma emergente. E, com isso, somos remetidos à pergunta pelo tipo de relação que haveria entre velho e novo paradigma. Dizia, a propósito, Zigmunt Bauman: “O velho mundo está morrendo. Mas o novo ainda não nasceu”. O embate entre velho e novo paradigma se daria, segundo nos parece, no interior de um mesmo processo histórico em que um paradigma alternativo vai emergindo mediante um processo duplo e simultâneo: radicalização das contradições do paradigma hegemônico e potencialização dos veios alternativos que despontam em meio a suas contradições internas.

1 Ecologia integral: um “novo” paradigma

Pode parecer redundante falar em “ecologia integral”, posto que o termo “ecologia”, compreendido a partir dos étimos que o compõem (oíkos + lógos), remete-nos a princípios que regem uma convivência harmônica no seio da casa comum. E, daí, a conclusão óbvia de que a integralidade se torna condição imprescindível para que se possa falar em Ecologia. Como é noto, “ecologia” constitui um neologismo criado pelo biólogo alemão Ernst Häckel que, em sua obra Generale Morphologie der Organismen, publicada em 1866, escreve:

Por ecologia entendemos a ciência do relacionamento dos organismos com o mundo exterior, em que podemos reconhecer de uma maneira ampla os fatores da luta pela existência. […] Às condições de existência de natureza inorgânica a que cada organismo deve submeter-se, pertencem, em primeiro lugar, as características físicas e químicas do habitat, o clima (luz, temperatura, umidade e letrização da atmosfera), a qualidade da água, a natureza do solo, etc. Sob o nome de condições de existência, compreenderemos o conjunto de relações dos organismos entre si, relações favoráveis ou desfavoráveis. (HÄCKEL, 1866 apud KERBER, 2006, p. 71)

Salta à vista, portanto, a eleição da relação como fio que une, como em uma teia, a complexidade dos organismos entre si. Inscrita na própria definição de ecologia – “ciência do relacionamento dos organismos com o mundo exterior” –, a noção de relação também é intrínseca à própria concepção das “condições da existência” da relação entre organismos e natureza inorgânica, a saber: “conjunto de relações dos organismos entre si”.

Sendo assim, qual a razão de se continuar falando em “ecologia integral”? Toda ecologia não seria, ao fim e ao cabo, integral? Qual o sentido, portanto, de acrescentar o adjetivo integral ao substantivo ecologia? A legitimar esse recurso não seria eventualmente a consciência de que, dada a complexidade intrínseca à ecologia enquanto tal, seja necessário o emprego de adjetivos no intuito de distinguir e explicitar, uma a uma, cada dimensão que, articulada às demais, compõem essa intrincada trama?

Ao longo das últimas décadas, sentiu-se a necessidade de acrescentar adjetivos ao substantivo “ecologia” para, assim, explicitar dimensões outras que não fossem redutíveis apenas ao âmbito da biologia. E isto se deu, basicamente, pelo fato de o termo ecologia ter sido, impropriamente, identificado sempre mais com “ambiente” apenas. E, consequentemente, discursos e práticas ecológicos foram sendo cada vez mais compreendidos como relativos única e exclusivamente à defesa do ambiente, concebido como mero cenário da presença e atividade humanas. Em última instância, reduzir a complexidade da ecologia à dimensão ambiental, trairia a presença do inveterado antropocentrismo moderno.

Não temos, aqui, a pretensão de reconstituir o inteiro processo no interior do qual foram sendo acrescentados adjetivos à ecologia para explicitar várias de suas dimensões constitutivas, no intuito de articulá-las reciprocamente e não separá-las e menos ainda contrapô-las. De resto, nem seria aqui o lugar para fazê-lo (cf. KERBER, 2006, p. 61-85). Talvez seja oportuno, a tal propósito, salientar que a explicitação das outras dimensões se deu a partir da delimitação da assim chamada ecologia natural ou ambiental. Conhecida é a proposição feita por Félix Guattari de três ecologias: natural, social e mental (cf. GUATTARI, 1990). A ecologia natural se ocuparia do ambiente e questões conexas; a social, das questões referentes às relações intersubjetivas e sociais; e a mental diria respeito à subjetividade das pessoas.

No que tange à ecologia mental, afirma-se que a natureza é também interior ao ser humano e que, portanto, se dá na mente sob a forma de energias psíquicas, símbolos, arquétipos, padrões de comportamento e mentalidades que exprimem atitudes de agressão ou de acolhimento e cuidado (cf. BATESON, 1985; NAESS, 2017).

A ecologia social se desenvolveu mais no sul global (cf. SHIVA, 1991) e, de modo especial, no continente latino-americano (cf. GUDYNAS, 1988; 1991). Nessas latitudes, buscou-se articular o grito da Terra ao grito do pobre, desmascarando a cumplicidade entre crise ambiental e injustiça econômico-social. O pressuposto de base de tal posição é que os limites da Terra coincidem com os limites do capitalismo neoliberal (cf. BOFF, 2009, p. 42).

Com o passar dos anos, porém, tem ficado cada vez mais claro que, para salvaguardar a amplitude do termo ecologia, necessitaríamos de imaginá-la como uma nova arte, um novo paradigma a pautar nossas relações com o sistema-Vida e com o sistema-Terra. Daí a oportunidade de concebê-la como um novo paradigma civilizacional, acrescentando ao termo ecologia mais um adjetivo, no caso, “espiritual-integral”, que corresponda a uma quarta dimensão, de importância capital para amalgamar as outras três já conhecidas. Daí a razão de se falar em “quatro ecologias” (cf. BOFF, 2012). Nesse caso, a ecologia seria concebida a partir de uma visão sistêmica e, portanto, como singular complexidade composta por quadro dimensões: ambiental, social, mental e espiritual/integral. Na esteira de posições epistemológicas de F. Capra (“pensar sistêmico”), E. Morin (“pensar complexo”) e Boaventura de Sousa Santos (“ecologia do saber”), Boff escreve:

Impõe-se, pois, a tarefa de ecologizarmos tudo que fazemos e pensamos, rejeitarmos os conceitos fechados, desconfiarmos das causalidades unidirecionadas, nos propormos a ser inclusivos contra todas as exclusões, conjuntivos contra todas as disjunções, holísticos contra todos os reducionismos, complexos contra todas as simplificações. Assim, o novo paradigma começa a fazer a sua história” (BOFF, 1995, p. 32).

2 A emergência de uma “ética planetária”

2.1  A “impotência da ética” e o desafio de uma ética planetária

Encontramo-nos hoje em uma situação de “impotência da ética”. De fato, a ética se descobre incapaz de impedir a tecnologia na efetivação de suas possibilidades. Tudo o que é possível de ser feito parece ter assumido, em nossos dias, legitimidade e, portanto, passa a ser buscado mediante uma espécie de compulsão obsessiva. No bojo do paradigma moderno – antropocêntrico e científico-técnico – os meios eram empregados para se atingir determinados fins. Naquele contexto, mediante a clássica relação entre instrumentalidade e finalidade, garantia-se uma composição relativamente harmônica entre técnicas e ética. Enquanto a ética se destinava às finalidades últimas, as técnicas se ocupavam dos meios adequados para atingi-las. Era, portanto, a ética que promovia a técnica, enquanto tocava-lhe a decisão referente aos fins que deviam, por seu turno, orientar os processos técnicos.

Em nossos dias, essa situação parece ter se invertido. A tecnociência não necessita mais da ética para lhe prescrever as regras e as finalidades de seu operar. A ética se descobre condicionada pela tecnociência no sentido de se sentir constrangida a tomar parte de uma realidade artificial. Os fins passam a ser, agora, os resultados dos procedimentos técnicos. O fazer concebido como simples produção de resultados assume o primado sobre o agir concebido como escolha e decisão dos fins. A ética, por sua vez, encontra diante de si os resultados dos procedimentos técnicos e, sem tê-los escolhido, não consegue mais deles prescindir (cf. GALIMBERTI, 2006; 2015).

Na “Idade da Tecnociência”, constata-se o primado de um fazer afinalista. Pressionada pela criação de um mundo cada vez mais artificial, produto das tecnologias contemporâneas, a ética não pode mais dispor de outro referente a não ser a produção técnica contínua. Por caracterizar-se como um fazer afinalista, ele também se revela, ao fim e ao cabo, como impessoal. Em nossos dias, os efeitos desse fazer não são fruto de decisões tomadas pelo agir humano. São, ao contrário, resultados de procedimentos e métodos já em andamento e que tem, no saber acumulado, sua única base. Nesse sentido, as tecnologias seguem o seguinte raciocínio: os resultados vão se acumulando ao longo de e mediante os próprios procedimentos de tal forma que os efeitos não possam mais ser reconduzidos aos agentes iniciais.

Nossas éticas, amadurecidas no seio da tradição ocidental, tinham, sem exceção, um referente diverso: cosmológico (Antiguidade Clássica), teológico (Idade Média), antropológico ou ideológico (Modernidade). Justamente por seu caráter religioso ou humanista é que tais éticas se encontram hoje numa situação de inelutável impotência. Elas não conseguem transpor o universo das relações intersubjetivas para alcançar uma realidade artificial que tem pretensões de universalidade e cuja extensão é, para todos os efeitos, planetária.

Nesse sentido, mesmo tentativas recentes de se propor éticas que acolham os grandes desafios que nos são postos hoje esbarram nessa condicionante antropocêntrica e/ou religiosa. Segundo nos parece, esse é o caso da “Ética da responsabilidade” proposta por Hans Jonas (JONAS, 2006), da “Ética comunicativo-discursiva” de Habermas (HABERMAS, 2003), da “Ética Global” do teólogo suíço Hans Küng (KÜNG, 1992) e, por fim, da “Ética da libertação ou comunitária” de Enrique Dussel (DUSSEL, 1987). Na medida em que a referência fundamental para a construção da ética ainda é o ser humano (primeiro e segundo casos), a religião (terceiro caso) ou ainda a sociedade (quarto caso), encontramo-nos ainda referidos ao paradigma antropocêntrico, típico da modernidade ocidental científico-técnica.

Ao propor-nos uma “ética planetária”, Leonardo Boff talvez seja o único que, de fato, acolha os desafios postos pela assim chamada crise ecológica, compreendida como uma crise sistêmica: crise do paradigma civilizacional hegemônico. Por isso mesmo, ele propõe uma ética que se situe no bojo de um novo e emergente paradigma, o ecológico (BOFF, 2003; HATHAWAY; BOFF, 2009).

Uma possível alternativa às éticas amadurecidas no bojo da tradição ocidental talvez pudesse ser proposta a partir da revisitação de experiências e princípios éticos de nossos povos ameríndios pelas Constituições Plurinacionais dos Estados da Bolívia e do Equador. Ambas as Constituições se inspiraram em princípios éticos das nações e povos Aimara, Quéchua e Guarani para elaborarem suas atuais Cartas Magnas. A Constituição do Estado Plurinacional do Equador reconhece os direitos da Terra enquanto superorganismo, elaborando leis que tutelem a justiça ecológica e punam os responsáveis por delitos ambientais. A Constituição da Bolívia recupera e recria o “Bem viver” como princípio ético fundamental de seu Estado Plurinacional. “Bem viver” não é o mesmo que “viver bem” entendido como “viver melhor”, lema de nossas civilizações ocidentais consumistas. “Bem viver” implica em: priorizar a vida, retomar a unidade de todos os povos, aceitando e respeitando as diferenças entre os seres que vivem no mesmo planeta e priorizando os direitos cósmicos (ACOSTA; MARTÍNEZ, 2009a; 2009b e 2011).

2.2 Dignidade dos pobres – dignidade da Terra

A eleição do termo “dignidade” em alternativa a “direitos” necessita de uma justificativa prévia. “Direitos” e seus derivados remetem-nos, em nossa opinião, ao projeto típico da Modernidade colonial de emancipação do sujeito em seu afã de domínio e autonomia. Mediante a reivindicação, sobretudo do direito de possuir e dominar, o sujeito moderno colonial vai se emancipando de todos e de tudo que o vincule de alguma forma à própria “comunidade de vida”. “Dignidade”, ao contrário, remete-nos à consciência bíblica de um dom gratuitamente recebido e, somente enquanto tal, passível de conquista, no bojo de uma relação entre Criador e criatura e, portanto, entre o Criador e todas as criaturas.

Nesse sentido, tentativas pós-iluministas de deslocar a discussão acerca dos direitos humanos para o terreno da moral tornam-se cada vez mais problemáticas por se mostrarem, em última instância, ambíguas. Não se quer, com isso, desmerecer a posição inaugurada por I. Kant, que reconhecia a dignidade humana com base na liberdade e na razão autônoma e, portanto, emancipada. Na opinião dele, a especificidade da dignidade humana estaria ligada à vontade e à liberdade do ser humano de poder outorgar a si próprio uma lei que transcendesse suas necessidades naturais, psicológicas e sociais. Deste modo, ultrapassando os próprios interesses, o ser humano seria capaz de projetar-se de maneira livre e desimpedida na realização dos imperativos éticos universais.

Uma concepção tão elevada revela-se, paradoxalmente falando, extremamente frágil justamente por pressupor uma avaliação demasiadamente sublime do sujeito. Essa concepção elevada do ser humano, posto que fundada na razão, vontade livre e aptidão em dominar o tempo, mediante capacidade de memória e de projetualidade, resistiria face à constatação de que há pessoas que são desprovidas ou que perderam essas eminentes qualidades? Por mais elevada que seja essa concepção, não se configuraria como uma armadilha cujos reféns seriam os mais fracos e, portanto, aqueles que mais necessitam de que a própria dignidade seja tutelada? Nesse sentido, não estaríamos hoje percebendo melhor a pertinência do que, a tal propósito, dizia Schopenhauer: “só como ironia o conceito de dignidade pode ser aplicado a um ser de vontade tão pecaminosa e de corpo tão vulnerável e frágil como o ser humano”?

Bem outra é a concepção dos textos inspiradores de nossa tradição judeu-cristã, para os quais a dignidade é conferida como dom gratuito ao conjunto dos viventes e a cada ser vivo em especial. Essa era, de fato, a consciência presente nos textos primordiais de nossa tradição de fé quando, por exemplo, segundo a legislação veterotestamentária, os dias e anos sabáticos deviam valer também para os animais e para a própria terra. O texto do Lv 25–26 prescreve o “sábado da terra”; e os textos de Ex 23 e de Lv 25 recomendam que, durante o ano sabático, se deixe a terra inculta para propiciar o direito da respiga aos pobres e para que a própria terra descanse de sua fadiga. Todavia, o texto mais expressivo desta consciência é a ameaça divina de que o povo escolhido será entregue ao cativeiro da Babilônia até que a terra – a terra de Deus – tenha desfrutado todos os seus sábados (cf. 2Cr 36,21).

2.2.1 Dignidade da humanidade ou do gênero humano

Possui a humanidade como um todo dignidade? Ao que parece, esta questão não tem sido posta apesar de sua pertinência e relevância. Embora pareça óbvia, a resposta a esta questão não é tão tranquila assim, pelo simples fato da dignidade da humanidade não coincidir simplesmente com a somatória da dignidade de cada ser humano tomado singularmente. A grande ameaça à dignidade da humanidade são os assim chamados “delitos da humanidade”, entre os quais se destacam: o armamento nuclear, as armas químicas e biológicas de destruição massiva, as pesquisas no âmbito da biotecnologia e da nanotecnologia e, mais recentemente, a emergência de epidemias viróticas provocadas pela invasão e destruição humanas dos vários ecossistemas naturais.

A espécie humana nunca se descobriu tão vulnerável e mortal como nos dias atuais. Sabemos ser possuidores hoje, por exemplo, de armas nucleares suficientes para, em poucos minutos, destruir não apenas uma, mas várias vezes o Planeta. Vivemos, ademais, sob a ameaça constante da possibilidade de guerras químicas e nucleares e, nos últimos anos, reféns do surgimento de epidemias viróticas. Chegou-se a cunhar uma expressão que pudesse caracterizar esta peculiaridade de nossas sociedades ocidentais contemporâneas: “sociedade de risco” (BECK, 2010). E o caráter paradoxal e, ao mesmo tempo, alarmante de tais sociedades é que o risco não é mais representado pela experiência ontológica da incompletude do ser humano nem de sua histórica sensação de limite, mas pela consequência desastrosa da própria atividade humana. De expressão da impotência fundamental do ser humano diante de um mundo que o ultrapassa, o risco passa a ser percebido agora como o preço a pagar pelo exacerbado e inconsequente poder humano sobre esse mesmo mundo.

Face às recentes pesquisas no âmbito da biotecnologia, emerge na linha de nosso horizonte cultural uma nova ameaça: a da autodestruição genética. Pois, mediante o risco da utilização espúria da eugenia e da teoria da evolução, não está descartada a hipótese que as manipulações genéticas possam de fato alterar o tipo genético da espécie humana. E o que é ainda pior, esse funesto pesadelo do risco constante tem propiciado ainda mais o individualismo, em vez de fomentar a busca de soluções viáveis mediante uma consciência crescente acerca da dignidade da espécie humana. A capacidade de aprender a lidar e a conviver com o risco constante tem se transformado num dos objetivos principais a serem perseguidos pelo ser humano. Em função disso, a realização humana passa a consistir, sobretudo, numa operação individual.

Por tudo isso, constatamos que o exagerado acento que se tem dado em nossos dias aos direitos individuais está nos conduzindo, paradoxalmente falando, a uma situação de negação sistemática dos direitos da humanidade à existência e à sobrevivência. O que está em jogo, ao final das contas, é o direito da existência e da sobrevivência das futuras gerações e, portanto, da espécie humana. Por esta razão, torna-se cada vez mais urgente atentar para o fato que, em determinadas situações, o direito da humanidade como um todo deve exercer uma primazia incondicional sobre os direitos particulares e individuais.

Nesse particular contexto, necessário se faz alargar nossa concepção usual do que chamamos “humanidade”. Ela não deve ser considerada apenas a partir de um corte transversal do tempo, como o conjunto das pessoas que vivem numa determinada época. É preciso compreendê-la também a partir de um corte longitudinal, como a sucessão das gerações humanas. Essa ruptura, que vem caracterizando de maneira acentuada a civilização ocidental hodierna, pode se tornar fatal para a humanidade como um todo. Exemplos dessa falta de percepção com relação ao conjunto da humanidade e ao futuro da espécie humana, infelizmente, não faltam.

Sabe-se hoje que, sobretudo em virtude do crescimento desmedido das nações industrializadas, corremos o risco de que sejam esgotadas, ainda na presente geração, as fontes de energia não renovável como óleo, carvão, madeira e petróleo. Usufruímos, portanto, das vantagens e do bem-estar produzidos pela industrialização, empurrando o pesado ônus e suas desastrosas consequências para as gerações futuras. O exemplo mais característico, talvez, seja o do excessivo lixo que produzimos. Toneladas de lixo e de dejetos produzidos por nós, na melhor das hipóteses, levarão décadas para serem reciclados.

Outra questão que quase nunca é posta, em tal contexto, é a da tutela dos direitos econômicos fundamentais como condição mínima para que a espécie humana viva com dignidade. Referimo-nos aqui aos direitos elementares, tais como: alimentação, saúde, educação, trabalho, moradia. Direitos estes que por serem fundamentais se tornam imprescindíveis para que se possa garantir a cada uma e a todas as pessoas condições mínimas para se viver com dignidade (cf. BOFF, 1991). A tutela desses direitos econômicos fundamentais implica em maior democratização da economia e da solidariedade propiciando a emergência de um mundo em que caibam todos os mundos. Pois o mundo no qual vivemos tem se caracterizado por uma sistemática e crescente exclusão de nada menos que 2/3 da inteira população do planeta. Precisamente aqui, se revela o caráter estruturalmente excludente da globalização neoliberal. A agravar ainda mais a situação é a constatação de que, não apenas os seres humanos, também o planeta Terra, estão à mercê de uma economia neoliberal que se impõe como a maior de todas as fatalidades do “nosso tempo”. À injustiça social e econômica, portanto, vem se assomar a injustiça ecológica. É por isso que os direitos sociais e econômicos devem ser problematizados em sintonia com as condições cósmicas e naturais do Planeta (cf. MOLTMANN, 1990, p. 135-152; BOFF, 2015).

2.2.2 Dignidade da Terra e de sua Comunidade de vida

A caracterização melhor que temos da globalização neoliberal e de seus efeitos desastrosos com relação ao planeta Terra e às pessoas que nela habitam talvez seja aquela feita com invejável rigor e plasticidade por Edgard Morin. Segundo ele, estamos navegando rumo a uma era planetária movida por duas hélices. As hélices não remontam propriamente à imagem do avião, mas aos modelos helicoidais do nosso DNA. A primeira se encontra sob a hegemonia do poder-dominação e é impulsionada por quatro motores: a ciência sujeita à técnica que, por sua vez, é submetida à indústria, que, por sua vez, é subordinada à lógica do lucro. Deste modo, segundo Morin, a nave espacial Terra é colocada em movimento por esses quatro motores interconectados. A segunda distingue-se pela luta pelos direitos da pessoa humana, pelo direito dos povos à soberania, aos ideais de liberdade, igualdade, fraternidade, democracia (cf. MORIN, 2002, p. 225-243). Consciente desta alarmante situação, pergunta E. Morin: “Seremos capazes de ir rumo a uma sociedade-mundo portadora do nascimento da própria humanidade? Eis a questão. A humanidade está em formação. Há possibilidade de rechaçar a barbárie e realmente civilizar os humanos? Será possível salvar a humanidade, realizando-a? Nada está definido, nem o pior” (MORIN, 2002, p. 295).

Talvez tenha se tornado um lugar comum a afirmação de estarmos atravessando, para todos os efeitos, uma crise ecológica. O que se convencionou chamar de crise ecológica corresponde na verdade a uma crise do paradigma civilizacional do Ocidente. Tratar-se-ia, nesse caso, de uma crise no sistema disciplinado mediante o qual a sociedade atual se orienta e organiza o conjunto de suas relações. Em outras palavras, esta crise se daria mais propriamente no conjunto de modelos ou de padrões a partir dos quais organizamos nossa relação conosco mesmos, com as demais pessoas e com o conjunto da realidade na qual estamos inseridos.

O que se encontra em crise, na verdade, é o paradigma tipicamente ocidental, sintoma de um incorrigível antropocentrismo, expresso na peculiar atitude de se colocar sobre as coisas, objetivando-as, e julgando-as distantes e desconectadas do ser humano considerado como sujeito. A vontade desenfreada do ser humano de tudo dominar tem marcado os destinos da civilização ocidental técnico-científica. A exacerbação do saber concebido como poder está nos conduzindo, paradoxalmente falando, à total sujeição aos imperativos de uma Terra degradada. A ilusão, enfim, de um crescimento desmedido e de um progresso ilimitado nos está levando a uma degradação sem precedentes, perceptível, sobretudo, na deterioração progressiva da qualidade de vida nossa, dos demais seres vivos e do próprio Planeta.

Do ponto de vista do direito privado, esse antropocentrismo inveterado se revela na oficialização jurídica da existência de “pessoas” e “coisas” apenas. Essa rígida divisão, aparentemente clara e distinta, reflete a cosmovisão moderna que separa a realidade em “sujeitos” e “objetos”. Segundo essa configuração epistemológica, sujeito mesmo é, a rigor, apenas o próprio indivíduo considerado em si mesmo: cogito, ergo sum! (Descartes). Todo o resto, inclusive as outras pessoas, são sistematicamente reduzidas à condição de meros “objetos”. Essa é a fatalidade do nosso paradigma civilizacional moderno. Segundo esse pressuposto, tão somente o ser humano existe “por amor a si mesmo” (Kant). Todo o resto existe apenas por causa dele e em função dele. O sentido das demais “coisas” reside propriamente no seu estar à disposição do ser humano. Esse antropocentrismo moderno acaba, assim, produzindo uma situação na qual a natureza resulta sem alma e os seres humanos, meros sujeitos incorpóreos.

Importa hoje mais do que nunca salientar a reciprocidade entre a tutela da dignidade humana e a defesa da dignidade da Terra e, portanto, a mútua implicação entre ambas. Toda vez que se fere a dignidade das demais criaturas e do planeta como um todo, acaba-se desrespeitando a dignidade da pessoa humana. A natureza, entendida como o conjunto de todas as criaturas, deve ser protegida pelo que ela é e não enquanto eventual potencial à disposição do ser humano. O planeta deve ser, portanto, salvaguardado em nome de uma dignidade que, para todos os efeitos, lhe é própria. Nesse sentido, salientamos a peculiar relevância da “Carta da Terra”. Esse documento representa, na opinião de L. Boff, membro da sua equipe de redação: “uma forma avançada de se compreender os direitos como direitos humanos, direitos sociais, direitos ecológicos e direitos da Terra, como Planeta vivo” (BOFF, 2004, p. 10).

Conclusão: uma “nova” ética para um paradigma “novo”

Lembrando que texto vem do termo latino textum, que quer dizer tecido, gostaríamos de enredar alguns fios que foram aparecendo ao longo do percurso. Concebemos ecologia como singular complexidade a envolver quadro dimensões: ambiental, social, mental e espiritual/integral. E compreendemos, aqui, paradigma, em sentido amplo, a saber: conjunto de modelos ou de padrões a partir dos quais a sociedade atual se orienta e organiza o conjunto de suas relações. Empregamos, portanto, o termo paradigma no sentido de um sistema disciplinado mediante o qual organizamos nossa relação conosco mesmos, com as demais pessoas e com o conjunto da realidade na qual estamos inseridos. Resta-nos, ainda, justificar a presença do adjetivo “novo(a)” acompanhando os substantivos paradigma e ética. “Novo(a)”, aqui, não significa recente, nem “de moda”, menos ainda “de última geração”. Este adjetivo é, aqui, proposto no sentido de “alternativo”. Ao falarmos, portanto, em novo paradigma queremos nos referir à emergência de possíveis alternativas ao paradigma hegemônico que vem grosso modo caracterizando o tempo presente mediante a imposição da tecnociência, do mercado e da mídia (TAVARES, 2014a, p. 382-401).

Propomos, em suma, a emergência de um novo paradigma civilizacional, precisamente o ecológico, concebido como trama tecida em torno a três nós: complexidade, sustentabilidade e cuidado (TAVARES, 2014b, p. 13-24). Reputamos ainda que a emergente “ética planetária” se caracterize por atitudes de pertença e de cuidado para com todos os seres vivos. Na narrativa de Gn 2,4b-25, por exemplo, afloram relações de pertença e de cuidado como constitutivas do ato criador de Deus. E tudo é dito metaforicamente. Ali, o Criador aparece como artesão cuidadoso que plasma o ser humano do próprio barro da terra para que ele seja seu cultivador/cuidador. Porque feito do barro da terra, o ser humano é chamado a ser o cultivador da terra. Pertença e cuidado, portanto, constituem simultaneamente a reinvenção da nova relação nossa com o sistema-Vida e com o sistema-Terra.

Sinivaldo S. Tavares OFM. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Texto original em português. Postado em dezembro de 2020.

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Eclesialidade das CEBs

Sumário

Introdução

1 CEBs: movimento ou Igreja?

2 Compreensão da eclesialidade

3 Primeiros passos

4 O que dizem teólogos e pastoralistas

5 O que diz o Magistério da Igreja

5.1 O magistério da Igreja no Brasil

5.2 Conferências Gerais do Episcopado LAeC

5.3 O Magistério pontifício

Conclusão

Referências

Introdução

O sopro do Espírito Santo despertou a Igreja para muitas experiências de renovação que, no decorrer do séc. XX, prepararam o Concílio Vaticano II. Entre essas experiências pode-se citar com segurança o movimento comunitário. Ele alentou muitas iniciativas de participação de leigos, entre eles os jovens, para uma vivência profunda de comunidade eclesial, com participação na vida litúrgica, na comunidade paroquial, com o olhar voltado não só para dentro da Igreja, mas descobrindo também a dimensão do empenho de renovação social pela prática da justiça e da solidariedade (cf. LIBANIO, 2005, p. 21-48).

Entre as muitas experiências de renovação, não se pode deixar de citar a das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Hoje, depois de várias décadas de vivência das CEBs como escolas de formação de fé eclesial, podemos dizer que elas já fazem parte do patrimônio teológico-pastoral da Igreja, em especial no Continente latino-americano e caribenho (=ALeC).

Em sua trajetória, as CEBs já enfrentaram muitas dificuldades. Uma delas e a mais persistente foi, sem dúvida, a eclesialidade. As CEBs são movimento dentro da Igreja ou Igreja na base eclesial?

1 CEBs: movimento ou Igreja?

Como fenômeno histórico-eclesial, as CEBs estão submetidas à ambiguidade própria dos fenômenos históricos. Desde cedo elas tiveram que definir sua identidade eclesial, delimitando-se com os novos movimentos eclesiais. Para os que vivem o dia a dia dessas comunidades, elas expressam, de modo profético, a nova compreensão de Igreja do Concílio Vaticano II. Mas há os que fazem uma leitura diferente, interpretando-as mais como movimento contestador da estrutura hierárquica da Igreja institucional. Ou seja, elas também enfrentam escolhos, suscitam entusiasmo e paixão, dúvidas e mesmo rejeição.

Para evitar desvios, as CEBs foram constantemente objeto da atenção de teólogos e pastoralistas e da solicitude pastoral do magistério da Igreja – em nível de Conferências Episcopais, do Episcopado do Continente latino-americano e mesmo do magistério da Igreja universal, zelando pela sua eclesialidade.

A exortação pós-sinodal Christifideles Laici (CfL), de 1988, recolhendo os frutos do Sínodo sobre a Vocação e Missão dos Leigos na Igreja e no Mundo, de 1987, nos oferece preciosa indicação para responder à questão da diferenciação entre CEBs e movimentos eclesiais. Na parte em que se ocupou das paróquias como “a própria Igreja que vive no meio das casas”, o texto pontifício nos faz ver que a realidade eclesial dos movimentos tem aspectos que dificilmente se enquadram numa categoria ligada a território, edifício, estrutura. Essa realidade eclesial se liga mais com “família de Deus”, “fraternidade animada pelo espírito de unidade”, enraizada numa comunidade de fé, esperança e caridade, enfim, numa comunidade eucarística. Na verdade, no contexto de vida paroquial se desenvolvem estruturas paroquiais que promovem a participação dos leigos, por um lado, e as “pequenas comunidades eclesiais de base, também chamadas comunidades vivas”, por outro (CfL n. 26). O texto nos ajuda, pois, a distinguir aquelas estruturas que sustentam a participação dos leigos na vida eclesial e “pequenas comunidades de base”.

Mais adiante o texto se abre para “formas agregativas de participação” e para uma “nova era agregativa”. Essas “formas agregativas” não são mera concessão da autoridade. São fruto do batismo, vivido sob a responsabilidade do leigo (cf. CfL n. 29).  Cabe à autoridade eclesiástica indicar com clareza os critérios de eclesialidade, tais como apontados na Exortação Apostólica (cf. CfL n. 30). Esses agrupamentos ou os novos movimentos têm alguns aspectos parecidos com as CEBs. Eles também podem se pensar como “um novo jeito de ser Igreja”, de a Igreja se realizar. Pode-se dizer que “a vocação apostólica de cada batizado se expressa também com iniciativas coletivas ou grupais que caracterizam os movimentos eclesiais” (MAÇANEIRO, 2015, p. 644).

Por seu lado, as CEBs têm caraterísticas diferentes e mais abrangentes do que os movimentos eclesiais. Nelas se sublinha a participação dos membros da comunidade como “Igreja local” que envolve todos: crianças, jovens, adultos e idosos, homens e mulheres. Todos se reúnem ao redor da comunidade que celebra sua fé, esperança e caridade. Será instrutivo recordar um dos textos mais iluminadores da história das CEBs. O Documento de Medellín (DMd) afirma que

a vivência da comunhão a que foi chamado deve ser encontrada pelo cristão em sua “comunidade e base”, isto é, em uma comunidade local ou ambiental, que corresponda à realidade de um grupo homogêneo, e que tenha uma dimensão tal que permita o trato pessoal fraterno entre seus membros. (DMd 15, 10)

Nossa próxima preocupação visa compreender essa eclesialidade como identidade das CEBs.

2 Compreensão de eclesialidade

A Igreja de Jesus Cristo tem seu ponto de partida na Trindade santa pelo desígnio eterno do Pai, que quer a salvação de todos, e pela missão do Filho e do Espírito (cf. LG n. 2-4). Posta essa iniciativa, a Igreja tem seu “ensaio” histórico na vida de Jesus e sua pregação do Reino de Deus, e se explicita a partir do querigma, que liga os seguidores de Jesus à sua vida, paixão, morte e ressurreição.

Essa ação divina que se dá no acontecimento da salvação em Cristo pelo Espírito se torna realidade empírica na obra de Jesus: ele anuncia o Reino do Pai, convoca discípulos para estarem com ele no aprendizado do discipulado e, depois, serem enviados em missão. Pode-se afirmar que, por sua morte e ressurreição e pelo Pentecostes, a Igreja adquire densidade histórica palpável, visível, como sacramento universal da salvação. Pela experiência do Ressuscitado e do Espírito, a Igreja pode celebrar na história a graça libertadora até o fim dos tempos.

Pode-se dizer, então, que pela experiência do Ressuscitado e do Espírito Santo é que se constitui a primeira comunidade apostólica e todas aquelas comunidades – ekklesiai no sentido que nos chega no Novo Testamento – que vão se constituindo pela história afora até o fim dos tempos. Toda e qualquer comunidade cristã precisa desse início como fato estruturante. A fé, a esperança e a caridade nos constituem como Igreja. Dizendo de outra forma, a eclesialidade não é dada como obra humana, mas é essencialmente ação comunicativa de Deus no mundo. Assim é que se constituem todas as Igrejas locais, grandes, pequenas, pobres, dispersas. É a essa experiência das comunidades apostólicas a que as CEBs se ligam para se afirmarem hoje como Igreja em condições histórico-conjunturais diversas dos tempos apostólicos.

Nesta direção, nos ajuda a afirmação, de autoridade incontestável, da Lumen Gentium “a Igreja de Cristo está verdadeiramente presente em todas as legítimas comunidades locais de fiéis, que, unidas com seus pastores, são também elas no Novo Testamento chamadas ‘igrejas’” (LG n. 26). Vejamos então qual o significado dessa preciosa inserção justamente no cap. III da Lumen Gentium.

Nos debates conciliares sobre a compreensão da Igreja, surgiu a observação de que havia, na verdade, uma certa visão unilateral em favor da Igreja universal, oferecida pelos cap. I e II da Lumen Gentium, respectivamente sobre o mistério da Igreja vista a partir da Trindade, e o Povo de Deus na sua plena historicidade. Assim, a dimensão “universal” da Igreja se fez representar muito bem. Mas faltava trabalhar mais proximamente a Igreja em sua realidade “local”. Sem ela faltaria a referência à vida concreta onde a Igreja realmente se realiza em seus diferentes níveis: na Igreja diocesana, na paróquia ou nas CEBs. Esses vários níveis, mesmo diferentes, se complementam entre si, sempre sob o pastoreio do bispo. Trata-se, pois, da compreensão da Igreja não tanto desde sua “universalidade abstrata”, mas desde a comunidade concreta, na qual se proclama a Palavra e se celebra o Memorial do Senhor. Deste modo se faz presente na comunidade viva a salvação escatológica. Assim, a pequena comunidade é Igreja no verdadeiro sentido do termo. Dessa realidade escatológica, presente e real, se pode buscar a compreensão da Igreja como um todo. Isto porque o mistério da Igreja, na sua universalidade, está presente realmente (no texto latino: vere adest) na comunidade local.

O texto conciliar tem um contexto específico, em que se explicita o lugar do ministério do bispo, que, pela plenitude do sacramento da ordem, preside a Igreja particular ou local. A partir desse ministério apostólico pode-se afirmar que a Igreja de Cristo se encontra em todas as legítimas assembleias locais de fiéis, não importa se pequenas, pobres ou na dispersão. Nelas se encontra presente o Senhor Ressuscitado. É por força dessa presença vitoriosa do Ressuscitado que a comunidade local se une ao mistério da una, santa, católica e apostólica Igreja de Cristo, tal como professamos no Credo apostólico (cf. RAHNER, 1966, p. 242-245).

Depois desses pressupostos para a compreensão da “eclesialidade”, percorremos o caminho seguido pelas CEBs, perguntando-nos pelos primeiros passos dessa experiência e sobre a leitura que seus atores históricos fizeram dela.

3 Primeiros passos

Colocadas as condições estruturantes da eclesialidade, verificamos agora como seus atores viveram a experiência das CEBs e a expressaram no dia a dia. Nesse itinerário, é fundamental, de início, dizer que as CEBs não surgiram de um planejamento prévio. Não houve um momento específico em que os participantes decidem que vão “criar uma comunidade de base”, ou seja, uma comunidade cristã com outra figura de Igreja que não simplesmente a Igreja de sempre, que expressa essa identidade que vem dos apóstolos e que se apresenta com nova visibilidade, um modelo histórico em construção.

O impulso renovador do Espírito Santo, já presente em muitas Igrejas particulares da Igreja latino-americana, vem ao encontro do anseio de renovação que já antecede o Concílio Vaticano II e se manifesta de forma crescente, sobretudo, nos anos 50 e 60 do século XX. Ressaltamos que, neste ponto, privilegiamos o caminho seguido pelas CEBs na Igreja no Brasil, pelo fato óbvio de vivermos essa experiência eclesial nessa Igreja. Participantes de outras realidades eclesiais, com certeza, terão condições de alargar a nossa visão, enriquecendo-a com suas experiências.

Ao redor do Concílio Vaticano II em nosso Continente vive-se uma nova consciência eclesial. Fatos novos se anunciam: primeiro, a emergência de um novo sujeito social na sociedade em nosso continente, o sujeito popular, que ansiava a participação; segundo, a emergência de um novo sujeito eclesial, portador de uma nova consciência na Igreja. Ele ansiava participar ativa e corresponsavelmente da vida e da missão da Igreja. Esse sujeito provoca novas descobertas e conversões pastorais (cf. Doc. CNBB, 1986, n. 7).

Onde encontramos as sementes dessa experiência? Para dar resposta a essa pergunta, precisamos voltar nosso olhar para a nossa história e descobrir os fatores que provocaram o surgimento das CEBs. No passado da nossa história, notamos que em muitos rincões de nosso continente foram os fiéis leigos que, povoando o interior, levaram consigo a fé e suas expressões, construindo oratórios e capelas, alimentando a própria fé simples, mas fervorosa e devotada. Eles fizeram com que a própria vivência da vida cristã garantisse a transmissão da fé eclesial, antes mesmo que o clero por lá chegasse. Mais recentemente esse fundo histórico se encontra com os vários movimentos de renovação que prepararam o Concílio Vaticano II. Tais movimentos têm como sujeito portador de mudança o “sujeito moderno”. Esse encontro entre o que nos chega da tradição com esse novo espírito, sobretudo de participação, de renovação comunitária, vai desembocar em novas experiências entre as quais estão a das CEBs. Assim, dá-se o despertar de uma nova consciência eclesial.

No contexto desse despertar do Espírito no coração da Igreja, as primeiras experiências de renovação comunitária se deram já na década de 1950 no Brasil, no Chile, no Panamá e em muitas outras Igrejas locais. No caso brasileiro, citamos duas iniciativas pioneiras, preanunciando as pequenas comunidades cristãs, logo chamadas de base. A primeira delas é a experiência da catequese popular na diocese de Barra do Piraí (RJ), incentivada pelo então bispo diocesano Dom Agnelo Rossi. Ela incentivava a participação dos leigos nos salões comunitários, sob a guia dos catequistas, para a proclamação da Palavra de Deus e a catequese. A segunda experiência se deu no assim chamado Movimento de Natal, iniciado na década de 1950 do séc. XX. Nele se articulava a promoção humana pela educação popular e sindicalização rural, com a formação da fé, valorizando a comunidade local. Essa iniciativa teve o incentivo de Dom Eugênio Sales, da arquidiocese de Natal, no Estado do Rio Grande do Norte (cf. TEIXEIRA, 1988, p. 56-67).

Junto com a renovação comunitária, cresce também a renovação do ministério presbiteral. Os presbíteros descobrem o seu lugar eclesial junto às comunidades que se entusiasmam e crescem. O ministério da Igreja deixa de lado o seu tradicional sentido de status clerical e estabelece uma relação orgânica com a comunidade. A paróquia também se renova. Aos poucos, acontece uma real conversão espiritual e pastoral, como que antecipando o que a Conferência de Aparecida  explicitou (cf. DAp n. 370). 

Converge para essa renovação em curso a preocupação que o papa João XXIII manifestou logo depois da sua eleição, num discurso aos membros da Comissão para a América latina (CAL), em 15 de novembro de 1958. Esse apelo não chegou a surtir o efeito desejado. Por isso, o papa voltou a insistir em outro discurso, em 8 de dezembro de 1961. Nele, João XXIII sublinha de novo a urgência de uma mobilização que envolvesse os vários aspectos da vida eclesial na pastoral de conjunto e num planejamento pastoral realista (cf. FREITAS, 1997, p.78).

Como resposta aos apelos do papa João XXIII, a CNBB lançou, em 1962, um Plano de Emergência (PE), visando à renovação pastoral, que acentua a necessidade de dinamizar as paróquias para responderem à realidade e serem realmente “uma comunidade de fé, de cultura e de caridade”. E acrescentava duas coisas importantes para a experiência das CEBs: a) “Aos leigos cabe nestas comunidades um papel muito decisivo” (CNBB, 1963, n. 5,5). Tratava-se da iniciativa evangelizadora ou “do protagonismo de todos os batizados na vida e na missão da Igreja, deixando para trás a passividade”; b) nessa tarefa de evangelizar, “o método mais seguro é a evangelização partindo dos problemas da vida” (CNBB, 1963, n. 5,6).

Mas o impulso mais forte vem do clima de entusiasmo e alegria eclesial suscitado pelo Concílio Vaticano II. O espírito eminentemente pastoral que irradia do Concílio cria um clima novo de renovação pastoral das paróquias e comunidades. Por isso, seria muito útil recordarmos aqui alguns pontos básicos de eclesiologia do Concílio e que cabem muito bem na compreensão das CEBs:

  • o primeiro ponto que influi profundamente na vida das CEBs é a nova compreensão de Igreja como povo de Deus peregrino e mistério de comunhão;
  • o segundo ponto diz respeito à Gaudium et Spes, que nos apresenta a Igreja dentro do mundo contemporâneo, em diálogo crítico, sobretudo a partir da teologia dos “sinais dos tempos” (cf. CNBB, 1963, n. 4 e 11);
  • o terceiro ponto refere-se à dimensão pastoral, abrindo espaço para novas experiências comunitárias para além da clássica pastoral sacramentalista de conservação, própria das cristandades. Por essa janela aberta pelo sopro do Espírito passa uma das mais esperançosas criações: as pequenas comunidades que, inspiradas pela experiência das comunidades apostólicas, se apresentam agora como resposta viva e criativa, vinda de dentro mesmo do povo de Deus peregrino.

4 O que dizem teólogos e pastoralistas?

Nessa já bastante longa história das CEBs, muitos teólogos e pastoralistas se pronunciaram. No Brasil, tivemos o primeiro Encontro Intereclesial das CEBs em Vitória (ES), com extensa análise da experiência das CEBs, de Carlos Mesters com o título O Futuro do nosso Passado. “O que deve ser tem força!” (ENCONTRO DE VITÓRIA, 1975, p. 120-200). No mesmo relatório, Leonardo Boff faz uma rápida reflexão sobre As Eclesiologias presentes nas Comunidades Eclesiais de Base (ENCONTRO DE VITÓRIA, 1975, p. 201-209).

Mas foi em 1977 que Leonardo Boff aprofundou, de forma sistemática, o tema das CEBs no seu livro, reconhecido internacionalmente: Eclesiogênese. As Comunidades Eclesiais de Base reinventam a Igreja (1977). Ele enfrenta a questão crucial: “a CEB é Igreja ou só possui elementos eclesiais?” (BOFF, 1977, p. 21). Ele parte de um pressuposto teológico incontestável: “a Igreja se constitui como Igreja quando homens se dão conta do apelo salvífico feito em Jesus Cristo e se reúnem em comunidade, professam a mesma fé, celebram a mesma libertação escatológica e tentam viver o seguimento de Jesus Cristo”. E conclui que “só podemos falar num sentido próprio de Igreja, quando emergir essa consciência eclesial” (BOFF, 1977, p. 22). Posta essa condição a priori, admite que no momento concreto das CEBs há opiniões divergentes que ele atribui à posição que alguém ocupa na estrutura da Igreja.

Na sua argumentação, Boff segue a linha que lhe oferecem as experiências que vêm das bases eclesiais e de seus intérpretes. Entre os apoios ele cita, primeiro, J. Marins: “para nós, a CEB é a própria Igreja, sacramento universal da salvação, continuando a missão de Cristo, profeta, sacerdote e pastor. Portanto, comunidade de fé, culto e amor. Sua missão se explicita em nível universal, diocesano e local (de base) ” (BOFF, 1975, p. 405). E, em segundo lugar, A. Antoniazzi, na sua interpretação mais nuançada. Para ele, as CEBs são realidades eclesiais, mas carentes de desenvolvimento mais pleno: “do ponto de vista pastoral, estes grupos ou comunidades de base devem ser considerados autêntica realidade eclesial, carente sem dúvida de desenvolvimento, mas já integrada na única comunhão com o Pai em Cristo pelo Espírito Santo” (cf. BOFF, 1977, p. 25). Antoniazzi compreende as CEBs em sua eclesialidade básica ainda em crescimento.

Por outro lado, essa compreensão da Igreja como realidade local já se encontra no NT, especialmente na literatura paulina. Num primeiro momento, Paulo testemunha a existência de diferentes Igrejas (ekklesiai). Elas são Igrejas locais que se constituem não pela quantidade dos membros, mas pela vocação a que são chamados os seguidores de Jesus para se constituírem o “povo novo”, reunindo os que foram santificados pelo batismo e que Paulo chama de “corpo do Cristo”. É só num segundo momento que emerge a consciência de que as muitas Igrejas locais no seu conjunto são compreendidas como Igreja universal, a fim de qualificar a comunhão das Igrejas no único mistério trinitário como povo de Deus peregrino na história.

Outro aspecto a ser rapidamente aprofundado diz respeito à relação entre o “universal” e o “particular” ou “local” na Igreja. Na verdade, “universal” e “particular” não são coisas comparáveis. O “universal” da Igreja não é uma realidade eclesial histórica visível, palpável, abrangendo o conjunto das Igrejas, mas o mistério da salvação que se faz presente nas diferentes Igrejas locais. O universal existe no particular, ou seja, na realidade da história concreta no tempo e lugar em que o mistério da salvação é oferecido e onde “a fé constitui a realidade mínima constituidora da Igreja particular” (BOFF, 1977, p. 32). Sob essa perspectiva “o fiel, por causa de sua fé-comunidade, é já presença da Igreja universal” (BOFF, 1977, p. 33). Nestes termos, a Igreja “universal” não é “visível”. Ela é “mistério”. O que é “visível” é a Igreja particular na qual concretamente nos entendemos como discípulos de Cristo em comunhão.

Boff afirma, como conclusão, que as CEBs “são “Igreja universal realizada na base” (1977, p. 37). Como Igreja na base eclesial, a CEB é sinal visível, historicamente perceptível, do mistério da vontade salvífica universal de Deus em Cristo pelo Espírito.

5 O Magistério da Igreja

Nessa parte pretendemos expor, primeiro, o que diz o magistério da Igreja no Brasil pelo simples fato de que falamos a partir daqui. Mas pode-se partir de cada Conferência Episcopal; segundo, o que dizem as Conferências Gerais do Episcopado LAeC; terceiro, as principais afirmações do magistério pontifício.

5.1 O magistério da Igreja no Brasil

O ensinamento da Igreja no Brasil sobre as CEBs começou em 1962 com o Plano de Emergência. Já acenamos a ele mais acima. Ao término do Concílio, a CNBB lança um ousado Plano de Pastoral de Conjunto (PPC) em 1966. Nele, a Igreja no Brasil se propôs como objetivo “criar meios e condições para que a Igreja no Brasil se ajuste, o mais rápida e plenamente possível, à imagem da Igreja do Vaticano II” (CNBB, 1966, p. 25). No esforço de renovação, o PPC indicava ser “urgente uma descentralização da paróquia”, suscitando “comunidades de base”. Nelas “os cristãos não sejam pessoas anônimas, que apenas buscam um serviço ou cumprem uma obrigação, mas sintam-se acolhidas e responsáveis, e dela parte integrante, em comunhão de vida com Cristo e com todos os seus irmãos” (CNBB, 1966, p. 38).

Para que a Igreja no Brasil pudesse se ajustar à imagem da Igreja do Vaticano II, o PPC nos diz: “A Igreja é e será sempre uma comunidade. Nela estará sempre presente e atuante o ministério da Palavra, a vida litúrgica e especialmente a eucarística, a ação missionária, a formação na fé de todos os membros do povo de Deus, a presença de Deus no desenvolvimento humano, a organização visível da própria comunidade eclesiástica” (CNBB, 1966, p. 27).

Para o PPC, a CEB já faz parte da estrutura da Igreja diocesana em seu nível. Ele observa que as CEBs “correspondem, no meio rural, às capelas rurais”. Não deixa, porém, de anotar que “no meio urbano é necessário intensificar as experiências incipientes” (CNBB, 1966, p. 106). Desde os primórdios assinala a dificuldade que as CEBs tinham de se implantarem no espaço urbano.

Na verdade, as CEBs continuam a enfrentar novos desafios. Na década de 1970, o desafio foi assegurar sua plena eclesialidade, com acento mais no âmbito interno da Igreja. Já na década de 1980, o desafio se situa mais na sua relação com os movimentos sociais. No clima de mudança para um Estado democrático, em situação de relativa liberdade, abrem-se novas perspectivas para os partidos políticos, os movimentos sociais, os sindicados, entre outros. Surgem então questões ligadas à articulação das CEBs com esses novos atores políticos, sociais e populares, que implicam aspectos particulares da pastoral das CEBs. Para dar conta desse novo quadro conjuntural e, assim, orientar a vida eclesial e a prática pastoral das CEBs, os bispos editaram, no início dos anos 1980 o documento intitulado Comunidades Eclesiais de Base na Igreja do Brasil (CNBB, 1986). Dele retomamos os pontos básicos, mesmo correndo o risco de repetição:

a) Se reafirma, com ênfase, a eclesialidade das CEBs. Elas são um “fenômeno estritamente eclesial” e “nasceram no seio da Igreja-instituição” para se tornarem “novo modo de ser Igreja” (CNBB, 1986, n. 3) e “novo modo de a Igreja estar no mundo” (CNBB, 1986, n. 4);

b) Sublinha-se que os pobres têm um lugar privilegiado na Igreja. As CEBs, nesse contexto, “são expressão do amor preferencial da Igreja pelo povo simples” (CNBB, 1986, n. 47, cf. DPb n. 643). Mas não se pode reduzir as CEBs aos pobres, deixando a paróquia e outras organizações às classes média e rica (CNBB, 1986, n. 48). Ao contrário, “o fundamento das CEBs se dirige como ideal a todos os cristãos” (CNBB, 1986, n. 51). Nelas se ensaiam “formas de organização e estruturas de participação capazes de abrir caminho para um tipo mais humano de sociedade”. Nela se testemunha que “sem uma radical comunhão com Deus em Jesus Cristo, qualquer outra forma de comunhão puramente humana … termina fatalmente voltando-se contra o próprio homem” (CNBB, 1986, n. 54, cf. DPb n. 273);

c) Outro aspecto diz respeito à relação das CEBs com a dimensão sociopolítica da evangelização. O Sínodo sobre A Justiça no Mundo, de 1971, já tinha afirmado que “a ação pela justiça e a participação na transformação do mundo nos aparecem claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, isto é, da missão da Igreja pela redenção do gênero humano e a libertação de toda situação de opressão” (Introdução). Ao afirmar que a missão evangelizadora da Igreja é “eminentemente pastoral”, não se quer dizer que ela possa se omitir em questões sociopolíticas enquanto “apresentam uma relevante dimensão ética” (CNBB, 1981, n. 2). Em vista disso, o documento 25 da CNBB exorta as CEBs e demais comunidades eclesiais a se manterem fiéis à própria fé, no conteúdo e nos métodos, na busca da libertação plena, superando a tentação “de reduzir a missão da Igreja às dimensões de um projeto puramente temporal” (CNBB, 1986, n. 64, cf. Evangelii Nuntiandi 32);

d) Outro ponto se refere à relação das CEBs com os movimentos populares na luta pela justiça. As CEBs “não podem arrogar-se o monopólio do Reino de Deus”. Na verdade, a CEB deve tomar consciência de que, “como Igreja, é sinal e instrumento do Reino, é aquela pequena porção do povo de Deus onde a Palavra de Deus é acolhida e celebrada nos sacramentos… sobretudo na Eucaristia” (CNBB, 1986, n. 70). Assim formadas, elas buscam “a colaboração fraterna com pessoas e grupos que lutam pelos mesmos valores” (CNBB, 1986, n. 73). O Documento, no entanto, manifesta ressalva com relação a “grupos ideológicos fechados em si mesmos”, sobretudo, os que “explicitamente repudiam a fé e a abertura a Deus” (CNBB, 1986, n. 74). Enfim, pede-se manter “clara a distinção entre CEBs e movimentos populares”. Nem as CEBs podem ocupar o espaço de um movimento secular, nem se acomodar aos movimentos populares, correndo o risco de perder a própria identidade eclesial (CNBB, 1986, n. 76);

e) Duas questões ainda preocupam os bispos no interior da Igreja. Primeiro, a relação das CEBs com os movimentos leigos. No contexto, o Documento afirma com clareza que “a CEB não é um movimento. É nova forma de ser Igreja”. Sendo Igreja, “o ministério pastoral ou hierárquico faz parte da CEB” no seu papel específico de “tornar presente o Cristo-Cabeça” (CNBB, 1986, n. 79). Segundo, no que diz respeito à coordenação e responsabilidade última das CEBs, o mesmo Documento esclarece a relação dos Encontros Intereclesiais das CEBs com o ministério pastoral dos bispos. De fato, para “garantir a plena eclesialidade” desses encontros, ele pede que “a coordenação geral seja assumida pelo Regional ou diocese que acolhe”. E acrescenta o princípio geral que rege a eclesialidade dentro de toda a Igreja: “A coordenação da pastoral é um dos aspectos do ministério episcopal e deve ser exercida em profunda comunhão com o Bispo e sob sua responsabilidade última” (CNBB, 1986, n. 86).

Coroando esse ponto, acenamos a outro documento da CNBB, de número 92 (2010). Ele representa o empenho dos bispos na animação das CEBs, agora frente a outros desafios de uma realidade plural, que sugere “diferentes jeitos de viver a mesma fé na sociedade pós-moderna. A mudança de época, enquanto se manifesta no nível mais profundo da cultura e da lógica do mercado, corrói a estrutura fundamental da sociabilidade básica (cf. CNBB, 2010 p. 12). Como resposta ao novo clima conjuntural, o documento propõe: “valorizar as experiências de sociabilidade básica” (CNBB, 2010, p. 13) e expressar com ênfase a experiência dos intereclesiais como “manifestação visível da eclesialidade das CEBs… Neles se expressa a comunhão entre os fiéis e seus pastores” (CNBB, 2010, p. 14).

5.2 Conferências Gerais do Episcopado LAeC

No âmbito latino-americano, pode-se dizer que as CEBs “ganham foro de cidadania” em Medellín (TEIXEIRA, 1988, p. 294). De fato, a II Assembleia Geral do Episcopado Latino-americano (1968) tratou das CEBs de forma positiva e incentivadora. Enumera os pontos fundamentais que constituem as CEBs como Igreja: a) ser “comunidade de fé, esperança e caridade”; b) ser “o primeiro e fundamental núcleo eclesial”, ou seja, “célula inicial de estruturação eclesial”; c) “foco de evangelização” e d) “atualmente fator primordial de promoção humana e de desenvolvimento” (DMd n. 15, 10). Nesse contexto, a paróquia torna-se “um conjunto unificador das comunidades de base”. Por sua vez, as CEBs se tornam dinamismo renovador e descentralizador da pastoral (DMd n. 15, 13), suscitando nela novos ministérios e espaços de participação na ação pastoral da Igreja, nas novas pastorais que vão surgindo.

Finalmente, o documento de Medellín recomenda três pontos para garantir o acompanhamento e incentivo das CEBs no futuro: a) que bispos e párocos se preocupem com a descoberta e a formação de líderes para as CEBs (DMd n. 15, 11); b) que se façam estudos teológicos, sociológicos e históricos, com a devida divulgação das experiências (DMd n. 15, 12); c) que os seminaristas tenham melhor preparação para o ambiente latino-americano, ou seja, “formação básica sobre pastoral de conjunto, preparação para fundar e assistir as comunidades de base, conveniente formação e treinamento de dinâmica de grupos e relações humanas (…)” (DMd n. 13, 21).

A fase de experiência incipiente se fecha positivamente com a legitimação das CEBs pelo episcopado latino-americano. Aí se reconhece que elas correspondem quer aos anseios dos fiéis de participarem da vida e missão da Igreja quer aos ensinamentos do Concílio sobre a Igreja. Isso fez das CEBs uma esperança para a Igreja no Continente.

Se em Medellín as CEBs “ganham foro de cidadania”, em Puebla (1979) elas são confirmadas. Passando por dificuldades e até perseguições, elas amadurecem. Pelo recrudescimento da repressão aos movimentos sociais e políticos, e da censura, as CEBs se tornaram, em muitos lugares, em espaço da sociedade civil e, em especial, dos movimentos populares. Nelas repercute a voz da Igreja para a sociedade. Na verdade, “a Igreja foi se desligando daqueles que detêm o poder econômico ou político” (DPb n. 623).

Visando assegurar a plena eclesialidade das CEBs, o Documento de Puebla parte da pergunta: “Quando uma pequena comunidade pode ser considerada comunidade eclesial de base?” E responde, didaticamente: é comunidade quando “integra famílias, adultos e jovens, numa íntima relação interpessoal de fé”; é eclesial quando “é comunidade de fé, esperança e caridade; celebra a Palavra de Deus e se nutre da Eucaristia … realiza a Palavra de Deus na vida”; é de base quando “constituída de poucos membros, em forma permanente e à guisa de célula da grande comunidade” (DPb n. 641).

Puebla faz ainda um discernimento sobre a assim chamada “Igreja popular”. Na verdade, havia na década de 1970 divergências sobre o tema. Para que não houvesse desvios no projeto original como “novo modo de ser Igreja” o Documento de Puebla trabalha a Igreja como “povo peregrino” e afirma que as CEBs se inserem “vitalmente” dentro da Igreja “como povo histórico institucional” (DPb n. 261). Por conseguinte, integradas à totalidade do povo de Deus, as CEBs evitarão os escolhos da seita, do autoabastecimento como “Igreja popular” (DPb n. 262).

Aí se distingue o sentido correto de “popular”: “que procura encarnar-se nos meios populares”, “que surge da resposta da fé” e, assim, evita o escolho da “Igreja que nasce do povo”. Essa Igreja “vem do alto”. Não aceita aquele sentido de “popular” que estabelece uma contraposição entre a assim chamada Igreja “institucional” ou “oficial” e aquela que nasce de baixo, do povo. Ela introduz uma “divisão no interior da Igreja” que é inaceitável (DPb n. 263). Leva consigo o perigo de “degenerar em anarquia organizativa” ou “elitismo fechado ou sectário” (DPb n. 261). De qualquer modo, o texto conclui que “esta designação parece pouco feliz” (DPb n. 263).

Superando as ambiguidades que, às vezes, o calor da luta traz consigo, o Documento de Puebla pode ainda afirmar positivamente que

o compromisso com os pobres e o surgimento das Comunidades de Base ajudaram a Igreja a descobrir o potencial evangelizador dos pobres, enquanto estes a interpelam constantemente, chamando-a à conversão e pelo muito que eles realizam em sua vida os valores evangélicos de solidariedade, serviço, simplicidade e disponibilidade para acolher o dom de Deus. (DPb n. 1147)

Dois acontecimentos marcantes dessa fase se pronunciaram sobre as CEBs. Primeiro, a Conferência de Santo Domingo concebe a paróquia como “comunidade de comunidades e movimentos” e situa as CEBs dentro dela como “célula viva” (DSD n. 61). Segundo a abordagem das CEBs na V Conferência Geral de Aparecida,  foi objeto de polêmica entre os defensores das Comunidades e aqueles que já traziam objeções. Para esses não agradava a ênfase que o Documento final (DAp), aprovado pelos Bispos, dava às CEBs. Por isso foi objeto de mudanças. Na verdade, o texto das CEBs, que foi aprovado na terceira redação do Documento de Aparecida, sumiu na quarta versão. Foi reintroduzido, a pedido de 10 Conferências Episcopais.  

Depois de terem sido abençoadas por Medellín, pela Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi n. 58 (Paulo VI) e por Puebla, é curioso encontrar-nos na situação de ter que defender essa experiência legítima e original da Igreja na América Latina e que faz história também em outros continentes, como Igreja na base: a estrutura mais simples e humanamente perceptível da presença dos discípulos de Jesus Cristo na sociedade.

Na verdade, o saldo entre o que foi tirado do texto aprovado em Aparecida e o texto “corrigido”, que, de certa forma, é negativo, pode ser considerado preocupante. De fato, o que foi tirado é incentivador, positivo, com o olhar voltado para o futuro da Igreja e da experiência de renovação que trazem as CEBs. Enquanto o que foi posto em seu lugar se caracteriza pela precaução, com o olhar mais para o passado que para um futuro de esperança que as CEBs anunciam. Esse texto não distingue bem a presença das CEBs de outros grupos dentro da paróquia. Na verdade, as CEBs não se acrescentam aos grupos e movimentos, mas são realmente Igreja local dentro da qual cabem grupos, movimentos e outras realidades eclesiais. O texto corrigido acaba reduzindo a grande experiência eclesial das CEBs à “experiência eclesial de algumas Igrejas da América Latina e do Caribe” (DAp n. 178).

Por fim, vale ressaltar que o Documento de Aparecida chama a atenção para a importância da eucaristia na comunidade “como centro de sua vida” (DAp n. 180). Inclusive acentua “a grande importância do preceito dominical” (DAp n. 252). Lá os bispos manifestam preocupação com a maioria de nossas CEBs que “não têm oportunidade de participar da eucaristia dominical”, por falta de ministro. Por isso, nossos bispos lembraram de uma reflexão, que já se fazia na patrística, sobre a presença real e verdadeira de Jesus Cristo na Palavra proclamada. Assim, nossas CEBs “podem alimentar seu já admirável espírito missionário, participando da ‘celebração dominical da Palavra’, que faz presente o mistério pascal no amor que congrega (cf. 1Jo 3,14), na Palavra acolhida (cf. Jo 5,24-25) e na oração comunitária” (DAp n. 253).

5.3 O Magistério pontifício

Fixando-nos no magistério pontifício, é oportuno lembrar do ensinamento precioso de Paulo VI, na Exortação pós-sinodal Evangelii Nuntiandi (1975). A multiplicação e a diversificação das CEBs na Igreja universal levaram o Sínodo sobre A Evangelização no Mundo Contemporâneo (1974) a fazer um discernimento eclesial sobre elas. Paulo VI, já no discurso final do Sínodo, nos diz: “notamos, não sem alegria, que as pequenas comunidades cristãs trazem uma grande esperança para a Igreja, e que elas têm origem do Espírito Santo” (REB 136, 1974, p. 945). Na Evangelii Nuntiandi, o papa, retomando as contribuições dos padres sinodais, constata que as CEBs, “florescentes mais ou menos por toda a parte na Igreja, diferem bastante entre si” (EN n. 58). Por isso é necessário um constante discernimento sobre o seu valor eclesial. Em vista disso, ele analisa dois tipos de CEBs:

  • há aquelas que “brotam e se desenvolvem no interior da Igreja, e são solidárias com a vida da Igreja e alimentadas pela sua doutrina, e conservam-se unidas aos seus pastores” (EN n. 58);
  • há outras que “agrupam comunidades de base com espírito de crítica acerba em relação à Igreja”, contrapondo Igreja “institucional” e “comunidades carismáticas, libertas de estruturas”. Elas “contestam radicalmente a Igreja”. Essas “comunidades de base”, segundo o papa, têm “uma designação puramente sociológica”. Por isso, “não poderiam, sem abuso de linguagem, intitular-se comunidades eclesiais de base” (EN n. 58).

Essa designação de CEBs, diz ainda o papa, “pertence às outras, ou seja, àquelas que se reúnem em Igreja, para se unir à Igreja e para fazer aumentar a Igreja”. Essas, sim, são Igreja, pois: a) “nascem da necessidade de viver mais intensamente a vida da Igreja”; b) “vivem uma dimensão mais humana”; c) “congregam-se para ouvir e meditar a Palavra de Deus e celebrar os sacramentos para o vínculo do Ágape” (EN n. 58).

Atentas às condições de sua eclesialidade, adverte o papa, “as comunidades eclesiais de base corresponderão à sua vocação mais fundamental: de ouvintes do Evangelho que lhes é anunciado e de destinatários privilegiados da evangelização, elas próprias se tornarão, sem tardança, anunciadoras do Evangelho”. Assim, serão “lugar de evangelização” e “esperança para a Igreja universal” (EN n. 58).

Com sua peculiar clareza, João Paulo II, em sua Mensagem às Comunidades Eclesiais de Base (Manaus, 1980) explica como deve ser entendido o termo Base: “Ser eclesiais é sua marca original e seu modo de existir e operar. E a base a que se referem é de caráter nitidamente eclesial e não meramente sociológico ou outro” (JOÃO PAULO II, 1980, n. 3).

Por fim, queremos sublinhar a recente contribuição do papa Francisco para uma nova dinâmica missionária da Igreja. Primeiro, devemos dizer que Francisco não fez o Concílio, mas o assimilou no interior da Igreja na América Latina, onde captou o espírito conciliar de abertura ao mundo de hoje dentro do qual a Igreja deve ser missionária. Na Evangelii Gaudium (EG) ele cunhou a feliz expressão “Igreja em saída” para dizer que uma comunidade missionária não se fecha sobre si mesma (cf. EG n. 24). Segundo, com relação às CEBs, podemos dizer que faz parte da experiência do jovem padre jesuíta Bergoglio o trabalho pastoral nas periferias da arquidiocese de Buenos Aires, onde floresciam as CEBs. Terceiro, como bispo e depois arcebispo, sempre incentivou a renovação pastoral em direção à conversão eclesial e à transformação da sociedade.

Vale ressaltar sua participação, como presidente da Comissão de Redação do Documento final, na V Conferência Geral dos Bispos Latino-americanos e Caribenhos de Aparecida. Nele se privilegia a dimensão missionária, se incentiva as Comunidades de Base e as Pequenas Comunidades a serem evangelizadoras, sem perder contato com a paróquia, no contexto da pastoral orgânica (cf. EG n. 29).

Como Bispo de Roma, o papa Francisco, mesmo sofrendo incompreensões de alguns grupos dentro da Igreja, leva adiante sua preocupação com as periferias do mundo de hoje, por isso convocou um Sínodo especial dos Bispos para a Amazônia em 2019. Assim, ele quer situar no centro da solicitude da Igreja os mais pobres dos pobres.

Conclusão

Concluindo, dizemos que as CEBs são fruto da ação do Espírito que renova a Igreja desde suas bases eclesiais. Elas não são compreendidas pelos seus participantes, em especial os pobres, como Movimentos na Igreja, mas como Igrejas na base eclesial dentro das Igrejas Particulares. Essa porção do Povo de Deus, mesmo pequena e pobre, é Igreja de Cristo que “está verdadeiramente presente em todas as legítimas comunidades locais de fiéis”. Sempre unidas aos seus pastores, elas geram “um novo modo de ser Igreja” e “de a Igreja estar presente no mundo” (CNBB, 1986, n. 3 e seguintes).

Cleto Caliman, SDB. PUC Minas – texto original em português. Postado em dezembro de 2020.

Referências

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CARIAS, C. Pinto. Igreja, Povo de Deus, Comunidade e Comunidades Eclesiais de Base. In: BRIGHENTI, A.; PASSOS, J. Décio (orgs.). Compêndio das Conferências dos Bispos da América Latina e Caribe. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2018. p. 315-324.

CELAM. Documento de Medellín. Presença da Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio Vaticano II. Disponível em: https://www.faculdadejesuita.edu.br/eventodinamico/eventos/documentos/documento-FwdDtt9v3ukKPDZq.pdf Acesso em: 4 nov 2020.

CELAM. Documento de Puebla. Evangelização no presente e no futuro da América Latina. Conclusões da III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano. Disponível em: http://portal.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20130906182452.pdf Acesso em: 12 dez 2020.

CELAM. Documento de Santo Domingo. Nova evangelização, promoção humana e cultura cristã. Disponível em: http://portal.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20130906182452.pdf Acesso em: 12 set 2020.

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Carta aos Gálatas

Sumário

1 Formas literárias

2 Estrutura

3 Destaques teológicos

4 Conteúdo

4.1 Cabeçalho: Gl 1,1-10

4.2 Corpo da Carta

4.2.1 I parte: Gl 1,11–2,21

4.2.2 II parte: Gl 3,1–4,31

4.2.3 III parte: Gl 5,1–6,10

4.3 Conclusão: Gl 6,11-18

Referências

A Carta aos Gálatas é considerada autêntica de Paulo, também chamada de protopaulina. Seu objetivo é superar a crise provocada pelos cristãos[1] vindos do judaísmo, os chamados judaizantes (Gl 1,7.9; 4,17; 5,7.8-10.12; 6,12.13), ao exigirem que aqueles que aderiam a Jesus Cristo, sem pertencerem à cultura e religião judaica, passassem pela circuncisão e praticassem os mandamentos determinantes para a identidade judaica (Gl 3,2; 4,10.21; 5,3-4). Eles, ainda, afirmavam que Paulo não anunciava o verdadeiro Evangelho aos gentios. Apesar de não serem expressamente identificados na Carta aos Gálatas, provavelmente os judaizantes eram cristãos provenientes de Jerusalém. A Carta aos Gálatas, portanto, é fortemente marcada pelo caráter polêmico.

Há duas propostas de datação dessa carta, bem como do local de sua escrita. A primeira seria entre os anos 56-57 dC, na Macedônia. A segunda hipótese afirma que essa carta foi escrita em Éfeso, em meados dos anos 50 dC (entre 54-57). A segunda proposta parece ser a mais plausível, ao considerarmos os estudos atuais e a revisão da datação das outras cartas de Paulo.

Outro problema surge quanto à identificação dos destinatários dessa carta, dada a indicação genérica do cabeçalho (“Igrejas da Galácia”) e por individuarmos duas áreas geográficas com o mesmo nome: a Região da Galácia, chamada de região Norte (Galácia setentrional), e a Província Romana da Galácia, que englobava a região Sul da Ásia Menor (Galácia Meridional). A opção pela Região, e não pela Província, é a mais plausível, pois sabe-se que Paulo não costuma citar os nomes oficiais das províncias romanas em suas cartas, e sim os das regiões (Gl 1,17.21; 4,25; 1Ts 2,14; Rm 15,24).

A Galácia era formada por uma população de origem celta, que no século III aC emigrou para o centro-norte da Ásia Menor, e corresponde à Região central da atual Turquia. No período da dominação grega, não houve resistência dos gálatas, tendo ocorrido a helenização da região. Diante das vantagens dos romanos, os gálatas os apoiaram, sendo recompensados com a ampliação de seu território, por Pompeu e Augusto, e em 25 aC torna-se Província Romana (SCHNELLE, 2010, p. 331-335).

Paulo nos informa que sua permanência na região da Galácia deu-se por causa de uma enfermidade (Gl 4,13-14). Nesse período, a comunidade foi fundada, sendo, em sua maioria, constituída por pessoas de origem pagã (Gl 4,8; 5,2s; 6,12s), originárias da cultura greco-helenista.

Ao entrecruzar dados autobiográficos e doutrinários, Paulo reafirma que os gentios não precisam se circuncidar nem obedecer aos mandamentos exigidos pelos judaizantes, ou seja, ninguém precisa ser um prosélito do judaísmo para tornar-se depois um seguidor de Cristo com o batismo, e comprova que a redenção provém da fé em Cristo Jesus e não da prática da lei. Desse modo, defende a validade de seu Evangelho, e aborda um dos temas principais de sua “teologia”, a justificação pela fé em Cristo Crucificado e Ressuscitado, já antes aludido na Carta aos Filipenses, porém não aprofundado.

Por estar na fase final da ação missionária de Paulo, Gálatas reflete toda a experiência e a maturidade teológica deste incansável apóstolo e missionário de Jesus Cristo, e nos oferece várias informações sobre o cristianismo primitivo (Gl 2,1-14).

1 Formas literárias

Inicialmente, podemos dizer que Gálatas pertence ao gênero epistolar, com uma finalidade apostólica, ou seja, traz um discurso de Paulo dirigido aos gálatas, num determinado momento de crise da comunidade. Além dessa forma literária geral, alguns comentadores, ao evidenciar seus aspectos retóricos, propõem outras classificações, como: “repreensão-pedido”, “retórica forense”, “retórica deliberativa” ou a mistura entre retórica “forense” (Gl 1,6–4,11) e “deliberativa” (Gl 4,12–6,10).

2 Estrutura

Há também várias propostas de subdivisão do texto, mas assumiremos uma, por privilegiar a estrutura básica de uma carta e o conteúdo (VANHOYE, 2000, p. 26-27; PITTA, 2019, p.162). Nesse caso, tem-se o cabeçalho, contendo o remetente, o destinatário, a saudação e a indicação do problema a ser tratado (Gl 1,1-10); o corpo da carta (1,11–6,10), no qual é desenvolvido o conteúdo, e a saudação final (6,11-18).

O corpo da carta articula-se em três partes: a) dados autobiográficos e defesa da justificação pela fé em Cristo, e não pela observância das obras da lei (1,13–2,21); b) seis argumentos que comprovam a justificação pela fé, tirados da experiência da comunidade e da Escritura, particularmente de Abraão (3,1–4,31); e c) a parte exortativa, advertindo os gálatas a manterem a liberdade em Cristo e a caminharem segundo o Espírito (5,1– 6,10). Conclui-se com alguns comentários pessoais e com uma breve bênção (Gl 6,11-18), conforme o esquema que segue:

Introdução

1,1-10

Cabeçalho e a indicação da problemática

Corpo da

Carta

1,11–2,21

I PARTE

Tese principal da carta (1,11-12)

Dados autobiográficos e defesa da justificação pela fé (1,13–2,21)

3,1–4,31

II PARTE

Parte doutrinária: seis argumentos que comprovam a justificação pela fé e não pela observância das obras da lei

5,1– 6,10

III PARTE

Parte exortativa: liberdade e vida segundo o Espírito

Conclusão

6,11-18

Assinatura, comentários finais e bênção

3 Destaques teológicos

Um dos eixos teológicos centrais de Gálatas é a justificação pela fé e não pelas obras da lei. Para o apóstolo, a lei é dada para conduzir o povo eleito até à plenitude da revelação, que se dá com a vinda de Cristo. Desta forma, a promessa dada a Abraão (Gl 3,6-9), por ter acreditado, realiza-se em Jesus (Gl 4,1-5), de forma particular, ao conceder a redenção a toda a humanidade (Gl 2,16.17.21; 3,8.11.21.24; 5,4.5). Outro elemento importante é a como adesão à iniciativa salvífica do Pai, mediada pela obediência do Filho (Gl 2,19-20) e pela ação do Espírito (Gl 4,6-7).

Paulo, para falar sobre o alegre anúncio salvífico centrado no mistério da vida de Cristo, sobretudo o mistério pascal, usa o termo Evangelho (Gl 1,11-12). O cristão, acolhendo o Evangelho e aderindo a ele, participa gratuitamente, por meio do batismo, da filiação divina (Gl 3,26-4,7). Essa filiação se expressa concretamente na vivência da liberdade em Cristo, que consiste no deixar-se conduzir pelo Espírito (Gl 5,1-26), isto é, ter uma vida pautada pelo amor, pelo serviço (Gl 5,13; 6,1-10), sendo uma nova criatura (Gl 6,15) (SILVANO, 2015, p.448-450).

4 Conteúdo

Apresentaremos o conteúdo da carta conforme a estrutura supramencionada: o cabeçalho; o corpo da carta com suas três partes e a conclusão.

4.1 Cabeçalho: Gl 1,1-10

O cabeçalho contém o remetente (Gl 1,1a-2b) e a referência ao destinatário (v. 3). Paulo acentua a proveniência divina de sua vocação e missão, ao se apresentar como apóstolo, enviado por Jesus Cristo Ressuscitado (Gl 1,1) e por Deus Pai; ressalta ainda o plano salvífico do Pai, que se realiza por meio de seu Filho Jesus Cristo. Essa ênfase se dá em vista da problemática provocada na comunidade pelos chamados opositores, que, provavelmente, afirmavam não ser Paulo um verdadeiro apóstolo e sim o anunciador de um falso evangelho. É importante destacar que sua preocupação não é a defesa de sua identidade de apóstolo, mas da verdade e da origem divina do Evangelho.

A introdução de Gálatas diferencia-se das outras cartas pelo uso de uma expressão genérica ao referir-se aos colaboradores que estão com Paulo e por não conter uma ação de graças específica dedicada à comunidade.

Nesse cabeçalho, podemos perceber que Paulo se vê como um instrumento da ação escatológica de Deus no meio dos gentios, e também do anúncio da filiação divina aberta a toda a humanidade por meio da ressurreição de Jesus. Constatamos, em Gl 1,4-5, uma fórmula querigmática, que expressa a ação soteriológica de Cristo (v. 4), acompanhada de uma doxologia (v. 5) que fecha a saudação, ressaltando a ação redentora de Cristo, extensiva a todo o tempo.

O termo grego aivw,n (aión), em Gl 1,4, pode ser traduzido por século, éon ou mundo. A expressão “tempo presente mau” provém da apocalíptica judaica, que distinguia o tempo dominado pelo pecado, tempo da escravidão (tempo mau) e o tempo vindouro, do reino de Deus, que para Paulo se inicia com Jesus Cristo.

Após essa introdução breve, Paulo substituiu a habitual ação de graças por uma admoestação que exprime sua indignação diante da inconstância dos gálatas, por se deixarem levar pelos argumentos dessas pessoas que são chamadas por Paulo de adversários. Seu intuito é apresentar a gravidade do problema e convencer os gálatas a retomarem o caminho já iniciado conforme seus ensinamentos. Por isso, o apóstolo defende o Evangelho por ele anunciado e conduz os gálatas a tomar consciência de que não podem se deixar seduzir pelo evangelho que ele chama de diverso. Esse evangelho diverso, provavelmente, pregado pelos judeus-cristãos (“judaizantes”), defendia a necessidade de exigir dos batizados, de origem pagã, a circuncisão e a observância da lei, sobretudo as prescrições relacionadas à identidade judaica, como o repouso sabático, as leis dietéticas e aquelas referentes às festas anuais.

A expressão “aquele que vos chamou mediante a graça”, em Gl 1,6, refere-se a Deus-Pai, e traz o conteúdo que perpassará toda a carta: a fé é um dom gratuito de Deus dado a todos os que aderem a Jesus Cristo. Portanto, não é dada somente ao povo judeu, sendo, então, injustificável exigir que os gentios se tornassem prosélitos do judaísmo, como se esta fosse a única porta para a fé cristã, pois como diz Paulo, isso não é a vontade de Deus. De fato, o apóstolo afirma que os que seguem um Evangelho diferente daquele pregado por ele são anátemas, porque não seguem os desígnios de Deus (Gl 1,8-9).

A palavra “Evangelho”, segundo a perspectiva paulina, designa a revelação do Filho Jesus Cristo, ressuscitado dentre os mortos (Gl 1,1; 1Cor 15,1-5) após a morte na cruz (1Cor 2,2). Assim, Jesus morre porque é fiel ao plano do Pai, que foi rejeitado; porém Deus não se vinga, mas continua revelando seu amor ao resgatar a humanidade do pecado e libertá-la da escravidão. Isso expressa a solidariedade do Filho a favor de todos e instaura a economia da justiça (Rm 1,16) anunciada pelos profetas (Rm 16,25-26).

Em Gálatas, a palavra “Evangelho” exprime, ao mesmo tempo, a atividade do apóstolo e a mensagem que ele anuncia. Desse modo, Paulo sustenta a autenticidade da mensagem e reafirma que o Evangelho anunciado por ele não é de origem humana e que a redenção não é condicionada a obras humanas (v. 10). A mensagem é divina e tem sua centralidade em Cristo. O chamado à fé é um dom gratuito de Deus Pai (Gl 1,15; 5,8), fundamentando-se na obediência filial de Cristo Jesus e no seu amor generoso, que o levou a se entregar por cada um de nós (Gl 2,19-20).

4.2 Corpo da carta

O conteúdo do corpo da carta será desenvolvido em partes: a) Gl 1,11–2,21; b) Gl 3,1–4,31 e c) Gl 5,1–6,10.

4.2.1 I Parte: Gl 1,11–2,21

Após o cabeçalho, Paulo desenvolve o argumento da carta em três partes. A primeira é descrita em Gl 1,11–2,21 que, por sua vez, é dividida em dois grandes blocos: a) a tese geral (vv. 11-12), e b) os argumentos baseados em dados autobiográficos e na defesa da justificação pela fé.

O apóstolo reafirma a natureza (v. 11) e a origem (v. 12) do seu Evangelho, recebido por revelação de Deus. Para confirmar essa tese central, traz vários argumentos, sendo o primeiro de cunho pessoal, ou autobiográfico, que abarca desde sua formação judaica e zelo pelas tradições do judaísmo até a experiência da revelação de Jesus Cristo na estrada de Damasco, sua permanência nessa cidade e sua viagem à Arábia (região ao sul de Damasco) depois da revelação (Gl 1,13-17).

O verbo “aniquilar”, ou “destruir”, usado na carta para descrever o motivo da viagem a Damasco, expressa a aversão do apóstolo para com a Igreja nascente (Gl 1,23 e At 9,21), não porque Paulo fosse ruim, mas por ser um fariseu zeloso pelas tradições judaicas. Para os fariseus, Jesus não era o Messias, era um impostor, por ter morrido crucificado e por não ter instaurado a justiça anunciada; era um blasfemo, por afirmar ser o Filho de Deus. Desse modo, ele estava iludindo os judeus e afastando-os das tradições judaicas.

Paulo, como fariseu zeloso por suas tradições, não poderia deixar o povo ser enganado e, portanto, decide perseguir esses seguidores de Jesus. Ele não poderia prender, nem aplicar a punição disciplinar para esses casos, que era a de 40 golpes de vara, menos um, mas poderia levá-los até as autoridades judaicas legítimas que exerceriam tal julgamento e punição (PENNA, 2018, p. 29). Em Gl 1,13-14, relata esta sua conduta no judaísmo, para mostrar a gratuidade da intervenção de Deus em sua história pessoal, garantindo, portanto, a origem divina do seu Evangelho.

Em Gl 1,15-16, o apóstolo define sua experiência em Damasco como uma revelação direta de Jesus Cristo, por iniciativa de Deus-Pai. Essa experiência funde-se com um chamado, é uma vocação semelhante àquela dada aos profetas do Povo de Deus (v. 15; Is 49, 1; 50,4; Jr 1,5). Conforme o seu relato, a revelação que Deus lhe fez tinha o seguinte conteúdo: Jesus, o Crucificado-Ressuscitado, é o Filho de Deus e é o Messias esperado (Evangelho). Paulo recebe também uma missão: anunciar essa Boa Nova (Evangelho) entre as nações. Assim, a redenção é oferecida gratuitamente para toda a humanidade, mediante a fé em Cristo. A narrativa termina com algumas informações após a revelação, como a visita que o apóstolo fez a Jerusalém; seu contato com Tiago, o líder da comunidade de Jerusalém (Gl 1,18-23; At 12,17; 15,13; 21,18; 1Cor 15,7), a Igreja-Mãe; e sua viagem para as regiões da Síria e da Cilícia, a fim de cumprir a missão de evangelizar.

Em Gl 2,1-10, Paulo narra como em companhia de Barnabé e Tito se encontrou com os “notáveis” da Igreja-mãe na chamada Assembleia de Jerusalém. O tema central da Assembleia era a exigência, por parte de alguns judeus-cristãos (chamados por Paulo de falsos irmãos ou intrusos), da observância das leis judaicas e da circuncisão para os gentio-cristãos. A circuncisão, em Israel, era uma das exigências da Aliança de Deus com Abraão (Gn 17,1-14.23-27) e negligenciá-la significava violar a Aliança. Por isso, batizar os gentios sem exigir a circuncisão e a observância da lei, no pensamento dos judeus-cristãos, seria contradizer a afirmação de que Cristo é a realização definitiva da Aliança e das promessas feitas aos patriarcas. Para fortalecer seus argumentos, Paulo leva Tito, por ser ele um seguidor de Jesus de cultura grega, incircunciso, ou seja, ele era a representação do problema e do resultado da Assembleia, dado que os notáveis não exigiram sua circuncisão por ter ele aderido a Jesus Cristo.

O segundo problema estava no fato de que os gentio-cristãos não obedeciam aos rituais de purificação e às leis alimentares, causando dificuldade ao compartilhar da mesa fraterna com os judeu-cristãos. No judaísmo da época, a comunhão de mesa com os gentios não era vetada desde que eles observassem as leis alimentares. Essas leis consistiam em evitar alimentos impuros (Lv 15,10-14; Dt 14), sangue de animais (cf. Gn 9,4; Lv 17,10-14; Dt 12,16.23-24) e carnes imoladas aos ídolos (1Cor 8–10). A observância das leis alimentares e sua imposição aos gentios era uma forma de garantir a fidelidade étnica e religiosa judaica.

O resultado da Assembleia de Jerusalém foi a confirmação da autenticidade do Evangelho anunciado aos gentios e o reconhecimento oficial da missão de Paulo, por parte desses notáveis.

Logo depois, o apóstolo descreve na carta a sua discussão com Kefas (Pedro), que inicialmente comia com os cristãos gentios em Antioquia da Síria, ou seja, não se preocupava com as leis dietéticas, mas após a chegada de pessoas de Jerusalém, Pedro se recusa a comer na mesma mesa com os gentios. É possível justificar a ação de Pedro por questões práticas, sendo uma delas não escandalizar os cristãos vindos da cidade santa, visto que, na Assembleia de Jerusalém, Pedro fora confirmado como evangelizador das pessoas de cultura judaica. Aos olhos de Paulo, no entanto, essa atitude do líder principal da Igreja soou como uma confirmação de que o Evangelho pregado por ele não era verdadeiro e que os judaizantes tinham razão de exigirem a circuncisão e o cumprimento das leis dietéticas e daquelas próprias dos judeus, dado que Jesus é o Messias, esperado pelo povo judeu, e, portanto, se cumpriam as promessas dadas ao povo eleito, ao povo da Aliança, ao povo escolhido por Deus, e não para todos os povos.  Desse modo, na perspectiva de Paulo, a atitude de Pedro perpetuava a divisão entre as comunidades constituídas por judeus, e aquelas formadas por pessoas vindas das religiões helenistas. Diante desse cenário, o apóstolo introduz um dos pontos fundamentais de sua teologia, a justificação pela fé em Cristo e não pelas obras da lei (2,15-21).

A expressão obras da lei (Gl 2,16) pode ser entendida como observância dos atos prescritos na lei mosaica (Gl 3,2.5.10; Rm 2,15; 3,20.27-28), mas sobretudo as leis relacionadas à identidade judaica, como foi mencionado. Para alguns judeus do Segundo Templo, só a observância da lei assegurava a salvação, portanto deveria ser cumprida a fim de serem reconhecidos como justos. Para Paulo, ao contrário, a lei não pode tornar justa uma pessoa que é culpada, mas somente sentenciá-la, justamente pelo fato de a ter violado. O único que pode tornar uma pessoa justa é Jesus Cristo, pela redenção que vem de sua morte na cruz. Portanto, é necessária a fé, que, para Paulo, supõe a experiência pessoal com Jesus Cristo e a adesão a ele.

A expressão “pela lei, para a lei morri” (Gl 2,19) parte do pressuposto de que o cristão, pelo batismo, se une à paixão, morte e ressurreição de Cristo, em vista de um viver para Deus (Rm 6,10). Quanto à função da lei diante da morte de Jesus, pode ser compreendida em dois sentidos: como deslegitimada por condenar um inocente; ou como inválida, pois não tem poder sobre um morto. Esses aspectos teológicos serão aprofundados na segunda parte do desenvolvimento da carta. Nessa segunda seção, o autor não se serve mais de dados autobiográficos, mas de textos do Antigo Testamento, sobretudo da história de Abraão e da experiência de fé dos gálatas após o batismo (3,1–4,31).

4.2.2 II Parte: Gl 3,1–4,31

Até então, na primeira parte, Paulo falara sobre si mesmo: sua trajetória, sua vocação, sua relação com os outros apóstolos. Agora, na segunda, por meio de perguntas retóricas, apela para a experiência batismal dos gálatas, para que possam tomar consciência da crise que estão vivendo (Gl 3,1-5) e do erro que cometerão ao se deixarem levar pelos judaizantes. É uma seção marcada por argumentos fundamentados na história de Abraão, aquele que crê (3,6-14) e na precedência da promessa feita aos patriarcas anteriores a Moisés, portanto não mediante a lei (3,15-18).

O argumento sintetizado em Gl 3,6-7 que todos os batizados são também filhos de Abraão é fundamental e será desenvolvido nessa seção (3,7-29). Paulo parte do pressuposto de que Abraão foi justificado, antes da circuncisão e da lei dada a Moisés, por confiar nas promessas de Deus, conforme Gn 15,6. O conteúdo central dessas promessas é que em Abraão todas as nações serão abençoadas, e o cumprimento dessa promessa se dá em Cristo. Assim, todos os batizados, e não somente os judeus, são filhos de Abraão e gozam das promessas e da herança abraâmica Desse modo o apóstolo estabelece uma relação entre a fé em Cristo e a filiação abraâmica, demonstrando que, na fé em Cristo, os gálatas tornam-se filhos de Abraão e de Deus. Portanto, essa promessa não está vinculada à circuncisão, nem às leis dadas a Moisés, consequentemente não devem ser exigidas dos gentios.

Estrategicamente, o autor serve-se de Abraão, sendo ele um dos personagens principais dessa seção, por ser destinatário das promessas, o pai do povo eleito, o paradigma da fé monoteísta, pois é o primeiro prosélito que passa da adoração aos ídolos para a adoração do Deus UM. De fato, Abraão era considerado justo porque confiou nas promessas dadas por Deus. Por isso, é, para Paulo, pai daqueles que têm fé em Cristo, e que são justificados por essa fé. Dessa forma, ele pode concluir afirmando que é pela graça que os gálatas são justificados e não pela lei (Gl 3,7-14).

Em Gl 3,15-29, Paulo provará que a lei foi acrescentada para que o povo tomasse consciência das transgressões e do pecado. Assim, a lei é espiritual, boa (Rm 7,14.16), divina, tem uma natureza diferente das promessas dadas a Abraão, as quais atingem seu cumprimento com a vinda de Cristo (Gl 5,14). Ela tem a função específica de indicar o que é contrário à vontade de Deus, mas não tem o poder de tornar justo quem é culpado. A lei foi necessária, num determinado período, para o amadurecimento do povo de Israel, como um pedagogo que orienta o povo de Deus, mas com a vinda de Cristo, a lei atinge seu pleno cumprimento. Porém, conforme o pensamento de Paulo, não é eliminada.

Cristo, portanto, será o princípio normativo para aqueles que aderem a Ele, para aqueles que, com o batismo, são inseridos no mistério pascal, assumindo uma nova identidade (v. 27). Em Gl 3,26-29, Paulo reúne tanto a tese presente em Gl 3,6-7, como as questões da filiação, da promessa e da herança abraâmicas, temas que perpassaram esse capítulo, afirmando que todos são filhos de Deus mediante a fé no Filho, que nos redime (Gl 3,10.13.22). Assim, as distinções de raça, classe, gênero, presentes na sociedade, não podem ser reproduzidas nas comunidades, pois é necessário manter a unicidade do corpo de Cristo.

Os elementos citados são reafirmados em Gl 4,1-7. Nessa perícope, para refletir sobre a ação salvífica de Deus na história, o apóstolo serve-se do exemplo de um herdeiro que não pode usufruir da herança por ser menor de idade, permanecendo sob o cuidado de tutores até atingir a maturidade estabelecida pelo pai. De forma análoga, ocorre também com a humanidade que vivia um tempo de imaturidade, o período antes da vinda do Messias, influenciada pelos elementos do mundo que indicam tanto as forças naturais e cósmicas, que eram divinizadas pelos gentios (4,3), como os anjos (Gl 3,19) e as marcas identitárias do judaísmo. Mas, no tempo preestabelecido pelo Pai, desde a criação, na plenitude dos tempos (vv. 4-5), Deus envia o seu Filho, para inaugurar o tempo messiânico ao assumir a condição humana mortal (nascido de mulher), num determinado contexto histórico-social-religioso específico (submetido à lei). Portanto, Jesus é inserido plenamente na humanidade e, desse modo, poderá libertá-la da maldição da lei, da morte e do pecado. Deus envia também o Espírito para certificar a chegada da Era Messiânica. Ele vem habitar no coração do batizado, e nele clama a oração do Filho: Abba, Pai! O batizado é adotado como filho no Filho, congregado pelo Espírito e inserido numa comunidade de irmãos e irmãs, cujo único Pai é Deus (SILVANO, 2018, p. 463-467).

Ao resumir essa seção, pode-se dizer que a justificação vem só pela fé no Cristo Crucificado e Ressuscitado (Gl 3,1) e é oferecida a todos os que creem (Gl 3,6–4,7). Com efeito, Cristo, cumprindo a promessa de bênção feita por Deus a Abraão (Gl 3,8.14.18), une judeus e pagãos (3,26-29), põe fim à maldição da lei (Gl 3,10.13.22; 4,5) e lhes confere a filiação divina. A participação da filiação em Cristo é possível para todos os destinatários do Evangelho mediante o dom do Espírito.

Após essa seção, carregada de elementos teológicos, cristológicos e pneumatológicos, Paulo recorda o acolhimento que recebeu dos gálatas quando permaneceu na região da Galácia por causa de uma grave enfermidade, tenta assim convencê-los de que existe uma experiência profunda entre ele e a comunidade. Portanto, não compreende como eles se deixaram influenciar pelos chamados adversários que afirmavam ser Paulo inimigo dos gálatas, e por terem acolhido uma pregação contrastante com tudo aquilo que não só o apóstolo lhes anunciou, mas que também eles experimentaram e viveram com o batismo (Gl 4,10).

Após esse momento de indignação diante da realidade das comunidades, Paulo passa a provar a liberdade proveniente da adesão a Cristo Jesus, na tentativa de mostrar que essa liberdade não pode ter origem na lei. Para isso, o autor serve-se de duas personagens bíblicas, as matriarcas Sara e Agar, e de elementos do judaísmo apocalíptico, que contrapunham a Jerusalém atual à futura (Sl 87,3-5; Is 54,1; 60-66; Ez 40-48; Tb 13; Zc 12-14). Assim, Agar, a escrava, representa a Jerusalém atual, o presente tempo mau (1,4), e os elementos do mundo (4,3.9), frágeis e miseráveis, que são tanto as práticas das religiões pagãs, como as marcas identitárias do judaísmo, ou seja, a experiência dos gentios e dos judeus antes da vinda de Cristo. Enquanto, Sara, a livre, representa a Jerusalém do alto, o início da Era Messiânica, inaugurada com a morte e ressurreição de Cristo. Agar e Ismael representam a lei, que não pode justificar, por não ser essa sua função. Sara e Isaac representam Cristo, o cumprimento da lei, o princípio normativo do cristão e, por meio do qual, podemos ser filhos e, portanto, livres.

4.2.3 III Parte: Gl 5,1–6,10

O final da segunda parte, com o tema da liberdade, introduz a última etapa do desenvolvimento da carta, na qual Paulo exorta os gálatas a perseverarem na liberdade, dada pela fé em Cristo, e a não se submeterem ao jugo da escravidão. Tal jugo pode ser entendido como a condição daquelas pessoas antes da redenção trazida por Cristo, portanto é uma crítica aos argumentos dos adversários (Gl 4,24).

O apóstolo reafirma que a liberdade cristã se fundamenta na entrega livre de Jesus Cristo, na sua morte e ressurreição, por fidelidade ao plano de amor do Pai.  Esse aspecto já tinha sido abordado anteriormente, porém eram utilizadas outras terminologias e imagens soteriológicas, como resgatar, arrancar (1,4). Nessa seção, a liberdade assume um caráter soteriológico, cristológico (Gl 5,1) e pneumatológico.

A passagem de Gl 5,2-12 pode ser subdividida em duas partes. A primeira (vv. 2-6), fala da relação entre Paulo e os gálatas, e a segunda (vv. 7-12), descreve a relação entre Paulo, os gálatas e os judaizantes. A primeira é mais linear, a segunda é marcada por perguntas retóricas (vv. 7.11), um dito proverbial (v. 9), uma ameaça (v. 10b) e uma irônica invectiva no confronto com os agitadores (v. 12).

Com essas afirmações Paulo objetiva defender o conteúdo de seu anúncio universal, pois anuncia o Evangelho da liberdade em contraposição à pregação dos judaizantes. Para Paulo, aceitar a circuncisão e a lei judaica seria admitir que a obra de Cristo, Filho de Deus, não seria suficiente para obter a redenção (5,2-4; cf. 2,21), e o plano salvífico do Pai se restringiria aos judeus.

Em Gl 5,5-6, ao unir esperança com justiça, Paulo não só fala no dom da justiça, recebida no início da vida cristã (cf. Gl 2,16; 3,24; 1Cor 6,11), que se concretiza na vivência da fé e se expressa no amor ao próximo e a Deus, como também afirma a esperança na justiça definitiva (1Cor 1,7; Fl 3,20), aquela futura, que virá com a plenitude da presença, da Parusia.  Nesses versículos, nota-se uma sintonia com Gl 3,28 e 6,15, e uma interligação entre fé, esperança e caridade, a chamada tríade paulina. É importante ressaltar que o agir cristão (a caridade) não é fruto de um esforço humano meramente, de um voluntarismo, ou de um ser fiel à lei, mas nasce da relação profunda com Jesus, da experiência de ser amado, redimido por Cristo, envolvido por seu amor, sendo, assim, impulsionado a também amar o próximo.

Paulo novamente exorta aos gálatas, expressando indignação diante da “adesão” deles aos argumentos dos judaizantes (vv. 7-12). Para isso, se serve de uma imagem esportiva, típica das cartas paulinas (1Cor 9,24-26; Gl 2,2; Fl 2,16), que expressa o fervor inicial dos gálatas que agora desapareceu. Essa imagem, no todo da carta, nos remete a Gl 1,6-7, à crise que os gálatas estão vivendo por haverem cedido à tentação de se afastar do verdadeiro Evangelho.

Após essa exortação há uma retomada de argumentos, quando Paulo afirma que viver a liberdade é um “chamado” que faz parte da vocação cristã, ou seja, quem segue a Cristo é chamado/a à comunhão com Deus e com os irmãos/ãs (1Ts 2,12; 1Cor 1,9).

A liberdade verdadeira, segundo Paulo, é a libertação da carne, isto é, dos desejos egoístas, do fechamento em si mesmo, para deixar-se guiar por Cristo, como princípio normativo. Assim, Paulo demonstra que a lei chegou ao pleno cumprimento por meio de Jesus Cristo, e que a norma que sintetiza todo o agir ético cristão está em Lv 19,18: “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Essa síntese, segundo Paulo, se fundamenta na participação no mistério pascal de Cristo (Gl 5,14.24-25), iniciado no batismo, mas que continua no decorrer da vida do batizado. Esse processo de seguimento e cristificação também é possível por meio da ação do Espírito (Gl 5,16-18; 2Cor 3,17), que torna o batizado, filho/a de Deus e o orienta a viver o amor, nas várias formas de relação. Assim, o único fruto do Espírito é o amor, que se exprime em suas manifestações (Gl 5,22-23). A não adesão a Cristo é expressa nas obras da carne, que são divididas em três grupos: a perversão das relações humanas (sexuais e comunitárias), da relação com Deus e consigo mesmo. Nesse elenco de comportamentos inadequados, percebemos que se retrata a perversão do amor humano (impureza), do amor para com Deus (idolatria e magia), da ausência do amor (divisões) e da total degradação da pessoa humana e de sua relação com o outro (excessos à mesa). A obra do Espírito, por sua vez, testemunha os atributos de Deus: amor, paciência, bondade, benevolência, fidelidade, mansidão.

Em Gl 6,1-10, encontra-se uma reflexão referente às relações na comunidade e à correção fraterna. Essa correção deve ser feita pelos chamados espirituais, o que pode designar tanto as pessoas que já fizeram um processo de amadurecimento na fé (1Cor 2,15; 3,1), como todos os membros da comunidade, visto que, por meio do batismo, receberam o Espírito.

O apóstolo exorta também ao amor mútuo, que deve ser exercido em primeiro lugar dentro da comunidade, depois com os demais irmãos/ãs (1Ts 5,15; Rm 12,18) e finalmente também com os inimigos (Rm 12,20).

Em Gl 6,2, o autor sintetiza a solidariedade já expressa em 6,1, ao pedir que os cristãos carreguem o peso uns dos outros. A palavra “peso” compreende todos os sofrimentos humanos: desventura, infortúnio, dor física, insucesso, fragilidades morais, solidão, doenças, frustrações, velhice (Rm 15,1; 2Cor 11,29). Diante da fragilidade do outro, é necessário, antes de corrigir o irmão, avaliar as motivações que levam à correção fraterna (Gl 6,3), tendo presentes as próprias limitações, para que seja realmente por amor ao irmão e não por vanglória. A vanglória, termo típico das cartas paulinas, é a atitude contrária à fé, é o comportamento de quem se apoia nas próprias qualidades e não na misericórdia de Deus Pai e na atitude do Filho que se esvaziou de si mesmo (Fl 2,1-11).

A carta termina exortando a comunidade a compartilhar os bens materiais (Gl 6,6) com aqueles que têm a missão de instruir, de evangelizar. Porém, Paulo nunca reivindicou esse direito para si mesmo. Essas atitudes dentro da comunidade também recebem um caráter escatológico, dado que os batizados serão julgados por aquilo que realizam, porém essa não deve ser a motivação para as ações cristãs, e sim o “fazer o bem a todos”.

 4.3 Conclusão: Gl 6,11-18

Paulo conclui resumindo suas ideias principais, e se despede. Escreve algumas coisas de próprio punho para autenticar a carta e retoma a polêmica com os judaizantes, acusando-os de se vangloriarem com o proselitismo, de não cumprirem inteiramente a lei, contrapondo-se ao aspecto central do Evangelho, que é a cruz de Cristo. Paulo, por sua vez, prega Cristo Crucificado e renuncia a qualquer glória baseada em motivos humanos. Afirma também que as divisões entre circuncisos e não circuncisos não devem prevalecer, pois o batizado já vive numa nova dimensão, numa vida nova em Cristo. O que ele não deseja é sofrer mais pela comunidade, dado que já traz em seu corpo os estigmas de Jesus. A palavra “estigma” refere-se, provavelmente, aos sofrimentos resultantes de seu apostolado, de sua missão (2Cor 4,10-12), que devem ser avaliados à luz de sua participação na paixão e morte de Cristo, sua coparticipação no mistério pascal.

A carta termina com a saudação, em forma de bênção, pedindo a graça da presença de Jesus Cristo na vida da comunidade. Esse aspecto cristológico perpassa toda a carta como o fundamento da fé cristã, dado que a preocupação do apóstolo era proteger a fé dos gálatas contra o grave perigo de desvio que a ameaçava, que não era de ordem apenas disciplinar, ou um detalhe, mas trazia implicações teológicas sérias, pois se tratava de decidir entre a fé em Cristo e a confiança na lei, entre o dom divino da justificação por meio da fé e a pretensão humana de autojustificação por meio das obras da lei, de permanecer submissos à lei ou se submeter à liberdade proveniente da adesão a Cristo.

Paulo, nessa carta, revela o desejo de que os gálatas retornem à experiência do batismo, compreendam a grande novidade do messianismo de Jesus e possam realmente dizer “(…) fui crucificado com Cristo. Portanto, não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim; e, enquanto vivo na carne, vivo na fidelidade do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,19c-20).

Zuleica Aparecida Silvano, fsp. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, Brasil. Texto original em português. Postado em dezembro de 2020.

 Referências

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______. G’L como chave hermenêutica para a “redenção” na Carta aos Gálatas em diálogo com ‘Textes messianiques’ de Emmanuel Lévinas. 2018. Tese (Doutorado em Teologia) – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Departamento de Teologia, Belo Horizonte, 2018.

SOUZA, R. L. de. A mística na Epístola aos Gálatas. “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim”. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 97, p. 70-85, 2008.

[1] É um anacronismo usar o termo “cristão” no contexto do I século, mas iremos utilizá-lo somente como uma comodidade linguística, para não repetir a expressão “seguidores de Jesus Cristo”. Assim, a expressão “judeu-cristão” deve ser interpretada como o seguidor de Jesus Cristo proveniente da tradição e da cultura judaicas; e o “gentio-cristão”, aquele oriundo das várias religiões politeístas, henoteístas e monolátricas ou até mesmo monoteístas, mas entendida na concepção da cultura greco-romana. A inadequação do uso de “judeu-cristão” e “gentio-cristão”, no sentido historiográfico, no século I, foi aprofundada por PESCE, M., De Jesus ao cristianismo, p. 207-216 e ALETTI, J.-N., Eclesiología de las cartas de san Pablo, p. 28-29.

Bíblia e Liturgia, uma simbiose

Sumário

Introdução

1 A simbiose esquecida

2 A liturgia na Bíblia

2.1 A liturgia de Israel

2.1.1 Lugares

2.1.2 Atividades cultuais

2.1.3 Festas e celebrações

2.1.4 O calendário religioso

2.1.5 O sábado

2.2 A liturgia no NT

2.2.1 Continuidade e ruptura em relação à liturgia de Israel

2.2.2 A fração do pão e o memorial da Ceia do Senhor

2.2.3 Orações e hinos

3 A Bíblia na Liturgia

3.1 A leitura bíblica na liturgia judaica

3.2 A leitura bíblica na liturgia cristã (católica)

4 A formação bíblico-litúrgica

Referências

Introdução

Releva-se aqui a intrínseca ligação entre Liturgia e Bíblia, numa abordagem principalmente histórica. A reflexão teológica, sobretudo da parte da Igreja Católica, pode ser encontrada nas constituições Sacrosanctum Concilium (SC) e Dei Verbum (DV) do Concílio Vaticano II, nas exortações apostólicas Evangelii Nuntiandi (EN) de Paulo VI e Verbum Domini (VD) de Bento XVI e na encíclica Evangelii Gaudium (EG) do papa Francisco.

Desde suas origens, a Bíblia e a tradição litúrgica judaica e cristã estão intimamente interligadas, e o reconhecimento dessa “simbiose” fornece a chave de interpretação tanto de alguns episódios bíblicos como dos grandes atos litúrgicos. Não só no Novo Testamento (NT), mas também no Antigo (AT) a liturgia é “lugar de cristalização” das tradições bíblicas (no NT, cf. BASURKA; GOENAGA, 1990, p.41). Isso tem consequências para a leitura e o estudo da Bíblia e para a formação dos fiéis e dos agentes de pastoral.

Salvo exceções, usamos o termo “Bíblia” para significar os escritos registrados no cânon católico do AT e do NT, assinalando, quando necessário, o uso de outras igrejas cristãs e do judaísmo. Quanto ao AT, lembramos a distinção entre a Bíblia hebraica (BH) ou Tanakh, normativa para o judaísmo, e a tradução grega, a Septuaginta (LXX), que é mais extensa que a BH e às vezes considerada como “cristã” por causa de seu uso nas Igrejas Orientais.

Ao falar de “liturgia”, olhamos em direção à liturgia católica renovada depois do Concílio Vaticano II, mas, no decorrer do estudo, recorreremos com frequência a conceitos ou figuras do culto religioso em geral, particularmente no mundo bíblico. No contexto bíblico, antes que “culto” preferimos o termo “liturgia”, no sentido de ação (érgon) do “povo” (laós)[1], no caso, o povo de Deus reunido na Aliança, da qual o evento do Sinai (Ex 19,1–24,11) é a “referência memorável” e que encontra sua plenitude na Nova Aliança do “evento Jesus Cristo”.

1 A simbiose esquecida

Apesar da origem profana de alguns de seus componentes, a Bíblia como tal pertence ao espaço-tempo sagrado. A coleção e organização dos livros bíblicos no judaísmo começou a partir do século V aC, nos círculos sacerdotais, em função das celebrações no “Segundo Templo” e nas sinagogas, as quais fizeram da prática da leitura o centro do culto. Durante a Antiguidade e a Idade Média, era evidente a simbiose de liturgia e Bíblia, tanto nos ambientes judaicos como cristãos. A Modernidade, porém, “autonomizou” a Bíblia. Fez dela uma autoridade religiosa autônoma e um objeto de investigação histórica, literária etc. Segundo sua constituição íntima, porém, a Bíblia não é uma instituição autônoma, nem um fim em si, mas um testemunho da comunidade que celebra sua vida diante da face de Deus, Senhor da vida e da história. Livro da vida aberto na presença de Deus, a Bíblia tem seu Sitz im Leben na liturgia. Arrancando a Bíblia da celebração da vida na comunidade dos fiéis condenamo-la à esterilidade.

2 A liturgia na Bíblia

2.1 A liturgia de Israel[2]

2.1.1 Lugares

Podemos iniciar a descoberta do culto do antigo Israel a partir dos territórios/lugares sagrados, dedicados à divindade protetora da coletividade, a casa patriarcal ou tribo.[3] No tempo dos patriarcas, são mencionados sobretudo: Siquém (Gn 12,6-7), Betel (Gn 12,8), Mambré (Gn 13,18), Beersheba (Gn 21,22-31; 26,33).

No tempo do Êxodo, o lugar santo por excelência será a Tenda, o santuário do deserto, chamado Tenda do Encontro ou da Reunião (’ohel mo‘ed), lugar do encontro do povo, mas logo visto como lugar de encontro com Deus, onde, inclusive, Deus fala com Moisés face a face (Ex 33,11) (DE VAUX, 1973, p. 294-295). Ali, Moisés funciona como intermediário entre Deus e povo. É o lugar dos oráculos. Outro nome é mishkan, morada (como as tendas dos hebreus nômades), sugerindo a presença de Deus no meio das tendas de seu povo, acompanhando-o pelo deserto. A presença de Deus é reconhecida pela nuvem escura que desce sobre a Tenda.[4]

Conflui com a tradição da Tenda a veneração da Arca, baú no qual Moisés guardou as tábuas da Lei (Ex 31,18; 25,16; 40,20). A tradição deuteronomista (Dt 10,1-5) guarda ainda a memória da pequena arca original, contendo somente as tábuas da Lei e chamada Arca da Aliança, berît (na tradição sacerdotal: Arca do Documento, edut) (DE VAUX, 1973, p. 301). Mais tarde ela é associada à Tenda, pela tradição sacerdotal que tem diante dos olhos o templo de Salomão e o Segundo Templo depois do exílio. Por causa da associação à Arca, a Tenda é também chamada Tenda do Testemunho (Nm 9,15; 17,22; 18,2). Conforme a historiografia deuteronomista, a Arca foi posta no Debir, a “capela” ou cella do Templo (o “Santo dos Santos” da tradição sacerdotal), onde ela se encontrava coberta com uma bandeja para o sangue sacrifical, ladeada de dois querubins.[5]

Entretanto, devemos lembrar que havia santuários em todo o território das tribos: Guilgal (Js 4,19 etc.), Silo (onde Deus é chamado YHWH Sabaot; segundo Js 18, o lugar de encontro das tribos), Mispa (Masfa) em Benjamim (Jz 20–21), Guibeon (Gabaon), que será o lugar de oração de Salomão (1Rs 1,4-15), Ofra, Dã; e Jebus-Jerusalém, conquistado por Davi (2Sm 6) e lugar do futuro templo construído por seu filho Salomão (1Rs 6,37-38; cf. 6,1). Desde o tempo de Salomão, o Templo comportava três espaços principais: o átrio/pátio (’ulâm), o Santo (hekal) e o Santo dos Santos (debir).

O templo de Salomão tornou-se o centro religioso de Israel apesar do prestígio dos antigos santuários e apesar do templo rival construído por Jeroboão (Ierobeam) em Betel (1Rs 12,29). O Templo era a sede da presença divina, e também o sinal de eleição, o lugar escolhido por Deus (já antes de sua construção, cf. 2Sm 24,16). Tornou-se até um símbolo cósmico em Ezequiel e na literatura apocalíptica. Existiu, porém, sempre certa relativização do Templo, como na profecia de Natã (2Sm 7,5-7), nos recabitas (Jr 35), e mesmo na visão pós-exílica de Is 66,1: “O céu é meu trono e a terra o estrado dos meus pés; que casa construireis para mim?” – que chega ao cúmulo na visão da nova Jerusalém que dispensa o Templo (Ap 21,22). Essa relatividade do Templo foi certamente decisiva para que o judaísmo sobrevivesse sem o Templo, tanto na sinagoga rabínica como no cristianismo (cf. Jo 2,21).

2.1.2 Atividades cultuais

Lembramos per transennam os ministros do culto – sacerdotes e levitas – em vista da ressignificação do sacerdócio no NT (DE VAUX, 1973, p. 345-414). Eles estão em função das ações cultuais, sacrifícios e preces, que deixaram profunda marca na liturgia cristã.

A. Sacrifícios

“O sacrifício era o ato principal do culto de Israel” (DE VAUX, 1973, p. 414). Realizava-se no altar (mizbêaḥ, derivado de zabaḥ, imolar/oferecer sacrifício), que era uma plataforma, de pedra natural ou construída, inclusive com uma grelha para os sacrifícios queimados e um rego por onde escorria o sangue. O nome mais comum para os sacrifícios é ‘olah, “aquilo que sobe” – a vítima que sobe ao altar ou o “presente” (minḥah) que sobe até Deus. A tradução grega holokauston visa principalmente os sacrifícios consumidos pelo fogo do altar. O caráter de doação livre a Deus, portanto não mágica, é bem acentuado no rito levítico. Muitas vezes é entendido como uma retribuição a Deus por seus dons. Isto se mostra especialmente na efusão do sangue sobre o altar, porque o sangue é vida e a vida pertence a Deus (DE VAUX, 1973, p. 417). Nos rituais mais tardios é muito acentuada a minḥah, o “presente”, um alimento ou libação acompanhando a ‘olah (DE VAUX, 1973, p. 417). Outro termo para diversos tipos de sacrifícios é qorban, que significa “aproximação”, oferta.[6]

Outro tipo, importante para a ulterior liturgia cristã, é o sacrifício de paz, zebaḥ shelamim, no qual o acento está na comunhão entre o(s) oferente(s), o sacerdote e Deus, e que, por isso, é chamado sacrifício de comunhão (DE VAUX, 1973, p. 417). Há três tipos: o sacrifício de louvor, o sacrifício voluntário e o sacrifício votivo (obrigado por um voto).

Além disso, temos o sacrifício expiatório, chamado sacrifício pelo pecado (ḥaṭṭat) ou de reparação da culpa (’asham). Este tipo ocupa quase a metade do código sacrifical do Segundo Templo (no Lv) e é importantíssimo para a teologia do NT, que fica incompreensível quando se cede a certa tendência a depreciar o sacrifício de expiação.

Da oferta vegetal (minḥah, traduzido por “presente” ou “manjar”), é queimada sobre o altar uma parte chamada ’azkarah (em grego zikkaron), que significa “memorial” e é vista como um meio para que Deus se lembre do oferente. Uma variante desse simbolismo consiste nos “pães da proposição”, oferta exposta na mesa juntamente com incenso, que (pela fumaça e pelo “suave odor”) cumpre a função de ’azkarah, memorial. Os pães de proposição eram reservados aos sacerdotes (cf. Mc 2,26), que os consumiam ao final da semana.

B. Atividades secundárias

a. Culto, oração e canto

Celebrações que consistiam exclusivamente de oração e canto são mencionadas apenas em Ne 9 e Jl 1-2, ambos ritos penitenciais, mas a literatura sapiencial, sobretudo Sirácida, insistem no sacrifício de louvor ou “dos lábios”.

No contexto dos sacrifícios, são mencionadas fórmulas de bênção (Nm 6,22-27) e de maldição (Nm 5,21-22; Dt 27,14-26). O Deuteronômio formula orações para a oferta das primícias (26,1-10) e do dízimo trienal (26,13-15) e para a Páscoa (6,20-25; cf. Ex 12,26-27), bem como para o caso de não localização do homicida (Dt 27,1-8). Am 5,23 menciona os hinos acompanhando os sacrifícios. No livro das Crônicas, encontramos toda a organização dos cantores que acompanhavam os sacrifícios e procissões.

O lugar de maior consideração para a oração era o Templo (cf. a parábola de Jesus em Lc 18,10), mas é evidente que não era exclusivo. Inspirou o costume de orar em direção do Templo (Sl 5,8; 28,2; 138,2) ou de Jerusalém (1Rs 8,44.48; Dn 6,11). Podia-se orar em qualquer lugar e tempo, mas alguns momentos eram especiais, como a oração à noite (Sl 4) e pela manhã (Sl 5), em horas e dias fixos (Jt 9,1; Dn 6,11). Orava-se em pé, inclinado ou ajoelhado.

Importante é que a oração no AT é dirigida diretamente a Deus, sem divindades intercessoras (monoteísmo!), embora depois do exílio, aos poucos, apareçam os anjos mediadores (p.ex. Tb 12,12). Em 2Mc 15,14 é dito que Jeremias ora pelo povo e a Cidade Santa.

b. Os salmos

Merecem consideração especial os Salmos, que constituem praticamente 1/10 do volume do Tanakh. O saltério, cujos trechos mais antigos remontam até o tempo do nomadismo, é concebido em função do culto. Especialmente os salmos “graduais” ou “de subida” acompanhavam as peregrinações ao Templo (Sl 120–134). Mesmo os salmos individuais são muitas vezes individuais apenas na sua formulação, mas com índole coletiva e litúrgica. Os cabeçalhos dos Salmos nos informam sobre o uso litúrgico. Reunindo diversos gêneros literários, foram subdivididos em cinco livros (como os cinco livros de Moisés). Os salmos, como diz Tomás de Aquino, contêm a Bíblia toda: eles lembram orando o que os outros textos bíblicos expõem narrando ou exortando.

c. Ritos de purificação e de dessacralização

Um senso primordial que vem à tona no culto de Israel é o horror ao que é intocável, seja pelo “excesso” de santidade (o santo), seja pelo caráter de mistura perturbadora (o impuro): a Arca da Aliança, as vestes do sacerdote, os fluidos do corpo, o sangue do parto… Tratava-se de impureza cultual, não moral. Depois de um contato assim era preciso uma purificação para voltar ao estado normal. De modo que o rito de purificação podia também significar a neutralização do contato com o santo, portanto, dessacralização.

Para essa finalidade existiam sacrifícios e abluções, e é preciso perceber a hermenêutica da pureza nesta matéria. A purificação depois do parto era “tabelada” como holocausto e sacrifício ḥaṭṭat (= pelo pecado) (Lv 14,10-32), embora não houvesse falta moral alguma, pois um parto era coisa abençoada por Deus! Para um nazireu, no término de sua consagração, a tarifa pela “dessacralização” consistia num sacrifício pelo pecado e outro, de reparação (Nm 6,13-20; cf. At 21,23-24). Na mesma linha, temos os múltiplos ritos de purificação de objetos, vasilhas, roupas etc. (cf. DE VAUX, 1973, p. 460-461). Havia até um rito especial para preparar água purificadora, a água lustral, com as cinzas de uma novilha vermelha (Nm 19,1-10).

Um tabu forte era a lepra. Lv 13–14 se esgota em descrever o diagnóstico e os ritos purificatórios para os “intocáveis” que eram os leprosos. A constatação era feita pelo sacerdote (Lv 14,3; cf. Mt 8,4 par.; Lc 17,14).[7]

Observa De Vaux que, depois do exílio,

os judeus se tornaram sempre mais conscientes da necessidade de pureza, e o medo da impureza podia se tornar uma obsessão. Daí, os autores do Código Sacerdotal multiplicaram os casos de impureza e prescreveram todos os remédios necessários […]. O judaísmo pós-bíblico enveredou ainda mais longe na mesma direção. (1973, p. 464)

E apesar da crítica de Jesus e de Paulo, não poucos cristãos continuaram na mesma linha…

d. Ritos de consagração

Purificação tinha a ver com a santidade, que se procurava seja neutralizando o contato com o santo ou numinoso (cf. supra), seja dispondo-se para receber a santidade (cf. a seguir), de modo que os termos purificar e santificar/consagrar às vezes se tornam sinônimos (cf. Jo 11,55).

Santificação ou consagração é a separação de algo ou alguém para o santo ou sagrado. Nem sempre se precisava de um rito para isso; um contato ou situação podia ser o suficiente. Os soldados para a guerra santa eram santificados e os despojos conquistados também. Mas ritos de consagração havia, e muitos. Embora os sacerdotes fossem consagrados pela própria ação do sacrifício, havia também a consagração dos sacerdotes amplamente descrita em Lv 8–10. Aqui entra a unção com óleo especial (crisma), aplicada ao sumo sacerdote, ao santuário, ao altar, aos utensílios (Ex 30,26-29; 40,9-11; Lv 8,10). A unção era essencial para o rito de entronização do rei, o “ungido” por excelência, caracterizado pelo nezer, a parte não raspada do cabelo (Sl 89,39).[8]

Uma forma muito explícita de consagração é o voto, pelo qual se “devota” algo a Deus: um dízimo (Gn 28,22); uma pessoa (Jz 11,30-31; 1Sm 1,11) etc. A intenção do voto é estreitar o laço com Deus. Como os votos eram constringentes (Dt 22,22-24), melhor era não fazer quando não se tinha certeza (Ecl 5,3-5). Certas circunstâncias tornavam o voto automaticamente inválido (Dt 23,19; Nm 30,4-17), e sempre podia ser comutado por uma doação em dinheiro (Lv 27,1-25). O rito do voto de nazireato é descrito explicitamente, no AT, só para Sansão (Jz 13,4-5.7.13-14), mas mencionado no NT (At 18,18).

2.1.3 Festas e celebrações

Israel gostava de festas e a vida da natureza as provocava: desmame de uma criança (Gn 21,8), casamento (Gn 29,22-23), enterro (Gn 23,2), tosa do rebanho (1Sm 25,2-38) etc. Ocasiões públicas: coroação do rei, vitória na guerra (com canto e dança: Ex 15!). Até o jejum tinha caráter festivo (Zc 7,1-3; Jl 1–2; Lm). Havia as peregrinações a Betel (Gn 35,1-4), a Silo (Jz 21,19-21; 1Sm 1,3-4), mais tarde incorporadas no culto único no templo de Jerusalém.

Os serviços ordinários no Templo:

 – o holocausto diário de dois cordeiros, um pela manhã e outro ao entardecer (Ex 29,38-42; Nm 28,2-8), chamado de ”sacrifício perpétuo” (Ex 19,42; Nm 28 etc.), interrompido durante a perseguição de Antíoco (Dan 11,13 etc.) e restabelecido por Judas Macabeu (1Mc 4,36-58). No tempo do NT, o sacrifício é celebrado em plena tarde (Mt 27,46-30 par.).

– no sábado, havia uma oferenda suplementar de mais dois cordeiros, um manjar e uma libação (Nm 28,9-10), mas Ezequiel prevê isso muito maior (Ez 46,1-5).

– o sacrifício da lua-nova (Nm 28,11-15), ou neomênia, iniciava cada novo mês do calendário lunar. Essa festa é muito arcaica, mencionada juntamente com o sábado em Os 2,13. Como o sábado, é dia de repouso (Am 8,5), dia de consultar o “homem de Deus” (2Rs 4,23), dia de festa para o rei Saul (1S, 20,5 etc.), mas objeto de indiferença para Paulo em Cl 2,16. Só o repouso da lua-nova do sétimo mês ganhou uma lei própria em Lv 23,24-24; Nm 29,1-6 (Dia da Aclamação, preparando o Yom Kippur).

2.1.4 O calendário religioso

Ao lado dos sábados e neomênias, Israel tem reuniões (mo‘ed) em diversas oportunidades, principalmente nas três grandes festas anuais de peregrinação, com procissão e danças (ḥag). São elas: 1) Ázimos (maṣṣot), em Dt combinado com Páscoa (pésaḥ), ambas lembrando a saída do Egito; 2) Sega/Ceifa (qaṣîr), no Javista e em Dt chamada Semanas (shabuot); 3) Colheita (’asiph), em Dt chamada Sukkot, Tendas. Em Dt o caráter agropastoril fica diluído e a celebração da Páscoa fixada num lugar único, Jerusalém (reforma de Josias, cf. 2Rs 23,21-23).

tradições:

Eloísta

Ex 23,14-17

Javista

Ex 34,18-23

Deuteron.

Dt 16,1-17

definições:
comparecer 3 vezes ao ano +
no mês de abib – memória da saída do Egito + + +
ázimos (maṣṣot ) no mês de abib, 7 dias + + +
páscoa (pésaḥ) de YHWH – memória da saída do Egito +
no lugar que Deus tiver escolhido (Jerusalém) +
oferta dos primogênitos +
sega/ceifa (qaṣîr) depois de 7 semanas + + (>shabuot, semanas) + (>sete semanas)
colheita (’asiph) na saída/ no fim do ano + + + (>sukkot, tendas)
presença de todos os masculinos + + +

Muito mais detalhado é o código sacerdotal, na Lei da Santidade, Lv 23, seguido pelo judaísmo até hoje.[9] Adota o ano babilônio, considerando abib o primeiro mês (primavera, março-abril) (23,5). A primeira festa é a Páscoa, combinada com Ázimos, no dia 15 de abib (iniciando 14 à noite; 23,5-6), com “santa convocação” no primeiro e no sétimo dias (23,7-8). A segunda, sem nome próprio, é no quinquagésimo dia (de onde, em grego, Pentecostes). A terceira, com o nome de Sukkot, Tendas, é no dia 15 do “sétimo mês”, mas o calendário inclui, antes disso, na lua-nova (primeiro dia) do mês de tishrî (set-out), a festa do chofar (dia da Aclamação, ou Ano Novo, Rosh Hashaná) e, no dia 10, o Yom Kippur (Expiação, descrito em Lv 16).

O calendário utópico de Ez 45,18-25 nem menciona a festa das Semanas e transforma a Páscoa e Tendas em celebrações penitenciais. A legislação abrangente de Nm 28–29, porém, desconsidera o projeto de Ezequiel e completa com outros ritos aqueles de Lv 23, apresentando a lista completa dos sacrifícios no tempo de Esdras.

Houve ainda outras festas, mas conservam-se somente Purim (Sortes, cf. Est 10,3k), 14 de adar (fev-mar), e Dedicação (do Templo por Judas Macabeu, cf. 1Mc 4,56), 25 de kisleu (nov-dez).

2.1.5 O sábado

Consideração especial merece o sábado.[10] O termo shabbat ou, mais enfático, shabbatôn é provavelmente derivado do verbo shabat, cessar (o trabalho, cf. Gn 2,3), de onde, repousar. Suas origens se perdem nos tempos arcaicos, e sua obrigação é mencionada nos códigos legais eloísta e javista (Ex 23,12; 34,21), no Decálogo (Dt 5,12-14‖Ex 20,8-10) e no Código Sacerdotal (Ex 31,12-17). Era praticado desde a ocupação de Canaã (por volta de 1100 aC). Matematicamente, não cabia na divisão quádrupla do mês lunar de 29 1/2 dias; simplesmente se descansava a cada sete dias, pois sete é o número da completude… Desconsiderando os poucos casos em que outros dias eram designados para descanso festivo, o sétimo dia sustenta como um basso continuo de santidade todo o ritmo da comunidade. Por isso aparece nos textos que se referem à Aliança, e a teologia sacerdotal o associou à própria obra da criação (Gn 1,1–2,3). É o dia dedicado/consagrado a YHWH (Lv 23,3.38; Ex 31,15), consagrado por YHWH mesmo (Ex 20,11). Associado à Aliança, sua observância é vista como garantia de Salvação (Is 58, 13-14; cf. 56,2; Jr 17,19-27), e a não observância causava exclusão da comunidade (Ex 31,14; 35,2; Nm 15,32-26) e castigo de Deus (Ex 20,13; Ne 13,17-18). Depois do exílio, quando era impossível observar as outras festas, o sábado tornou-se a marca do judeu fiel. Entretanto, as regras se tornaram sempre mais estritas. No tempo dos Macabeus, os soldados preferiam morrer a combater no sábado (1Mc 2,39-41; 9,43-39). Mais severos ainda são o livro dos Jubileus e os monges de Qumran. Estava na hora de aparecer Jesus…

2.2 A liturgia no NT

Cabe mostrar aqui a continuidade e a descontinuidade da liturgia do NT com a do AT, bem como a novidade decisiva da fração do pão e do memorial da morte e ressurreição de Cristo.

O ponto de ruptura entre o AT e o NT se chama Jesus.

Na sua visão profético-apocalíptica, como porta-voz/revelador[11] de que o reino de Deus chegou, Jesus não procurava continuar, muito menos restaurar as instituições religiosas do judaísmo, e sim derramar sobre o povo o espírito da purificação e do reavivamento anunciado por Jeremias e Ezequiel, repetindo as censuras contra o culto pronunciadas por Amós, Oseias e Isaías. Isso, acompanhando suas palavras com sinais de sua autoridade (exousia), no estilo de Elias e Eliseu. Não estava preocupado em restaurar o Templo e sim a “tenda arruinada de Davi”, o reinado instaurado por Deus mesmo mediante seu servo Davi (Am 9,11-12, cf. At 15,16), em outras palavras: o povo de Deus.

Temos duas orientações para compreender a atitude de Jesus em relação ao culto e à Lei em geral (que no entendimento dos fariseus e escribas se tinha tornado uma espécie de culto):

1) a exigência profética do coração puro na observância da Lei e do culto, priorizando o amor a Deus e, portanto, ao próximo[12], realizando a justiça (ṣedeq), a fidelidade (’emet) e a misericórdia (ḥesed);

2) a crítica à falsidade em geral (hipocrisia) e, de modo especial, no culto (Mc 7, Mt 23), culminando no gesto e nas palavras proféticos (reveladores do kairós de Deus) em relação ao Templo (Mc 11,15-18; 13,1-37 e par.)  – o estopim de sua condenação por parte dos chefes religiosos.

2.2.1 Continuidade e ruptura em relação à liturgia de Israel

A principal continuidade entre a religião de Israel e a cristã consiste no caráter memorial, à diferença do caráter naturista ou cosmológico das religiões circundantes: “A religião judeu-cristã refere-se fundamentalmente a acontecimentos históricos, sendo a coluna vertebral do seu culto o conceito de memória (zikkaron)” (BAZURKO, 1990, p. 42). Porém, é uma continuidade “interpretada”: os momentos e atos do culto de Israel recebem sentido novo nas comunidades cristãs. Aliás, já em Israel os profetas e os sábios insistiram em criticar o formalismo que consistia em realizar o culto por realizá-lo, sem compromisso com o projeto de Deus: “Este povo se aproxima de mim só com a boca e me honra só com os lábios, mas o seu coração está longe de mim, e seu temor para comigo é como preceito humano, aprendido de rotina” (Is 29,13) – crítica retomada por Jesus mesmo (Mc 7,6-7 par.).

Jesus e os seus discípulos/seguidores não criaram um novo culto. Viveram os costumes de Israel, porém, seletiva e criticamente, abandonando alguns, ressignificando outros. Jesus frequenta a sinagoga aos sábados, participa do culto do Templo e das peregrinações, mas também transgride a ordem cultual, manifestando sua soberania sobre o sábado (Mc 2,23-28 par.) e sobre as leis da pureza alimentar (Mc 7,1-23 par.). Assim como reinterpreta a Lei em função da justiça e da misericórdia de Deus (Sermão da Montanha), o culto é para ele uma ocasião para revelar a misericórdia de Deus (Mc 3,1-6 par.), do mesmo modo como a revela fora do culto, nas refeições, nos encontros. Jesus prolonga a tradição crítica dos profetas (Mc 11,15-17 cf. Is 56,7 e Jr 7,3-11; Mt 9,13 cf. Os 6,6). Subordina o sacrifício ao perdão fraterno (Mt 5,23-24). Ensina a simplicidade na oração (Mt 6,7-13‖ Lc 11,1-4). Tudo isso está condensado em Jo 4,21-23: “Vem a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade”. O lugar do culto não tem importância. Por isso, a pregação profético-apocalíptica (= reveladora) de Jesus pode anunciar a destruição do Templo (Mc 13 par.), e o “apocalíptico de Patmos” mostra a visão da Jerusalém Celeste sem templo, pois a presença de Deus e do Cordeiro é imediata (Ap 21,22).

2.2.2 A fração do pão e o memorial da Ceia do Senhor

A grande novidade na liturgia cristã é a fração do pão e a Ceia do Senhor. A fração do pão tem um sinal precursor num gesto profético de Jesus, a multiplicação dos pães. Gesto profético, porque também Elias (1Rs 17,8-16) e sobretudo Eliseu (2Rs 4,42-44) realizaram sinais de sua missão da parte de Deus por gestos semelhantes. Neste tópico, convém valorizar alguns traços do relato joanino, que, embora baseado na forma marcana, talvez represente melhor a importância desta tradição no conjunto da memória cristã. Em todas as cinco versões sinópticas[13], aparecem dois detalhes que sugerem o caráter ritual da “fração do pão”, que é uma das características da primeira comunidade cristã segundo At 2,42-42: a fração do pão com ação de graças (cf. também Lc 24,30.35). Outro traço que sugere o rito da comunidade é o papel de cooperadores/distribuidores confiado aos discípulos. Alusões às doze tribos sugerem o caráter messiânico atribuído a esse fato. A versão joanina, que não contém o termo “fração” nem o papel de mediação dos discípulos, por outro lado usa esse relato como base para o discurso do “pão da vida” com nítidas alusões àquilo que Paulo chama “a ceia do Senhor” (KONINGS, 2020).

De fato, a literatura paulina deixa entrever nas reuniões das comunidades um momento para a ceia do Senhor, entendida como memorial da morte e ressurreição de Cristo. Nos evangelhos sinópticos, esta ceia é descrita de modo extenso, com indícios de diversas tradições. O conteúdo específico do memorial é a morte de Jesus, vista como prenúncio de sua volta na gloria escatológica. Este traço escatológico é claro sobretudo na versão de Lc 22,15-18 (composto de duas tradições).

Um segundo elemento da Ceia do Senhor é o caráter sacrifical. Nítida é a referência ao sacrifício da Aliança em Ex 24,1-11, pelas palavras de Jesus “este é meu sangue da (nova) Aliança”. Em Mt 26,29 lê-se “para o perdão dos pecados”. Será que isso acrescenta algo à fórmula “por vós” ou “pelos muitos” (= todos) que ocorre nas diversas tradições? A forma de Mateus parece aproximar a morte de Jesus do sacrifício pelo pecado, o que não é necessariamente o sentido original de “por vós/pelos muitos”, que pode ter o sentido da fundação da nova Aliança, um sacrifício de comunhão.

O evangelho joanino (que não traz as palavras da instituição da Ceia e liga a eucaristia à multiplicação dos pães/“pão da vida”) parece unir na morte de Jesus a referência ao cordeiro oferecido pelo pecado (Jo 1,29.36) e o cordeiro pascal (19,36). Nas cartas joaninas, Jesus é chamado de vítima de expiação (1Jo 2,2; 4,10).

É Paulo que usa a linguagem sacrifical para tornar compreensível a obra de Jesus, mas num sentido bastante geral, acessível aos gentios que constituíam parte de seu leitorado. Entretanto, a Carta aos Hebreus (que não é de Paulo!) descreve, para um público eminentemente judeu e sacerdotal, a vida e a morte de Jesus mediante uma releitura de toda a tradição sacrifical da teologia sacerdotal do AT. Observe-se, porém, que isso é tipologia e não pode servir para uma interpretação clerical do sacerdócio ministerial na comunidade cristã.

2.2.3 Orações e hinos

Eliminando toda verbosidade, Jesus deu aos simples a oração cotidiana, o Pai-nosso, que, segundo Agostinho, contém tudo o que se pode pedir a Deus. Por isso, ela ocupa o lugar matematicamente central no Sermão da Montanha (5,1–6,8|6,9-13|6,14–7,28).

As comunidades nascidas de Jesus não deixaram de continuar a tradição hinológica do AT, criando os hinos que exprimem a história da salvação e o louvor a Cristo e ao Pai. Por exemplo, Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; Ef 1,3-14; 1Pd 2,21-24; Lc 1,68-79; 1,46-55; 2,29-32; os cânticos do Apocalipse; a forma original do prólogo joanino Jo 1,1-5.9-14; entre outros (GOURGUES, 1995; MAREANO, 2018).[14]

3 A Bíblia na Liturgia

A simbiose de Bíblia e Liturgia não significa apenas que a liturgia tem um lugar permanente nos escritos bíblicos, como acabamos de descrever, mas, vice-versa, que a Bíblia tem um lugar permanente na Liturgia.

3.1 A leitura bíblica na liturgia judaica

O culto do Israel Antigo conhecia ritos sacrificais, divinatórios, expiatórios, apotropaicos etc., que foram progressivamente concentrados na adoração do Deus único, YHWH, culminando na unificação do culto em torno do Templo de Jerusalém, pelo rei Josias por volta de 620 aC, pouco antes de Judá ser golpeado pelo exílio babilônico (597-538 aC). Depois do exílio, com o desenvolvimento do culto sinagogal, a liturgia judaica se transformou paulatinamente numa liturgia da Palavra. Durante o domínio persa, instaurou-se a prática da leitura pública da Lei, na liturgia do dia da Aclamação, no início do sétimo mês (hoje festa do ano novo), provavelmente em 397 aC (Ne 7,52–8,3). A Bíblia menciona também em diversas ocasiões anteriores uma leitura diante do povo ou das autoridades de um texto legislativo ulteriormente assumido na Torá:[15]  a solene leitura da Lei em Ex 24,7, a leitura da Lei em 2Rs 23,3 e a instituição da prática setenal em Dt 31,9-13.

À medida que os escritos bíblicos de Israel iam sendo reunidos, tornaram-se referência para a identidade confessional, como memória dos magnalia Dei e como regra de vida para a comunidade. Esse significado complexo se resume no termo hebraico torah, “instrução”, traduzido no grego como nomos, “lei” (entendida como disciplina ou educação, comparável à paideia dos gregos).

Com essa dupla finalidade de rememoração e de educação, a sinagoga adotou a leitura litúrgica dos cinco livros chamados “de Moisés” (a preleção da torah no sentido restrito), além dos trechos memoráveis dos “profetas” (a haftarah), tudo isso emoldurado pelos “louvores” (os tehillim, salmos).

Na época da atuação de Jesus de Nazaré, essa “leitura da Lei” era praticada, dependendo do costume local, num ciclo de um ou de três anos, ou também de modo mais livre (TREBOLLE BARRERA, 1996, p. 141-144). Além disso havia outras celebrações que são descritas em estudos específicos sobre a liturgia da Palavra no judaísmo.

Diferentemente da liturgia sacrifical, reservada ao Templo de Jerusalém, a liturgia sinagogal (de leitura) pode ser realizada em todas as comunidades, até na diáspora, sendo sustentada pela observância do shabbat, repouso do sétimo dia, que garante espaço para a sinaxe ou reunião sinagogal – exemplo imitado pelo domingo cristão. A liturgia do Templo, depois da unificação deuteronomista, ficava longe do povo disperso, apesar da prescrição das “subidas” em Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos. A liturgia de leitura na sinagoga remediava a distância do Templo. Assim, a instrução da comunidade, as festas de “todo o Israel” e a piedade cotidiana do israelita se alimentam da tradição bíblica e, por sua vez, a realimentam.

Depois da destruição do Segundo Templo, em 70 dC. o culto sabático, com a preleção da Lei e dos Profetas acompanhada de hinos e orações, tornou-se a espinha dorsal da religião judaica, ocupando praticamente o lugar do Templo. Sinal disso é que o presidente ganha o título de qohên, sacerdote. Quando o sacrifício do Templo perdeu seu lugar central, cresceu a acentuação, já no judaísmo, mas sobretudo no cristianismo, do sacrifício de louvor e do sacrifício espiritual.

3.2 A leitura bíblica na liturgia cristã (católica)

A segunda parte da Dei Verbum (“Verbum in Ecclesia”, n. 52-89) oferece as principais referências para a compreensão do uso da Bíblia na liturgia católica.

Herdeira da liturgia judaica, a liturgia cristã desde os inícios dedicou amplo espaço à proclamação da Palavra de Deus encontrada na Bíblia. As celebrações cristãs incluíam desde sua a origem a leitura das Escrituras (Justino, Apol. 67), embora em alguns ambientes as leituras se limitassem ao NT (JUNGMANN, 1958, p. 337). É provável que os judeu-cristãos assistissem à leitura bíblica sinagogal no sábado e, ao pôr do sol, quando se iniciava “o primeiro dia da semana”, celebravam a ceia memorial do mistério pascal (morte e ressurreição) de Jesus. Pode-se supor que a combinação da leitura das Escrituras e da celebração da refeição fraterna, com ação de graças (eucaristia) celebrando o mistério pascal de Cristo, tenha se dado bem cedo, como sugerem também outros textos do NT (Lc 24) e os primeiros escritos patrísticos (Didaqué, Carta a Diogneto). Certamente não faltavam os louvores, os hinos cristãos e os salmos do AT, muitas vezes interpretados como profecia do evento Jesus Cristo.

“Considerando a Igreja como ‘casa da Palavra’ deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia sagrada” (VD n. 52). “Cada ação litúrgica está, por sua natureza, impregnada da Sagrada Escritura” (VD n. 52). A leitura bíblica na Liturgia é uma forma de o Cristo estar presente (cf. VD n. 51; DV n. 8) – abrindo as Escrituras (cf. Lc 24,32). Esta expressão de Lucas e a frequente presença de alusões, aplicações, sentidos plenos das Escrituras de Israel mostra que não se pode dispensar a presença do AT na liturgia cristã.

Isso se aplica em primeiro lugar à celebração da Palavra na missa (ou sem Eucaristia) e no Divino Ofício. “Aqui se vê também a sábia pedagogia da Igreja que proclama e escuta a Sagrada Escritura seguindo o ritmo do ano litúrgico. Vemos a Palavra de Deus distribuída ao longo do tempo, particularmente na celebração eucarística e na Liturgia das Horas” (VD n. 52). Nessas duas formas de liturgia está presente, a princípio, a Bíblia toda do AT e do NT. O ciclo trienal das leituras dominicais apresenta o NT inteiro e, do AT, aqueles trechos que ilustram de alguma maneira as leituras do NT (principalmente os evangelhos), lembrando textos análogos ou temas proféticos que encontram no NT seu sentido pleno. Já no ciclo bienal das celebrações nos dias de semana lê-se a Bíblia integralmente. O mesmo deve ser dito do Divino Ofício (o Breviário), que inclui, além da leitura da Bíblia inteira, as exegeses dos Santos Padres e dos mestres espirituais até os dias de hoje. Além disso, o Divino Ofício tem o grande mérito de, através do dia todo, manter a Igreja em contato com os Salmos, expressão por excelência da herança espiritual de Israel, partilhada pelo próprio Jesus.

É de primeira importância o nexo entre a leitura bíblica e o sacramento da Eucaristia: os discípulos de Emaús reconheceram o Ressuscitado pela fração do pão depois que lhes havia explicado as Escrituras (Lc 24,32.35). A palavra e a ação salvífica de Jesus encontram-se unidas na mesma memória. Se as leituras bíblicas tornam presente o ensino de Jesus (inclusive suas referências ao AT), o memorial de sua morte e ressurreição traz presente a verdade desse ensinamento no dom da própria vida em amor até o fim, recebido em comunhão pelos seus fiéis.

Essa articulação da Palavra com a ação de Jesus apresenta-se, de alguma forma, também nos demais Sacramentos, agora que a reforma litúrgica do Vaticano II incluiu em todos eles uma “liturgia da Palavra”.

Olhando esse panorama, pode-se concluir que, para o cristão católico, a fiel participação da Liturgia, desde que bem preparada e apresentada, é uma imersão bíblica, que o torna espiritualmente preparado para desfrutar plenamente a memória de Cristo que é o cerne de sua fé.

4 A formação bíblico-litúrgica

É evidente que o desfrute da riqueza bíblica em nossa cultura não se dá espontaneamente. Se o próprio Jesus depois de ter ensinado em parábolas, que deviam falar por si mesmas, se viu obrigado a dar explicações através de seus discípulos (Mc 4,33-34), essa exigência se torna mais premente em nosso tempo, tão afastado do mundo de Jesus. Desde os primeiros tempos do cristianismo conhecemos a homilia ou explicação das Escrituras que, aliás, já existia na sinagoga judaica. O próprio NT, tanto nos evangelhos como nas cartas, revela essa prática. A explicação da parábola do semeador, os discursos de revelação no Quarto Evangelho, as homilias batismais na Carta aos Efésios e na 1ª de Pedro confirmam esse costume. Consciente da necessidade de explicação, a Sacrosanctum Concilium recomenda que a leitura bíblica na Liturgia da Palavra seja acompanhada de breve explicação, se não de homilia extensa. Uma das grandes preocupações do papa Francisco é a homilia (EG n. 135-144).

A formação bíblico-litúrgica dos ministros e dos agentes de pastoral é uma prioridade urgente, mas não pode ser concebida como mero enriquecimento pessoal para a vida espiritual ou, como às vezes acontece, para a mera erudição. Ela deve ser “ministerial”, isto é, voltada para o serviço ao Povo de Deus. Exorta o papa Bento XVI:

Por isso exorto os Pastores da Igreja e os agentes pastorais a fazer com que todos os fiéis sejam educados para saborear o sentido profundo da Palavra de Deus que está distribuída ao longo do ano na liturgia, mostrando os mistérios fundamentais da nossa fé. Também disto depende a correta abordagem da Sagrada Escritura. (VD n. 52).

Os grupos de estudo e de leitura bíblica com o povo em torno de temas ou livros específicos podem completar oportunamente a grande pedagogia bíblica que é a Liturgia, desde que não a suplantem. Foi graças a este tipo de atividades que nas décadas recentes, no Brasil e na América Latina, como também em outras partes do mundo, a Bíblia foi, por assim dizer, retirada das mãos dos especialistas ou clérigos e devolvida ao povo.

“Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10,21).

Johan Konings, SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Texto original português. Postado em dezembro de 2020.

Referências

BASURKA, Xabier; GOENAGA, J. A. A vida litúrgico-sacramental em sua evolução histórica. In: BOROBIO, Dionisio (org.). A Celebração na Igreja. I: Liturgia e Sacramentologia Fundamental. São Paulo: Loyola, 1990. p. 37-160.

BÍBLIA TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2020.

DE VAUX, Roland. Ancient Israel: Its Life and Institutions. London: Darton, 1973.

GOURGUES, Michel. Os hinos do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1995.

JUNGMANN, Josef. A. Bibel. II. Gebrauch in der Kirche. In: Lexikon für Theologie und Kirche, Bd. 2. Freiburg: Herder, 1958. p. 337.

KONINGS, Johan. A Bíblia, sua origem e sua leitura. Introdução ao estudo da Bíblia. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

KONINGS, Johan. A Palavra que é Pão: a Eucaristia no Quarto Evangelho. Fronteiras, Recife, v. 3, n. 2, p. 478-499, jul/dez 2020.

MAREANO, Marcus Aurélio Alves. Os hinos do Apocalipse: Mysterium tremendum et fascinans. Tese Doutorado, FAJE. Belo Horizonte, 2018.

TREBOLLE BARRERA, Julio. A Bíblia judaica e a Bíblia cristã: introdução à história da Bíblia. Petrópolis: Vozes,1996.

[1] No contexto grego, “liturgia” significa simplesmente culto ou evento público.

[2] Esta parte se baseia principalmente nas informações de DE VAUX, Roland. Ancient Israel: Its Life and Institutions. London: Darton, 1973. p. 271-515 (= Part IV: Religious Institutions).

[3] Os lugares altos (“altares”) mencionados no AT muitas vezes são relacionados com teofanias, águas ou árvores sagradas, pirâmides (zigurates) ou, a partir de certo momento, templos. O templo de Jerusalém começou como templo privado da casa de Davi/Salomão.

[4] Sobre algumas diferenças na descrição da tradição eloísta e da sacerdotal, ver DE VAUX, 1973, p. 295.

[5] Que ela era considerada pedestal ou trono do Deus invisível é um significado ulterior, que não aparece nas antigas tradições narrativas. Móveis semelhantes aparecem também nas religiões vizinhas (DE VAUX, 1973, p. 300).

[6] Uma descrição bastante clara encontra-se na introdução ao Levítico da BÍBLIA TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia.

[7] Lv 14 combina dois ritos: um arcaico, que vê a contaminação como obra do demônio, exigindo, portanto, um exorcismo; e um mais recente, equiparado aos ritos de purificação levítica (DE VAUX, 1973, p. 463).

[8] Em 2Sm 1,10 a tradução correta de nezer (do verbo nazar, separar) não é coroa, mas sinal de consagração (DE VAUX, 1973, p. 465).

[9] A crítica literária constata que Lv 23 é uma conflação de duas tradições, daí o texto ser um tanto complexo (DE VAUX, 1973, p. 473).

[10] Resumimos aqui DE VAUX, 1973, p. 481-483.

[11] É de lembrar que Jesus se apresenta como mediador da revelação em Mt 11,25-27‖Lc 10,21-22, e é nesse papel que aparece em Ap 1,1.

[12] O sentido da junção do amor a Deus e ao próximo (seja quem for) é que o amor a Deus se realiza no amor leal, generoso e justo para com o próximo do qual ele é o protetor; cf. Mc 12,28-34 par.

[13] Marcos e Mateus trazem duas formas do relato, Lucas e João uma só.

[14] Nem sempre os hinos se deixam delinear com certeza no NT.

[15] Casos do que se chama “a Bíblia antes da Bíblia” (KONINGS, 2014, p. 61-62).

Fé e práxis

Sumário

1 Problemática

2 Fé como práxis

3 Aspectos ou dimensões da fé-práxis

3.1 Dinamismo trinitário

3.2 Eclesialidade

3.3 Historicidade

3.4 Ecologia integral

3.5 Tensão escatológica

3.6 Dimensão intelectual

3.7 Parcialidade pelos pobres, marginalizados e sofredores

4 Relevância e atualidade da problemática

Referências

1 Problemática

Certamente, ninguém nega de modo absoluto que exista algum vínculo entre “fé e práxis” e desde o Concílio Vaticano II tornou-se comum e constante a denúncia de que o “divórcio entre a fé professada e a vida cotidiana de muitos crentes deve ser enumerado entre os erros mais graves do nosso tempo” (GS n.43). O problema reside na natureza desse vínculo. O “e” de “fé e práxis” indica um vínculo meramente externo e consecutivo (relação entre relatos autossuficientes e independentes) ou, antes e mais radicalmente, um vínculo interno e constitutivo (práxis como dinamismo próprio da fé e fé como forma de vida)? Noutras palavras: “fé e práxis” são realidades completamente diferentes ou a fé tem uma estrutura e um dinamismo práxicos?

O fato é que o desenvolvimento da inteligência da fé segundo os cânones da razão grega (theo-logia como intellectus fidei) foi levando a uma visão excessivamente intelectual da fé. Isso tanto no que diz respeito ao objeto da fé – “verdade primeira” (cf. ST II-II, q. 1, a. 1), quanto no que diz respeito ao ato de crer – “cogitar com assentimento” (ST II-II, q. 2, a. 1) e “confissão das verdades da fé” (ST II-II, q. 3, a. 1). E, se nos grandes teólogos medievais, como Tomás de Aquino, a fineza e o rigor das distinções e das definições ainda evitavam reducionismos e garantiam certo equilíbrio na compreensão da fé, isso vai se perdendo nos séculos posteriores. Aos poucos foi se desenvolvendo e se impondo uma compressão excessivamente intelectualista e intelectualizada da fé, entendida simplesmente como assentimento a uma verdade, como se a fé fosse um ato meramente intelectual (assentimento) e como se o conteúdo da fé fosse algo meramente intelectual (verdade). Não por acaso, ainda hoje, a compreensão mais comum de fé tem a ver com adesão a e confissão de doutrina. Nessa perspectiva, claro, a fé aparece como algo completamente diferente de e anterior à práxis (assentimento a uma verdade ou doutrina), ainda que se possa ou mesmo se deva estabelecer alguma relação com ela (iluminação da práxis ou aplicação na práxis). Trata-se, aqui, em todo caso, de um vínculo meramente externo e consecutivo: relação entre relatos (fé e práxis) que, em si e por si, nada têm a ver um com ou outro.

Por trás dessa problemática está uma concepção excessivamente intelectualista e intelectualizada da fé e uma concepção excessivamente empírico-pragmática da práxis. E, no fundo, essas concepções reducionistas de fé e de práxis se enraízam no dualismo ou na oposição mais ou menos radical entre “inteligir” e “sentir” que constitui e caracteriza a civilização ocidental desde o início até os nossos dias e está na origem de muitos outros dualismos (cf. ZUBIRI, 2006a, p.19-26). Mas isso não faz jus à fé, tal como é vivida, compreendida e narrada na Sagrada Escritura e que tem em Jesus Cristo seu autor e realizador (cf. Hb 12,2).

2 Fé como práxis

Certamente, a fé tem uma dimensão intelectual irredutível, mas não se reduz a essa dimensão intelectual. Nem enquanto ato (envolve a vida humana em sua totalidade), nem quanto ao seu conteúdo (realidade mesma de Deus). A fé é o ato pelo qual, na força e no poder do Espírito, nos entregamos a Deus e procuramos configurar nossa vida segundo o dinamismo e o desígnio de Deus, tais como foram manifestados na vida de Jesus Cristo. E esse ato de entrega a Deus e configuração da vida envolve e implica a vida do crente em todas as suas dimensões. É nesse sentido que falamos da fé como práxis; uma práxis que envolve a totalidade da vida (intelecção, sentimento, volição) (cf. ZUBIRI, 1998, p.11-41; 2006a, p.281-285).

“A fé designa o ato pelo qual a salvação que teve lugar em Cristo alcança as pessoas e as comunidades, transformando-as e iniciando uma nova criação” (GONZÁLEZ, 2005, p.369). Ela é, antes de tudo, obra de Deus em nós e, enquanto tal, um “dom” (Ef 2,8); mas um dom que, uma vez acolhido, recria-nos, inserindo-nos ativamente em seu próprio dinamismo: “criados em Cristo Jesus em vista das boas obras que preparou de antemão para que nelas caminhássemos” (Ef 2,10). É, portanto, dom e tarefa: algo que recebemos para realizar. Não existe contradição entre o caráter gracioso da fé (dom) e seu caráter ativo-práxico (tarefa). Sendo obra de Deus em nós, é também tarefa nossa em Deus. Enquanto entrega confiante a Deus e configuração da vida segundo Deus, a fé “não é algo que acontece em uma subjetividade passiva, alheia a nossa práxis”, mas uma “estruturação concreta de nossa práxis”. Neste sentido, diz González, “o crer não é algo anterior à práxis humana, como se quando cremos não estivéssemos já também exercitando uma práxis (…). O crer é sempre um pôr-se a caminho (…) para um futuro que é de Deus” (GONZÁLEZ, 2005, p.372). E esse “pôr-se a caminho” é, em sentido estrito, uma práxis: práxis crente ou fé.

Na medida em que esse caminho se identifica com a vida de Jesus Cristo, a práxis cristã ou a fé cristã se configura como seguimento de Jesus Cristo. As Escrituras falam de Jesus como o Caminho (cf. Jo 14,6) e falam dos cristãos como membros do Caminho e da vida cristã como participação no Caminho (cf. At 9,2; 18,25.26; 19,9.23; 22,4; 24,14. 22). Não por acaso, Jon Sobrino fala do “seguimento de Jesus” como “fórmula breve do cristianismo” (cf. SOBRINO, 1999, p.771). E não por acaso se tornou comum na América Latina falar da fé cristã como seguimento de Jesus (cf. AQUINO JÚNIOR, 2017, p.19-50). É que, como diz Ellacuría, “se o caminho de Deus aos homens é Jesus de Nazaré, o caminho do homem a Deus é o seguimento desse mesmo Jesus de Nazaré” (ELLACURÍA, 2000, p.642).

3 Aspectos ou dimensões da fé-práxis

Enquanto entrega a Deus e configuração da vida segundo Deus, a fé tem um dinamismo práxico. Ela consiste na estruturação de nossa vida em Deus e a partir de Deus. Trata-se de um dinamismo muito complexo que envolve o mistério de Deus e a totalidade da nossa vida; um dinamismo no qual se podem distinguir muitos aspectos, dentre os quais destacaremos seu caráter trinitário, eclesial e histórico, sua dimensão ecológica, escatológica e intelectual e sua parcialidade pelos pobres e marginalizados.

3.1 Dinamismo trinitário

Enquanto entrega a Deus e configuração da vida segundo seu próprio dinamismo e seu desígnio salvífico para a humanidade, a fé cristã está constitutiva e radicalmente determinada pelo modo de ser/agir de Deus na história de Israel e, definitivamente, na vida/práxis de Jesus de Nazaré. Não se pode compreender a fé cristã senão a partir e em função do Deus de Israel e de Jesus de Nazaré. Ela é resposta à proposta desse Deus. A iniciativa é dele (proposta). Mas, para se tornar real e efetiva, precisa ser assumida na força e no poder do Espírito por uma pessoa e/ou um povo (resposta).

Para os cristãos, o mistério de Deus e a vida de Jesus de Nazaré são inseparáveis. Só se pode falar de um em referência ao outro. A confissão de Jesus como Filho de Deus, implica e/ou pressupõe a confissão de Deus como Pai de Jesus. Não se pode falar de Deus senão a partir de Jesus: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30); “quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). Daí a confissão de Deus como Pai: Creio em Deus Pai… A nomeação trinitária de Deus nasceu desse esforço de falar de Deus a partir de Jesus de Nazaré.

Jesus revela Deus como Pai na medida em que se relaciona com ele como Filho: atitude de confiança, obediência, fidelidade até a morte e morte de cruz. Nisso precisamente consiste a fé. Isso faz de Jesus um homem de fé no sentido mais autêntico e profundo da palavra (cf. VON BALTHASAR, 1964, p.57-96). E isso só é possível na força e no poder do Espírito. É a dimensão pneumatológica da revelação e da fé em Jesus Cristo. É na força e no poder do Espírito (santificação) que Jesus se relaciona com Deus como um Filho (filiação) e, assim, revela Deus como Pai (paternidade).

Mas Jesus não é apenas um exemplo ou modelo de fé. Enquanto autor e consumador da fé (cf. Hb 12,2), é mediador da fé (cf. 1 Tm 2,5; Hb 12,24). A fé cristã é participação na fé de Jesus Cristo. Paulo fala muitas vezes da pístis Iesoû Christoû, relacionando-a com nossa justificação (cf. Gl 2,16.20; 3,22; Fl 3,9; Rm 3,22.26; Ef 3,12). Embora a tendência mais comum seja traduzir essa expressão por “fé em Jesus Cristo” (genitivo objetivo), parece mais de acordo com a teologia paulina da justificação pela fé sua tradução por “fé de Jesus Cristo” (genitivo subjetivo). Não somos nós que nos justificamos a nós mesmos. É Deus mesmo quem nos justifica através da fé de Jesus Cristo e através de seu Espírito. Nossa fé consiste em participação na fé de Jesus que é a fé que nos justifica (cf. AQUINO JÚNIOR, 2017, p.29-32). Daí o caráter ou o dinamismo trinitário de nossa fé: participação na relação de Jesus com o Pai (dimensão cristológica) na força e no poder do Espírito (dimensão pneumatológica).

3.2 Eclesialidade

A participação na fé de Jesus, enquanto entrega confiante ao Pai e configuração da vida a partir e em função de seu desígnio salvífico, é mediada pela Igreja e constitui-nos como Igreja – seu corpo vivo e atuante na história. É a dimensão eclesial da fé em seu duplo aspecto de mediação e incorporação (cf. LIBANIO, 2000, p.249-259).

A fé de Jesus chega a nós através da Igreja. Não obstante todas as suas ambiguidades e contradições (pecado), é a Igreja quem, na força e no poder do Espírito, conserva e transmite a fé de Jesus (santidade). Não se pode falar de fé cristã independentemente da Igreja. A fé cristã é a fé da Igreja. Por isso, no batismo de crianças, após a profissão de fé, sempre se recorda: “Esta é a nossa fé, que da Igreja recebemos e sinceramente professamos (…)”. E, antes de batizar a criança, pergunta-se aos pais e padrinhos se querem que ela “seja batizada na fé da Igreja que acabamos de professar”. A fé é dom/graça de Deus em Jesus Cristo e no seu Espírito através da Igreja que, “na sua doutrina, na sua vida e no seu culto” (DV n.8), conserva, transmite e atualiza a fé de Jesus e, assim, constitui-se, em sentido estrito, como Tradição de Jesus. E, enquanto mediação da fé, a Igreja faz parte do desígnio salvífico de Deus para a humanidade. É obra do Espírito, como indica o terceiro artigo do símbolo da fé.

A fé chega a nós através da Igreja (mediação) e constitui-nos como Igreja: povo de Deus, corpo de Cristo, templo do Espírito (incorporação). A eclesialidade da fé diz respeito não apenas ao fato de ser mediada pela Igreja (fé da Igreja), mas também ao fato de ser vivida na Igreja e como Igreja (fé em Igreja). A fé nos reúne e nos constitui como Igreja – “una, santa, católica e apostólica”, como reza o símbolo niceno-constantinopolitano (DH n.150) – no duplo sentido ou aspecto de que fala o Concílio Vaticano II: “sinal e instrumento” de salvação ou do reinado de Deus no mundo (cf. LG n.1, 5, 9, 48; GS n.45; AG n.1, 5). Enquanto sinal, é lugar privilegiado de memória, celebração e vivência da salvação ou do reinado de Deus (configuração da vida segundo o desígnio salvífico de Deus). Enquanto instrumento, é mediação privilegiada da salvação ou do reinado de Deus no mundo (fermento, sal, luz, semente, germe da salvação ou do reinado de Deus na sociedade). Sem esquecer, claro, que “fora de sua realidade visível, encontram-se muitos elementos de santidade e de verdade” (LG n.8). E não só nas outras Igrejas cristãs, mas também nas outras religiões e nos vários setores e instâncias da sociedade. Daí a exortação conciliar ao diálogo ecumênico (cf. UR), ao diálogo inter-religioso (cf. NA) e ao diálogo com o mundo atual (cf. GS).

3.3 Historicidade

A historicidade da fé diz respeito não apenas ao fato de ser vivida na história (tempo-espaço-contexto), mas, também e mais radicalmente, ao fato de ser vivida de modo histórico (dinamismo práxico). A história consiste formalmente no processo de “entrega” e “apropriação” de “possibilidades” de estar na realidade e de fazer a vida de uma determinada maneira (cf. ZUBIRI, 2006b, p.71-101; ELLACURÍA, 1999, p.491-602). É, em sentido estrito, “tradição” (entrega) e tem um caráter ou dinamismo fundamentalmente práxico (apropriação e transmissão de possibilidades).

Esse caráter ou dinamismo práxico da fé (apropriação-transmissão) pressupõe e implica o dom da fé (entrega) e exige ousadia e criatividade (mediações).

A insistência no caráter práxico da fé não põe em risco o primado da Graça nem, consequentemente, cai na tentação da autossuficiência e autossalvação humanas, como se a salvação fosse fruto de nossa ação, antes que dom gratuito de Deus em Jesus e seu Espírito. Como bem afirma Sobrino, “tem sido um erro frequente situar a experiência da gratuidade no que recebemos, como se a ação fosse meramente ‘obra’ do homem”. Na verdade, diz ele, “o dom se experimenta como dom na própria doação” (SOBRINO, 1977, p.193). Na formulação de Antonio González, “a ação humana não é, sem mais, ‘obra’ do homem, mas ‘o dom se experimenta como dom na própria doação’, enquanto [seu] fundamento”. Deste modo, conclui, “a fé é atividade humana enquanto entrega a Deus como fundamento da própria vida” (GONZÁLEZ, 1994, p.68 et seq.).

E isso é um risco ou uma aventura, na medida em que depende, em boa medida, da situação ou do contexto em que nos encontramos e das reais possibilidades (materiais, biológicas, sexuais, psíquicas, sociais, políticas, culturais, religiosas etc.) com que se conta em cada caso. De modo que a fé, sendo sempre a mesma (participação na fé de Jesus), é sempre diversa (fé dos cristãos em contextos e situações históricas diversas). O grande desafio, aqui, consiste em discernir e escolher em cada caso ou situação, entre as possibilidades disponíveis, as mais adequadas e fecundas para a configuração de nossa vida e de nosso mundo segundo o dinamismo de vida suscitado por Jesus e seu Espírito. Embora nenhuma possibilidade concreta seja absolutamente adequada, no sentido de esgotar as potencialidades desse dinamismo, algumas são mais (in)adequadas que outras. Daí que a fé comporte sempre algo de risco e aposta. Mas um risco e aposta inevitáveis, sob pena de se transformar a fé em pura abstração, idealismo ou fundamentalismo. É a problemática da mediação histórica da fé.

3.4 Ecologia integral

A fé envolve a totalidade da vida humana. E, nesse sentido, tem um caráter ecológico fundamental, entendido na perspectiva da “ecologia integral” de que fala o papa Francisco em sua Encíclica Laudato Si “sobre o cuidado da casa comum”. Envolve as dimensões ambiental, econômica, social e cultural, a vida cotidiana, o bem comum e a justiça intergeneracional (cf. LS n.137-162). Todas as dimensões da vida devem ser configuradas segundo o desígnio salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo.

Certamente, pode-se destacar um ou outro aspecto, uma ou outra dimensão da fé. Seja na vida dos crentes e de suas comunidades, seja em diferentes situações e contextos históricos. Pode-se dar uma ênfase maior à dimensão pessoal, social ou ambiental, ao caráter de dom ou de tarefa, aos aspectos materiais ou espirituais, à dimensão doutrinal, litúrgica ou existencial, às questões eclesiais ou históricas, à dimensão sapiencial ou profética, ao presente ou ao porvir etc. Em princípio, não há nenhum problema aqui. Isso é possível, normal e até mesmo inevitável. Os contextos e as circunstâncias pessoais, eclesiais, sociais e históricas exigem e forçam uma atenção ou um cuidado particular a certas dimensões da fé.

O problema começa quando essa atenção ou esse cuidado especial vai sendo, consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente, absolutizado. Aos poucos, a fé vai sendo reduzida a uma de suas dimensões ou a um departamento da vida e, assim, vai perdendo seu horizonte de totalidade e seu poder de configuração de toda nossa vida segundo o desígnio de Deus manifestado em Jesus Cristo e realizado na força do seu Espírito. É sempre um risco. E a situação pode se complicar ainda mais quando se perde de vista que, na fé, há aspectos ou dimensões que são mais radicais e essenciais que outros ou, pior ainda, quando se invertem as prioridades. Por aí se pode entender a insistência dos profetas na prática do direito e da justiça em relação ao culto e a centralidade que o NT dá à prática do amor fraterno em relação às práticas religiosas e à gnose, bem como a ênfase na operatividade da fé.

Há, aqui, um tríplice desafio a ser enfrentado: a) precisamos estar atentos às necessidades e aos imperativos dos diferentes contextos e das diversas circunstâncias; b) as necessidades epocais e circunstanciais não podem nos levar a um reducionismo da fé a um de seus aspectos ou dimensões; c) não podemos perder de vista que há aspectos ou dimensões que são mais radicais e essenciais que outros: a realização da vontade de Deus que consiste no amor fraterno e na prática da justiça.

3.5 Tensão escatológica

Na medida em que todos os aspectos ou dimensões da vida humana devem ser configurados segundo o dinamismo e o desígnio salvífico de Deus, nada em nossa vida é indiferente a Deus. Tudo se realiza, em última instância, consciente ou inconscientemente, como afirmação (fé) ou negação (pecado) de Deus e de seu desígnio salvífico. E, nesse sentido, tudo em nossa vida tem um caráter escatológico: último, definitivo. Mas, na medida em que nossa vida tem um dinamismo histórico-práxico, condicionado, positiva ou negativamente, pelas possibilidades pessoais, sociais, eclesiais e históricas com que se conta em cada época e em cada momento, é sempre um processo limitado, contingente, ambíguo e não raras vezes contraditório. E isso vale também para a fé enquanto modo de viver a vida em Deus e segundo Deus, conforme indicamos acima ao falarmos da fé como um risco e uma aposta.

Nenhuma expressão ou forma concreta de viver a fé pode ser absolutizada, por mais legítima e consequente que seja. Nem muito menos se pode reduzir a realidade e o desígnio salvífico de Deus a uma de suas expressões históricas. Se a fé implica sempre mediações concretas, ela não se esgota em nenhuma de suas mediações que, ademais, são sempre limitadas e ambíguas. E o mistério amoroso de Deus e seu desígnio salvífico para a humanidade não se identificam com nenhum acontecimento, experiência ou mediação. Há sempre um mais, um excesso, que relativiza as experiências e mediações, por mais autênticas e intensas que sejam, mantendo nossa vida e nossa história abertas para além de si mesmas e conduzindo-as para a plena comunhão com Deus. Aquilo que Oscar Cullmann, ao tratar do reino ou do reinado dos céus no Evangelho segundo Mateus, no contexto das controvérsias escatológicas – “escatologia consequente” X “escatologia realizada” – formulou em termos de “já” e “ainda não” (cf. CULMANN, 1966, p.38-39) e que se convencionou chamar na teologia de “tensão escatológica”: o reinado de Deus está presente no mundo, mas ainda não se realizou plenamente.

Enquanto entrega a Deus e configuração da vida segundo Deus, a fé se constitui como sinal e mediação do reinado de Deus no mundo (). Enquanto processo histórico, sempre limitado e nunca isento de ambiguidades e contradições, a fé tem sempre algo de relativo e provisório e sempre aponta e conduz para o mistério inesgotável de Deus até que “Deus seja tudo em todos” (cf. 1Cor 15,28) (ainda não). É a tensão escatológica que caracteriza a fé enquanto dinamismo práxico.

3.6 Dimensão intelectual

Embora não se reduza a um ato meramente intelectual, a fé tem uma dimensão intelectual fundamental e irredutível. E não se trata apenas de relacionar fé e razão, como se fosse possível pensar uma fé completamente desprovida de razão, mesmo que depois se pudesse ou devesse estabelecer alguma relação entre elas. Não existe fé sem razão. Só um animal inteligente-livre é capaz de optar por entregar-se a Deus e fazer a vida segundo Deus. Se a opção (fé) se concretiza como apropriação de algo como possibilidade de vida (liberdade), ela pressupõe e implica sua apreensão como realidade (inteligência). Só é possível apropriar-se de algo como possibilidade de vida (fé), na medida em que esse algo é apreendido como realidade, isto é, como alteridade radical (dimensão intelectual). De modo que, vale insistir e repetir, a fé tem uma dimensão intelectual fundamental e irredutível.

Mas essa dimensão intelectual da fé é muito mais complexa do que pode parecer à primeira vista. Tanto em seu dinamismo interno, quanto em sua configuração e em seu desenvolvimento históricos (cf. AQUINO JÚNIOR, 2016, p.262-263).

Antes de tudo, é preciso ter presente que essa dimensão intelectual da fé, por mais irredutível e autônoma que seja, não consiste em mera operação mental (cogitação e confissão) que se desenvolve à margem e/ou em contraposição à sua dimensão corpórea e ao seu caráter práxico. Enquanto momento constitutivo da ação humana (inteligência-sentimento-volição), a intelecção tem a ver com sentimento (inteligência sentinte) e com volição (inteligência determinante). O desenvolvimento da inteligência da fé é inseparável da vivência da fé como realidade corpóreo-práxica.

Além do mais, não se pode identificar a dimensão intelectual da fé com sua forma ocidental, desenvolvida no encontro e na interação com a filosofia grega. A inteligência da fé (teologia num sentido lato) é algo bem mais amplo e complexo que a inteligência racional da fé (teologia no sentido clássico estrito). A teo-logia como discurso racional da fé nunca foi a única nem a forma predominante de inteligência da fé. Nem sequer no Ocidente (cf. BEVANS, 2004, p.44-45). Na verdade, a inteligência da fé se desenvolveu e se desenvolve muito mais de modo narrativo-simbólico-litúrgico-experiencial que de modo teórico-conceitual. Não se trata de contrapor a forma teórico-conceitual à forma simbólico-sapiencial de inteligência da fé. Trata-se simplesmente de atentar para a diversidade de formas de inteligência da fé e seu mútuo enriquecimento (cf. AQUINO JÚNIOR, 2018, p.98-103).

3.7 Parcialidade pelos pobres, marginalizados e sofredores

Na medida em que a fé diz respeito à atitude global de entrega, confiança, obediência e fidelidade a Deus e ao dinamismo vital que essa atitude desencadeia, alimenta e conduz e na medida em que Deus se revela na história de Israel e na vida de Jesus Cristo como partidário pelos pobres, marginalizados e sofredores, a fé nesse Deus é essencial e constitutivamente parcial pelos pobres, marginalizados e sofredores. Entregar-se a Deus e configurar a vida a partir e em função dele implica entrar em seu dinamismo salvífico no mundo que, por mais escandaloso que seja ou pareça, dá-se a partir e em função dos pobres, marginalizados e sofredores. A fé em um Deus parcial implica participação em sua parcialidade.

Não por acaso a defesa e o cuidado dos pobres, marginalizados e sofredores ocupam um lugar tão central na Escritura e na Tradição da Igreja. Como recorda o papa Francisco, “todo o caminho da nossa redenção está assinalado pelos pobres” (EG n.179), “existe um vínculo indissolúvel entre nossa fé e os pobres” (EG n.48). E a tal ponto que ficar “surdo” ao clamor dos pobres “coloca-nos fora da vontade do Pai e do seu projeto”; “a falta de solidariedade, nas suas necessidades, influi diretamente sobre nossa relação com Deus” (EG n.187). Dito positivamente, o “lembrar-se dos pobres” (Gl 2, 10) ou “a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e lança fora” continua sendo o “critério-chave de autenticidade” eclesial (EG n.195). Ou ainda, como afirmava João Paulo II em sua Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, Mt 25, 35-36 “não é um mero convite à caridade, mas uma página de cristologia que projeta um feixe de luz sobre o mistério de Cristo. Nesta página, não menos do que faz com a vertente da ortodoxia, a Igreja mede sua fidelidade de Esposa de Cristo” (NMI n.49).

Como tantas vezes insistiu Gustavo Gutiérrez, embora possam existir outras razões importantes e legítimas (análise social, compaixão humana, experiência direta da pobreza), “o motivo último do que se chama ‘opção preferencial pelos pobres’ encontra-se no Deus em quem cremos” (GUTIÉRREZ, 2000a, p.27). Trata-se, portanto e em sentido estrito, de “uma opção teocêntrica e profética que deita raízes na gratuidade do amor de Deus” (GUTIÉRREZ, 2000b, p.25); uma opção que “está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza” (BENTO XVI, 2007, p.255); uma opção que “faz parte de nossa fé pneumatológica” (CODINA, 2015, p.183).

4 Relevância e atualidade da problemática

Na medida em que diz respeito à estrutura e ao dinamismo da fé em sua complexidade e globalidade, a problemática fé-práxis ou o dinamismo práxico da fé é algo extremamente relevante e decisivo na vivência da fé. Nisso se joga em boa medida sua eficácia e sua relevância histórico-salvíficas. E na medida em que esse dinamismo práxico da fé é comprometido por um “divórcio entre a fé professada e a vida cotidiana” (GS n.43) ou por uma oposição entre Deus e o homem ou por algum reducionismo doutrinal, ritual, individualista, espiritualista ou materialista etc. da fé, essa problemática torna-se ainda mais atual e relevante.

Em boa medida, pode-se dizer que todo movimento de reforma eclesial desencadeado pelo Concílio Vaticano II e sua recepção latino-americana e retomado com vigor e criatividade pelo papa Francisco gira em torno dessa problemática. O movimento de abertura e diálogo com o mundo moderno (Vaticano II), de inserção no mundo dos pobres (América Latina), de saída para as periferias do mundo (papa Francisco) tem no dinamismo práxico da fé seu fundamento e sua razão de ser. Está em jogo, aqui, nada menos que “a vocação universal à santidade” (cf. LG n.39-42) ou a “chamada à santidade no mundo atual” (cf. GE) que, sendo dom de Deus em Jesus Cristo e no seu Espírito, é tarefa nossa, vivida sempre nos limites de nossas possibilidades e na força do Espírito que nos foi dado. Nesse sentido, como afirmamos acima, a fé é um dom (Ef 2, 8), mas um dom que, uma vez acolhido, recria-nos, inserindo-nos ativamente em seu próprio dinamismo (Ef 2, 10); é um dom que só se vive na doação de si. Nisso, precisamente, consiste o caráter práxico da fé que tem no Deus de Jesus Cristo sua fonte e seu dinamismo, que envolve todos os âmbitos e todas as dimensões da vida, que se vive sempre em situações e contextos bem concretos, que não se esgota em nenhuma situação e em nenhum momento da vida e que mantém nossa vida e nossa história abertas para além de si mesmas, conduzindo-as, nos passos de Jesus e na força e no poder do Espírito, para a plena comunhão com Deus…

Francisco Aquino Júnior – Universidade Católica de Pernambuco. Texto original português. Postado em fevereiro de 2020.

 Referências

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