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Cismas

Sumário

1 Definição conceitual

2 Ato cismático na História da Igreja

3 O cisma como luta pelo poder na Igreja

3.1 Primeiro exemplo: o cisma de Novato em Roma (251)

3.2 Segundo exemplo: o cisma das igrejas norte-africanas no século IV

4 Cisma, heresia e violência: os limites da ortodoxia

5 Conclusão

6 Referências bibliográficas

1 Definição conceitual

De um ponto de vista etimológico, o termo cisma, oriundo do grego, significa o ato de separação, divisão ou ruptura que acomete uma coletividade, particularmente no interior do cristianismo, pelo qual um grupo de membros de uma dada comunidade decide vivenciar aspectos da fé ou do culto de um modo diferente de sua comunidade inicial. Para tanto, este grupo afasta-se da prática comum a fim de procurar uma experiência mais específica ou particular da fé, ora afirmando aspectos doutrinais diferentes (como no caso do arianismo ou do pelagianismo), ora defendendo uma postura disciplinar ou moral diversa (como no caso do novacianismo ou do donatismo) (STARK, 2007, p. 54).

No entanto, de um ponto de vista histórico, é muito difícil sustentar uma compreensão fixista e universal de cisma, pois percebe-se que as comunidades religiosas elaboram, a seu modo, o conceito de cisma guiando-se por suas tradições e interesses particulares, o que pode ampliar, endurecer ou flexibilizar o significado real de ruptura ou separação. Assim, não é fácil para o estudioso contemporâneo identificar o ato cismático no seu sentido empírico, no passado, pois a compreensão de cisma, muitas vezes, guiava-se por jogos de poder no interior das comunidades e tornava-se instrumento de deslegitimação de sujeitos eclesiais específicos que se pretendia retirar do cenário oficial. Esta constatação nos forçará, neste texto, a indagar pela construção histórica do conceito de cisma, do ponto de vista da História da Igreja, tomando-o como parte do desenvolvimento institucional das comunidades cristãs. Por isso, faremos uma discussão histórica ampla e geral do conceito, levando em conta as manifestações concretas de atos cismáticos sem, contudo, particularizá-los ou isolá-los como acontecimentos atípicos ou circunstanciais.

2 Ato cismático na História da Igreja

Sendo um ato de ruptura derivado de uma situação de rebeldia, o cisma é particularmente sentido quando a comunidade religiosa afirma a unidade como natureza fundamental, visível num corpo doutrinário, disciplinar, sacramental e litúrgico compartilhado pelos membros da comunidade; neste caso, o cisma é interpretado como secessão de uma parte desta comunidade que, a partir de um dado momento, toma um caminho particular, distanciando-se da tradição comum. Esta ruptura é, então, experimentada como um trauma, um acontecimento de enorme magnitude que, não raras vezes, vem acompanhado de conflitos violentos, às vezes mortais, praticados pela comunidade majoritária que, no intuito de salvaguardar a unidade, investe todas as suas forças persuasivas para manter o grupo considerado dissidente dentro da unidade original (GADDIS, 2005).

No caso cristão, a experiência comunitária do cisma apresenta-se especialmente traumática em decorrência de uma particular consideração da unidade que, no caso do Evangelho de João, é proclamada por Jesus durante o discurso de despedida, sobretudo na oração sacerdotal: “Pai santo, guarda-os em teu nome, que me encarregaste de fazer conhecer, a fim de que sejam um como nós” (Jo 17,11); na Primeira Carta aos Coríntios (12,12-14), Paulo identifica a Igreja ao corpo místico de Cristo que, por analogia, deve ser una, como ele, apesar da diversidade de seus membros. Assim considerado, o ato cismático torna-se um atentado não apenas contra a comunidade, mas sobretudo contra o mistério do Corpo de Cristo que a Igreja-una representa.

Como se pode notar, as primitivas comunidades cristãs não viam os cismas como acontecimentos prováveis e compreensíveis segundo as lógicas sociais que regem os grupos humanos, cujo desenvolvimento favorece amiúde as separações e desmembramentos em vista de permitir a sobrevivência de heteronomias que, ao longo do tempo, foram assumidas como parte da identidade de comunidades precisas dentro de uma grande federação de comunidades. Ao contrário, as comunidades, apesar da diversidade de cidades, línguas e proveniências étnicas a partir das quais se enquadravam, professavam uma unidade, confundida com uma pretensa homogeneidade, que, na prática, ocultava suas naturais divergências de práticas e de crenças (BROWN, 1999, p. 22).

Num período em que não era ainda preciso um elaborado símbolo da fé e não havia ainda um cânon exclusivo dos textos bíblicos válido para todas as comunidades, é quase impossível delimitar até onde ia a diversidade tolerada (que todavia expressa a unidade) e onde começava a diversidade intolerável (esta sim definida como cisma). Um exemplo desta complicada compreensão encontra-se em Atos dos Apóstolos, capítulo 15, quando seu autor, ao retratar a divergência entre a comunidade-mãe de Jerusalém, dirigida por Tiago, e a comunidade-filha de Antioquia, dirigida por Paulo e Barnabé, preferiu silenciar as profundas discordâncias entre duas igrejas (e entre Tiago e Paulo), dando ao episódio uma resolução fácil que afirmava uma unidade muito frágil e ameaçada, como revelou o próprio apóstolo Paulo, em sua Carta aos Gálatas, capítulo 2. Pode-se argumentar que Lucas, na qualidade de historiador do cristianismo nascente, guiava-se mais pela teologia e pela visão providencialista da História do que pelos cânones da historiografia helênica, que devia conhecer (MARGUERAT, 2003, p. 31); no entanto, sua posição teológica dos fatos, centrada na condução pneumática, levou à predominância de uma visão conciliadora das diversidades eclesiais. Uma vez que os Atos dos Apóstolos tornaram-se uma espécie de protótipo daquilo que veio a se chamar de História Eclesiástica, expressão cunhada pelo bispo Eusébio de Cesareia (263-339), pode-se dizer que esta visão conciliadora lucana afirmou-se como paradigma originário para os autores cristãos antigos e continuou forte mesmo depois, quando da sistematização geral da fé com o Concílio de Niceia (325).

O bispo Ireneu de Lyon (130-202), em seu tratado Contra as Heresias (Liv. I, 10,2), reforçava a unidade da Igreja que, segundo ele, já estava espalhada pelo Oriente e Ocidente, atribuindo-lhe a uniformidade da fé, da tradição e do ensino a despeito da variação linguística que caracterizava as regiões do mundo romano onde as igrejas se implantaram. Embora sua própria obra denunciasse a existência e a força persuasiva de comunidades cristãs que seguiam outra teologia, por ele chamadas de heréticas ou gnósticas, Ireneu acreditava que a unidade do crer era o selo de autenticidade da Igreja da qual fazia parte. No mesmo sentido, o teólogo Orígenes (185-254), nas Homilias sobre Ezequiel (9,1), considerava que a unidade e a comunhão derivavam da virtude, enquanto a diversidade ou multiplicidade originavam-se nos pecados, donde os cismas, as heresias e as dissensões serem necessariamente lidos como expressão daquela rebeldia original que causou a desgraça da ordem da criação.

À luz de ambos os testemunhos antigos, vê-se que a histórica diversidade e disputas entre as igrejas, evidentes desde o chamado Acordo de Jerusalém (At 15; Gl 2), foram encobertas por uma leitura espiritualizante, isto é, que minimizou o dado histórico e social, com vistas à defesa de uma ortodoxia que, sabemos, não se formou sem lutas e dissensões. Para a corrente eclesial representada por Irineu e Orígenes, os cismas não eram dados entendidos apenas como algo muito mais grave do que a separação ou a individualização de comunidades, mas, principalmente, como uma tremenda continuação do pecado no mundo. Ao associar a diversidade ao pecado e a uniformidade à graça, os discursos eclesiásticos contorceram as manifestações de heteronomias e identidades locais tornando-as um obstáculo para a uniformização que deveria autenticar a comunidade; assim, a diversidade passou a ser vista como algo arriscado e, provavelmente, um atentado contra a suposta uniformidade original. O caso do Contra as Heresias, de Irineu, nos permite ver como a salvaguarda de uma cristologia encarnada e histórica lançou mão de uma certa plastificação da uniformidade que, no futuro, tornou motivo para a acusação de cisma aquilo que não passava de resposta local à fé apostólica.

Esta compreensão iriniana da unidade da Igreja, de certa forma, condicionou a chamada História dos Dogmas. Costuma-se interpretar as etapas da formação da doutrina cristã com base em fases generativas específicas, geralmente grafadas com o nome de controvérsias: controvérsia trinitária, controvérsia cristológica, controvérsia pneumatológica, controvérsia iconoclasta, entre outras. Historiadores e teólogos habitualmente acreditam que estas controvérsias constituem etapas cronológicas, portanto, históricas e reais (diria-se até naturais) de uma bimilenar marcha do cristianismo pela História. O curioso é que esta marcação é, na verdade, uma abstração explicativa criada a posteriori, sem o devido fundamento de realidade, desde que se olhe para as fontes históricas sem as lentes de uma evolutiva interpretação controversista da História da Igreja. Esta observação nos ensina que, ao fazer a história da teologia, é preciso evitar a sedução da Teologia da História.

Desta forma, se o cisma nasce de uma controvérsia, devemos, então, redefinir o papel do cisma na História da Igreja, pois a controvérsia (em suas diversas manifestações) constitui o próprio ethos desta história: supor um “cristianismo normativo” desde as origens é mais um ato de fé do que de investigação historiográfica que, ao contrário, evidencia as extremas heteronomias das comunidades, sejam jurídicas, doutrinárias ou litúrgicas (JOHNSON, 2001, p.58). No entanto, é preciso atenção: nem todo entendimento diferente sobre matéria teológica resulta num conflito eclesial, o que nos leva a propor a pergunta: por que certas diferenças de entendimentos geram conflitos e rupturas e outras não geram? Por que alguns conflitos redundam em acordos (assimilação da diferença) e outros em cismas (eliminação dos desviantes)? Uma leitura não generativa da História da Igreja (que não supõe fases incontornáveis e naturalizadas de crescimento)   nos leva a perceber que, numa disputa teológica, ao menos na Antiguidade e na Idade Média, geralmente o que estava em jogo era a defesa do poder de quem estabelecia a doutrina e não propriamente a doutrina em si mesma, ou a desviância da doutrina.

Em outros termos, as controvérsias dogmáticas eram parte das expressões dos choques entre comunidades ou líderes destas comunidades para afirmar a superioridade de uma dada cultura eclesial sobre a cultura de outra igreja, como se percebe, tantas vezes, nos confrontos das igrejas de Antioquia, Alexandria e Roma entre os séculos III e V. Na visão, por exemplo, de Eusébio de Cesareia, a garantia da unidade da Igreja não residia na fixação de ideias, mas na sucessão apostólica, isto é, na continuidade de pessoas: esta escolha parece-nos indicativa de que as comunidades negociavam a liderança e o poder lançando mão das controvérsias como motivo para oposição dos “verdadeiros” aos “falsos” ministros (CAMERON, 2005, p. 133).

3 O cisma como luta pelo poder na Igreja: dois exemplos

3.1. O cisma de Novato em Roma (251)

Eusébio de Cesareia, no Livro VI de sua História Eclesiástica, narra os acontecimentos derivados da chamada perseguição do imperador Décio, em 249; o decreto imperial obrigava todos os cristãos a oferecerem sacrifícios aos deuses imperiais, sob risco de condenação à morte. O sacrifício tinha de acontecer perante uma autoridade romana na qualidade de testemunha do ato. Após o sacrifício, que poderia consistir simplesmente na queima de uma pedrinha de incenso, sem nenhuma necessidade de se acreditar nos deuses, o cristão recebia um certificado legal, chamado, em latim, de libellus, motivo pelo qual aqueles que ofereceram o sacrifício foram apelidados (pejorativamente) de libellatici (FREND, 1982, p. 98). Para evitar a morte e, ao mesmo tempo, o oferecimento de sacrifício, muitos cristãos ricos subornaram as autoridades para que seus nomes fossem inscritos no libellus sem que eles fizessem o sacrifício. Para muitos cristãos, esse procedimento era um escândalo, pois significava que tais pessoas eram muito covardes e, pior ainda, haviam apostatado e, por isso, não podiam mais participar da vida da Igreja. Para piorar a situação, suspeitava-se que os libellatici colaboravam com o império, oferecendo informações sobre membros da comunidade que não estavam dispostos ao compromisso imperial. Neste caso, o ato cismático estaria explícito tanto no oferecimento do sacrifício quanto na covardia frente ao martírio e sua condenação justificava-se frente à traição de alguns membros da comunidade.

Neste entretempo, correntes rigoristas começaram a pregar que todo cristão que se tornasse libellaticus perdia a graça do batismo e, caso quisesse voltar à comunidade, após a perseguição, precisava ser rebatizado. Outros sequer aceitariam a reinserção, ainda que por novo batismo. Este drama comunitário, que atingiu as igrejas de Roma, Alexandria e até Cartago, no norte da África, testemunha a existência de um quadro de exclusão interna à igreja que podia ser tão ou mais violento do que a perseguição imperial; a exclusão dos libellatici ou lapsi (isto é, aqueles que caíram por medo do martírio) tornou-se a contra-face de uma verdadeira perseguição intra-eclesial em que rigoristas procuravam expurgar das igrejas os membros indesejados. A atitude dos setores rigoristas, nessas igrejas, poderia ser descrita como uma espécie de “caça às bruxas”, o que evidentemente causava grande turbulência entre os fiéis e o clero.

Foi o que aconteceu, em Roma, quando do martírio do bispo/papa Fabiano (†250), primeira vítima do decreto de Décio. A contenda pela sucessão de Fabiano atesta o quanto a comunidade eclesial de Roma estava dividida entre duas tendências: os rigoristas, que consideravam os lapsi cismáticos, apontaram Novato (†258) como seu candidato; os demais, que podemos denominar “moderados”, isto é, que estavam dispostos a admitir os lapsi, indicaram Cornélio (†253) que acabou vencendo a eleição. Em resposta à confiança de seus apoiadores, Cornélio envidou esforços para reconciliar os lapsi sem exigir novo batismo, porém, obrigando-os a uma pública penitência. Os rigoristas aliados a Novato não engoliram a derrota e, desde então, começou a rivalidade entre o novo bispo e seu presbítero.

Novato comandou uma revolta interna na igreja romana, o que o levou, inclusive, a ser ordenado bispo fora dos procedimentos canônicos e a exigir a deposição de Cornélio –  não à toa, muitos historiadores consideram Novato o primeiro antipapa. Ao narrar este acontecimento, Eusébio de Cesareia não esconde sua indignação por Novato. Percebe-se, no entanto, que esta indignação decorria, em primeiro lugar, do fato que, para ele, era verdadeiramente inconcebível que um presbítero pensasse diferente de seu bispo e, pior ainda, que se insubordinasse a ele. Revoltar-se contra seu bispo foi o crime imperdoável de Novato, seu verdadeiro cisma, não sua posição doutrinária rigorista. Cornélio, por sua vez, ao defender uma visão mais inclusiva ou misericordiosa em relação aos lapsi, procurava assegurar a autoridade superlativa do bispo de Roma.

Os adeptos de Novato, conhecidos como novacianos, não foram reintegrados à igreja romana, após o conflito, mas formaram uma igreja autônoma, desvinculada de uma cidade precisa, e seus membros espalharam-se por diversas regiões do mundo romano; quando do Concílio de Niceia (325), os novacianos subscreveram o credo niceno e, por isso, passaram a ser vistos como ortodoxos, na fé, mas dissidentes quanto à disciplina. Em suma, a controvérsia em torno dos libellatici e o cisma de Novato não apontam imediatamente para um problema doutrinal, mas para uma disputa de poder entre grupos rivais, dentro de uma mesma comunidade, e para um confronto entre autoridades hierárquicas, como o bispo e seu presbítero, frente a uma derrota eleitoral não assimilada. A rixa de Novato contra Cornélio deu ensejo para que este último mostrasse qual o lugar de um presbítero e qual o tamanho da força do episcopado romano.

Eusébio de Cesareia, ardoroso defensor da autoridade episcopal frente a tendências, digamos, mais presbiterais ou colegiais, nos leva a detestar Novato e a considerá-lo um pérfido cismático. O expurgo da memória de Novato, após sua atitude de proclamar-se bispo sem eleição canônica, nos obriga a ficarmos sem resposta para muitas questões sobre a posição de Cornélio na defesa dos lapsi. Apesar do péssimo retrato traçado por Eusébio, Novato e seu movimento não podem, impunemente, ser vistos como vítimas minoritárias e indefesas de uma comunidade majoritária e mais forte, pois tanto uma quanto a outra manifestam comportamentos excludentes e procuram, com os recursos que possuem, elevar a sua teologia à categoria de Teologia, ameaçando e perseguindo os diferentes.

3.2. O cisma das igrejas norte-africanas no século IV

O norte da África experimentou todas as consequências da perseguição de Décio, incluindo o problema dos lapsi e as dificuldades para a sua reinserção eclesial. Apesar de sabermos que grande parte das igrejas africanas eram compostas por lapsi (FREND, 1982, p.100), difundiu-se, durante e após a repressão, uma arraigada devoção pelos mártires que haviam dado testemunho de constância e fortaleza. A imensa quantidade de relatos martiriais ligados a cristãos africanos nos dá uma boa proporção do quanto as igrejas daquela região eram apegadas a seus heróis e do quanto o martírio era importante na constituição de uma identidade cristã na África. Não é difícil imaginar que esta identidade martirial logo se voltaria contra a aceitação de leigos e clérigos que, por diversas razões, preferiram resistir à morte.

A situação se agravou quando, em 303, a autoridade imperial lançou uma nova ofensiva contra os cristãos. Desta vez, pretendia-se destruir todas as cópias das Sagradas Escrituras, os objetos litúrgicos e queimar todas as igrejas a fim de que os fiéis não tivessem onde celebrar seus mistérios (FREND, 1982, p. 116). Estas ondas persecutórias movidas pelo Estado romano podem ser explicadas como reação político-social frente à incapacidade do Império de contornar seus problemas fiscais e militares, o que ocasionava contínuas lutas entre o exército romano e os exércitos não-romanos, chamados de bárbaros, que se insurgiam contra a autoridade imperial. Para as elites romanas, esta crise decorria do abandono do culto ancestral aos deuses e da adesão popular ao cristianismo, donde se entende que as perseguições da época de Diocleciano (244-311) contaram com a participação das elites municipais e provinciais, desta vez, coniventes com a punição dos cristãos.

Esta nova repressão imperial, na África, maximizou a divisão entre os cristãos adeptos de uma identidade martirial e aqueles, mais moderados, que aceitavam negociar frente ao perigo. Estes últimos foram taxados de traditores (traidores), porque supostamente entregaram às autoridades os exemplares das escrituras e denunciaram seus irmãos de fé. Com a ascensão imperial de Constantino, em 311, as perseguições cessaram, mas, na área africana, o resultado continuou negativo, pois iniciou-se uma luta interna às igrejas com o fito de impedir que os traditores continuassem a participar da vida de fé, principalmente se fossem clérigos, já que, neste caso, considerava-se que os sacramentos celebrados por eles eram inválidos.

Na cidade de Cartago, este grupo, que podemos chamar de radical, foi capitaneado pelo presbítero, depois bispo, Donato de Casae Nigrae (†c.355). Sua postura de total exclusão dos traditores, considerados colaboradores do Estado romano, originou uma concepção que a verdadeira Igreja de Cristo, por ser santa e imaculada, devia ser formada tão-somente pelos que resistiram ao Império e não temeram a morte: uma Igreja de puros e de santos que não compactuaram com o inimigo. Por isso, as assembleias litúrgicas não podiam admitir a comunhão dos traidores de Cristo e nem o ministério de clérigos que apostataram. A todos estes, caso desejassem voltar à comunidade, cabia novo batismo e, para os clérigos, nova ordenação. É bom notar que, ao negar a validade das ordenações, os donatistas encontraram um modo de desmontar a organização hierárquica das igrejas norte-africanas, substituindo-a por sua própria hierarquia.

Do outro lado, estava o grupo mais moderado, dirigido pelo arcediago (o primeiro entre os diáconos), depois bispo, Ceciliano (†c.345), que negava o rebatismo e as reordenações e considerava que a Igreja, enquanto peregrina neste mundo, comportava tanto os santos quanto os pecadores e que seria impossível excluir os últimos para só restarem os primeiros. Esta ala da igreja cartaginesa defendia que a validade dos sacramentos não dependia da santidade pessoal do ministro, mas do ministério recebido da Igreja, ela sim, santa por causa de Cristo.

O caso do donatismo, no norte da África, nos coloca frente ao problema: qual era a comunidade cismática, a donatista, constituída pela maior parte do episcopado africano, ou a católica, representada pelos poucos bispos alinhados à proposta moderada de Ceciliano e, depois, de Agostinho de Hipona? Quem se separou de quem? Do ponto de vista donatista, a comunidade católica é que perdera a fidelidade à proposta de Cristo e, neste sentido, deixara de ser uma verdadeira igreja. O ato cismático, portanto, teria partido dos católicos. Para os donatistas, o clero católico, corrompido, não era capaz de ministrar sacramentos válidos, pois a ação do Espírito Santo não beneficiava o gesto dos pecadores, ainda que celebrado em nome de Cristo.

Com o fim das perseguições imperiais, em 311, resultado da chamada paz constantiniana, os ânimos dos bispos norte-africanos não abrandaram, pois Constantino, a fim de tentar pacificar a região, tomou o partido de Ceciliano e seus seguidores, dando a eles não só o apoio do Império, mas também incentivo econômico e destacado posto político. Os donatistas viram nisso a confirmação de que a comunidade católica, pró-romana, era mancomunada com o Império e não podia, de forma alguma, ser uma autêntica igreja. Convém observar que, na acusação donatista à comunidade católica, esconde-se um certo desprezo donatista pelas referências culturais romanas que marcavam uma parte dos norte-africanos residentes nas cidades altamente romanizadas do litoral.

A postura católica professada pelo grupo de Ceciliano alinhava-se, de fato, à abertura cultural do mundo romano mediterrânico que postulava o universalismo o que, neste caso, casava bem com a ideia de catolicidade da Igreja. É por isso que Constantino apoiou os católicos, pois seu projeto de governo pretendia, justamente, afirmar a universalidade do Império contra os regionalismos fragmentadores. Os donatistas, por outro lado, formados por indivíduos e comunidades que defendiam uma cultura norte-africana local, menos romanizada e mais exclusivista, não toleravam a ligação entre a Igreja e o Império, ainda que fosse apenas em termos culturais. O que se pode apreender deste cisma norte-africano é que os argumentos de cunho eclesiológico e sacramental escondiam, mais embaixo, um problema sociopolítico que afligia a sociedade como um todo e que, inclusive, incluía uma aguda discrepância e rivalidade entre comunidades campesinas, geralmente alinhadas aos donatistas, e comunidades urbanas, mais alinhadas aos católicos. Se não se leva em conta esta complicada teia de relações, não se consegue compreender a história do cisma africano e, por consequência, nem mesmo a História da Igreja (BROWN, 2005, p. 251; FIGUINHA, 2009, p. 16; FREND, 1982, p. 126).

4 Cisma, heresia e violência: os limites da ortodoxia

No que tange à relação entre as igrejas, o século V não foi menos turbulento; talvez tenha sido ainda pior, como se lê, por exemplo, na História Eclesiástica, de Sócrates de Constantinopla (380-440), principal testemunho do chamado cisma nestoriano de 431. Nestório (386-451) fora um monge antioqueno eleito bispo de Constantinopla em 428. Famoso por sua piedade e eloquência, Nestório iniciou seu mandato exortando o imperador Teodósio II (401-450) a que expurgasse a terra de todos os heréticos, caso quisesse que Deus lhe desse a vitória sobre o Império persa inimigo. O texto de Sócrates (7.29.5 ou 7.29.10) deixa ver como, já na geração de 430, havia na Igreja uma ala de clérigos convencidos que o Estado romano era um bom instrumento de Deus para arrancar, com a força das armas, a erva daninha da heresia e do cisma. Ao Estado cabe usar a força, na Igreja, para livrá-la do erro de alguns e, à Igreja, cabe ajudar o Estado em suas necessidades políticas.

Esta opinião, de resto, não era, em si, uma novidade, pois Eusébio de Cesareia (História Eclesiástica VII, 27.29) sustentava a mesma opinião, quando relatou o destino do bispo Paulo de Samósata (200-275), na Sé de Antioquia, que, por volta de 260, resolveu expressar-se, enquanto bispo, de um modo que incomodava os demais bispos da Síria. Estes, então, recorreram à autoridade imperial a fim de retirar Paulo à força do bispado – não nos esqueçamos de que, em 260, o Império ainda perseguia a Igreja; portanto, este recurso ao Império pagão demonstra que, quando se tratava de defender seus interesses, os bispos não viam nenhum problema em aproximar-se do perseguidor. Os antigos historiadores eclesiásticos, como Eusébio e Sócrates, mencionam atos de violência praticados tanto por bispos considerados maus e perdidos, como Nestório, quanto também por bispos venerados, hoje, como santos, como Cirilo de Alexandria. Na História Eclesiástica (7.13), Sócrates narra a violência com que o bispo São Cirilo extirpou todos os judeus da cidade e mandou incendiar suas sinagogas, bem como o episódio do assassinato da filósofa alexandrina Hipácia (7.15.7). Apesar de Sócrates não nutrir simpatias por Cirilo, seu relato não era fantasioso, pois tomou cuidado de não misturar a fúria do bispo e de seus correligionários com o zelo justo e admissível demonstrado por aqueles que o historiador chama de “homens santos” da Igreja (GADDIS, 2005, p. 222). A despeito disso, a destruição do templo de Serápis e a perseguição à Hipácia sustentam-se na legislação anti-pagã promulgada pelo imperador Teodósio I, entre 391-392 (CAMERON, 1998, p. 60).

Nestas narrativas antigas, é difícil separar o conceito de heresia daquele de cisma; ambos são comportamentos flagrantemente contrários à unidade da Igreja e à autoridade de seus pastores. Por isso, vemos que os bispos recorrem quase sempre à ação do Estado para que este erradique da Igreja toda forma de expressão eclesial diferente: de um ponto de vista estritamente histórico, a manutenção da unidade e a erradicação do erro decorrem do uso da violência, tanto a do Estado quanto a da própria Igreja. É importante levar em conta que a radicalização de certos setores clericais (que não eram poucos) aconteceu durante, mas, principalmente, após o fim das perseguições contra a fé: o que explicaria isso? As igrejas não haviam sofrido o suficiente ao longo de três séculos? Não pregavam elas a paz? Não eram elas esposas de Cristo, o príncipe da paz? É curioso observar que esta radicalização, a princípio referida a judeus, pagãos e hereges, direcionou-se também contra os próprios bispos e clérigos (a princípio, não heréticos) e, por meio de uma disputa duradoura pelo poder dentro da ecumene cristã, a violência contra judeus, pagãos e hereges diminuiu um pouco para concentrar forças contra os bispos entre si.

            Acreditava-se que uso da violência era justo porque muito pior era o efeito do erro presente nos cismas, heresias e idolatrias. O monge egípcio Shenoute (ou Shenouda) de Atripe (385-466), abade do Mosteiro Branco de Sohag, certa vez, invadiu a casa de um aristocrata não cristão e destruiu todos os ídolos que encontrou. Acusado de ter cometido violência e crime de invasão e banditismo, ele respondeu: “não existe crime para aqueles que possuem a Cristo” (GADDIS, 2007, p. 1). A solução de Shenoute, além de ilegal, revela que também os cristãos podiam forjar a sua própria compreensão do que era o crime, a violência, o erro, o cisma e a heresia. Estas últimas não eram coisas objetivas, mas o resultado de uma interpretação particular que podia variar ao ritmo das posições mais radicais ou mais moderadas. Assim, ao invés de nos espantarmos ao ver que as comunidades eclesiais antigas podiam ser extremamente violentas (GADDIS, 2007; JENKINS, 2013), precisamos repensar o significado sociológico do conflito e entendê-lo à luz do horizonte histórico dos personagens envolvidos.

O conflito ou a gestão do conflito, nos séculos IV-V, era um mecanismo importante na definição da autoridade episcopal (recordemos o caso da querela entre Novato e Cornélio em Roma, ou de Donato e Ciciliano em Cartago): lutar contra Novato, considerado pelos católicos um cismático e herético, fez de Cornélio um bispo ainda mais forte, porque defensor da fé, e ajudou-o a definir muito mais nitidamente o seu papel de chefe da igreja romana e, mais, colocou-o à frente das igrejas italianas, pois o episódio justificou a deposição dos bispos que ordenaram Novato ilicitamente. Em Cartago, a posição de Donato articulava-se com a opinião majoritária dos bispos da Numídia que, descontentes com a situação de seus colegas tidos por colaboracionistas, invalidavam a ordenação deles, o que mostra que combater os considerados traidores fazia parte do ofício de bispo da verdadeira Igreja, a dos puros e imaculados donatistas. Em outras palavras, os conflitos episcopais, quando eficazmente geridos, conferiam a seus gestores enorme consolidação de sua autoridade, de um lado, e de seu carisma pessoal, de outro. A declaração condenatória de heresia ou de cisma fazia parte do repertório retórico e político mobilizado pelos bispos no afã de sustentar o seu poder através da contestação do poder de seus concorrentes.

5 Conclusão

Diante do quadro exposto, conclui-se que, historicamente falando, o cisma até pode ser um ato sectário, mas é mais propriamente um modo de gerir as diferenças – sociais, culturais, doutrinais e litúrgicas – no interior de uma dada comunidade eclesial ou entre duas ou mais igrejas locais. Além disso, o cisma alude às múltiplas diferenças regionais, políticas e sociais que marcavam o Império romano e que, por extensão, marcaram também as comunidades cristãs que se desenvolveram em seu solo. É enganoso supor que as igrejas, de ontem e de hoje, respondem apenas às suas demandas próprias e que suas histórias correm paralelas à história social de seu meio. Neste caso, o cisma precisa ser reinterpretado numa chave que entende que a diversidade, não a uniformidade, é consubstancial à própria identidade do cristianismo.

Isso não significa, como dito anteriormente, que a experiência de ruptura no interior das igrejas não fosse vivida como algo doloroso e escandaloso, porém, não podemos nos esquecer que as próprias comunidades eclesiais, ao definirem e condenarem os cismas, procuravam afirmar suas idiossincrasias e, neste sentido, defendiam a sua perspectiva de vencedores, como encontramos, por exemplo, na História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia. Este bispo, quando escreveu sua obra, sabia que era membro de um império dirigido por um imperador cristão e que os bispos, sucessores dos apóstolos, eram também verdadeiros magistrados romanos que ocupavam as sedes das cidades de um império universal e, portanto, eram homens de poder. Sua História reflete esta situação altamente privilegiada do episcopado monárquico, um tipo de governo eclesial que lentamente se impôs sobre outros modos de governo mais colegiais. Ao escrever a História Eclesiástica, Eusébio tecia louvores à tradição episcopal e a elevava à condição de paradigma da própria apostolicidade da Igreja que ele enxergava como a verdadeira Igreja, o que restou de bom de todas as seitas e cismas do período anterior. Não que ele engenhosamente estivesse a manipular a história a favor do seu partido, mas não dá para não notar que, como bispo e aliado do Império, sua visão dos fatos condizia com a sua posição no mundo.

A partir da constatação que as fontes históricas de que dispomos são produtos de correntes cristãs que saíram vitoriosas de seus embates e, por isso, são discursos depreciativos das diferenças, é muito difícil compreender o real significado dos cismas, principalmente para os grupos que optaram por eles como condição de sobrevivência da própria fé. Assim, a historiografia e a teologia são convidadas a superarem a visão teleológica que marcou a História da Igreja, de ontem e de hoje, para encontrarem, por debaixo dos escombros da damnatio memoriae (a condenação de aspectos do passado) os elementos mais convenientes para elaborar a sua própria leitura da História da Igreja.

 André Miatello, UFMG/FAJE – Brasil, Original português

6 Referências bibliográficas

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Missal Romano

Sumário

1 A Constituição Apostólica Missale Romanum

2 Breve histórico e gênese do Missal Romano

3 Aspectos teológicos e pastorais valorizados pelo novo Missal

3.1 Presença de Cristo

3.2 Assembleia e participação

3.3 Sagrada Escritura

4 Conclusão

5 Referências bibliográficas

Por meio da Constituição Apostólica Missale Romanum, de 3 de abril de 1969, o papa Paulo VI aprovou o novo Missal Romano e a “Instrução Geral ao Missal Romano” (Institutio Generalis Missalis Romanum – IGMR), que acompanha e precede o formulário do Missal. O texto da edição oficial (editio typica) do Missal e da Instrução datam de 25 de março de 1970. Passados apenas cinco anos, foi publicada a segunda edição do Missal Romano. No ano 2000, trinta anos após a primeira edição do Missal, é lançada a sua terceira edição. Nessa ocasião surgiram algumas orientações que complementavam a edição anterior do Missal, as quais foram incorporadas na terceira edição da IGMR. Tomaremos como paradigma para as nossas referências esta última edição da IGMR. Ela apresenta nove capítulos e 399 números (a primeira edição tinha oito capítulos e 342 números).

Essa Instrução – da mesma forma como acontece com as introduções dos livros litúrgicos emanados da reforma litúrgica conciliar (praenotanda) – é um rico emaranhado de fios de caráter bíblico, teológico, doutrinal, catequético e pastoral; todos formando um único tecido multicolorido. Longe de ser um mero manual de rubricas, a IGMR é portadora de uma teologia fermentada pela renovação pré e pós-conciliar, mas, sobretudo, pelas riquíssimas propostas do Concílio Vaticano II. Ela marca “uma reviravolta em relação às precedentes Rubricae Generales e Ritus servandus do Missal de Pio V, já pelo próprio título: Institutio, um gênero literário novo, e ainda por seu conteúdo de amplo respiro” (FALSINI, 1996, p.7).

Ao lado da IGMR, outro tesouro da reforma litúrgica foi o Ordo Lectionum Missae (OLM) – o elenco oficial das leituras da Sagrada Escritura que são proclamadas na celebração da eucaristia. A primeira edição típica do OLM foi publicada em 1969, por mandato de Paulo VI. Em 1981 houve a sua segunda edição. Trata-se de um documento composto de seis capítulos, cujo escopo teológico, catequético e pastoral é realçar o valor de máxima importância da Sagrada Escritura na celebração da eucaristia (CNBB, 2008).

O objetivo da investigação ora proposta é explorar alguns aspectos relevantes do Missal Romano. Para tal, proporemos um trajeto a ser percorrido em três etapas: 1) Constituição Apostólica Missale Romanum; 2) Breve histórico e gênese do Missal de Paulo VI; 3) Aspectos teológicos e pastorais valorizados pelo novo Missal, onde especificaremos três aspectos: presença de Cristo, assembleia e participação e Sagrada Escritura.

1 A Constituição Apostólica Missale Romanum

A Constituição Apostólica Missale Romanum merece uma abordagem à parte, dado o seu peso e relevância. Ela não só se apresentou como um instrumento necessário para que fosse possível a promulgação do novo Missal, mas trouxe consigo uma densa e profunda síntese de potencialidades e propostas teológicas e pastorais.[1]

O Missal que vigorou até 1970 foi aquele promulgado pelo papa Pio V, em 1570, de acordo com o decreto do Concílio de Trento. Segundo a nossa Constituição, ele está “entre os muitos e admiráveis frutos que aquele Santo Sínodo difundiu por toda a Igreja de Cristo”. Durante quatro séculos, os sacerdotes do rito latino o tiveram como norma para a celebração da eucaristia.

Na primeira metade do século XX, de modo particular, começa a despontar e ganhar corpo entre os cristãos um forte desejo de uma renovação da liturgia, desejo este que, segundo as palavras do papa Pio XII, deve ser considerado “passagem do Espírito Santo pela sua Igreja” (JAVIER FLORES, 2006, p.285). Com isso, foi se tornando claro que o Missal de Pio V deveria ser urgentemente renovado e enriquecido em seus textos. O próprio Pio XII deu início a esta obra, restaurando a Vigília Pascal e o Ordinário da Semana Santa, autênticos e concretos passos para o início da reforma do Missal Romano e de sua adaptação às necessidades da Igreja de hoje.

Com a promulgação do primeiro documento do Concílio Vaticano II, a Constituição Litúrgica Sacrosanctum Concilium (SC), foi lançada a pedra fundamental da profunda reforma do Missal Romano. No que se refere ao mistério da eucaristia, a Sacrosanctum Concilium, no capítulo II (números 47-58), apresenta algumas diretrizes concretas para a revisão do Missal: buscar maior clareza nos texto e ritos; promover a participação dos fiéis; preparar “com maior abundância para os fiéis” a mesa da Palavra de Deus; centralizar a realidade do mistério pascal; resgatar alguns ritos que se perderam durante a história (oração universal, concelebração, leitura de textos do Antigo Testamento, comunhão sob as duas espécies etc.) e o uso da língua vernácula. A preocupação com uma autêntica renovação litúrgica, em particular naquilo que se refere à celebração da eucaristia, visa precisamente à participação dos batizados no mistério que se celebra: “O ritual da Missa deve ser revisto, de modo que apareça mais claramente a estrutura de cada uma das suas partes, bem como a sua mútua conexão, para facilitar uma participação piedosa e ativa dos fiéis” (SC n.50).[2]

Paulo VI, na Constituição Apostólica Missale Romanum, esclarece que a renovação do Missal não é fruto de um capricho da Igreja pós-conciliar e nada tem de improvisado. Diversamente, ela foi preparada carinhosa e progressivamente, de modo particular, com o auxílio dos avanços da teologia bíblica e litúrgica. Esses e outros fatores sinalizam a assistência permanente do Espírito Santo, que, em todas as fases da história, suscita na Igreja de Cristo os sopros de renovação. Paulo VI recorda que, após o Concílio de Trento, começou-se o estudo de antigos manuscritos da Biblioteca Vaticana e de outros materiais recolhidos de vários lugares. O papa Pio V dá testemunho que esse rico documentário muito contribuiu para a revisão e renovação do Missal promulgado em 1570. Da publicação desse Missal até o Concílio Vaticano II foi descoberto e publicado um rico material de antigas fontes litúrgicas, como também foram conhecidas e estudadas antigas fórmulas litúrgicas da Igreja Oriental. Diante disso, afirma Paulo VI: “Assim muitos insistiram para que tais riquezas doutrinais e espirituais não permanecessem na obscuridade das bibliotecas, mas, pelo contrário, fossem dadas à luz, para ilustrarem e nutrirem as mentes dos cristãos” (PAULO VI, 1992, p.18).

Uma das mais importantes novidades da reforma do novo Missal são os novos formulários de Orações Eucarísticas. A Oração Eucarística I, também chamada de Cânon Romano, foi fixada entre os séculos IV e V e permaneceu sendo o único formulário usado nas Missas até o novo Missal. Além das novas Orações Eucarísticas, este Missal foi também enriquecido com um grande número de novos Prefácios. O atual Missal conta com treze Orações Eucarísticas.[3] Trata-se, portanto, de um Missal com uma riqueza eucológica sem precedentes (BUGNINI, 2013, p.347).

Além disso, de acordo com as orientações do Concílio Vaticano II, houve o cuidado de se simplificar vários elementos secundários que, no decurso dos séculos, foram sendo acrescidos à celebração da Missa. Com frequência, esses elementos desviavam os fiéis daquilo que era essencial no mistério eucarístico, além de sobrecarregar demasiadamente a celebração. Tudo, porém, foi feito cuidadosamente a fim de que fosse conservada a substância dos ritos litúrgicos. Respeitou-se a estrutura essencial dos ritos e, ao mesmo tempo, optou-se por sua simplificação. Orienta o Concílio: “Sejam omitidos todos os elementos que, com o passar do tempo, se duplicaram ou, menos utilmente, se acrescentaram; restaurem-se, porém, se parecer oportuno ou necessário e segundo a antiga tradição dos Padres, alguns que injustamente se perderam” (SC n.50). (MARSILI, 2010, p. 329-37).

Foram restaurados, continua a nos lembrar Paulo VI na Constituição Apostólica, alguns ritos que tinham caído em desuso na celebração da Missa e que gozaram de importância no tempo dos Padres da Igreja. Dentre os ritos restaurados, o da proclamação da Bíblia na Liturgia da Palavra é indubitavelmente um dos mais significativos e decisivos (TRIACCA, 1992, p.135-51). Tratou-se de uma expressa orientação conciliar: “Para que a mesa da Palavra de Deus seja preparada com maior abundância para os fiéis, abram-se mais largamente os tesouros da Bíblia, de modo que, dentro de certo número de anos, sejam lidas ao povo as partes mais importantes da Sagrada Escritura” (SC n.51).[4] “Tudo isto foi assim ordenado para aumentar cada vez mais nos fiéis ‘a fome da Palavra de Deus’ (Am 8,11) que, sob a direção do Espírito Santo, deve levar o povo da nova Aliança à perfeita unidade da Igreja” – afirma Paulo VI.

Na conclusão da Constituição Apostólica Missale Romanum, o pontífice manifesta seu desejo de “dar força de lei” a tudo o que foi exposto nesse documento. Ele lembra que seu predecessor Pio V, na ocasião da promulgação do Missal Romano, declara ao povo cristão que aquele livro litúrgico era “como fator da unidade litúrgica e sinal da pureza do culto da Igreja”. “Da mesma forma”, continua Paulo VI, “nós, no novo Missal, embora deixando lugar para legítimas variações e adaptações, segundo as normas do Concílio Vaticano II, esperamos que seja recebido pelos fiéis como um meio de testemunhar e afirmar a unidade de todos, pois, entre tamanha diversidade de línguas, uma só e mesma oração, mais fragrante que o incenso, subirá ao Pai celeste por nosso Sumo Sacerdote Jesus Cristo, no Espírito Santo” (PAULO VI, 1992, p.21).

2 Breve histórico e gênese do Missal Romano

Ainda que o nosso intento seja focalizar a reforma do Missal Romano de Paulo VI, não se pode deixar de assinalar que o século XX foi marcado por um forte desejo de reforma no campo da liturgia. Já Pio X, na Bula Divino afflatu (1/11/1911), mostra a necessidade de se reformar algumas rubricas concernentes à Missa e ao Ofício divino. Em seu motu próprio Abhinc duos annos (23/10/1913), ele apresenta um esboço programático de uma futura reforma do Breviário. Os projetos de reforma dos dois principais livros litúrgicos da Igreja – o Breviário e o Missal – ficaram paralisados devido a várias circunstâncias imprevistas, de modo particular o estourar da primeira guerra mundial e a morte do pontífice.

Coube a Pio XII dar novo impulso aos trabalhos da reforma já em andamento. Em 1946, ele forma uma comissão com a finalidade de fazer um levantamento daquilo que até aquele momento havia sido realizado em prol de uma reforma litúrgica. Essa comissão ficou sob a coordenação do então prefeito da Congregação dos Ritos, o cardeal Salotti. No ano de 1948, essa comissão produziu um longo memorandum contendo as principais diretrizes de uma concreta obra de reforma. Fator decisivo dessa fase foi a publicação da encíclica Mediator Dei (20/11/1947). Com esta encíclica, Pio XII abre decisivamente a fase pré-conciliar da renovação litúrgica (JAVIER FLORES, 2006, p.271-87).

Nos anos imediatamente precedentes ao Concílio Vaticano II, havia, nos diversos setores da Igreja e entre os fiéis, um vivo desejo de uma reforma litúrgica, particularmente no que dizia respeito à Missa. Em 25 de janeiro de 1959, o papa João XXIII manifesta, pela primeira vez, sua intenção de convocar um Concílio. Em junho do mesmo ano, o secretário de Estado, cardeal Tardini, pediu a todos os bispos, aos superiores de ordens religiosas e às universidades católicas para enviar sugestões de temas a serem tratados no Concílio. Muitas dessas sugestões diziam respeito à reforma da Missa (LENGELING, 1971, p.501). Considerando esses e outros fatores, pode-se entender o motivo pelo qual o primeiro documento emanado do Vaticano II foi justamente a Constituição Litúrgica Sacrosanctum Concilium, promulgada em 4 de dezembro de 1963.  O segundo capítulo dessa Constituição (n.47-58) foi inteiramente dedicado ao sacramento da eucaristia.

Em 25 de janeiro de 1964, Paulo VI formou o Consilium ad exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia, uma comissão que deveria levar avante o projeto da reforma litúrgica. Ao formar esse conselho, o pontífice tinha o ardente desejo de colocar em prática aquilo que fora pedido pelo Concílio Vaticano II: “Os livros litúrgicos sejam quanto antes revistos por pessoas competentes e consultando bispos de diversos países do mundo” (SC n.25). Motivado por essa exortação, o Consilium, de imediato, lançou mãos à obra. Em pouco tempo, os trabalhos da comissão já apresentavam os primeiros sinais da reforma do Missal (BASURKO & GOENAGA, 1990, p.149). A empreitada, no entanto, precisou ser enfrentada de forma paciente e gradativa. O motivo desse procedimento se deu por duas razões: a) de acordo com o Concílio Vaticano II, o trabalho de reforma deveria transcorrer com prudência, pois o que estava em jogo era algo delicado e desafiante. Segundo a SC n.23, era tarefa da Igreja conservar a “sã tradição” e, ao mesmo tempo, lançar-se num “progresso legítimo”, conforme os novos tempos exigiam. E isso deveria ser feito “com acurada investigação teológica, histórica e pastoral acerca de cada uma das partes da liturgia eucarística que devem ser revistas”. E mais, a Igreja deveria levar em consideração “as leis gerais da estrutura e do espírito da liturgia, a experiência adquirida nas recentes reformas litúrgicas”. Além disso, que se tomasse o cuidado de não se introduzir inovações indevidas no processo da reforma e que as novas formas surgissem daquelas já existentes. Obviamente, uma obra de tal porte exigia tempo, discernimento e cautela; b) do ponto de vista didático e psicológico, seria prejudicial exigir uma mudança imediata e radical. O clero e o povo de Deus não teriam condições de compreender corretamente e assimilar de forma profunda e proveitosa as mudanças propostas pela Igreja. Para comprovar a paciência e o cuidado maternal da Igreja em relação a seus filhos, basta conferir a lista dos documentos romanos publicados entre os anos de 1964 e 1971, todos eles relacionados à reforma do novo Missal. E isso com o desejo que o povo de Deus acolhesse com consciência e proveito as propostas da reforma litúrgica (LENGELING, 1971, p.506-9).

No âmbito do Consilium, doze grupos de trabalho contribuíram para realizar o novo Missal. Três outros grupos se ocuparam de problemas comuns à reforma do Breviário e do Missal, tais como o calendário, as rubricas e a festas particulares. Dos grupos que se encarregaram da reforma do Missal – leituras bíblicas, orações, prefácios, participação dos fiéis, comunhão sob duas espécies, concelebração, Missas votivas, cantos da Missa – não se pode deixar de fazer memória de nomes como A. Franquesa, M. Righetti, T. Schnitzler, P. Jounel, C. Vagaggini, P. M. Gy, J. A. Jungmann, J. Gelineau, L. Bouyer e tantos outros. Graças a eles e à supervisão contínua de Paulo VI, tornou-se possível a obra da reforma litúrgica com um de seus frutos mais fecundos e promissores: o Missal Romano.

Sendo a reforma do Missal uma obra autenticamente eclesial e colegial, Paulo VI fez questão de que dela participassem todos os bispos. Sobre isso, recordamos aqui as palavras pronunciadas pelo pontífice na audiência concedida aos participantes da VII sessão plenária do Consilium, em dezembro de 1966. Após ter falado da importância da música sacra, ele declara:

Há outra questão, dentre todas, a de máximo interesse: aquela que diz respeito ao Ordo Missae. Tomamos já ciência do estudo realizado e sabemos quantas eruditas e religiosas discussões estão relacionadas seja ao texto do assim chamado Ordo Missae, seja à composição do novo Missal e do calendário das celebrações. A coisa é de tanto peso e de tamanha importância universal que não podemos deixar de consultar o episcopado antes de convalidar com a nossa aprovação as medidas propostas por este Consilium. (LENGELING, 1971, p.506-9)

De fato, a proposta de reforma da Missa foi submetida ao exame dos bispos, que foram convocados para um Sínodo em Roma, no ano de 1967. Várias indagações foram feitas e ricas sugestões foram dadas para que, sem demora, se efetivasse a reforma do Missal. Entretanto, seja durante o Sínodo, seja em momentos sucessivos, “não faltaram tentativas com o intuito de denegrir o novo Ordo Missae” (LENGELING, 1971, p.512). Dele foi dito que continha “erros de uma nova teologia”, transferidos para o campo litúrgico, e que a proposta do novo Ordo, de que também o povo de Deus possa oferecer o sacrifício, obscurece nos fiéis a realidade da “plenitude dos poderes sacerdotais” (LENGELING, 1971, p.512). As vozes contra o novo Missal propalavam que a reforma havia desrespeitado três importantes pontos sustentados pela doutrina católica: a natureza sacrifical da missa, a questão da presença real do Senhor nas espécies eucarísticas e o tema da natureza do sacerdócio ministerial. Em três números seguidos do proêmio da IGMR, esses argumentos são enfrentados e esclarecidos do seguinte modo: “A natureza sacrifical da Missa, que o Concílio de Trento solenemente afirmou, em concordância com a universal tradição da Igreja, foi de novo proclamada pelo Concílio Vaticano II” (n.2). “O admirável mistério da presença real do Senhor sob as espécies eucarísticas foi confirmado pelo Concílio Vaticano II e por outros documentos do Magistério Eclesiástico, no mesmo sentido e na mesma forma com que fora à nossa fé pelo Concílio de Trento” (n.4). “A natureza do sacerdócio ministerial, próprio do bispo e do presbítero que oferecem o sacrifício na pessoa de Cristo e presidem a assembleia do povo santo, evidencia-se no próprio rito, pela eminência do lugar de função do sacerdote” (n.4).

Após um doloroso parto, nasce, enfim, o Missale Romanum. Um momento novo e promissor na vida da Igreja, de sua identidade e missão, uma vez que o que está em jogo é a celebração do mistério da eucaristia. Ela “contém todo o bem espiritual da Igreja, a saber, o próprio Cristo, nossa páscoa e pão vivo, dando vida aos homens através de sua carne vivificada e vivificante pelo Espírito Santo (…). A Eucaristia aparece como fonte e ápice de toda a evangelização” (CONCÍLIO VATICANO II, 1982, n.5).

3 Aspectos teológicos e pastorais valorizados pelo novo Missal

Para que se tenha acesso ao manancial oferecido pelo novo Missal e dele se tire um fecundo proveito, torna-se necessário conhecê-lo em sua teologia e perspectivas pastorais. Sem dúvida, um dos melhores meios para isso é um bom conhecimento dos princípios e normas propostos pela IGMR. Essa Instrução quer franquear o contato com o rico material eucológico presente no atual Missal – trata-se de peças ricas em suas dimensões bíblica, teológica, litúrgica, espiritual, catequética e pastoral. Nesse sentido, a IGMR está longe de ser um simples aggiornamento de rubricas e de orientações pragmáticas; ao contrário, quer ser um rico e permanente manual de formação litúrgica para o clero e o povo de Deus. Aqui convém lembrar a admoestação que nos vem do Concílio Vaticano II: “Com empenho e paciência procurem os pastores de almas dar a formação litúrgica e promovam também a participação ativa dos fiéis (…)” (SC n.19) (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO2, 2003, n.11). Com esse escopo, selecionamos nesta seção três temas de particular relevância no Missal Romano e, por conseguinte, enfatizados na IGMR.

3.1 Presença de Cristo

O tema da presença de Cristo na celebração eucarística é enfaticamente abordado no número 27 da IGMR:

Na missa ou ceia do Senhor, o povo de Deus é convocado e reunido, sob a presidência do sacerdote como representante de Cristo, para celebrar o memorial do Senhor ou sacrifício eucarístico. A esta assembleia local da santa Igreja se aplica eminentemente a promessa de Cristo: “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, eu estou no meio deles” (Mt 18,20). Pois na celebração da missa, em que se perpetua o sacrifício da cruz, Cristo está realmente presente tanto na assembleia reunida em seu nome, como na pessoa do ministro, na sua palavra e, ainda de uma forma substancial e permanente, sob as espécies eucarísticas.

A doutrina contida nesse número encontra-se eivada de teologia bíblica. Em passagens como Mt  28,19-20 e Jo 15,4-7, vemos o desejo de Jesus em estar presente, de permanecer junto aos seus. Certamente a experiência dessa presença era o coração do culto e da experiência de fé da comunidade primitiva. Na época apostólica e patrística “a presença do Senhor era uma verdade profundamente vivida em todas as suas dimensões” (LÓPEZ MARTÍN, 1996, p.112).  Na celebração litúrgica, de modo privilegiado, essa verdade se experimentava em profundidade.

O tema da presença de Cristo na liturgia tem sido objeto de constante interesse do Magistério da Igreja, sobretudo a partir de Pio XII[5]. É, no entanto, na Sacrosanctum Concilium, que ele é abordado de forma incisiva: Cristo está sempre presente em sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas: no sacrifício da missa, na pessoa daquele que preside o culto, nas espécies eucarísticas (cf. SC n.7). É no fôlego do Concílio que a IGMR enfrenta a questão da presença de Cristo na celebração da ceia do Senhor – presença variada e multíplice, devido à diversidade dos sinais com que se que realiza a ação litúrgica: assembleia, ministro, Palavra, espécies eucarísticas. Certamente essa panorâmica se deve, em grande parte, à teologia conciliar.  A Sacrosanctum Concilium afirma que, por meio da liturgia, especialmente pelo sacrifício eucarístico, “se atua a obra da nossa redenção” (SC n.2). A realização de uma obra de tal porte exige a “presença” de Cristo atuando através dos sinais litúrgicos. Com efeito, aquilo que foi realizado “uma vez por todas” (Hb 7,27), no evento histórico, se atualiza “todas as vezes” (1Cor,11,26), na celebração da eucaristia. É a grandeza dessa presença em mystérion, isto é, operada pelo Espírito Santo no corpo de Cristo, através dos sinais sacramentais, que provocou a genial formulação da IGMR 27 (CORBON, 2004, p. 111-9).

“Cristo está realmente presente” (“Christus realiter praesens adest”) sempre que a Igreja celebra o mistério da eucaristia. Notemos bem o tom dessa formulação da Instrução. A presença de Cristo é descrita marcadamente em quatro formas distintas e integradas; e, para cada uma delas, se aplica a força do advérbio “realmente”, presença “real”. Isso não só está em perfeita consonância com a revelação bíblica e a tradição da Igreja, como também é um estupendo resgate de uma realidade que jazia sob os escombros por muitos séculos. Sabemos que, na Idade Média, em virtude das controvérsias eucarísticas surgidas a partir dos séculos VIII e IX, a atenção da teologia católica passou a se concentrar única e exclusivamente na forma da presença de Cristo nas espécies eucarísticas, ficando na penumbra as demais formas elencadas pela nossa Instrução. Essa polarização absolutizante nos fez perder, de certa forma, a visão de conjunto do mistério eucarístico. “O Concílio de Trento e a teologia pós-tridentina reafirmaram a fé da Igreja na presença real de Cristo na eucaristia. A ênfase com a qual essa verdade de fé foi afirma­da fez pensar só nela como verdadeiramente real, como se os outros modos de presença também não fossem reais” (SPERA & RUSSO, 2004, p.123). As conseqüências disso são sentidas frequentemente nos âmbitos da catequese, da pastoral e da vivência eucarísticas, onde, aqui e ali, prevalece um devocionismo eucarístico concentrado de forma exclusiva na adoração a Cristo presente na “hóstia consagrada”, desconsiderando-se a riqueza e amplitude das formas da presença de Cristo – todas elas reais  – no mistério da celebração da Ceia do Senhor.

3.2 Assembleia e participação

Conforme anteriormente verificado, uma das formas da presença de Cristo na celebração da ceia dá-se precisamente na assembleia litúrgica; nela Cristo está realmente presente (cf. IGMR n.27).  O próprio Deus toma a iniciativa de convocar e reunir o seu povo para dele fazer o sacramento da sua presença e da permanente ação de Cristo em sua Igreja. A cada assembleia eucarística se aplica com toda a propriedade a promessa de Cristo aos seus discípulos: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20). Dessa forma, podemos dizer que a IGMR considera a assembleia cultual a partir de sua sacramentalidade, isto é, daquilo que ela sinaliza e realiza no âmbito do projeto salvífico de Deus em relação a todos os homens (BOSELLI, 2014, p.98-116).

Essa assembleia é o autêntico sujeito da ação litúrgica (PALUDO, 2003, p.67-75; AUGÉ, 1998, p.73-4), uma realidade diferenciada e enriquecida por múltiplos dons e carismas que o Espírito Santo lhe confere. Nela, cada batizado, membro do corpo de Cristo, é chamado a vivenciar o tríplice múnus que o sacramento do batismo lhe confiou: profético, sacerdotal e régio. Na mesma dinâmica de um organismo estruturado e sob o prisma de um povo hierarquicamente ordenado, a celebração eucarística conta necessariamente com o exercício do sacerdócio ministerial e do sacerdócio comum dos fiéis. Dessa forma, o culto eucarístico é uma ação de toda a Igreja, onde cada um deve fazer somente aquilo que lhe compete, de acordo com o dom que recebeu de Deus, colocado a serviço da edificação da assembleia. “Este é o povo adquirido pelo sangue de Cristo, reunido pelo Senhor, alimentado por sua Palavra; povo chamado para elevar a Deus as preces de toda a família humana, e dar graças em Cristo pelo mistério da salvação, oferecendo o seu sacrifício; povo, enfim, que cresce na unidade pela comunhão do Corpo e Sangue de Cristo” (IGMR 5).

Como sujeito da ação celebrativa, toda assembleia é insistentemente chamada a tomar parte no mistério celebrado, a dele participar. Nesse ponto, a IGMR ecoa perfeitamente o apelo lançado pela Constituição Sacrosanctum Concilium, a qual, por sua vez, outra coisa não faz senão levar a termo o grito levantado pelo Movimento Litúrgico dos inícios do século passado. De lá até hoje, não se pode mais pensar em celebração litúrgica senão a partir de categorias mais participativas, que se alinham perfeitamente às fontes do culto cristão e ao pensamento da tradição dos Padres da Igreja (SANTO DOMINGO, 1993, n.9; BOTTE, 1978).

Convém ressaltar que a profunda e ampla reforma dos ritos e textos litúrgicos, proposta pelo Concílio Vaticano II e pela reforma pós-conciliar, sempre teve em mira melhorar a qualidade da participação dos fiéis. Já não faz parte do pensamento litúrgico contemporâneo uma mera reforma rubrical ou casuística. Compete aos bispos, de forma particular, orientar os fiéis nessa perspectiva. Eles devem cuidar para que, “na ação litúrgica, não só se observem as leis para a válida e lícita celebração, mas que os fiéis participem dela consciente, ativa e frutuosamente” (SC n.11). E matizando ainda a realidade da participação como algo que brota do nosso chamado batismal, vale a pena ainda ouvir o Concílio: “É desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e ativa participação na celebração litúrgica que a própria natureza da liturgia exige e à qual o povo cristão, ‘raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido’ (1Pd 2,9; cfr. 2,4-5), tem direito por força do batismo” (SC n.14).

Os nove capítulos que tecem a IGMR, direta ou indiretamente, se polarizam em torno da assembleia reunida para a celebração eucarística e da participação exigida por esse culto. Os vários elementos da Instrução procuram estar a serviço dessas realidades a fim de que delas venha à tona o manancial que carregam em potência. O nosso documento tem uma grande preocupação em estabelecer um relacionamento “rito-assembleia” e “rito-participação”. Por essa razão, ele procura esclarecer e precisar as funções que cada ministro, cada membro da assembleia, é chamado a desempenhar durante a celebração – uma verdadeira orquestra que conta com a dedicação e participação de cada músico, cuja meta é a experiência da beleza e da harmonia, uma unidade gerada a partir de uma fecunda diversidade. À luz da IGMR, a própria disposição do espaço e suas condições da celebração – dignidade do local, arte litúrgica, altar, cátedra, ambão, som, luz etc.) devem ser finalizadas à plena e ativa participação dos fiéis. “Aquilo que aqui se ressalta – uma clara sensação de harmonia do conjunto – não é a correta funcionalidade do rito, mas a sua finalização à assembleia, à Igreja reunida, que ali realiza o seu mistério, chamada a entrar no dinamismo da páscoa de seu Senhor” (FALSINI, 1996, p.9).

3.3 Sagrada Escritura

A IGMR dá absoluta primazia à proclamação das leituras bíblicas na celebração da eucaristia: “A parte principal da liturgia da palavra é constituída pelas leituras da Sagrada Escritura” (n.55). Proclamar os textos da Bíblia na assembleia dos fiéis – o que se costuma chamar de “Liturgia da Palavra” – é uma das principais missões da Igreja (ekklesía, isto é, convocação do povo da Aliança para acolher e responder a Palavra do Senhor), conforme tão bem nos fala o Concílio Vaticano II: “Efetivamente, na liturgia Deus fala ao seu povo, e Cristo continua a anunciar o Evangelho. Por seu lado, o povo responde a Deus com o canto e a oração” (SC n.33). Continua a Instrução lembrando que, durante a proclamação da santa Escritura, “Deus fala ao seu povo, revela o mistério da redenção e salvação, e oferece alimento espiritual; e o próprio Cristo, por sua Palavra, se acha presente no meio dos fiéis”.

Resgatar a importância da Palavra de Deus no âmbito da assembleia e a sua índole proclamativa foi uma das principais intenções do Concílio Vaticano II e da reforma li­túrgica encabeçada pelo papa Paulo VI, levada adiante graças à empenhada atividade de seus colaboradores. Certamente, essa reforma outra coisa não pretendeu senão voltar às origens mais genuínas da celebração cristã no que diz respeito à primazia que tinham os textos sagrados nas assembleias primitivas e nas comunidades que floresceram a partir das instruções dos Padres da Igreja; deles, a esse respeito, poderíamos citar vários testemunhos.

A IGMR declara que é “melhor conservar a disposição das leituras bíblicas pela qual se manifesta a unidade dos dois testamentos e da história da salvação” (n.57). Que precioso resgate este realizado pela reforma litúrgica, sobretudo quando se conhece a práxis que vigorava na celebração da Missa até o Concilio Vaticano: a ausência da proclamação dos textos veterotestamentários. Toma-se agora uma clara consciência da “unidade dos dois testamentos”, que formam uma única economia da salvação. Segundo a dinâmica do projeto de Deus, não se pode conceber a plenitude da revelação ocorrida em Cristo sem a comunicação que Deus faz de si mesmo, de diversos modos, na primeira aliança (cf. Hb 1,1).

A Sagrada Escritura, proclamada na Liturgia da Palavra, evoca e torna atual toda a economia da salvação que, em Cristo, teve o seu pleno cumprimento. Sugestivo a esse respeito é o episódio dos discípulos de Emaús. Na tarde da Páscoa, o ressuscitado se coloca entre dois de seus discípulos que se encontravam desolados e incapazes de reconhecer o Senhor. Em determinada altura do percurso, Lucas diz que Jesus retoma a revelação veterotestamentária e dela se faz um hermeneuta qualificado: “E, começando por Moisés e por todos os profetas, interpretou-lhes em todas as Escrituras o que a ele dizia respeito” (Lc 24,27). Dado importante a se notar é o fato de a economia da primeira aliança, toda ela, encontrar no Cristo pascal o seu cumprimento, o que fica também bastante marcado no seguimento da perícope: “Era preciso que se cumprisse tudo o está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (v.44).

A proclamação da Palavra na liturgia nos torna “contemporâneos” do mistério de Cristo e nos coloca em comunhão com a sua presença. Celebrando o memorial da promessa feita a Abraão e levada a cabo na “plenitude dos tempos” (Gl 4,4), a Palavra anunciada na liturgia torna-se epifania da presença definitiva do Emanuel, o “Deus conosco” (cf. Mt 1,23; Is 7,14). Ele mesmo é o euangélion perenemente proclamado e tornado atual, evento de salvação para todos os que o acolhem na fé.

A IGMR ressalta, com toda a propriedade, que a proclamação da Palavra na celebração eucarística se prolonga na homilia, parte integrante da Liturgia da Palavra: “A homilia é uma parte da liturgia e vivamente recomendada, sendo indispensável para nutrir a vida cristã” (n.65). Via de regra, essa função compete àquele que preside a assembleia, podendo também ser delegada a outro concelebrante ou a um diácono (cf. n.66). Aquilo que a Instrução propõe acerca da homilia é uma concreta aplicação pastoral do que fora preconizado pelo Concílio Vaticano II: “Recomenda-se vivamente a homilia, como parte própria da liturgia; nela, no decurso do ano litúrgico, são apresentados, a partir do texto sagrado, os mistérios da fé e as normas da vida cristã. Nas missas dominicais, porém, e nas festas de preceito, concorridas pelo povo, não se omita a homilia, a não ser por grave motivo” (SC n.52).

“Na celebração litúrgica é máxima a importância da Palavra de Deus”, recorda-nos veementemente o Vaticano II (SC n.24). Resgatar a importância da Palavra de Deus no âmbito da assembleia reunida e a sua índole proclamativa foi uma das principais intenções do Concílio e da reforma li­túrgica pós-conciliar. De modo que isso se verifica na proposta que chega do Ordo Lectionum Missae, que afirma que “a Palavra de Deus e o mistério eucarístico foram honrados pela Igreja com a mesma veneração, embora com diferente culto” (OLM n.10). E ainda: “A Palavra de Deus, proposta continuamente na liturgia, é sempre viva e eficaz pelo poder do Espírito Santo, e manifesta o amor ativo do Pai, que nunca deixa de ser eficaz entre os homens” (OLM n.4).

[A liturgia] constitui, efetivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento presente da nossa vida; fala hoje ao seu povo, que escuta e responde. Cada ação litúrgica está, por natureza, impregnada da Sagrada Escritura. (BENTO XVI, 2010, n.52)

 O desejo de escutar e responder a Deus, por meio de sua Palavra, sem dúvida alguma, tem sido uma gratificante experiência eclesial na vida de nossas comunidades, no Brasil e na América Latina em geral (PALUDO & D’ANNIBALE, 2005, p.143-91). São inúmeros os testemunhos dessa realidade. Podemos afirmar que a forte aspiração do Concílio Vaticano II – que, com largueza, os “tesouros da Bíblia” sejam abertos a todo o Povo de Deus”[6] – tem se realizado entre nós, ainda que, certamente, tenhamos um caminho a percorrer nessa direção.

Concluamos este item com uma exortação conciliar, endereçada aos sacerdotes, catequistas, enfim, a todos batizados. Ela se encontra na Dei Verbum, já denominada como “um dos mais preciosos documentos do Concílio Vaticano II” e ainda a “pérola”, a “obra-prima” do Concílio:

Mantenham contato íntimo com as Escrituras (…) Lembrem-se, porém, de que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada da oração, para que seja possível o colóquio entre Deus e o homem, pois com ele falamos quando rezamos, e a ele ouvimos, quando lemos os divinos oráculos (S. Ambrósio). (CONCÍLIO VATICANO II, 2010, n.25).

4 Conclusão

O livro princeps da reforma do Concílio Vaticano II é, indubitavelmente, o novo Missal Romano. Em total respeito à tradição, ele se apresenta também, sob muitos aspectos, como algo verdadeiramente novo, que somente pode ser avaliado através de um profundo conhecimento (MARSILI, 1971, p.443). Por essa razão a Igreja é convidada a debruçar-se sobre ele e a investigar, sem trégua e com afetuoso carinho, sua estrutura, composição, riqueza e potencialidade. Ele reclama por ser conhecido na variedade de seus formulários e na ampla margem de possibilidades catequéticas e pastorais. Valorizá-lo e aproximar-se dele com esse espírito de investigação, certo, não é uma obra fácil; mas é necessário que assim o seja para que dele se possa fazer um uso profícuo e surpreendente em descobertas. “A multiplicidade dos textos e a flexibilidade das rubricas, com efeito, permitem uma celebração viva, sugestiva, espiritualmente eficaz, uma vez que podem ser adaptadas às várias situações e diversos contextos das assembleias, sem que haja necessidade de se recorrer a artifícios e escolhas pessoais, muitas vezes arbitrárias, que certamente abaixariam o tom da celebração” (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, 1971, p.541).

A IGMR coloca-se exatamente a serviço dessa investigação. “Considerada em seu conjunto, a ela pode ser considerada como um dos melhores documentos da reforma litúrgica. De seu conhecimento depende tanto uma correta e eficaz pastoral da celebração, quanto um renovado estilo de celebração do máximo mistério da nossa fé” (FALSINI, 1996, p.10). Como uma espécie de vademecum, com o qual podemos cultivar familiaridade, a IGMR se presta não só a consultas esporádicas para sanar eventuais dúvidas de rubricas, mas também se coloca diante de seu leitor como um veículo que poderá conduzi-lo a profundas reflexões de eclesiologia, cristologia e teologia eucarística; isso sem mencionar, naturalmente, seu escopo catequético e pastoral.

Tentar pincelar alguns aspectos mais relevantes do Missal Romano foi a proposta de nosso contributo. Optamos por fazer um recorte metodológico em nossa abordagem, cientes de que o tema pode ser apresentado sob diversos ângulos. Privilegiamos alguns aspectos teológicos e pastorais. A Institutio Generalis Missalis Romanum foi o instrumental que nos possibilitou o vislumbre das potencialidades do Missal Romano. A abordagem da Constituição Apostólica Missale Romanum e de um breve histórico e gênese do Missal se alinharam à IGMR para o fim a que nos propusemos.

Luis Fernando Ribeiro Santana, PUC Rio, Original português.

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[1] Isso pode ser verificado na proposta do próprio conteúdo da Constituição do papa Paulo VI: PAULO VI, Constituição Apostólica “Missale Romanum”. Missal Romano. São Paulo: Paulus, 1992.

[2] A esse respeito, conferir: CNBB. Animação da vida litúrgica no Brasil. Documento 43. São Paulo: Paulinas, 1989, n.184-195 e GRILLO, A. Introduzione alla teologia liturgica. Approcio teorico alla liturgia e ai sacramenti cristiani. Padova: Messaggero si Sant’Antonio, 2011, p. 407-8.

[3] No caso do Brasil temos uma a mais: a Oração Eucarística V, do Congresso Eucarístico de Manaus.

[4] Sobre o tema da mesa da Palavra e da mesa da eucaristia na celebração eucarística do Dia do Senhor, conferir: ALDAZÁBAL, J. (org.). A mesa da Palavra. Elenco das leituras da Missa. v. I. São Paulo: Paulinas, 2007, p.74-8; BIANCHI, E. Giorno del Signore. Giorno dell’uomo. Per um rinnovamento della domenica. Casale Monferrato: Piemme, 1999, p.167-71.

[5] Por essa razão achamos por bem elencar alguns documentos magisteriais que tratam dessa questão: Encíclica Mediator Dei (1947), Constituição Sacrosanctum Concilium (1963), Encíclica Mysterium Fidei (1965), Instrução Eucharisticum Mysterium (1967), Carta Apostólica Mysterii Paschalis celebrationem (1969).

[6] SC n.51: “Prepare-se para os fiéis, com maior abundância, a mesa da Palavra de Deus: abram-se mais largamente os tesouros da Bíblia, de modo que, dentro de um período de tempo estabelecido, sejam lidas ao povo as partes mais importantes da Sagrada Escritura.”

Espiritualidade ecumênica

Sumário

1 Introdução

2 A espiritualidade humana é dom de Deus

3 Viver é interpretar

4 A difícil relação entre espiritualidade e teologia

5 Gratuidade e compromisso

6 Espiritualidade inter-religiosa e Direitos Humanos

7 O diálogo ecumênico como afirmação da vida

8 Considerações finais

9 Referências bibliográficas

1 Introdução

Dentro da tradição teológica protestante – sobretudo a que se consolidou com os movimentos ecumênicos do século XX, como as experiências em torno do Conselho Mundial de Igrejas, por exemplo – se compreende a perspectiva ecumênica em sua tríplice dimensão: a unidade cristã, a partir do reconhecimento do escândalo histórico das divisões e de uma preocupação em construir perspectivas missionárias ecumênicas; a promoção da vida, firmada nos ideais utópicos de uma sociedade justa e solidária e na compreensão que eles podem reger a organização da sociedade integrando todos os de “boa vontade”; e o diálogo inter-religioso, na busca incessante da superação dos conflitos entre as religiões, visando a paz e a comunhão justa dos povos. Portanto, o diálogo inter-religioso não é uma expressão ao lado do ecumenismo, mas o constitui em essência e proposta (SANTA ANA, 1987). As experiências ecumênicas em geral são marcadas por compreensões de fé que sejam ativas no mundo, engendradas especialmente por iniciativas de busca pela paz com justiça, pela defesa dos direitos humanos e da terra e pelo apoio às mais diversas ações de solidariedade, afirmação da dignidade humana e da cidadania. Nesse conjunto de experiências, estão presentes formas de espiritualidade singulares que possuem densidade e significados especiais e que desafiam a realidade nos dias de hoje.

1 A espiritualidade humana é dom de Deus

Dentro de uma série de aspectos que marcam a vivência humana, está a incessante busca de superação de limites, do ir além das contingências e das ambiguidades históricas, da procura por absolutos que possam redimensionar a relatividade e a precariedade da vida. As experiências religiosas, historicamente, pretenderam e pretendem possibilitar respostas para essa busca. Na diversidade de tais experiências, confluem elementos os mais diversos, desde os preponderantemente numinosos, “santos”, espontâneos e indicadores de uma transcendência, até aqueles marcadamente ideológicos, facilmente identificados como reprodução de filosofias ou culturas e artificialmente criados.

O olhar crítico das teologias modernas e contemporâneas produziu uma saudável distinção entre fé e religião. É fato que tal relação é complexa e possui numerosas implicações, mas, no que diz respeito à reflexão proposta, é preciso afirmar que a primeira, a fé, requer uma espiritualidade que, embora seja autenticamente humana, vem de uma realidade que transcende as engrenagens históricas. Ela é recebida, acolhida. A espiritualidade humana, irmanada com a fé, é dom de Deus.

Nas reflexões teológicas mais recentes, tem sido cada vez mais comum a indicação de que a fé é antropológica, e que pode tornar-se religião. A experiência religiosa não é desvalorizada com a referida distinção da fé; ao contrário, a religião é um meio pelo qual a fé antropológica se efetua. Ela está ao lado de outras expressões humanas, todas ideológicas – no sentido positivo da palavra –, que podem contribuir muitíssimo no cumprimento da vontade de Deus para a vida humana e para toda a criação, assim como podem, em certos casos, inibir a realização do amor de Deus na vida humana e no mundo.

Nesse sentido, o olhar teológico se detém nas realidades humanas e históricas para discernir as formas religiosas e culturais e compreender o que elas mostram ou o que ocultam. Ao mesmo tempo, a teologia movimenta-se para o “alto” e para o “profundo” da vida para perceber o dom gratuito de Deus doador de sentido e de significado último para a humanidade e para o cosmo (BOFF & KEMPIS, 2016). A teologia, devido ao seu estatuto epistemológico, não pode perder o seu caráter espiritual, mesmo que ande pelas mais áridas veredas da racionalidade científica, e com isso poder refletir uma espiritualidade ecumênica .

2 Viver é interpretar

Como não podemos nos abstrair da vida para fazer o julgamento que em geral desejamos fazer sobre ela – preciso, verdadeiro, calculado, irrefutável –, a espiritualidade, como clima da fé, ganha contornos que, se estivermos atentos para perceber, constituem a própria natureza: o de aventura (ad ventura). A espiritualidade é uma forma de viver. É fato que ela possui fontes bem delimitadas de cada tradição religiosa. No entanto, os relatos, os escritos, os dogmas, os testemunhos religiosos foram ou são interpretados diversamente, por vezes até mesmo antagonicamente. Portanto, não basta dizer que a Bíblia, no caso cristão, ou outra determinada tradição é a fonte da espiritualidade. Deus fala ao ser humano em formas diversas e complexas, muito além das possibilidades de interpretação dos textos tidos como sagrados.

Defendemos que há um círculo hermenêutico, uma interpretação, que orienta a reflexão teológica e a vivência da fé cujo ponto de impacto (para não dizer início em respeito à noção de círculo) é o sentir. Não se trata de subjetivismo nem de arbitrariedade individualista. Trata-se do encontro do humano com a Presença Espiritual, na linguagem teológica de Paul Tillich (1984), que o mobiliza e o direciona para a realidade transcendente da vida, imperativo último para um processo efetivo de humanização, de realização da justiça e de manifestação do amor. Tal abertura existencial condiciona as compreensões da vida, dos livros sagrados, da tradição e do agir humano.

Nesse sentido, podemos falar que viver é interpretar e que as hermenêuticas podem ser direcionadas para práticas libertadoras ou para as que geram formas autoritárias, repressivas, alienantes, preconceituosas ou violentas. Uma religiosidade, mesmo com referência à Bíblia ou a uma doutrina específica, pode ter, por exemplo, contato com pessoas e famílias pobres e não perceber nelas os anunciadores privilegiados do Evangelho. Da mesma forma, pode olhar uma pessoa desprovida das condições básicas da vida, como o trabalho, e ver nisso um fruto da falta de fé da própria pessoa. Ou ver o sistema capitalista e admirá-lo, pois ele pode dar condições de prosperidade para as pessoas que nele se adequam devidamente.

Por outro lado, em termos da fé cristã, uma espiritualidade baseada na Bíblia, uma vez recebida sob os influxos divinos de uma decisão existencial que valoriza o amor, a justiça e a alteridade, em geral produz frutos diferentes. Compreendemos que, pela graça de Deus, “uma força estranha no ar” move e remove percepções a ponto de vermos o que não está mostrado: que “outro mundo é possível”, como nos indicaram os Fóruns Sociais Mundiais, que as pessoas têm valor independentemente de suas condições sociais e econômicas, que o amor de Deus é preferencialmente direcionado aos mais pobres, que a paz e a justiça andam juntas, que o amor e o respeito devem prevalecer nas relações humanas, que a salvação vem de Deus e é universal, não se limitando a uma igreja ou religião específicas, que Deus é maior que todas as coisas. Esse tipo de espiritualidade não se aprende em livros ou conceitos teológicos, filosóficos ou políticos. Ele vem com a fé.

3 A difícil relação entre espiritualidade e teologia

O casamento entre a espiritualidade e a teologia foi historicamente marcado mais por dissabores e conflitos do que por uma aproximação harmoniosa. A primeira – a espiritualidade –, sempre mais livre e espontânea, tendo a defesa da vida como preocupação última, desinteressada e doadora de sentido à fé, nem sempre tem sido como a segunda – a teologia –, repleta de critérios racionais, por vezes orientada mais pelos interesses institucionais do que pela manifestação viva do amor e da vontade de Deus, profissional, nem sempre articulada com os desafios que a vida traz. No caso da fé cristã, historicamente, foram desprezadas intuições belíssimas de fé entre montanistas, anabatistas, pentecostais, por vezes tachadas de heréticas, outras vezes desqualificadas por seus subjetivismos e radicalismos.

Mas não foram poucos os grupos que, também ao longo da história, estiveram preocupados com esse distanciamento e tensão. A centralidade da Bíblia na reflexão teológica é, por exemplo, devedora de Martinho Lutero, que no século XVI, em uma conjunção de esforços e de desenvolvimento cultural próprios do início da era moderna, possibilitou maior acesso de pessoas à Bíblia. A confluência de vários elementos do itinerário espiritual de Lutero e de grupos reformadores da época – como a ânsia por liberdade, a busca de uma expressão de fé espontânea, o desejo de poder obter a salvação gratuitamente – retomou princípios bíblicos fundamentais, em especial o dom gratuito de Deus, revelado em graça e em amor, tais como os escritos paulinos no Novo Testamento anunciam.

Passam-se os séculos, numerosas experiências de cultivo espiritual da vida e da fé são vivenciadas e permanecem as tensões entre as formas mais vivas de espiritualidade e a racionalidade teológica secular moderna. Os séculos XIX e XX levam ao auge tais tensões e abrem um horizonte significativo de melhor compreensão racional e exegética da Bíblia, livrando-a das prisões do universo medieval fantasioso. Vários teólogos dessa época deram passos largos na valorização do estudo crítico da Bíblia, mas precisaram que outros, como Karl Barth, voltassem aos princípios da Reforma ao destacar, por exemplo, a centralidade da Bíblia na vida da Igreja e na vivência da fé.

Da mesma forma, a diversidade religiosa ganhou força. Nesse quadro, a palavra mística se tornou cada vez mais recorrente na sociedade brasileira. De fato, a vivência religiosa no Brasil sofreu, nas últimas décadas, fortes mudanças. Alguns aspectos desse novo perfil devem-se à multiplicação dos grupos orientais, à afirmação religiosa afro-brasileira, ao fortalecimento institucional dos movimentos católicos de renovação carismática, às expressões espiritualistas e mágicas que se configuram em torno da chamada Nova Era, à mística literária de autores como Paulo Coelho, e ao crescimento evangélico, em especial, o das igrejas e movimentos pentecostais. Todas essas expressões carecem de crítica teológica, construída ecumenicamente, que pode revelar limites e potencialidades das diferentes experiências. Espera-se que a reflexão teológica e os esforços práticos das igrejas e religiões contribuam decisivamente para que a espiritualidade ecumênica possa ser difundida e vivenciada em todas as comunidades, grupos, projetos e instituições no transcorrer desse século.

4 Gratuidade e compromisso

A espiritualidade ecumênica, mesmo vivida em diferentes formas e expressões, converge para os ideais marcados pelo despojamento. Ela requer formas pessoais e coletivas que nos levam a aprender com as pessoas pobres o significado mais profundo da entrega, da disposição em partilhar, da solidariedade e do amor sem limites, mesmo que vivam tais dimensões da fé com intensas contradições.

No caso da fé cristã, diversas motivações e atitudes, difíceis de serem enumeradas, brotam da leitura da Bíblia e emergem em uma nova espiritualidade. No entanto, é possível intuir que a espiritualidade bíblica hoje deve, pelo menos, forjar uma prática de discipulado, de seguimento de Jesus com abertura ao outro, de missionariedade e de valorização da vida, em todos os seus aspectos. Tais dimensões – ao lado de outros relevantes aspectos – estão presentes em diversos grupos espalhados pelo Continente, católicos, evangélicos e ecumênicos. Neles, a Bíblia não é idolatrada, nem meramente contemplada, mas lida de forma integrada, quando a dimensão mística da fé é articulada com a visão profética. Ao mesmo tempo, a centralidade da Palavra na reflexão sobre a fé requer uma visão global da Bíblia e não fragmentada em pedaços que são justificados ideologicamente por “nossa imagem e semelhança”. Não se trata de uma “receita”, mas tal vivência é um indicativo de fugirmos da leitura fundamentalista, autoritária, ao “pé da letra”, sem conexão com a realidade da vida. Trata-se de uma leitura que visa a dimensão dialogal, amorosa e justa.

Tais indicações nos levam a perguntar se é possível vivermos uma espiritualidade ecumênica nos dias de hoje. Como realizar tal feito em meio a tantas tentações individualistas, sectárias e consumistas? A cultura firmada no lucro a qualquer preço, na exploração e na coisificação do ser humano, no individualismo e na indiferença, como se sabe, é oposta à fé cristã e ao espírito ecumênico (BINGEMER, 2013). Por outro lado, a fé é fruto do amor. Ela é expressão da graça de Deus. E em nossa cultura – capitalista, no caso – não há nada “de graça”…

A gratuidade é uma grandeza autônoma, importante em si, que dispensa instrumentalizações, sejam religiosas ou políticas. Nas palavras paulinas: “já não sou mais eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim” (Gálatas 2,20). Assim, é possível, acima de tudo, viver a gratuidade gratuitamente, como um “clima” que envolve toda a vivência humana.

Ainda na fé cristã temos, no Novo Testamento, o Sermão da Montanha, que indica nas bem-aventuranças (Mateus 5,1-12) que a pureza de coração é, especialmente, esvaziamento dos dogmatismos e imposições. A humildade, como expressão da espiritualidade bíblica, é estar radicalmente envolvido nos processos políticos libertadores, todavia com um sentimento de “servo inútil” e pecador. Trabalhar pela paz, por exemplo, é não fazer da luta o fim último, compreendendo-a apenas como meio provisório, sem construir uma mística da luta e sim da justiça da paz e da reconciliação.

5 Espiritualidade inter-religiosa e Direitos Humanos

A espiritualidade ecumênica, como sabemos, requer capacidade de diálogo e profunda sensibilidade para a afirmação da vida e para a promoção da paz. Nesse sentido, a missão cristã consiste em anunciar o Evangelho que se fez carne em determinada cultura. Mas, nem o Evangelho e nem as culturas existem por si mesmos. Esses dois pólos interagem e, com isso, o Evangelho confere à missão um aspecto profético, compreendido como Reino de Deus que, por sua vez, requer transformação crescente da sociedade e das culturas nela inseridas.

A religião e a espiritualidade se destinam à vida. Ou seja, elas representam a ajuda para que pessoas e comunidades vivam de forma melhor a realidade atual. Ao mesmo tempo em que a religião torna-se causa de divisão e conflito entre povos de todas as partes do mundo, ela também abre os seus caminhos para o diálogo e para a promoção da paz. O diálogo é uma incumbência das religiões e ele precisa ir além da partilha de opiniões e experiências e chegar ao desafio mútuo e à cooperação conjunta tendo em vista a construção de uma nova humanidade.

O diálogo inter-religioso não se restringe em nível de especialistas, mas ocorre igualmente nas camadas populares. Nesse campo, não se pode menosprezar o valor e o significado das curas e dos milagres e como eles revelam fontes genuínas de espiritualidade, quase sempre provenientes de distintas tradições religiosas. O pensamento moderno não pode ser refém da lógica meramente racionalista e também não precisa abdicar dela.

Do ponto de vista prático, as religiões em geral e as igrejas cristãs em particular são desafiadas ao protesto contra todas as formas de discriminação e ao incentivo à reconciliação e ao sentido de comunidade no mundo. Elas devem igualmente contribuir para consensos públicos e debates regionais e nacionais que podem formar a base de uma comunidade maior de liberdade, igualdade, fraternidade e justiça. É fato que o vínculo entre religiões e direitos humanos na atualidade é bastante ambíguo e complexo. As interfaces entre religião e cultura, por exemplo, não podem ser desprezadas nas análises. Não basta meramente condenar as formas fundamentalistas, pois elas possuem raízes mais vigorosas e na maioria das vezes com significado social profundo. No caso de movimentos fundamentalistas contemporâneos no islã, por exemplo, muitos têm sido vistos como reação defensiva aos impactos da cultura ocidental, percebida como destruidora de valores sociais e religiosos. Algo similar pode se dizer sobre o conversionismo exacerbado de grupos cristãos, que gera uma identidade rígida, mas forma um sentimento de pertença em um mundo de despersonificação e anomia. Talvez, uma comunicação mais dialógica entre as religiões pudesse contribuir para que todas identificassem suas próprias limitações e se voltassem, assim, para a promoção dos valores humanos e para o bem-estar de todos (AMALADOSS, 1995).

6 O diálogo ecumênico como afirmação da vida

Na tradição da prática de diálogos entre as religiões, como se sabe, há implicações expressas de partilha de vida, experiência de comunhão e conhecimento mútuo, dentro de um horizonte de humanização, de busca da paz e da justiça e de valorização e afirmação da vida, considerando as exigências concretas que tais dimensões possuem.

A prática de diálogo entre as religiões se dá entre pessoas e grupos que estão enraizados e compromissados com a sua fé específica, mas que ao mesmo tempo estão abertos ao aprendizado da diferença. Para a realização dessa aproximação ecumênica, Faustino Teixeira (2008) indica cinco elementos norteadores: a consciência de humildade, a abertura ao valor da alteridade, a fidelidade à própria tradição, a busca comum da verdade e um espírito de compaixão.

Há várias formas de diálogo inter-religioso, mas independentemente delas a prática dialogal requer um espírito de abertura, hospitalidade e cuidado. Entre as formas de diálogo se destacam: a cooperação religiosa em favor da paz, os intercâmbios teológicos e a partilha da experiência religiosa, especialmente no âmbito da devocionalidade e da oração.

Há ainda dois pólos de reflexão, ambos por demais desafiadores. O primeiro trata do lugar do diálogo entre as religiões no processo de globalização, considerando tanto os efeitos positivos, como as facilidades de comunicação, uma nova consciência global e planetária e o pluralismo, quanto os negativos, como o aguçamento do fundamentalismo nas várias religiões. Tal contradição reside, especialmente, na recusa do engajamento comunicativo, por um lado, e pela abertura dialogal, por outro. A primeira opção reforça os tradicionalismos exacerbados em reação às novas sensibilidades e circunstâncias da comunicação dialógica e global, o que gera as mais distintas formas de fundamentalismo. A segunda opção, a do diálogo, se impõe como desafio criativo e significativo para o futuro do mundo. O segundo polo diz respeito à espiritualidade e como ela se vincula intimamente à prática do diálogo inter-religioso.

7 Considerações finais

A complexa realidade social e religiosa que hoje enfrentamos, especialmente o pluralismo religioso, tanto no nível intra-cristão como no inter-religioso, desafia fortemente a produção teológica latino-americana. Entre os desafios está a construção de uma lógica plural para o caminho teológico e pastoral, o que ressalta ainda mais a importância das questões ecumênicas para as reflexões teológicas atuais.

Destacamos em nossa reflexão sobre os desafios da espiritualidade ecumênica para a fé cristã o encontro das pessoas e grupos com a vida e com a Bíblia, e como tal encontro marca o caminho espiritual delas, fazendo com que tenham sempre em mente os desafios pastorais do presente século. Para isso, vimos a espiritualidade como dom de Deus, como “clima” que nos possibilita viver a vida, interpretando os seus desafios, dilemas e possibilidades, orientados pela ideia de que a fé sem a vida é morta.

Nossa consideração, portanto, é que diante do pluralismo religioso faz-se necessária para a teologia ecumênica uma atenção especial à articulação entre a capacidade de diálogo dos grupos religiosos e os desafios em torno da defesa dos direitos humanos, pressupondo que a espiritualidade ecumênica requer visão dialógica, profunda sensibilidade com as questões que afetam a vida humana e inclinação para a promoção da paz. Indicamos, também, que uma espiritualidade ecumênica que emerge dos desafios e das bases da fé cristã, assim como do pluralismo religioso, terá como valor a dimensão mística e a alteridade e isso incidirá nos processos religiosos e sociais, favorecendo perspectivas utópicas, democráticas e doadoras de sentido. Ressaltamos o diálogo ecumênico como afirmação da vida, com as respectivas e concretas implicações no tocante à solidariedade, à comunhão, ao conhecimento mútuo e às iniciativas e projetos de humanização e de justiça social.

Claudio de Oliveira Ribeiro, UMESP, Original Português

8 Referências bibliográficas

AMALADOSS, Michel. Pela estrada da vida: prática do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1995.

BINGEMER, Maria Clara. O mistério e o mundo: paixão por Deus em tempos de descrença. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.

BOFF, Leonardo; KEMPIS, Tomas de. Imitação de Cristo e seguimento de Jesus. Petrópolis: Vozes, 2106.

SANTA ANA, Julio de. Ecumenismo e libertação: reflexões sobre a relação entre a unidade cristã e o Reino de Deus. Petrópolis: Vozes, 1987.

TEIXEIRA, Faustino do Couto; DIAS, Zwinglio Motta. Ecumenismo e diálogo inter-religioso: a arte do possível. Aparecida: Santuário, 2008.

TILLICH, Paul. Teologia sistemática. São Paulo: Paulinas/Sinodal, 1984.

Padres Apostólicos

Sumário

1 Introdução

1.1 Quem são os Padres Apostólicos

1.2 Formação da coleção

1.3 Natureza da coleção

2 Características Gerais

3 Breve apresentação de cada obra em particular

4 Referências bibliográficas

1 Introdução

1.1 Quem são os Padres Apostólicos

Com a expressão Padres Apostólicos entende-se hoje um corpus de escritos dos séculos I-II, de autores que teriam conhecido diretamente os apóstolos ou que teriam tido contato com testemunhas diretas de seu ensinamento. Por esse motivo, essas obras gozaram de grandíssima autoridade na época antiga, ao ponto de algumas se encontrarem listadas nos elencos primitivos de Escritura canônica (como o Cânon de Muratori ou o Código sinaítico do séc. IV). Tal corpus, hoje, é variadamente considerado nas edições modernas. Considera-se parte dele a Carta aos Coríntios, de Clemente de Roma, as sete cartas autênticas de Inácio de Antioquia, a Carta aos Filipenses, de Policarpo de Esmirna, e o Martírio de Policarpo, os fragmentos de Papias de Hierápolis, a Carta do Pseudobarnabé, o Pastor de Hermas, a Didaché. Hoje se tende a considerar parte desse corpus o A Diogneto e a Homilia do Pseudoclemente.

1.2 Formação da coleção

A particularidade desse corpus consiste em que não foi formado na antiguidade, mas surgiu no séc. XVII. O termo em si, quanto sabemos, foi usado pela primeira vez por um autor do séc. VII, Anastásio Sinaíta, abade do mosteiro de Santa Catarina do Sinai (cf. EHRMAN, 2003, p.1), para indicar o corpus de escritos que naquele tempo era atribuído a Dionísio Areopagita, obra que certamente não é anterior ao fim do séc. V e que hoje se denomina com o termo Pseudoareopagita. Mas só a partir de 1672, com a publicação realizada por J. Cotelier, da obra SS. Patrum qui temporibus apostolicis floruerunt etc., começa a formar-se esse grupo de escritos. Cotelier, que usa por primeiro, duas vezes, em sua obra o termo futuramente consagrado pelo uso apostolicorum patrum collectio (“coleção dos padres apostólicos”), inclui nessa coletânea cinco autores: Barnabé, Clemente de Roma, Hermas, Inácio de Antioquia e Policarpo de Esmirna. O critério usado por Cotelier para formar esse grupo era que os autores tivessem conhecido os apóstolos ou Paulo, ou que tivessem sido seus discípulos diretos (cf. EHRMAN, 2003, p.8-9). Em 1765, A. Galandi, Bibliotheca veterum patrum, acrescenta-lhe os fragmentos de Papias de Hierápolis e o A Diogneto. Em 1883 foi descoberto um manuscrito que fez conhecer o texto da Didaché, que imediatamente foi incorporado a essa coleção.

1.3 Natureza da coleção

Uma dificuldade levantada por alguns autores contemporâneos é que tal corpus não segue critérios unívocos. Aí se encontram, de fato, gêneros literários diversos (há cartas, o Pastor é considerado por muitos autores como um exemplo de apocalíptica; Pseudoclemente é uma homilia; A Diogneto é uma apologia, etc). Se o critério é ter conhecido os apóstolos ou Paulo, a dificuldade consiste em que a Carta de Barnabé (que é, antes, um tratado), por exemplo, é um caso de pseudepigrafia, ou seja, não é escrita pelo colaborador de Paulo, como não é, certamente, Clemente o autor da homilia que faz parte do corpus.

Alguns autores, como Drobner (1998, p.98-9), acreditam que a expressão corpus deveria ser abandonada e as obras recolocadas na história da literatura cristã com critérios mais homogêneos (cronológico ou de gênero literário). Não vemos dificuldade alguma em continuar usando a expressão, já consagrada na tradição plurissecular, uma vez que estejamos conscientes de sua natureza heterogênea e da singularidade de cada obra. Os Padres Apostólicos, juntamente com outras fontes pertinentes, são um testemunho indispensável para compreender a dinâmica dos primeiros momentos da formação da consciência crente e da Igreja: “são uma fonte privilegiada para estudar a cristologia, a questão da penitência, que emerge em particular do Pastor de Hermas, o martírio, a opção preferencial pelos pobres, a práxis sacramental, a vida e a organização da Igreja primitiva” (DELL’OSSO, 2011, p.10).

2 Características Gerais

Todos os autores que se ocuparam com os Padres Apostólicos, assim como os simples leitores, sem interesse direto pela Patrística ou pela literatura cristã antiga, concordam em que, nas páginas desses Padres, se percebe uma simplicidade que parece desaparecer nas obras dos Padres posteriores, sobretudo a partir do séc. IV. Significativos são os juízos de autores clássicos e contemporâneos: “Ainda está distante a preocupação que inspirará os apologistas do séc. II, de oferecer uma explicação científica do cristianismo ou dos dogmas em particular” (ALTANER, 1968, §23). “Os escritos dos Padres Apostólicos tem um caráter pastoral. Seu conteúdo como seu estilo os aproximam dos livros do Novo Testamento” (QUASTEN, 1980/2009, p.44). “Cada vez que se abre uma de suas páginas, descobrem-se novos aspectos de humanidade, de sabedoria e de experiências iluminadas. Não envelhecem nunca porque têm uma verdadeira superabundância de vida espiritual. (…) De toda a literatura cristã antiga, a dos Padres Apostólicos é talvez a mais espontânea que consegue fazer convergir para ela também o interesse dos mais críticos do cristianismo de hoje” (QUACQUARELLI, 1991, p.375-6). “Os autores dessas obras não eram escritores de profissão, mas escreviam para os cristãos, com a linguagem compreensível e simples, com que se dirigiam aos seus irmãos na fé” (DELL’OSSO, 2011, p.6).

No entanto, seria um erro considerar esses escritos como “mais puros” em relação a uma pretensa decadência das obras posteriores que iriam numa direção intelectualística. Na realidade, esses escritos não se ocupam de “teologia” como a entendemos hoje e como a encontramos nos autores, principalmente a partir do séc. IV, porque o cristianismo ainda não tinha sido desafiado por questões a respeito da verdade de suas afirmações. Isso ocorrerá, sobretudo, no confronto com o gnosticismo e o arianismo, que provocará a necessidade de uma resposta em acordo com o depósito da fé tal como foi recebido. E os primeiros textos realmente teológicos, como os entendemos, são os de Irineu de Lyon e, sobretudo, os de Orígenes, em reação aos gnósticos; um passo ulterior será dado pelos Padres Capadócios (Basílio de Cesareia, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa) em reação ao arianismo e ao apolinarismo. Os textos dos Padres Apostólicos permanecem no estilo bíblico, têm especialmente interesse parenético, de exortação moral, e abordam questões que dizem respeito à vida da comunidade. Sua linguagem é concreta, eles ainda usam as categorias do Antigo Testamento no intento de dar conta da novidade experimentada com o acontecido com Jesus. Em suas páginas encontramos a expressão da novidade cristã mostrando que ainda não tem necessidade de categorias e linguagem diferentes das da Sagrada Escritura, diversamente de quando será necessário responder a questões diferentes a respeito da própria fé. A teologia trinitária de Orígenes e o desenvolvimento dogmático a partir de Niceia (325) e Constantinopla I (381), assim como os momentos finais da reflexão teológica de Atanásio de Alexandria e dos Capadócios, são as respostas adequadas às novas perguntas postas, respectivamente, pelos gnósticos e por Ário. Os Padres Apostólicos não abordam esses temas porque simplesmente a consciência teológica de seu tempo ainda não tinha tido necessidade de diferenciar-se teoricamente. Isso não tira, ao contrário, reforça o seu caráter extraordinário de fonte de altíssimo valor para os inícios do cristianismo em todas as suas dimensões: “as suas ricas e significativas diversidades e o desenvolvimento da compreensão da própria autoidentidade, distinção social, teologia, normas éticas e práticas litúrgicas” (EHRMAN, 2003, p.13-4).

3 Breve apresentação de cada obra em particular

Carta aos Coríntios de Clemente Romano, indicada também como 1Clem. O texto em si mesmo é anônimo, mas certamente é uma carta do âmbito romano e a atribuição ao bispo de Roma, Clemente, é constante nas fontes antigas e no consenso geral dos estudiosos modernos. Citada por fontes antigas escritas antes de 170 e fazendo referência à perseguição de Nero (64) e a um tempo de perseguição enquanto o autor escreve, leva a pensar no período final do governo do Imperador Domiciano (81-96). O texto é uma exortação à paz escrita por parte da Igreja de Roma e endereçada à Igreja de Corinto por ocasião de graves tensões internas nessa última. A popularidade da carta foi enorme, a ponto de, ainda em 170, ser lida nas assembleias cristãs. Tradicionalmente se viu nesta carta uma indicação da posição preeminente da Igreja de Roma que pode intervir nas dinâmicas internas de outra Igreja. Recentemente se propôs também ver nesta carta um caso “de correptio fraterna [correção fraterna], a ser entendida não como simples exortação, mas como um procedimento jurídico preciso que poderia conduzir à exclusão da comunidade” (LONGOBARDO, 2007, p.141)[1]. Se não no plano jurídico, contudo, a legitimidade da intervenção da Igreja de Roma certamente era reconhecida ao menos no plano da preocupação pastoral. A carta é interessante, ainda, pelos temas filosóficos presentes na trama do seu texto, além do “sabor” bíblico que a permeia.

Homilia do Pseudoclemente. Na tradição manuscrita da 1Clem, exatamente em três manuscritos, depois da Carta aos Coríntios, da qual falamos acima, encontra-se este texto, chamado em dois dos três manuscritos “Segunda Carta de Clemente aos Coríntios”. O texto parece na realidade uma antiga homilia, provavelmente batismal, mas do âmbito oriental (Egito, Síria), que remonta à metade do séc. II. “É o mais antigo sermão cristão que chegou até nós, dirigido a neófitos, cujo tom simples e sóbrio revela um escritor desprovido de aspirações literárias” (DELL’OSSO, 2011, p.213).

Cartas de Inácio de Antioquia. A discussão em torno a essas cartas foi, a seu tempo, enorme. Inácio foi bispo de Antioquia entre os séculos I e II (tradicionalmente sua morte é datada do ano 107, sob o Imperador Trajano). A antiguidade e, portanto, a autoridade dessas cartas é de enorme importância, porque nos fornecem indicações precisas sobre a estrutura e a organização da Igreja em seu tempo. De maneira particular impressiona o episcopado monárquico, onde o bispo é o garante da unidade da Igreja; a estrutura bispo-presbítero-diácono da ordem ministerial; mas, também, a centralidade do mistério de Cristo, com insistência na realidade da encarnação contra as evidentes posições adversas de tipo docetista; notável, além disso, a espiritualidade do martírio ligada a uma famosa imagem eucarística. O fato que o corpus de suas cartas nos tenha chegado de modo complexo favoreceu as posições de quem, contrário ao reconhecimento de tal organização hierárquica eclesial já nos séculos I-II, negava a autenticidade das cartas, considerando-as muito posteriores. “Até os nossos dias o ceticismo foi alimentado pela complicada história do texto, na qual a crítica textual bem pronto se enlaçou com questões teológicas e foi influenciada e às vezes até guiada por opções confessionais e se tornou sempre mais o veículo de uma crítica literária nem sempre livre de pressupostos no que dizia respeito ao conteúdo” (PROSTMEIER, 2006, p.490). Hoje há um consenso bastante generalizado no reconhecimento da autenticidade das sete cartas que Inácio escreveu em sua deportação para Roma, para aí ser julgado e morto, tendo-as redigido à guisa de um “diário de viagem escrito pelo mártir designatus, para usar uma expressão de Tertuliano” (QUACQUARELLI, 1991, p.97). Essas cartas são Aos Efésios, Aos Magnésios (ou seja, à comunidade de Magnésia no Meandro, hoje território da Província de Aydin, na Turquia), Aos Tralianos (ou seja, à comunidade de Trália ou Trales, hoje Aydin, na Turquia), Aos Romanos, Aos Filadélfios (ou seja, à comunidade de Filadélfia, hoje Alaşehir, na Turquia), Aos Esmírnios (de Esmirna, hoje Izmir, na Turquia), A Policarpo.

Carta aos Filipenses de Policarpo de Esmirna. Tendo a comunidade de Filipos solicitado a Policarpo cópia das cartas de Inácio, que ele possuía, o bispo de Esmirna as enviou acompanhadas de uma carta sua, que hoje, contrariamente a hipóteses anteriores, se considera única e não a fusão de uma carta com um bilhete (cap. 13). A carta é importante porquanto fala justamente das mencionadas cartas de Inácio. Aproveitando a circunstância, Policarpo exorta os cristãos de Filipos em matéria de moral cotidiana e os incentiva a resistir às tentações docetistas. Deve ter sido escrita não muito tempo depois da morte de Inácio.

Martírio de Policarpo. Policarpo, segundo Irineu, teria conhecido o apóstolo João. Parece, no entanto, que o bispo de Lyon confunde o apóstolo com um presbítero homônimo, contemporâneo de Policarpo, mencionado por Papias de Hierápolis (DELL’OSSO, 2011, p.131). Após sua morte, muitas comunidades solicitaram notícia sobre o martírio do bispo ancião (morreu aos 86 anos), que gozava de grande autoridade. O texto, que em si seria uma carta, inaugura (cf. LONGOBARDO, 2007, p.143), no entanto, o gênero literário martirial, e usa pela primeira vez o termo “mártir”, no sentido em que será conhecido sobretudo a partir das perseguições da metade do séc. III. No Martírio de Policarpo encontramos quase todos os elementos que servirão de base ao culto e à espiritualidade dos mártires.

Carta de Barnabé (ou Pseudobarnabé). Encontramos este importante texto elencado logo depois do Apocalipse, no famoso Codex Sinaiticus, um manuscrito do séc. IV que contém a mais antiga cópia do Novo Testamento completo, portanto entre os livros tidos como inspirados. Algumas evidências internas nos levam a datar o escrito da primeira metade do séc. II, talvez no âmbito alexandrino, mas sem excluir a possibilidade da Palestina ou da Síria. Certamente não é de autoria do companheiro e colaborador de Paulo, razão pela qual hoje se indica também como Pseudobarnabé. Embora a forma seja do gênero epistolar, o texto na realidade é um verdadeiro tratado, onde pela primeira vez – quanto sabemos – é abordada a questão da relação entre o cristianismo e o judaísmo. A primeira parte é escrita em perspectiva fortemente crítica ao judaísmo, do qual toma claramente distância; na segunda parte encontra-se uma catequese parenética, segundo a clássica imagem das duas vias. Como em todas as obras de polêmica com o judaísmo deste período, ou na literatura siríaca do séc. IV, como em Afraates e Efrém de Nísibi, seria um grave erro ler esses textos como “antissemitismo” ante litteram. As disputas mais furiosas se dão muitas vezes entre irmãos. E nesses textos temos o desenvolvimento de uma nova compreensão e o processo de afirmação de uma nova identidade devida à adesão à experiência do acontecido com Jesus, pela qual a diferenciação com relação à origem judaica comportou tensões não irrelevantes de ambos os lados. Concordamos plenamente com C. Dell’Osso quando diz que o Pseudobarnabé é “o êxito daquele esforço de reflexão que o movimento cristão emergente estava fazendo em busca das razões de sua diferença com relação ao judaísmo, ou em busca da identidade cristã em relação com a matriz judaica” (2011, p.178).

O Pastor de Hermas. Este texto, em comparação com os demais que pertencem ao corpus dos Padres Apostólicos, é certamente o mais difícil de situar dentro do quadro. O autor seria Hermas, irmão do Papa Pio (140-155), de acordo a informação do Cânon de Muratori. Orígenes, por outro lado, levanta a hipótese de que o autor do Pastor é o Hermas saudado por Paulo em Romanos 16,14. O texto também foi considerado como formado por um material variado, que passou por várias redações e que teria recebido sua forma atual por volta da metade do séc. II. O escrito está claramente dividido em três partes que pareceram a alguns independentes, a tal ponto de levantarem a hipótese de vários autores organizados por um redator final. Outros, ao contrário, tendem a uma unidade global, e essa é hoje a posição corrente entre os estudiosos. A obra está estruturada em 5 visões, 12 mandamentos e 10 parábolas. Os números, obviamente, não são casuais e há evidências da vontade positiva do autor de usar exatamente essas cifras fortemente simbólicas. Para alguns, é um apocalipse, para outros um livro de alegorias. Certamente, foi escrito numa época de crise, e seu apelo à conversão está perfeitamente em consonância com o que se espera em um momento como esse, na esperança de um futuro melhor. A comunidade onde surge o Pastor é a romana, e esse texto é muito interessante para a história e a compreensão do desenvolvimento da disciplina penitencial. Deduz-se que se trata de uma comunidade que perdeu seu fervor inicial e, portanto, do ponto de vista moral, a deterioração é evidente. Diante disso, surge uma tentação rigorista, segundo a qual o batismo era a última possibilidade de receber o perdão dos pecados e não havia possibilidade de perdoar os cometidos depois do banho da regeneração; e uma postura mais aberta e compreensiva, que tentava encontrar uma chance ulterior para aqueles que tivessem caído depois do batismo. Esta tensão era constante na comunidade romana e norte-africana, como mostram os casos do Papa Calisto e seu adversário rigorista, o autor de Elenchos (outrora se considerava que fosse de Hipólito de Roma, mas sendo atribuído ao mesmo nome obras de autores certamente diversos, prefere-se hoje indicá-los desse modo), na Roma entre os séculos I e II; ou as controvérsias sobre os lapsi após as perseguições de Décio e Valeriano, na segunda metade do séc. III, que verão Cipriano de Cartago e o Papa Cornélio representar a linha da misericórdia, esse último contra Novaciano, provavelmente um expoente da mesma linha rigorista, minoritária mas potente, presente em Roma desde o tempo de Hermas. O Pastor tende a reconhecer só uma possibilidade de penitência após o batismo, exortando ao mesmo tempo a uma conversão séria em vista do fim iminente. De todos os textos dos Padres Apostólicos, o Pastor é o que talvez esteja mais distante de nós no nível da linguagem, devido à floresta de imagens e alegorias. Não está desprovido, porém, de aspectos bastante interessantes, especialmente à luz do recente magistério do Papa Francisco. A. Quacquarelli escrevia há cerca de quarenta anos atrás: “É um ensinamento contínuo que diz respeito à simplicidade, à sinceridade, à castidade, à indissolubilidade do casamento, à caridade de perdoar o cônjuge culpado, mas não reincidente, às segundas núpcias após a viuvez” (1991, p.240).

A Didaché. Este texto, fundamental para a história da liturgia, da disciplina eclesiástica, da moral e da doutrina cristã, foi descoberto em 1863 em Constantinopla, dentro de um código de 1056. Os materiais que o compõem provavelmente datam do mesmo período em que foram escritos os sinóticos, embora o texto atual seja certamente redacional, mas não para além do séc. I, e a área da composição terá sido a Síria. O que é a Didaché? Didaché significa “doutrina” e no texto descoberto em Constantinopla a obra tem dois títulos, talvez adicionados por algum copista: “Doutrina dos doze apóstolos” e “Doutrina do Senhor às nações por meio dos doze apóstolos”. É “uma espécie de regra para a comunidade cristã” (LONGOBARDO, 2007, p.145). É “um gênero catequético influenciado pelo estilo evangélico(…), um manual, talvez um dos muitos, que então circulavam pela comunidade (…), uma antologia de preceitos com reflexões e exortações que poderiam dar a impressão de um conjunto de notas” (QUACQUARELLI, 1991, p.25). Justamente devido a sua antiguidade, é de extraordinário interesse para a história da liturgia (especialmente para a celebração da eucaristia) e para o estudo da organização da Igreja nos primeiríssimos tempos. Na parte da instrução moral, encontramos a doutrina das duas vias, como vimos no Pseusobarnabé. Alguns autores acreditam que, já que a mesma doutrina se encontra nos escritos de Qumran, a matriz comum de tal ética possa ser encontrada na literatura sapiencial judaica; outros fazem notar que a imagem dos dois caminhos é clássica no mundo antigo (cf. DELL’OSSO, 2011, p.16). Seja como for, o texto é preciosíssimo, pois “deita raízes nas camadas mais profundas das origens cristãs, lá onde ainda é viva e fluente a tradição sobre Jesus, onde ainda é vital a ligação com a espiritualidade, a ética e a liturgia judaicas e onde ressoa ainda o eco direto da eucaristia protocristã e do anúncio dos profetas cristãos” (cf. DELL’OSSO, 2011, p.16).

Papias de Hierápolis. Nas coleções dos Padres Apostólicos, como dissemos, a partir de 1765, aparecem também alguns fragmentos da Exposição dos ditos do Senhor, obra de Papias, bispo de Hierápolis (hoje os seus restos se situam nas proximidades de Pamukkale, Turquia). Segundo Irineu de Lyon, Papias teria sido discípulo do apóstolo João e companheiro de Policarpo. Eusébio de Cesareia, no entanto, o localiza como discípulo de outro João, um presbítero diferente do apóstolo. Portanto, Papias pertenceria à geração que foi instruída por aqueles que conheceram os apóstolos, mas não pelos próprios apóstolos. Considera-se como data de composição de sua obra a primeira metade do séc. II, talvez entre os anos 125-130 (cf. DELL’OSSO, 2011, p.159). O testemunho de Papias é importante por suas referências às origens do evangelho de Mateus (que teria sido escrito em hebraico) e de Marcos (que se teria originado da pregação de Pedro), mas também porque revela a importância da tradição oral dos ensinamentos de Jesus, que eram transmitidos por meio dos “presbíteros”.

A Diogneto. Este texto se chama assim pelo nome que se encontrava no único manuscrito que o continha, descoberto em Constantinopla em 1436 e infelizmente destruído em Estrasburgo durante a Guerra Franco-Prussiana de 1870. Felizmente pouco antes se havia feito duas cópias. O texto não é tanto uma carta, quanto uma obra do gênero apologético, que se localiza aproximadamente no fim do séc. II e início do séc. III. É uma apresentação do cristianismo a um personagem, provavelmente fictício, chamado Diogneto. O estilo é elevado e a língua grega excelente, o que faz pensar que o autor tenha sido uma pessoa culta e de ambiente social elevado. No texto, os cristãos são apresentados como pessoas que vivem a vida de todos os dias, como o restante dos homens e das mulheres de seu tempo, diferenciando-se, essencialmente, pelo fato de serem perseguidos e desprezados, e por responderem a isso com mansidão e testemunhando amor para com todos, indistintamente. Com uma célebre imagem (cap. 6), o autor estabelece um sugestivo paralelo: os cristãos são para o mundo o que a alma é para o corpo. Em seguida, passa a descrever alguns pontos da visão teológica dos cristãos, terminando com uma exortação parenética à conversão. Este texto foi, muitas vezes, utilizado para falar do laicato cristão e, sobretudo depois do Vaticano II, indicado como um instrumento de inspiração para a formação da maturidade do laicato católico.

Massimo Pampaloni S.J.

4 Referências bibliográficas

Para um trabalho científico:

Para fazer um trabalho científico sobre os Padres Apostólicos, a edição crítica mais usada atualmente é a última edição de FUNK, F. X.; BIHLMEYER, K.; WHITTAKER, M. Die Apostolischen Väter. Tübingen, 1992.

Para as obras em particular (exceto para Papias e a Homilia do Pseudoclemente) existe uma edição crítica na coleção Sources Chrétiennes, a que se poderá recorrer utilmente. Para a Didaché, SC 248, Paris, 1978; para a Carta aos Coríntios, de Clemente, SC 167, Paris, 1971; para as cartas de Inácio de Antioquia, a Carta aos Filipenses de Policarpo e o Martírio de Policarpo, SC 10, Paris, 1958; para a Carta do Pseudobarnabé, SC 172, Paris, 1971; para o Pastor de Hermas, SC 53, Paris, 1958; para A Diogneto, SC 33, Paris, 1965.

Para uma apresentação geral sobre cada obra em particular:

– As Patrologias clássicas:

ALTANER, B.; STUIBER, A. Patrologia. Vida, obras e doutrina dos padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2010.

DROBNER, H. Manual de Patrologia. Petrópolis: Vozes, 2008.

QUASTEN, J. Patrología I: hasta el Concilio de Nicea. v. I. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1978.

– Um dicionário útil:

            BERARDINO, A. DI (org.). Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002.

Bibliografia citada no texto:

ALTANER, B. Patrologia. Genova, 1968.

DELL’OSSO, C. (ed). I Padri Apostolici, Testi patristici 5. Roma: Città Nuova, 2011.

DROBNER, H. R. Patrologia. Casale Monferrato, 1998.

EHRMAN, B. D. (ed). The Apostolic Fathers. v I. Cambridge – London: Loeb Classical Library, 2003.

LONGOBARDO, L. Apostolica, letteratura – Padri Apostolici. In: BERARDINO, A. DI (ed). Letteratura patrística. Cinisello Balsamo, 2007. p.140-8.

PROSTMEIER, F. R. Ignazio di Antiochia. In: DOPP, S.; GEERLINGS, W. (eds). Dizionario di letteratura cristiana antica. Roma, 2006. p. 489-92.

QUACQUARELLI, A. (ed). I Padri Apostolici, Testi patristici 5. Roma, 1991.

QUASTEN, J. Patrologia I. Genova-Milano, 1980. Reimpressão: 2009.

VISOGNÀ, G. (ed). Didachè. Insegnamento degli Apostoli. Milano, 2000.

[1] O autor da tese sobre a carta como correção fraterna é E. CATTANEO, La Prima Clementis come un caso di correptio fraterna. In P. LUISIER. Studi su Clemente Romano. 2003, OCA (268), 83-105.

Livros Históricos

Sumário

1 Introdução

2 Josué

3 Juízes

4 Rute

5 1-2 Samuel

6 1-2 Reis

7 1-2 Crônicas

8 Esdras

9 Neemias

10 Tobias

11 Judite

12 Ester

13 1-2 Macabeus

14 Considerações finais

15 Referências bibliográficas

1 Introdução

Este verbete apresenta os livros classificados, segundo o cânon da Vulgata, como “Históricos”. Tal denominação, porém, é anterior e deriva da Septuaginta (LXX), isto é, da versão grega da Bíblia Hebraica. Nessa, além de ter um cânon diferente, os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis, são denominados de “Profetas Anteriores” (nebî’îm ri’šônîm).

Os livros de Rute, Ester, Esdras, Neemias e 1-2 Crônicas, na Bíblia Hebraica, pertencem ao bloco dos “Escritos” (Ketubîm). Rute e Ester recebem ainda uma consideração ulterior dentro desse bloco, pois integram, ao lado de Cântico dos Cânticos, Lamentações e Eclesiastes, um conjunto de cinco rolos denominado de megillôt. Estes livros são lidos nas festas litúrgicas. Cântico dos Cânticos, na festa da Páscoa; Rute, na festa de Pentecostes; Lamentações, na recordação da destruição do templo de Jerusalém; Eclesiastes, na festa das Tendas; e Ester, na festa dos Purim.

Os livros de Tobias, Judite e Macabeus, deuterocanônicos para católicos e apócrifos para protestantes, não foram incluídos no cânon hebraico das Escrituras por quatro motivos principais: a) não foram escritos ou conservados em língua sagrada: o hebraico; b) não foram escritos na Terra Prometida: Palestina; c) não foram escritos antes da reforma sociorreligiosa empreendida por Neemias e Esdras; d) não foram considerados em pleno acordo com a Torá.

No que concerne à ordem dos cânones, um caso particular diz respeito ao livro de Rute e aos livros de Esdras, Neemias e 1-2 Crônicas. No primeiro caso, o livro de Rute, aparece colocado entre Juízes e Samuel no cânon grego, posição que é seguida nos demais cânones, exceto, como visto acima, no cânon hebraico, e serviu para evidenciar a fome, como um dos principais problemas da época dos juízes; bem como para reconhecer a possibilidade de uma família deixar a terra prometida, há pouco conquistada segundo a narrativa, e imigrar para além do Jordão, neste caso, para Moab, a fim de sobreviver. Pode-se pensar numa forma de um “novo êxodo” ou numa “diáspora pré-monárquica”. Acima de tudo isso, o livro de Rute serviu de transição e antecipação na narrativa (prolepse) para se falar de uma ancestral não israelita para o futuro rei Davi, que entrará em cena no livro de Samuel (cf. Rt 4,17.21). A cidade de Belém, da qual provém o futuro rei Davi, igualmente, recebeu evidência no livro de Rute.

No segundo caso, o cânon hebraico é concluído com 2 Crônicas. O último evento narrado nesse livro é um olhar de esperança para o futuro do antigo Israel, baseado na profecia de Jeremias (cf. Jr 25,11-12; 29,10; 2Cr 36,21), segundo a qual Ciro, rei dos persas, ordenou a reconstrução do templo de Jerusalém e o repatriamento dos judeus que haviam sido exilados por ocasião da conquista babilônica. Com o anúncio da reconstrução do templo de Jerusalém, o cronista acentua o papel do culto como sendo a principal instituição davídica capaz de reerguer, solidificar e devolver a identidade do povo eleito.

Nos estudos bíblicos, a partir do século XIX, os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis passaram a ser classificados como pertencentes à Obra Deuteronomista de História. Essa classificação remonta a Martin Noth que observou, nesses livros, muitos pontos de contato com o livro do Deuteronômio (vocabulário, linguagem, estilo, motivos, teologia etc.). Noth acreditava que os livros Deuteronômio, Josué, Juízes, Samuel e Reis seriam obras de um único autor, que trabalhou durante o exílio na Babilônia, a fim de elucidar a história do povo desde as vésperas da conquista, com o testamento de Moisés, até a destruição de Jerusalém e o consequente exílio. Com isso, tal autor procurou evidenciar, teologicamente, que a perda da terra prometida deveu-se não à fraqueza de Deus, mas à infidelidade das lideranças e do povo à Torá.

Esta hipótese ganhou muitos adeptos, mas, nas últimas quatro décadas, vem perdendo a sua força. Nas pesquisas atuais, a concepção já não é mais aceita nos moldes de M. Noth. É possível continuar usando a denominação Obra Deuteronomista para o bloco Js–Rs, mas levando em consideração que o processo de formação desses livros é complexo e abarca um arco temporal condizente com os tempos do rei Josias, o período do exílio, o pós-exílio e, nesse, um papel fundamental é atribuído ao período persa (RÖMER, 2008, p.21-50).

Outro bloco que, aparentemente, aparece bem coeso compreende os livros de 1-2 Crônicas, Esdras e Neemias, denominado, comumente, de Obra do Cronista. Este conjunto teria tido origem nos círculos sacerdotais que começaram a elaborar uma proposta teológica em forma de literatura a partir do século IV aC, e procurou dar uma interpretação diferente da Obra Deuteronomista quanto à perda da terra e o consequente exílio na Babilônia.

A história do povo eleito é a manifestação dos desígnios e do plano de Deus. Tudo está em suas mãos. Em 1-2 Crônicas, essa história é narrada segundo um arco temporal muito amplo, que vai da criação do mundo, passa pela eleição de Israel, prossegue no período da monarquia, com grande ênfase sobre o rei Davi, até a conquista da Babilônia por Ciro, rei dos persas, que deu anistia aos exilados e decretou a reconstrução do templo de Jerusalém. De certa forma, os livros de Esdras e Neemias continuam a história do ponto aberto deixado no final de 2 Crônicas, conduzindo-a ao momento da refundação do povo de Deus e da cidade de Jerusalém através de uma profunda reforma sociorreligiosa: o judaísmo baseado na Torá.

Os livros de Tobias, Judite e Ester não formam um bloco específico, como os anteriores, mas pertencem ao gênero literário denominado história edificante. Os acontecimentos narrados estão situados no período persa (séculos VI–IV aC) e permitem perceber as dores e dificuldades que enfrentaram os judeus piedosos que continuaram na diáspora (Tobias e Ester). O ideal sociorreligioso desejado com a fundação do judaísmo foi exemplificado não por judeus piedosos que viviam em Judá-Jerusalém, mas na diáspora. Essa afirmação encontra fundamentação no fato de os grandes reformadores, Esdras e Neemias, serem judeus piedosos que vieram da diáspora para restaurar os costumes em Judá-Jerusalém. Além disso, existe outro fator de grande relevância: a Torá. Segundo a perspectiva bíblica, a Torá aparece como obra realizada durante o período em que os filhos de Israel estiveram no deserto. A aliança renovada em Moab por Moisés, antes da sua morte, permite dizer que, se ela fosse violada, poderia ser renovada, independentemente de o povo eleito estar ou não na terra prometida.

No caso particular do livro de Judite, a datação pode ser aproximada à época da elaboração de 1-2 Macabeus, isto é, ao século II aC. Tobias, Judite e Ester narram como os judeus piedosos enfrentaram os inimigos da fé no Deus único, usando da astúcia, da violência e até do enfrentamento bélico para libertar o povo e salvaguardar os costumes segundo as leis, os decretos e os mandamentos contidos na Torá. Desde este ponto de vista, pode-se admitir que os livros de Tobias, Judite e Ester encontram-se em estreita relação com a Torá.

2 Josué

Este livro recebe o nome do seu protagonista principal: Josué, filho de Nun, da tribo de Efraim, apresentado como ajudante e sucessor do grande líder Moisés (cf. Ex 24,13; 33,11; Nm 11,28) na condução do povo rumo à terra prometida (cf. Nm 27,18-23; Dt 1,38; 3,28; 31,3.7.23; 34,9). O nome Josué significa “o Senhor salva” ou “o Senhor é salvação”.

Foi Josué, segundo a narrativa bíblica, quem fez o povo passar o rio Jordão, conduziu as batalhas da conquista, distribuiu o território entre as tribos e, antes de morrer, renovou a aliança, lembrando ao povo as consequências nefastas que se seguiriam caso as futuras gerações fossem infiéis. Com isso, surge, facilmente, a estrutura do livro: a) um discurso que introduz Josué como novo líder do povo. Deus assegura-lhe a sua assistência da mesma forma com que esteve com Moisés (Js 1); b) narrativa da ocupação da terra de forma bélica, antecedida por dois preâmbulos: uma nova circuncisão e a exploração de Jericó por espiões (Js 2,1-12,24); c) narrativa da divisão do território (Js 13,1–22,34); d) um discurso final no qual acontece a renovação da aliança (Js 23,1–24,33).

A conquista da terra e a sua divisão são os dois pilares do livro de Josué, pois a saída do Egito alcançou o seu objetivo: entrar e tomar posse da terra prometida. Os fatos narrados demonstram, acima de tudo, que Deus permaneceu fiel às promessas que havia feito aos patriarcas e a Moisés. Com a entrada, a tomada de posse e a divisão da terra entre as tribos, um novo período na história dos libertos do Egito teve início, pois, ao lado da lei já recebida no Sinai, no livro do Êxodo, e renovada nas estepes de Moab, no livro do Deuteronômio, foram lançadas as bases do futuro do povo como nação. Aconteceu a passagem do regime seminômade, vivido durante o tempo do deserto, ao regime de vida sedentária, isto é, de uma cultura eminentemente pastoril a uma cultura agrária e urbana.

A perspectiva teológica mais marcante do livro recai sobre a figura de Josué como um servo bem sucedido nas suas empresas porque foi obediente à Torá. Josué representa o tempo da formação do piedoso judeu que aprende na dureza da existência, nesse caso o tempo do deserto, a ser fiel a Deus pelo serviço. A geração comandada por Josué pode ser declarada exemplar (cf. Jz 2,10), salvo o incidente que se deu com a violação do anátema (cf. Js 7,1-26) e as dificuldades para a conquista de Hai (cf. Js 8,1-29). A ligação de Josué com Moisés tem uma função pedagógica, pois o discípulo da lei conseguiu seguir os passos e as orientações do mestre da lei. Do ponto de vista religioso, o principal elemento teológico do livro diz respeito à fidelidade a Deus através da obediência à Torá. Josué figura como exemplo disso e suas façanhas vitoriosas são narradas como prova de que Deus recompensa o justo por ser fiel à sua vontade. Esta perspectiva aparece, de forma clara, no final do livro, pois o foco central recai sobre o empenho das tribos que se comprometem a se manter fiéis à aliança, sabedores de que toda transgressão será devidamente punida por Deus.

3 Juízes

Em hebraico, este livro é denominado šōpeṭîm, um particípio plural masculino absoluto (“os que julgam”), derivado do verbo šāpaṭ, que significa “julgar”, no sentido de estabelecer o direito e a justiça, isto é: manter o povo na fidelidade ao Deus da aliança. Em grego, é denominado Krítaí (“Juízes”). O título Juízes representa o reconhecimento dado aos chefes do povo após a morte de Josué (cf. Jz 2,16). Além disso, no próprio livro os juízes são chamados de “salvadores” (cf. Jz 2,16.18; 3,9.15.31; 7,7; 10,1), porque, como líderes, atuaram em diversas situações de litígio, principalmente frente aos inimigos circunvizinhos. Foram suscitados por Deus para livrar o povo de alguma ameaça externa, trazendo a paz (cf. Jz 3,9; 4,6; 6,34). Pode-se dizer que sobre esses líderes recaem três características principais: a) foram escolhidos por Deus; b) receberam um carisma especial; c) tinham uma força particular de Deus em função da missão salvífica (combate aos inimigos).

A estrutura do livro é facilmente percebida: a) introdução: Jz 1,1–3,6, contendo uma recapitulação da ocupação de Canaã (Jz 1,1–2,5) e apresentação esquemática da perspectiva teológica do livro (Jz 2,6–3,6); b) corpo: Jz 3,7–16,31, contendo as narrativas das façanhas dos juízes; c) dois apêndices: Jz 17,1–18,31, que apresenta a idolatria de Dã, e Jz 19,1–21,15, que apresenta o crime dos benjaminitas e a guerra das tribos contra Benjamim.

O livro dos Juízes, por um lado, parece continuar a sequência do livro de Josué. Por outro lado, porém, o foco do livro continua sendo a conquista da terra e o assentamento das tribos. Esse assentamento prepara uma nova e grande etapa da história do antigo Israel na terra: a instituição da monarquia (cf. Jz 17,6; 18,1; 19,1; 21,25), que acontecerá no livro de Samuel, com a unção de Saul. Os juízes representam, então, uma instituição política intermediária entre o regime tribal e o regime monárquico, preparando o terreno para o surgimento do carisma profético.

O livro possui uma profunda teologia da história religiosa do povo eleito: se foi vítima de seus inimigos, a causa deve ser buscada na sua infidelidade; se Deus o libertou pela missão de um juiz, se deu por pura misericórdia, pois desde os tempos do Egito continuou ouvindo os seus gritos e gemidos de aflição.

O principal objetivo do livro é mostrar o castigo divino como consequência do pecado e a conversão como caminho que conduz à salvação (cf. Jz 2,11-8). Jz 2,6–3,6 permite visualizar o objetivo principal do livro: pecado de apostasia (cf. Jz 2,11; 3,7-12); entrega aos inimigos (cf. Jz 2,14; 3,8.12); clamor a Deus (cf. Jz 2,15; 3,9.15); envio do juiz (cf. Jz 2,16; 3,9.15); libertação dos inimigos e tempo de paz, por 20, 40, 80 anos (cf. Jz 3,11.30). Esse objetivo aparece exemplificado nas narrativas dos juízes: seis são mais detalhadas, denominados Juízes Maiores e seis mais breves, denominados Juízes Menores. Assim se alcançou o número doze, simbolizando as doze tribos de Israel.

Juízes Maiores Juízes Menores
Otoniel Jz 3,7-11 Samgar Jz 3,31 (5,6)
Aod Jz 3,12-30 Tola Jz 10,1-2
Barac/Débora Jz 4,1-24; 5,1-31 Jair Jz 10, 3-5
Gedeão Jz 6,1–8,35 Abesã Jz 12,8-10
Jefté Jz 10,6–12,7 Elon Jz 12,11-12
Sansão Jz 13,1–16,31 Abdon Jz 12,13-15

O esquema pecado, castigo e libertação se repete na história dos Juízes Maiores. A tradição talmúdica atribuiu a autoria do livro dos Juízes a Samuel. A crítica moderna, porém, aponta para o fato de que existe um longo processo de coleção das tradições, redações e composições deuteronômico-deuteronomistas feitas antes e durante o exílio na Babilônia, e acréscimos posteriores ao exílio. Não é possível dizer se as tradições orais estariam calcadas em autênticas memórias sobre os heróis locais e os conflitos que existiram durante o período dos assentamentos. Essas memórias foram conservadas e transmitidas de forma poética (cf. Jz 5), fábula (cf. Jz 9,8-15) ou em narrativas populares.

Nos últimos vinte anos, fortes ataques foram feitos à autenticidade dos fatos narrados, devido às recentes descobertas arqueológicas feitas por Israel Finkelstein, em diversos sítios: Meguido, Hazor e Guézer. O quadro histórico descrito no livro pouco ou nada tem a ver com os resultados obtidos pela arqueologia na região montanhosa durante o período do Ferro I (1150–900 aC). Acredita-se que na base do surgimento do Israel pré-monárquico estiveram transformações sociais muito complexas entre os povos que habitavam o território (pastores, nômades, agricultores) e não os conceitos teológicos tardios de pecado e redenção. No livro, então, esse contato do grupo que atravessou o Jordão sob o comando de Josué com os povos cananeus sobressai no período dos juízes (1200 – 1040 a.C.) pelo predomínio dos aspectos teológico-religiosos em roupagem histórica.

4 Rute

O livro recebe o nome de uma das personagens principais: Rute, uma estrangeira moabita, que figura ao lado de Noemi, uma judaíta de Belém. Embora breve, com apenas quatro capítulos, o livro possui uma riqueza muito grande de ensinamentos e se presta a vários tipos de interpretação pela diversidade de temas nele contidos: a carestia; a morte dos varões; a saída de Canaã em busca da sobrevivência; as relações entre nora e sogra; a prática dos mandamentos; o levirato; o direito do resgate da terra; a preocupação com a viúva e o estrangeiro; a bondade do homem em relação à mulher; a complementaridade entre o homem e a mulher; a virtude da mulher estrangeira etc.

O livro está estruturado, basicamente, em três partes: a) uma introdução (Rt 1,1-5); b) um corpo (Rt 1,6–4,12); c) uma conclusão (Rt 4,13-22). O corpo do livro transcorre em torno de decisões, de diálogos, de ações e de reações que movimentam a trama narrativa que vai evoluindo, de forma moderada e lenta, nas unidades ou episódios em cada capítulo, até atingir um final desejado.

  A trajetória geográfica interage com a trajetória demográfica: de Belém para os campos de Moab, a morte e as chances de sobrevivência predominaram sobre Noemi e sua família; dos campos de Moab para Belém, a vida e as chances de sobrevivência predominaram para Noemi e sua família, alcançaram os belemitas e, por Davi, todo o Israel. Rute, com a sua decisão e a sua profissão de fé no Deus de Noemi, foi o suporte dessa mudança ao lado de Booz.

  Assim, Rt 1,1-5 corresponde a Rt 4,13-22: a situação de morte foi revertida em vida; Rt 1,6-19 corresponde a Rt 4,1-12: a impossibilidade de um novo matrimônio é revertida para Rute e favorece Noemi; e Rt 1,20-22 corresponde a 3,1-18: a amargura de Noemi foi transformada em esperança. A história de Noemi alcançou um desfecho favorável graças à decisão de Rute em continuar com ela e graças a Booz, que veio ao encontro das necessidades de Noemi com generosidade e atenção pessoal por Rute. (FERNANDES, 2012, p. 23-5)

O livro de Rute mostra Deus encontrando-se com o homem no tempo e no espaço, no movimento e no mistério que envolve a morte e a vida, fazendo-o participar do seu amor previdente e providente. Assim como Deus não estava ausente da vida de Noemi, pois através de Rute e do seu amor revelaram-se a sua presença e a sua ação, também não está ausente de cada ser humano, pois o seu amor salvífico continua agindo na história.

  A situação inicial de penúria, agravada pela morte dos varões e pela desesperança de Noemi, aparece confrontada com a situação final. O desfecho foi se desenrolando, paulatinamente, na medida em que Rute foi assumindo o protagonismo ao lado de Noemi e de Booz, até alcançar o clímax desejado no matrimônio e no filho gerado que transformaram, completamente, a tragédia em felicidade, isto é, a morte em vida.

  A solução do problema veio acompanhada de uma revelação que, evidenciando Davi, ofereceu um elemento para que o livro de Rute ficasse em aberto e a narrativa pudesse prosseguir nos livros de Samuel e Reis (cânon da LXX/Vulgata), mostrando que, em última instância, Deus é quem interveio e transformou a penúria em abundância. (FERNANDES, 2012, p. 106-7)

5 1-2 Samuel

Na Bíblia Hebraica, estes dois livros eram um só rolo. A divisão em dois livros apareceu na LXX, a Vulgata seguiu e somente entre os séculos XV-XVI dC tal divisão passou para a Bíblia Hebraica. O arco temporal abarcado por 1-2 Samuel é muito amplo: vai desde o nascimento de Samuel até, praticamente, a morte do rei Davi (1070 – 970 a.C.).

Três pontos são centrais: o fim do período dos juízes, as instituições do profetismo e da monarquia, com a unificação das tribos sob o reinado de Davi. Samuel foi o primeiro profeta por instituição (cf. 1Sm 3,19-21) e foi a figura da grande transição entre o fim do período dos juízes e o início da monarquia. Na dinâmica desses três pontos se contempla, facilmente, a estrutura de 1-2 Samuel: a) nascimento de Samuel (1Sm 1–3); b) a arca da aliança e a sua perda para os filisteus (1Sm 4–7); c) Samuel unge Saul como rei, que, por sua vez, é rejeitado por Deus (1Sm 8–15); d) Saul e Davi, perseguição deste e morte daquele (1Sm 16–31); e) efeitos da morte de Saul (2Sm 1); f) Davi é eleito rei, reina sobre Hebron e conquista Jerusalém (2Sm 2–8); g) disputas sobre a sucessão ao trono (2Sm 9–20); h) suplementos (2Sm 21–24).

Outra forma de divisão mais simples de 1-2 Samuel baseia-se nas personagens centrais: Samuel (1Sm 1–7); Samuel e Saul (1Sm 8–15); Saul e Davi (1Sm 16–2Sm 1); Davi (2Sm 2–20);  e suplementos (2Sm 21–24).

Na base de 1-2 Samuel se encontram materiais antigos provindos das tradições sobre Samuel, Saul, Davi e a arca da aliança. Esses, inicialmente, tiveram origens locais, mas foram reunidos e elaborados sob a ótica teológica deuteronômico-deuteronomista, a fim de dar respostas para diversas questões sobre os inícios da monarquia e os rumos que o antigo Israel tomou pela mudança na forma de governo. Nota-se que as tradições com as quais 1-2 Samuel foi formado querem demonstrar as implicações e a interação entre o profetismo e a monarquia, como duas forças que ajudaram a compreender a sobrevivência de Israel como nação e a sua autocompreensão como povo de Deus.

Em 1-2 Samuel se notam duplicatas e incompatibilidades: duas tradições atestam a entrada de Davi na corte de Saul. Na primeira, Davi foi chamado como músico de Saul e só depois foi posto como escudeiro do rei (cf. 1Sm 16,14-23), passando a acompanhar Saul no combate aos filisteus, pelo qual se distinguiu na luta contra Golias (cf. 1Sm 17,1-11). Na segunda, Davi é um simples pastor, desconhecido de Saul e que, a pedido do pai Jessé, vai ao campo de batalha para saber notícias de seus irmãos. Nesse momento, luta, vence Golias e passa ao serviço de Saul (cf. 1Sm 17,12-30; 17,55–18,2). Por duas vezes, Saul tenta matar Davi (cf. 1Sm 18,10-11; 19,8-10). Dois textos narram a popularidade de Davi (cf. 1Sm 18,12-16; 18,25-30); a sua fuga (cf. 1Sm 19,10-17 e 20,1–21,1) e a morte de Saul (cf. 1Sm 31,1-6 e 2Sm 1,1-16). Algumas “fontes” são citadas e usadas na formação de 1-2 Samuel (cf. 2Sm 1,18; cf. 1Cr 29,29-30; 27,24).

Existem três posturas sobre a monarquia: a) antimonárquica, pela qual Deus rejeita a monarquia (cf. 1Sm 8,1-22; 10,17-25); b) pró-monárquica, pela qual Deus revela as suas intenções a Samuel (cf. 1Sm 9,1–10,16); c) neutra, pela qual a monarquia é dada a Saul pelos seus méritos de bravura (cf. 1Sm 11,1-15).

Apesar de o gênero narrativo prevalecer em 1-2 Samuel, existem algumas composições poéticas: o cântico de Ana (cf. 1Sm 2,1-10); a elegia de Davi a Saul e Jônatas (cf. 2Sm 1,17-27); o hino de ação de graças de Davi (cf. 2Sm 22,2-51 paralelo ao Sl 18) e as últimas palavras de Davi (cf. 2Sm 23,1-7).

Em 1-2 Samuel, o tema da aliança é importante. Deus fez uma aliança com Davi, pautada na Lei e na promessa de estabilidade da casa e do reino davídico, pelo qual surge o tema do messianismo régio (cf. 2Sm 7,1-17). Os filisteus figuram como principal inimigo e, assim, fica estabelecido o vínculo com o livro dos Juízes, em particular os capítulos que dizem respeito às narrativas sobre Sansão (Jz 13–16). O ciclo narrativo sobre Davi tem seu prenúncio no livro de Rute. As figuras de Saul e Davi são antagonizadas em torno da figura de Samuel. Coube ao povo eleito e, nesse, aos eleitos para o bem do povo não ab-rogar para si poder, títulos ou direito à realeza. Do ponto de vista teológico, 1-2 Samuel aponta para as condições do reinado de Deus com o seu povo. A iniciativa, que parecia ter origem no desejo do povo, pela lógica interna partiu do próprio Deus.

6 1-2 Reis

1-2 Reis, também como no caso de 1-2 Samuel, formava um único rolo na Bíblia Hebraica, denominado de Melākîm. A divisão apareceu na LXX (βασιλέων τρίτη-τετάρτη: 3º e 4º Reinos) e foi seguida pela Vulgata (Liber regum tertius, quartus). Somente entre os séculos XV–XVI dC, a divisão em dois livros foi adotada na Bíblia Hebraica. Assim, 1-2 Samuel era 1-2 livros dos Reinos e 1-2 Reis, 3-4 livros dos Reinos. O arco temporal coberto por 1-2 Reis é muito maior que 1-2 Samuel: vai desde a morte de Davi, com a consequente entronização de Salomão, até a anistia dada por Evil Merodak ao rei Yehoākîn (970–562 aC).

1-2 Reis pode ser dividido em três partes: a história de Salomão e seu reinado, que tem início no contexto da morte de Davi (1Rs 1–11); a história da monarquia dividida: Reino do Norte (Israel), até a destruição de Samaria, sua capital, ocorrida em 722/21 aC (1Rs 12–2Rs 17), e Reino do Sul (Judá), até a destruição de Jerusalém, sua capital, ocorrida em 587/6 (2Rs 18–25). De 1Rs 12 a 2Rs 17, a história corre paralela entre os dois reinos. 2Rs 18–25 ocupa-se somente do Reino do Sul. Os reis de Judá são apresentados em três categorias: maus, porque idólatras: Abdias (cf. 1Rs 15,3.6), Acaz (cf. 2Rs 16,2-4), Manassés (cf. 2Rs 21,2-9), Joacaz (2Rs 23,32); bons, porque, não sendo idólatras, permitiram o culto nos lugares altos: Asa (cf. 1Rs 15,11-13), Josafá (cf. 1Rs 22,43-49), Joáz (cf. 2Rs 12,2b-3), Amasias (cf. 2Rs 14,4), Azarias (2Rs 15,3s), Joatam (2Rs 15,34); e ótimos, porque, além de não terem sido idólatras, combateram a idolatria e seus focos: Ezequias (cf. 2Rs 18,3-5) e seu bisneto Josias (cf. 2Rs 22,2;23,25).

A metodologia usada para apresentar cada um dos monarcas segue um esquema: entronização, duração do reinado, idade do rei, um juízo sobre a conduta, descrição da morte, sepultura e seu sucessor. Cada rei que sobe ao trono, seja do norte ou do sul, é descrito em sincronia com o que já está no trono, seja do norte, seja do sul. Os reis de Judá receberam um tratamento diferenciado em relação aos reis de Israel. A redação foi feita em Judá, por autores da corrente deuteronômica-deuteronomista, dado que explica a razão desse tratamento diferenciado. O elemento central é o juízo que recai sobre o comportamento religioso de cada rei no tocante às suas relações com Deus, as outras divindades, o culto e a aliança. No caso dos reis de Israel, o parâmetro tomado foi o idólatra Jeroboão. No caso dos reis de Judá, o parâmetro tomado foi o amado e fiel Davi.

Alguns reis receberam tratamento mais diferenciado, enquanto que de outros foram dadas apenas algumas notícias. O autor desejou mostrar se o rei foi fiel ou infiel a Deus e quais as consequências diretas das suas atitudes. Nesse sentido, 1-2 Reis atesta uma “história da salvação” em andamento, na qual os planos salvíficos de Deus estavam se concretizando: como bênçãos para os fiéis e como maldição para os infiéis, base da teologia da retribuição. O parâmetro é a aliança e, com relação a essa, o reino de Judá, isto é, dos descendentes de Davi, se tornou depositário das promessas messiânicas (cf. 2Sm 7,1-17).

Digno de nota, além da atenção dada aos reis, é a atenção concedida aos profetas: Elias (1Rs 17–19.21; 2Rs 1); Eliseu (2Rs 2–13); Isaías (2Rs 19,5–20,19). Além desses, muitos outros são citados (cf. 1Rs 13,18; 20,13; 22,8). O termo “profeta”, no singular ou plural, ocorre 83 vezes em 1-2 Reis. Pode-se afirmar que estes dois livros servem de contexto sociorreligioso para apresentar a atuação dos profetas pré-exílicos: Oseias, Amós, Isaías, Miqueias, Sofonias, Jeremias. Reside, nesta dinâmica profética, a certeza que Deus atuou na história de modo particular por palavras e ações conexas entre si, realizadas pelos profetas que enviou. Por meio deles, exortando e ameaçando, se revelou a fidelidade e a infidelidade das lideranças e do povo em geral à aliança. Em confronto com a monarquia, a presença e atuação de profetas em 1-2 Reis atestavam que a Palavra de Deus era mais potente que qualquer manobra política.

Algumas “fontes” foram indicadas em 1-2 Reis. Por exemplo: “o livro dos atos de Salomão” (cf. 1Rs 11,41); “o livro dos anais dos reis de Israel” (cf. 1Rs 14,19); “o livro dos anais dos reis de Judá” (cf. 1Rs 14,29). Dentre todos esses livros, existe um em particular, “o livro da Lei”, que fora encontrado no templo de Jerusalém, durante os trabalhos de restauração promovidos pelo piedoso rei Josias (cf. 2Rs 22,8). Por essas indicações, pode-se dizer que 1-2 Reis teve a sua origem no período pré-exílico, continuou sendo ampliado durante o exílio (cf. 2Rs 25,25-30) e alcançou a sua forma final durante o período persa.

7 1-2 Crônicas

A Bíblia Hebraica denomina 1-2 Crônicas de sepēr dibrē hayyamîm: “livro das coisas diárias” ou “livro dos fatos cotidianos”. A LXX os denomina de παραλειπομένον πρῶτον δεύτερον (Paraleipoménôm primeiro e segundo), isto é, Primeiro e Segundo livro das coisas omitidas ou não transmitidas. Já o título de Crônicas deriva de São Jerônimo que os designou Chronicon totius divinae historiae, “Crônica de toda a história divina”. Como 1-2 Samuel e 1-2 Reis, também 1-2 Crônicas era, originalmente, um único rolo. A divisão foi feita na LXX, seguida pela Vulgata e nos séculos XV–XVI dC tal divisão passou para a Bíblia Hebraica.

Os livros de 1-2 Crônicas podem ser divididos em quatro partes: a) de Adão a Davi (1Cr 1–10): listas genealógicas, mostrando que a salvação é universal. Todos os descendentes de Adão esperam a realização das promessas feitas a Abraão. Saul foi um precursor de Davi, mas não foi um rei que agradou a Deus como Davi (cf. 1Cr 10,13); b) Davi, além de rei, é legislador e o fundador do culto celebrado no templo de Jerusalém (1Cr 11–29): o Reino de Davi (1Cr 11–14), a arca na cidade de Davi (1Cr 15–20), a preparação para a construção do templo (1Cr 21–29); c) Salomão foi o sucessor de Davi, a quem tocou a construção do templo (2Cr 1–9); d) os reis de Judá são os legítimos sucessores de Davi (2Cr 10–36).

A grande preocupação ou objetivo que se encontra em 1-2 Crônicas é manter viva no povo a consciência de ser eleito. A experiência do exílio na Babilônia não retirou nem alterou o sentido e o valor da eleição. Deus é fiel, continua amando o seu povo e requer fidelidade e obediência à sua Lei. A figura de Davi é central, pois a ele foi feita, pela boca do profeta Natan, a promessa de que sua dinastia subsistiria (cf. 1 Cr 17,1-15). Os reis de Israel são ilegítimos e ficaram fora do plano de Deus, razão pela qual a sua história não foi narrada.

Visto que durante e depois do exílio na Babilônia a monarquia não continuou, foram acentuadas as realizações religiosas e cultuais de Davi, rei ideal e segundo a vontade de Deus (a arca em Jerusalém, o desejo do templo, a elaboração dos Salmos). O culto tornou-se o forte elemento de união e identificação do povo eleito (cf. 2Cr 2–7). Guardar o culto, instituído por Davi, tornou-se o ato preservador da identidade do povo. Assim, a comunidade pós-exílica, cultuando Deus como no tempo de Davi, poderia esperar um novo Davi: o Messias.

Dos reis julgados bons em 1-2 Reis, tudo que possa depor contra eles não é referido (adultério de Davi, idolatria de Salomão na velhice, crueldade de Manassés etc). A história da monarquia contada em 1-2 Crônicas é um relato ideal da dinastia davídica, razão pela qual não se ocupou com os reis de Israel. Com isso, não foi dado espaço para os ciclos de Elias (cf. 2Rs 17,1–2Rs 1) e Eliseu (cf. 2Rs 2–13). 2 Crônicas concluiu-se com o edito de Ciro, pelo qual não apenas permitiu que os judeus voltassem para o seu país, mas declarou-se encarregado pelo Deus dos judeus para lhe reconstruir o templo em Jerusalém (cf. 2Cr 36,22-23).

Em 1-2 Crônicas transparece a teologia do Reino de Deus centrada no ideal teocrático. A base desse é a aliança de Deus com Davi (cf. 1Cr 17,13-14). Na aliança com Davi, o povo se une a Deus e o Reino de Deus está lançado na terra, destinado a ser universal. Por isso, sob Davi povos estrangeiros e até egípcios estão congregados. O rei, o culto e o santuário são como uma única realidade sagrada. Por isso, o rei é quem determina o funcionamento do templo que será construído pelo seu sucessor. No templo está o trono sobre o qual Deus reina sobre Israel e os povos do mundo inteiro, derramando as suas bênçãos. Tudo gira em torno do templo e o seu culto é celebrado com salmos, acompanhados por diferentes instrumentos musicais (cf. 2Cr 5,11-14; 6,6; 9,25-30; 30,21). Israel é o povo da aliança, uma comunidade cultual e consagrada, um “reino de sacerdotes” (cf. Ex 19,6). Deus é santo, razão pela qual pode manifestar o seu amor e o seu ciúme pelo seu povo. Quando o povo é fiel ao reino davídico, Deus o defende e protege, mas o castiga paternalmente quando despreza o seu amor.

Quando se compara 1-2 Crônicas com 1-2 Sm e 1-2 Rs, percebe-se que a história foi vista sob um forte ponto de vista teológico: universalismo e continuidade da história (1Cr 1–9); Davi é tido desde o início como rei das doze tribos (1Cr 11), enquanto que em 2 Sm 5,1-5 por primeiro reinou sobre Judá e Benjamim, e só depois de sete anos passou a reinar sobre as tribos do norte; 1-2 Crônicas procurou evitar falar das guerras e das etapas políticas do reinado de Davi, para enfatizar a sua figura como legislador, em particular o seu empenho para organizar o culto e a construção do templo de Jerusalém; 2Sm 24 afirma que foi a ira de Deus que incitou Davi a recensear o povo. Já em 1Cr 21, foi Satã quem incitou Davi; 2Sm 24,24-25 afirma que Davi pagou cinquenta ciclos de prata pela eira e pelos bois para construir um altar para Deus. Já em 1Cr 21,25-27, Davi pagou seiscentos ciclos de ouro e apareceu um fogo do céu e um anjo; 1Cr 22 refere-se com ênfase aos preparativos para a construção do templo; 2Cr 29–31; 34–35 enfatizam a reforma religiosa empreendida por Ezequias e Josias.

8 Esdras

O livro recebe o nome do personagem protagonista, apesar de sua entrada em cena não ocorrer antes do capítulo sétimo. Esdras foi filho de Seraías, que pertencia à família do sumo sacerdote Aarão, e foi descrito como sacerdote zeloso e profundo conhecedor da lei de Moisés (cf. Esd 7,1-6.12.21). O livro de Esdras, originalmente, formava uma única obra com o livro de Neemias. A subdivisão em dois livros foi feita pelos tradutores da LXX e somente na Idade Média foi assumida na Bíblia hebraica. Ambos os livros podem ser lidos como continuação de 2 Crônicas. Além do livro canônico, existem outros cinco livros com o título de Esdras, mas são apócrifos. Algumas passagens estão escritas em aramaico (Esd 4,8–6,18; 7,12-26), língua oficial do império persa.

O livro de Esdras foi provavelmente composto em Jerusalém no século IV aC, e narra o regresso de um primeiro grupo de judeus exilados para Jerusalém (Esd 1–2), a fim de reconstruir o templo que fora destruído pelos babilônios em 587 aC (Esd 3–6). Esta primeira fase pode ser situada entre os anos 520-515 aC e aconteceu sob o comando de Zorobabel, que pertencia à estirpe de Davi, e Josué, filho de Josedec, que era de linhagem sacerdotal. O livro de Ageu e a primeira parte do livro de Zacarias, capítulos 1–8, ajudam a compreender e completar esse momento histórico. O comando de Esdras, porém, aconteceu quase um século depois do regresso do primeiro grupo. Com Esdras, um segundo grupo de exilados regressa para Jerusalém (Esd 7–8), a fim de reorganizar a vida social e cultual. Para realizar a sua missão, Esdras enfrentou as questões relativas ao culto e aos matrimônios mistos, exigindo a estrita observância da lei de Moisés (Esd 9–10).

Assim, a renovação religiosa da comunidade judaica, em particular de Jerusalém e do seu templo, foi o principal objetivo da missão de Esdras. Essa renovação teve sua base nas promessas de Deus, segundo as quais uma nova e decisiva etapa teria início: a passagem do castigo à salvação, pois a misericórdia de Deus triunfou como seu principal ato de juízo sobre a infidelidade à aliança mosaica. Com Esdras, como se fosse um novo Moisés, ocorreu a renovação sociorreligiosa que passou a ser chamada de judaísmo.

9 Neemias

Como dito anteriormente, o livro de Neemias formava uma única obra com Esdras e, também, passou a ser denominado pelo seu principal personagem. Neemias, nome que significa “o Senhor consola”, foi filho de Hacalias e, como se depreende do livro, foi um judeu muito piedoso e zeloso pelas tradições. Viveu na cidade de Susa e foi um homem da corte, pois servia o rei Artaxerxes I Longimano (465-423 aC) como seu copeiro-mor, um alto e importante cargo para a época. É no contexto do seu serviço ao rei que tem início a trama do livro. A motivação da sua missão se desenvolveu como uma embaixada do rei em Jerusalém, a fim de que fossem reconstruídos os túmulos dos antepassados e as muralhas da cidade. No fundo, essa ação foi um passo decisivo para se devolver dignidade à cidade e aos seus habitantes.

Neemias teve insígnias de governador e o livro narra a sua missão em Jerusalém em duas etapas. Na primeira, restaurou as muralhas de Jerusalém para salvaguardar a segurança da cidade e, veemente, se opôs à exploração dos mais pobres pelos mais abastados. Na segunda, tomou sérias medidas para combater as desordens sociais, os matrimônios mistos, e os desvios cultuais, com o estabelecimento do dízimo a ser dado aos levitas e a estrita observância do sábado.

O livro trata da restauração de Jerusalém e, em particular, da reconstrução das muralhas (Ne 1–7). Ao lado de Esdras, foi feita a leitura da lei de Moisés, base para a penitência e para a renovação da aliança do povo com Deus (Ne 8–10). Enfim, trata da restauração da ordem social da comunidade judaica e da ulterior ação de Neemias (Ne 11–13).

Nota-se que o livro foi escrito tendo por base o que se poderia chamar “memórias de Neemias”, pois muita coisa aparece escrita em primeira pessoa (cf. Ne 1–7; 10; 12,27-43; 13). Ao lado disso, existem listas dos habitantes de Judá-Jerusalém (Ne 11) e “memórias de Esdras” (Ne 8–9). A forma final do livro deu-se no século IV aC em Jerusalém. Neemias juntamente com Esdras são considerados os fundadores do judaísmo, no qual se encontra a nova modalidade sociorreligiosa que passou a caracterizar o povo repatriado.

10 Tobias

O livro de Tobias, ao que tudo indica, foi originalmente escrito em hebraico ou aramaico. Esta afirmação se fundamenta nos manuscritos encontrados em Qumran, dentre os quais estava um intitulado sēper dibrê tōbit, isto é, “livro das palavras/acontecimentos de Tobit”. Contudo, esse livro foi preservado apenas através das versões gregas: na LXX, numa recensão breve, preservada no Códice Vaticano e no Código Alexandrino, e numa recensão mais longa, preservada no Código Sinaítico. A nova Vulgata segue uma forma intermédia, do Códice Vercellensis (latino). Tobias é um livro deuterocanônico e não pertence ao cânon hebraico nem ao cânon protestante.

No livro, Tobias era filho de Tobit, um judeu piedoso que fora deportado para Nínive e viveu na diáspora. Tobit foi um judeu irrepreensível perante a lei, mesmo diante das várias adversidades e perseguições. O livro, além das vicissitudes e percalços de Tobit, que ficou cego, narra, igualmente, os sofrimentos de Sara, uma parente que vivia em Ecbátana. Então, na narrativa, Tobias passou a ter um importante papel, tanto em relação ao pai, cumprindo fielmente o quarto mandamento, como em relação à Sara, que se tornou sua esposa. A dinâmica interna do livro lembra, fortemente, os relatos patriarcais contidos no livro do Gênesis.

No livro são narrados: os atos de beneficência, a cegueira de Tobit, o sofrimento de Sara, que não consegue finalizar um matrimônio, e as orações que ambos elevam a Deus, suplicando auxílio (Tb 1–3). Narra a viagem de Tobias de Nínive a Ecbátana, a fim de resgatar uma dívida. Ao longo dessa viagem, Tobias passou a ser acompanhado por um “parente” que, na verdade, era o anjo Rafael, nome que significa “cura de Deus”, pelo qual Tobias conseguiu livrar Sara do seu mal e seu pai da cegueira (Tb 4–12). Na última parte, Tobit elevou a Deus uma ação de graças, e Tobias, após a morte de seus pais, mudou-se com Sara para Ecbátana, a fim de cuidar dos sogros até a morte deles. A última informação do livro descreve que Tobias viu o que foi feito aos ninivitas e elevou a Deus uma ação de graças pela sua justiça (Tb 13–14).

O livro de Tobias pode ser classificado como um relato, um conto ou uma novela edificante que foi escrito em forma histórica. Possui um cunho doutrinal e moral muito forte, rico em sentenças de índole sapiencial e que se interessa em demonstrar que Deus não abandona o justo em suas dores e sofrimentos. O ensinamento sobre os anjos e os demônios, presente no livro, evidencia, igualmente, o desenvolvimento do pensamento religioso do judaísmo pós-exílico, muito próximo da literatura apocalíptica. A fidelidade à lei, a constância na oração e a prática das obras de misericórdia (sepultar os mortos, dar de comer ao faminto, dar de beber ao sedento, vestir os nus, acolher os peregrinos, dar esmola aos necessitados) evidenciam a justiça como amor ao próximo e servem para fortalecer a fé diante e durante as duras provações da vida. As dificuldades narradas no livro, enquadrando-o num largo contexto de perseguições, permitem situar a sua forma final entre os séculos III-II aC, no quadro das novas perseguições ocorridas no período helênico.

11 Judite

Este livro, em si, não é uma descrição exata de um período ou de fatos históricos, mas possui um forte enfoque didático, como no caso do livro de Tobias. O mesmo se aplica no que diz respeito ao texto, pois deve ter existido um provável original hebraico que não foi preservado. Existe o texto grego da LXX em três recessões e uma reelaboração hebraica bem posterior ao escrito. Os códices B, S e A são considerados os melhores, enquanto que o códice Vaticano grego Regiense depende da Vetus Latina. O texto da Vulgata é uma tradução que Jerônimo fez, provavelmente, de um texto aramaico hoje perdido. O título do livro advém da sua protagonista, Judite, que significa judia, uma jovem viúva que viveu em Betúlia, e que, por sua coragem e total confiança em Deus, conseguiu salvar o seu povo do extermínio.

O livro narra a vitória dos assírios sobre os povos circunvizinhos que não atenderam ao chamado da coalizão (Jd 1–3). Holofernes é o imponente general encarregado de conduzir uma campanha militar para punir os vassalos infiéis, dentre os quais estão os judeus. No caminho de Israel, porém, estavam os judeus que viviam em Betúlia, que foi assediada. Dali os exércitos seguiriam para Jerusalém (Jd 4–7). Ante a ameaça, Judite surgiu destemida e exortou o povo a manter a sua confiança em Deus (Jd 8–9). Para salvar o seu povo, Judite usou de astúcia e estratégia feminina, conseguindo se infiltrar no acampamento inimigo e degolar Holofernes, salvando, dessa forma, o povo judeu de um grande extermínio (Jd 10–15). Uma ação de graças foi feita pela vitória e um cântico foi elevado em reconhecimento do valor e das virtudes de Judite, que, antes de morrer com uma idade avançada, distribuiu os seus bens entre os parentes de seu falecido marido e entre os seus familiares (Jd 16).

Se, por um lado, existem forças contrárias e hostis ao povo de Deus, por outro lado, a ajuda salvífica surge através dos que a Ele se dirigem e vem como resposta à oração confiante. Nesse sentido, a ajuda divina não dispensa a participação humana e se evidencia a soberania universal de Deus tanto em relação ao  seu povo como em relação aos outros povos. O conteúdo do livro de Judite aproxima-se muito do livro dos Juízes. De fato, os feitos dessa piedosa e imponente judia são narrados como os feitos dos juízes maiores que agiram em prol da libertação e conseguiram devolver a paz para os filhos de Israel (cf. Jd 16,25).

A ausência de fundamentação histórica para os fatos narrados no livro de Judite não diminui o seu valor tanto narrativo como literário. Sobressai a vontade de mostrar como a proteção divina pode acontecer não apenas através de homens fortes e robustos, mas por meio de uma mulher que sabe usar a sua beleza com a devida astúcia. É uma exaltação, inclusive, do papel que uma viúva pode desempenhar a favor de todo o povo. Nesse sentido, Judite, a viúva, e Ester, a órfã, demonstram que Deus intervém utilizando-se dos meios humanos menos aptos. A astúcia de Judite não contradiz a moral, alegando que os fins justificam os meios, pois os efeitos positivos conseguidos estão de acordo com o direito à legítima defesa. Na dinâmica bíblica, Judite encarna a figura da mulher que esmaga a cabeça da serpente (cf. Gn 3,15), vencendo Holofernes, que encarna o antigo inimigo.

12 Ester

Ao lado do livro de Rute e de Judite, o livro de Ester encerra uma perspectiva teológica que marca, profundamente, o proeminente papel de mulheres na construção e condução da história da salvação do povo eleito. A denominação do livro também deriva da sua protagonista, descrita com traços de beleza e ornada de grandes virtudes, em particular a sabedoria. Digno de ressalva é o fato de Ester ser uma órfã que, após a morte de seus pais, fora criada por um primo, um judeu piedoso chamado Mardoqueu. Tanto o nome Ester (Ishtar) como Mardoqueu (Marduk) são de origem babilônica. O nome Ester poderia ser de origem persa stareh que significa “estrela”. Hadassa é o nome hebraico de Ester e significa “murta”. Mardoqueu possui, ao lado de Ester, um papel importante no livro, pois representa o forte vínculo de Ester não apenas com o seu povo, mas com a fé no Deus de seus pais, conforme a oração que ela fez (cf. Est 4,17k-z).

Como dito na introdução, o livro de Ester integra o bloco dos Escritos e está entre os cinco megillôt. O texto hebraico é mais breve que o texto da Septuaginta (seguida pela Vulgata). O texto em grego contém cerca de 107 versículos a mais que o texto hebraico e esses versículos foram inseridos de um modo muito lógico no texto. O livro em hebraico foi escrito por um judeu da diáspora oriental, provavelmente entre os séculos IV–III aC, mas bem informado sobre o que acontecia na corte persa. Já os acréscimos em grego podem ser colocados entre os anos 150-100 aC.

O livro de Ester pode ser subdividido em cinco partes: a) na primeira parte (Est 1–2), encontra-se uma ambientação, em que a rainha Vasti caiu em desgraça pelo descaso feito à ordem do rei e, no seu lugar, após uma seleção, Ester se tornou rainha. Enquanto isso, Mardoqueu descobriu a existência de um complô contra o rei, que na narrativa é denominado de Assuero e muito provavelmente seria Xerxes I (486-465 aC); b) na segunda parte (Est 3), Amã se torna um alto dignitário do rei e, por inveja de Mardoqueu, projeta uma estratégia para exterminar os judeus que vivem em qualquer parte do império, com a acusação de que, como Mardoqueu, rejeitam seguir a religião oficial do império persa; c) na terceira parte (Est 4–7), Mardoqueu pediu a Ester que interviesse junto ao rei para livrar o povo judeu do extermínio. Ester, após certa relutância, decidiu colocar a própria vida em risco e, com grande astúcia, conseguiu deflagrar diante de Assuero os planos de Amã contra o seu povo. Na forca que Amã havia preparado para Mardoqueu, ele mesmo foi enforcado; d) na quarta parte (Est 8–9), devido à impossibilidade de se reverter o decreto do rei emanado por Amã, os judeus receberam o direito de se defender contra os que seguissem tal decreto. É neste contexto que aconteceu a instituição da festa de Purim, que quer dizer “sortes”; e) na quinta parte (Est 10), Mardoqueu recebe grandes elogios e Assuero lhe concede uma alta dignidade, passando a ser o cortesão mais importante, estando-lhe acima somente o próprio rei.

De modo particular, o objetivo central do livro de Ester parece ser o de querer explicar a origem e o significado da festa de Purim. Contudo, sobressaem muitos pontos teológicos de grande relevância: a piedade, a oração, o amor pelas tradições religiosas, a confiança em Deus e, sem dúvida alguma, um forte nacionalismo. Apesar disso, esse nacionalismo acentuado no livro servia como uma forma de garantir a sobrevivência da identidade judaica dos que viviam fora da terra santa.

13 1-2 Macabeus

1-2 Macabeus são dois livros considerados independentes, nota-se que o estilo literário uado em cada um é bem diferente. Contudo, a resistência ao helenismo, chefiada pela família macabaica, é o dado forte e comum entre os dois livros. Antíoco IV Epifanes quis impor o helenismo à força, desencadeando perseguições contra o judaísmo; por outro lado, impôs-se a força religiosa anti-helenística encabeçada pela família macabaica. Em 1 Macabeus, a resistência é acentuadamente bélica, já em 2 Macabeus, além de bélica, a resistência também acontece através da aceitação do martírio, elemento fundamental para se introduzir a fé na ressurreição.

1 Macabeus cobre um arco temporal de aproximadamente quarenta anos: desde a ascensão de Antíoco IV Epifanes (175 aC) até a morte do sumo sacerdote Simão (134 aC). Foi escrito, originalmente, em hebraico entre os anos 100–64 aC, mas foi preservado apenas no grego da LXX que o denomina Μακκαβαίων πρῶτον, seguido pela Vulgata Primus Machabæorum. Foi escrito, provavelmente, em Jerusalém, com forte acentuação histórica e apologética. A combinação desses dois elementos não foi muito feliz. Se, por um lado, o valor histórico é digno de crédito pelos dados cronológicos e topográficos que possui, por outro lado, o seu caráter apologético está marcado por um nacionalismo exagerado.

Sem defender algum ponto doutrinal concreto ou lições morais diretas, o autor se concentrou nos elogios aos piedosos (hassideus, que deram início, provavelmente, ao grupo dos essênios), por terem perseguido e combatido os interesses políticos dos selêucidas, encabeçados por Antíoco IV Epifanes (175-163 aC). A fé ardorosa da família macabaica, porém, elucida a confiança em Deus, sem que seja citado, e na sua providência (cf. 1Mc 2,61; 3,18-20; 4,10-12; 9,46), sem a qual não teria acontecido a libertação. A observância da Lei.

1 Macabeus pode ser dividido em quatro partes: a) descrição da situação religiosa e política durante o governo de Antíoco IV Epifanes, que levou à insurreição dos judeus chefiados por Matatias (1Mc 1–2); b) lutas e vitórias de Judas Macabeu contra os inimigos e relato da sua morte gloriosa (1Mc 3,1–9,22); c) lutas sob o comando de Jônatas e a sua política de conciliação (1Mc 9,23–12,54); d) Simão assume o governo, a Judeia se torna autônoma, trazendo paz e bem-estar para o povo (1Mc 13–16). Os fatos e feitos dos três filhos de Matatias são apresentados segundo uma ordem cronológica.

2 Macabeus cobre apenas quinze anos da história macabaica (175–160 aC). Foi escrito, provavelmente, no Egito, em grego, entre os anos 130–100 aC. A LXX o denominou Μακκαβαίων δεύτερον, seguido pela Vulgata Secundus Machabæorum. Não é uma obra inédita, mas um resumo de uma obra em cinco volumes de Jasão de Cirene (cf. 2Mc 2,19-32), um judeu piedoso da diáspora cirenaica. Uma obra que não foi conservada. Os pontos centrais dessa obra teriam sido: a santidade e inviolabilidade do templo de Jerusalém (cf. 2Mc 3,1-40); intrigas dos ímpios, ira de Deus que pesa sobre Israel e os mártires que expiam o pecado do povo (cf. 2Mc 4–7); a ira deu lugar à misericórdia pela vitória sobre os ímpios, com a consequente dedicação do templo de Jerusalém (cf. 2Mc 8,1–10,9); o templo ficou livre de profanação interna e externa (cf. 2Mc 14,1–15,37). O estilo adotado é exuberante: as lutas, os atos heroicos de Judas Macabeu e o testemunho de fé de alguns mártires foram contados com riqueza de detalhes (cf. 2Mc 6,18-31; 7,1-42); mas, também, oratório, pois procura agradar, mover e persuadir o leitor. As personagens são descritas de forma antitética, ímpios (antipáticos) e justos (simpáticos) estão em oposição. A crueldade dos ímpios sobre os mártires é descrita com grande realismo (cf. 2Mc 6,18–7,42).

2 Macabeus pode ser dividido em quatro partes: a) cartas dos judeus de Jerusalém aos irmãos da diáspora alexandrina no Egito e prólogo (2Mc 1–2); b) fatos ocorridos durante o governo de Seleuco IV Filopatro (2Mc 3,1–4,6); c) pressão do helenismo e perseguição durante o governo de Antíoco IV Epifanes (2Mc 4,7–10,9); d) lutas de Judas Macabeu contra Antíoco V Eupátor e contra Demétrio I Soter, com vitória sobre Nicanor (2Mc 10,10–15,39). Narra-se, com isso, a perseguição dos judeus sob Antíoco IV Epifanes e a luta de libertação comandada por Judas Macabeu até a sua vitória sobre Nicanor (175–161 aC).

Deus interveio na história do seu povo não apenas pela ação dos macabeus, mas com prodígios: um cavalo e seu cavaleiro misteriosos castigam Heliodoro (cf. 2Mc 3,23-29); cavalos e cavaleiros reluzentes aparecem por quarenta dias (cf. 2Mc 5,1-4); cavalos e cavaleiros celestes ajudam Judas a vencer Timóteo (cf. 2Mc 10,29-30); um cavaleiro em vestes brancas surge bramindo sua espada dourada e os judeus vencem os inimigos (cf. 2Mc 11,8-12). Além dessas intervenções divinas, 2 Macabeus possui afirmações teológicas que mostram certa evolução quanto à concepção da ressurreição dos mortos (cf. 2Mc 6,26; 7,11.14.23; 14,46), à fé na vida eterna (cf. 2Mc 7,9-14), à intercessão dos vivos em favor dos mortos (cf. 2Mc 12,38-46) e à eficácia das orações pelos mortos (cf. 2Mc 12,38-46). Afirma-se a criação do mundo ex nihilo (cf. 2Mc 7,28). Disto resulta que 2 Macabeus acentua muito mais o aspecto religioso da resistência ao helenismo, multiplicando as orações antes das lutas, a observância do sábado, a acentuação do martírio pela fé e a crença na ressurreição com a justa retribuição para justos e injustos.

Considerações finais

Os livros de Josué, Juízes, 1-2 Samuel e 1-2 Reis estão repletos de crueldades e grandes massacres. O ouvinte-leitor hodierno tem toda a razão de ficar perplexo, mas, ao se aproximar desses livros, é convidado a perceber a clara diferença que existe no agir dos protagonistas envolvidos nas narrativas: Deus e o antigo Israel em formação.

A história e as vicissitudes deste povo estão narradas na Bíblia à maneira do que se fazia em todo o Antigo Oriente Próximo (AOP), através de relatos de guerras, de conquistas, de duelos, de ocupações e destruições territórios, de deportações etc. O antigo Israel está inserido no seu tempo e na sua cultura, usa a mesma linguagem e as mesmas imagens que os povos circunvizinhos. Existe na sequência narrativa da conquista da terra prometida (Josué), das batalhas contra os filisteus (Juízes), do fim do tempo dos juízes e do evento da monarquia (1-2 Samuel), das guerras de Judá e de Israel contra os povos vizinhos (1-2 Reis) uma marcante dependência cultural do vocabulário militar, que caracterizava a história dos povos antigos: egípcios, assírios, babilônios, persas, gregos, romanos e, sem dúvida alguma, de muitos povos atuais.

O ato de ler e de estudar esses livros exige capacidade de discernimento, pelo qual se aprende a separar o que é contingente e pertencente às vicissitudes da história do antigo Israel (conquista da terra, guerras com os povos vizinhos, campanhas militares dos seus reis), do que tem valor perene, porque pertence à história da salvação: a luta de Deus contra o mal e o pecado, afirmando a sua soberana realeza sobre tudo o que acontece no mundo.

Um estudo histórico-crítico de Josué a Reis demonstra que a conquista da terra foi lenta, difícil e que a sua perda deveu-se à negligência política de seus reis. A versão da conquista e da perda da terra, nesses livros, é muito mais teológica e profética do que histórica. Josué foi o sucessor de Moisés que, pela obediência à Lei de Deus, efetuou a conquista da terra, porque Deus, verdadeiro protagonista, cumpriu a sua palavra e as promessas feitas aos patriarcas. Em contrapartida, com o livro dos Juízes se demonstra que a fidelidade da geração liderada por Josué não se manteve (Jz 2,10 tem a ver com Ex 1,8 e explica a mudança na conduta: a nova geração desconhece os feitos). Com isso, se introduz a necessidade da formação pedagógica que será empreendida pelo conhecimento da Torá. A dialética da aliança é fundamental para se compreender esses livros: quando o povo se volta para Deus e é obediente, é abençoado; quando abandona Deus e é desobediente, é castigado.

Os livros de 1-2 Crônicas, Esdras e Neemias, vistos no seu conjunto literário e no contexto histórico a eles vinculado, supõem e comentam: a dolorosa experiência do exílio, a reconstrução da sociedade hebraica, a partir do retorno dos exilados, e uma longa vivência do judaísmo, isto é, a nova fase da religião de Moisés que tem início após o retorno dos exilados. Alguns elementos atestam a época tardia desses três livros: a forte influência da teologia sacerdotal; a presença do ideal teocrático com Davi e Salomão. Jerusalém e o templo estão no centro desta teocracia; a Lei de Moisés (Torá) é “divinizada”; os fatos e feitos narrados foram adaptados em função da sua ideologia positiva da história.

Todas as instituições que se ligam ao culto foram enfatizadas nos livros de 1-2 Crônicas, Esdras e Neemias: a transladação da arca (cf. 1Cr 15–16); a dedicação do Templo (cf. 2Cr 5–7); a reforma do culto e a celebração da páscoa sob o reinado de Ezequias (cf. 2Cr 29–31); a solenidade da páscoa sob Josias (cf. 2Cr 35); a restauração da liturgia, após o exílio, sob Josué e Zorobabel (cf. Esd 3); a dedicação do novo Templo e a celebração da páscoa (cf. Esd 6,16-22); a celebração da festa dos Tabernáculos (cf. Ne 8,13-18); a dedicação dos muros de Jerusalém (cf. Ne 12,27-43). Sacerdotes e levitas, músicos, cantores, porteiros, personagens envolvidos no culto e que não tiveram destaque nos livros de Josué a Reis, receberam um tratamento diferenciado (cf. 1Cr 9,17-29; 15,16-21; 16,4-42; 2Cr 5,12-14; Esd 3,10-11; 7,7; Ne 7,1-45; 11,17-19). Na história narrada nesses livros, manifesta-se o plano de Deus: tem início com a criação, segue-se com a eleição de Israel, o ideal monárquico com a dinastia de Davi até o exílio babilônico, etapas que acabaram por reconduzir à reforma do antigo Israel e das suas instituições empreendidas pelos reformadores Esdras e Neemias.

Os livros de Rute, Tobias, Judite e Ester contextualizam a Lei de Deus sob diferentes ângulos. São, fundamentalmente, literatura edificante, pela qual a vida e suas vicissitudes são o campo fértil para acontecer a interpretação e a atualização da fé. Nesse tipo de literatura, o ouvinte-leitor não apenas se depara com as situações dos personagens, mas é convidado a se deixar provocar por elas, a fim de tirar lições para a sua própria vida. A providência divina é vivamente evidenciada ao lado das iniciativas humanas. As dificuldades, as dores, as provas e os sofrimentos da vida podem ser superados na fé, acentuando a consolação de Deus, mas não dispensam a participação humana. Os justos podem ser submetidos a muitas e grandes provas, mas não se deixam abater por sua fé e fidelidade a Deus.

Rute, Judite e Ester são heroínas, mulheres extraordinárias e protagonistas da salvação do povo. Estas mulheres exemplificam Gn 3,15 e Pr 31,10-31. Já o sonho de todo pai piedoso é ter um filho igualmente piedoso e virtuoso. Disso trata o livro de Tobias, evidenciando, em particular, o sentido e cumprimento do quarto mandamento “honrar pai e mãe” (cf. Ex 20,12; Dt 5,16). O caráter didático, parenético e sapiencial desse livro não invalida o sentido ou o valor histórico que a ele se quis atribuir, elaborados e enriquecidos testemunhos de vida exemplar, fazendo sobressair a caridade, a pureza legal e os três pilares da piedade judaica: a oração, a esmola e o jejum (cf. Mt 6,1-18).

 Os livros dos Macabeus descrevem uma fase ulterior da luta do povo pela própria sobrevivência. Dessa vez, o perigo não vem tanto das invasões de exércitos estrangeiros ou dos matrimônios mistos, mas da política adotada pelos reinos helenísticos que usavam a cultura como meio para unir diversos componentes dos seus impérios. Estes impérios conheciam, por certo, o valor da cultura e da educação. Basta lembrar da importância, no mundo antigo, da Biblioteca de Alexandria dos reis Ptolomeus, cerca de 305 aC. Mais importante ainda foi a introdução do sistema grego de educação sob a forma de “ginásios” em diversas partes do império (cf. 1Mc 1,14). O impacto da cultura grega era forte e o povo judaico se sentiu imediatamente ameaçado. No mundo antigo, religião, cultura e política eram frequentemente inseparáveis. (SKA, 2015, p.150-1)

O processo de helenização da Palestina teve início muito antes das façanhas atribuídas aos irmãos macabeus. Esse se deu a partir do momento que Alexandre Magno conquistou militarmente o vasto império persa. Com a conquista de Tiro, em 331 aC, toda a Palestina passou para as mãos do novo conquistador. Com Alexandre Magno e seu exército chegaram o intercâmbio comercial, a literatura, as artes, os esportes, isto é, uma nova cultura com um novo estilo de vida. O peso e a imponência da cultura grega constituíram uma ameaça para o judaísmo que, por sua vez, pareceu insensatez às lideranças gregas. No fundo, o helenismo foi pensado como uma metodologia de dominação, ao qual o judaísmo macabaico não quis se submeter. O próprio judaísmo, na época que viu reinar a rivalidade entre selêucidas (Babilônia e Síria) e ptolomeus (Palestina e Egito), já estava dividido em facções ou partidos, e conflitos internos já vinham enfraquecendo as tradições e as práticas religiosas. 1-2 Macabeus representaram, inicialmente, a classe dos resistentes ao helenismo, mas com a ascensão ao poder e implantação de nova política teve início o governo asmoneu. Este nome foi tomado, de acordo com Flávio Josefo (Ant XII, 6,1; XX, 8,11; 20,10), de Simão Asmoneu, da dinastia macabaica que reinou de 134 a 36 aC, ano que levou, por imposição romana, Herodes Magno não apenas ao trono, mas ao extermínio dos descendentes dos macabeus.

Leonardo Agostini, PUC Rio. Texto original português

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Seguimento de Cristo

Sumário

1 Participação em  Cristo

2 Imitação de Cristo

2.1 Vinda do Reino

2.2 Fraternidade universal

2.3 Crescimento em humanidade

2.4 Abandono na providencia

2.5 Lutas, conflitos, perseguições e martírio.

2.6 Necessidade de uma decisão pessoal

3 Seguimento de Cristo

3.1. Participação no sacrifício da cruz

3.2. Triunfo sobre o mal e sucesso da criação

3.3. Vida na liberdade dos filhos e filhas de Deus

4 Conclusão

5 Referências Bibliográficas

O “seguimento de Cristo” é um modo de participar em Cristo, participação que é possível para todos os seres humanos e toda a criação. Deus quer e realiza a salvação da humanidade, por caminhos que a Igreja pode ignorar (GS 22). Os cristãos que seguem a Cristo, em particular, o fazem de uma forma semelhante a outros seres humanos que, sem saber, também são chamados pelo Filho para compartilhar seu Pai e viver como irmãos. Os cristãos se realizam em Cristo em virtude de sua chamada para imitá-lo e segui-lo como uma pessoa inteiramente consagrada à vinda do reino de Deus.

1 Participação em  Cristo

“Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos ou principados, quer potestades: tudo foi criado por ele e para ele, ele é antes de todas as coisas, e nele tudo subsiste “(Cl 1,15-17).

A humanidade carrega a marca do amor de Deus com a qual foi criada e redimida. O amor livre e criador de Deus exige dela uma resposta nos mesmos termos. A humanidade atinge a plenitude para a qual Deus chama na medida em que se ama gratuitamente a si mesma e a toda a criação.

Todos os seres humanos são chamados por Deus para amar com o  amor com que ele ama. O Concílio Vaticano II ensina que a caridade é o critério decisivo para a salvação. Uma pessoa que não sabe nada de Cristo, ou que não acredita nele, se ele ama, é salvo; pelo contrário, é inútil ter sido batizado, se não ama (LG 14). O Concílio garante também que Deus quer a salvação de toda a humanidade e a busca por meios que a Igreja pode ignorar (GS 22). Os não-cristãos atingem o objetivo para o qual foram criados na medida em que ama os seus próximos e cuidam do mundo do qual eles são uma parte.

A maneira como Deus chama o homem e a mulher para si mesmo é trinitária: Deus Pai enviou o seu Filho ao mundo para que a criação responda agradecida ao Criador, embora reconhecendo a sua finitude e pecado. Desta forma, a humanidade atinge a perfeição do Filho ressuscitado que Deus teve em mente ao criar o mundo. A Encarnação pretende que a criação atinja a sua expressão mais alta, o que exige a sua libertação do mal. O discipulado do mais humano dos homens, Jesus, torna-nos mais humana; não responder a seu apelo, no entanto, desumaniza.

No discipulado cristão é possível distinguir uma imitação e um seguimento de Cristo. Jesus chamou os discípulos para estar com ele e enviá-los a pregar o reino. Eles, imitando-o, colaboraram  com ele. Jesus compartilhou com eles seu Pai, tornando-os filhos e filhas de Deus e irmãos uns dos outros. A imitação de Cristo hoje se alimenta das fontes do Evangelho que, graças à exegese histórica crítica, mas nunca sem a compressão crente dos evangelistas, dá-nos uma imagem verossímil do Jesus da história.

O seguimento de Cristo envolve a sua imitação, mas é um trabalho essencial do Espírito que guiou a Jesus em sua vida terrena e que agora aperfeiçoa esta imitação sob o mistério pascal. Os discípulos tem acesso a Cristo em virtude do seu Espírito, e através dele discernem sua contribuição criativa na construção do reino.

Imitação e seguimento de Cristo se necessitam um ao outro e se entrelaçam. Sem imitação de  Cristo  os cristãos poderiam seguir um Jesus que não é dos Evangelhos. Sem seguimento os discípulos poderiam imitar a Cristo, sem criatividade, um modo fundamentalista e pelagiano.

2 Imitação de Cristo

2.1 Vinda do Reino

“E, depois que João foi entregue à prisão, veio Jesus para a Galileia, pregando o evangelho do reino de Deus, e dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo. Arrependei-vos, e crede no evangelho. Marcos 1:14,15” (Mc 1, 14-15).

Esta descrição do início do ministério de jesus, feita pelo evangelista Marcos, vale para os discípulos de todos os tempos..

Jesus, ao contrário de João Batista que anunciava uma punição com a possibilidade de salvação (Mt 3, 7-12), proclama a salvação com a possibilidade de uma condena (Mt 5, 1-12; Lc 6: 20-26). Para ambos há um juízo final, mas a abordagem é diametralmente oposta. O relacionamento com Deus e com o mundo dos discípulos de um e de outro tinha um matiz contrário. Por uma razão semelhante, os cristãos não devem viver no medo de errar, mas na confiança da misericórdia de Deus.

Se, por outro lado, na pregação do Batista a história tem um fim, que ele anuncia em termos negativos, para outros a história pode simplesmente não fazer qualquer sentido. Neste caso, os seres humanos atribuem valor às suas próprias realizações ou idolatram seres que oferecem uma salvação precária ou falsa. O mercado tende a colonizar todas as áreas da vida com a sua lógica de comércio e concorrência, e dá às pessoas um reconhecimento social através do consumo. Esse mercado é, como substitutivo da salvação, o ídolo do nosso tempo, como foi o dinheiro em tempos de Jesus. O reconhecimento que Jesus ofereceu na sua época, e  oferece na nossa, aos  seus discípulos, é gratuito. O reino é um presente que não tem preço. A salvação, que consiste em um  perdão incondicional e uma aceitação radical de Deus, é a melhor notícia. Os discípulos sabem que a sua vida e a história têm um propósito transcendente: o eventual caos do mundo, a culpa, a pobreza e a morte serão definitivamente derrotadas.

Os discípulos devem experimentar o amor inaudito e incomparável de Deus para vir a acreditar nele (cf. 1 Jo, 4, 16). Eles têm que saber que a fé em Deus pode fazer o impossível e, portanto, devem converter-se ao seu amor. A conversão é um ato divino e humano ao mesmo tempo, que consiste em amar com a mesma gratuidade com que Deus ama aqueles que acreditam Nele. Entrar na a lógica da conversão ao amor de Deus é, por si mesmo, a  causa de grande alegria ( Lc, 15, 11-31). A alegria é uma virtude tipicamente cristã. A alegria do reino deve  qualificar a missão cristã. Outros podem também reconhecer que Deus, já agora, vence o medo e a tristeza, e juntar-se aos discípulos.

Os cristãos discernem os sinais dos tempos, a fim de descobrir onde o reino acontecendo no presente e, com sua generosidade altruísta para o seu vizinho, esperam pela sua chegada. Eles fazê-lo com urgência apocalíptica, como protagonistas de uma história que tem um sentido transcendente e feliz, mas sem eles, sem um esforço pessoal e coletivo pode acabar mal.

2.2 Fraternidade universal

“Falava ainda Jesus à multidão quando sua mãe e seus irmãos chegaram do lado de fora, querendo falar com ele. Alguém lhe disse: “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem falar contigo”. “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?”, perguntou ele. E, estendendo a mão para os discípulos, disse: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos! Pois quem faz a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe”.” (Mt 12, 46-50).

Os laços familiares são geralmente os mais fortes. Apesar das enormes mudanças da vida em sociedade, as pessoas continuam valorizando extraordinariamente sua família ou a possibilidade de tê-la. Ela é a principal causa de felicidade ou, pelo menos, um refúgio em tempos de individualismo e desamparo. Mas os discípulos são convidados a transcender seu parentesco para viver uma familiaridade e fraternidade universal. Jesus não desprezou sua família de origem. Ao pé da cruz, ele pediu João para cuidar de sua mãe (Jo 19, 6). Mas para ela exigiu transcender seu vínculo de sangue com ele.

A fraternidade, para a qual Jesus chama, é constituída libertando e dignificando ao seu próximo. Os discípulos de Jesus têm de anunciar que Deus é Pai de todos, denunciando as formas sociais  de marginalização e realizando ações integradoras dos excluídos e descartados. Eles têm de libertar os oprimidos de todos os tipos de injustiça e ajudá-los a se tornarem indivíduos autônomos capazes de tomar suas próprias decisões e participar livremente na vida social (Mc 1, 40-45).

A fraternidade do Reino é afirmada no relacionamento com o próximo que é considerado irmão, filho de um pai que se preocupa maternalmente de todos os seres humanos. Ele também é o Pai de nossos inimigos. Por isso, é necessário perdoá-los, orar por eles e até mesmo amá-los (Lc 6, 27).

A Irmandade, no entanto, exige também aos discípulos de Cristo  atitudes e decisões coletivas. Ela deve se articular no nível social, econômico, político, cultural e religioso. Em todos estes níveis são instaladas práticas e  se configuram privilégios ou estruturas de exclusão e até mesmo fratricidas. Isso também requer dos cristãos cultivar o pluralismo, tolerar os outros e, acima de tudo, se abrir  a todos os que são diferentes. Os discípulos devem ser fatores de justiça, reconciliação e paz (Mt 5, 9).

2.3 Crescimento em humanidade

“Então, eles cumpriram tudo segundo a lei do Senhor, (Maria, José e Jesus) voltaram à Galileia para a sua cidade de Nazaré. O menino crescia e fortalecia-se, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele “(Lc 2, 39-40). O reconhecimento de Jesus de Deus como seu “Pai” fez-lhe crescer humanamente para tornar-se “o homem” (Lc 2, 49) que acabou por dar sua vida pelos seus amigos (Jo 15,13). A obediência de Jesus à vontade do Pai era o princípio integrador da sua humanidade. Jesus foi verdadeiramente homem e o homem íntegro por excelência. Dar vida aos outros foi o segredo de sua humanidade.

De forma semelhante, a plena união dos discípulos com Cristo, a sua fé nele e amor para os outros, os torna mais humanos. Ao contrário do que alguns possam pensar, a oração, a religião e a generosa dedicação aos outros não prejudicam a humanidade das pessoas, mas a realizam. Pelo contrário, o que é desumano e desumanizante é o pecado, a independência de Deus e o egoísmo com os outros.

A Imitação de Cristo dos discípulos desperta neles a possibilidade de desdobrar todo o potencial da sua humanidade criada. A entrega para a vinda do reino é o fator de maior integração intelectual e afetiva possível (Mt 19, 27-29). Assim como o amor extremo tornou possível o celibato de Jesus, a concentração dos discípulos na missão do reino os torna pessoas integradas e íntegras. Assim como a união de Jesus com o Pai cresceu ao longo do tempo, o que não lhe poupou o sofrimento, a ignorância e o fato de ter que discernir a sua vontade, os discípulos também devem crescer em seu cristianismo. Isso às vezes envolve prisões, perdas, retrocessos e novos começos.

Os discípulos de Cristo assumem eclesialmente a tarefa da evangelização da cultura e a inculturação do Evangelho, convencidos de que o Criador sigilosamente leva à sua criação à máxima plenitude possível. O anúncio do Evangelho a todas as culturas deve ter lugar sem prejuízo das suas originalidades, mas em função do seu desenvolvimento. A inculturação do Evangelho, por outro lado, exige dos mesmos discípulos um esforço para se converter a um Evangelho que não pode ser monopolizado por nenhuma cultura particular.

A missão dos discípulos requer maturidade psicológica, e a mais ampla preparação intelectual, educacional e cultural tão ampla como poderia ser todo o saber humano. Mas isso só serve à construção do reino quando os homens compartilham o mundo de acordo com a opção de Deus pelos pobres e por todos.

2.4. Abandono na providência

” Vejam como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. Contudo, eu lhes digo que nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como um deles. Se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada ao fogo, não vestirá muito mais a vocês, homens de pequena fé? Portanto, não se preocupem, dizendo: ‘Que vamos comer? ’ Ou ‘que vamos beber? ’ Ou ‘que vamos vestir? Pois os pagãos é que correm atrás dessas coisas; mas o Pai celestial sabe que vocês precisam delas” (Mt 6,28-32).

Jesus vive na confiança de seu pai e encoraja seus discípulos a fazer o mesmo. A criação transparece a ação providencial de Deus. Na criação, Jesus descobre que a ação humana deve situar-se na responsabilidade que o Pai tem sobre todas as criaturas. Ele faz a vontade de seu Pai, de maneira análoga como outras criaturas lhe obedecem pelo simples fato de serem belas.

A situação dos discípulos de então não é a de hoje. Os cristãos nascem em um mundo poluído e com deterioração ambiental progressiva. A humanidade e a natureza estão em grave perigo. A modernidade capitalista explorou sem piedade  os pobres e outras criaturas.

Desde que a crise é global, os discípulos devem se converter para corrigir o curso dos acontecimentos. Não é possível a volta atrás. Não se trata de renunciar à modernidade. A ciência e a tecnologia são necessárias para fazer as alterações necessárias. Nem vai ser necessário, por outro lado, o retorno para a sintonia animista ou fatalista de algumas culturas nativas. Os discípulos devem reestabelecer as relações entre Deus e o mundo, adotando novos estilos de vida e gerando uma cultura do cuidado dos pobres e da natureza. Eles têm que reconstruir e criar formas de relação cuidadosa com o planeta Terra cuja beleza espelha a harmonia das relações intratrinitárias.

Os discípulos enfrentam uma situação apocalíptica. Se eles não interrompem com ações pessoais e políticas a tendência de deterioração ecológica, a catástrofe é certa. Mesmo assim, eles têm que considerar que estas ações serão eficazes se for verificado que o Pai é o primeiro responsável pela sua criação. Jesus lembra-lhes: “Buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal. ” (Mt 6, 31-34).

2.5. Lutas, conflitos, perseguições e martírio.

“E aconteceu que, quando Jesus concluiu todos estes discursos, disse aos seus discípulos: Bem sabeis que daqui a dois dias é a páscoa; e o Filho do homem será entregue para ser crucificado. ” (Mt 26, 1-2).

Jesus foi morto exatamente pelo que ele tentou fazer. Seus assassinos foram capazes de dar razões diferentes, mas apenas uma as resume todas: ele foi morto por anunciar o Reino com palavras e ações perturbadoras para a paz instável da Palestina daquela época. Seu confronto com as autoridades judaicas por causa da maneira que cumprir a lei e sua atitude para com o Templo, teve consequências políticas. A crucificação foi imposta pelos romanos.

Os discípulos de Cristo tiveram, desde aquele momento, que entrar em conflito de vários tipos, na medida em que eles ouviram o chamado para compartilhar a missão de Jesus. Estes conflitos se aplicam dentro da própria Igreja. Com séculos de distância se repetem em certo sentido, as causas da luta e confronto entre Jesus e as autoridades religiosas, na maneira que os cristãos têm de compreender o cristianismo. Uma vez que o reino não é identificado apenas com o cristianismo, os discípulos de Cristo são frequentemente tensionados pela sua pertença eclesial e pela liberdade dos filhos de Deus, que foi dado a eles com o batismo.

O conflito fundamental ocorre no plano que eles compartilham com outros seres humanos. Os discípulos de Cristo pertencem ao mundo em um aspecto e não pertencem a ele segundo  outras considerações. Por isso, é normal e até necessário que eles se envolvam em confrontos econômicos, sociais, políticos e culturais. Em todos estes níveis acontecem  injustiças e iniquidades.  “Não penseis que vim trazer paz à terra. Eu não vim trazer paz, mas espada “(Mt 10, 34), lembra-lhes Jesus.

Se o mundo está mal concebido, mal estruturado e mal compartilhado, se essas deficiências são, além demais, coonestadas na Igreja, os discípulos devem se sentir desconfortáveis com elas e procurar corrigi-las, mesmo que isso lhes custe tempos difíceis ou perseguição. Ouvir o chamado de Cristo para colaborar na sua missão significa para os cristãos suportar desconforto e mal-entendidos, romper diretamente com o estabelecido, tolerar situações indignas ou sofrer com o martírio.

2.6. Necessidade de uma decisão pessoal

“E eis que, aproximando-se dele um jovem, disse-lhe: Bom Mestre, que bem farei para conseguir a vida eterna? E ele disse-lhe: Por que me chamas bom? Não há bom senão um só, que é Deus. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos. Disse-lhe ele: Quais? E Jesus disse: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho; Honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Disse-lhe o jovem: Tudo isso tenho guardado desde a minha mocidade; que me falta ainda?

Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me. E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades” (Mt 19,16-22).

O jovem rico que sai ao encontro de Jesus não está confortável com a religião que ele herdou de seus pais. Jesus pede-lhe para dar um passo estritamente pessoal. Assim, o jovem poderá ter acesso a uma autêntica experiência de Deus. Mas este passo é oneroso. Exige, de alguma forma, começar tudo de novo.

O Ocidente cristão experimentou na sua globalidade um episódio semelhante a esta situação. A Igreja enfrenta uma crise na transmissão da fé. O cristianismo não passa de uma geração a outra pela tradição. A situação religiosa em geral é complexa. Está configurada, pelo menos, por quatro fatores: um desprestigio do Cristianismo eclesiástico acusado de alienante ou colonizador; enormes mutações da religiosidade devido à confluência de diferentes crenças e à mercantilização de espiritualidades e credos; e uma secularização da cultura por causa da modernidade predominante. Nestas circunstâncias só podem ser esperados discípulos que tenham uma profunda experiência pessoal de Cristo e que optem pelo reino intimamente convencidos de seu  valor transcendente.

Os discípulos devem esperar que o cristianismo não mais passe facilmente de uma geração para outra. A fé em Cristo no futuro vai depender do testemunho de uma experiência de Deus que, no seu caso terá que ser radical. Na situação atual, eles têm de transmitir uma fé onerosa: um seguimento de Cristo que exige às pessoas uma entrega completa e gratuita de si mesmas.

3 Seguimento de Cristo

Seguir a Cristo é “imitar” o exemplo de Jesus e é, também, experiência de Cristo; é uma “imitação espiritual” de Cristo. O Espírito de Cristo ressuscitado torna possível conhecer interiormente o Jesus da história, experimentar a salvação e libertação do crucificado e ressuscitado, e reinar com ele antecipadamente na Igreja. O seguimento de Cristo é fundamentalmente experiência do mistério pascal de Jesus de Nazaré , morto por pregar o reino de Deus,  e ressuscitado como Cristo, Senhor da Igreja e do universo.

Esta participação no mistério pascal tem três dimensões soteriológicas: a) É uma expressão do sacrifício de Cristo concebido como amor até ao fim, b) é viver a vida como um triunfo sobre o pecado e a morte, e a experiência da criação bem-sucedida, c) é antecipação do reino como a liberdade dos filhos e filhas de Deus.

3.1 Participação no sacrifício da cruz

“Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a pela fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim. Não aniquilo a graça de Deus; porque, se a justiça provém da lei, segue-se que Cristo morreu debalde” (Gl 2, 20-21).

O cristão encontra na cruz a expressão máxima do amor de Deus e participa desse amor amando o próximo como Cristo nos amou. Na morte na cruz, Deus assume o ser humano em sua finitude e culpa. O Filho encarnado sofre ambas até a morte, a consequência última de uma e outra. Jesus Cristo na cruz as assume como  condição de superação.

O sacrifício da cruz não é um ato de punição de Deus pelos pecados da humanidade exercido em seu Filho sob uma substituição vicária. Também não é um ato sádico do Pai nem masoquista do Filho. Deus não precisa de dor e sangue para salvar. A salvação é completamente gratuita (Rm 5, 1-21). É Deus que se sacrifica para o homem e essa doação incondicional enraíza a possibilidade do sacrifício do homem Jesus e seus seguidores como  amor altruísta. Os discípulos de Cristo sacrificam-se por seu próximo com o mesmo amor gratuito com o que são amados. O que agrada o Pai é a vida toda dos cristãos em favor dos outros e a gratidão deles por sua condição de criaturas e pela salvação.

Os cristãos participam na paixão de Cristo consagrando-se apaixonadamente à vinda do reino e sofrendo as consequências. Cada um pode dizer que vive em e de Cristo crucificado, já que Cristo vive nele. A dor desempenha um papel expiatório quando é expressão de um amor que carrega o pecado do mundo. A dor inexplicável ou injusta de indivíduos e povos crucificados pela miséria e a injustiça,  tem um valor salvífico simplesmente por ser sacramento do Jesus inocente, o Servo Sofredor. A mera questão dos pobres pela bondade de Deus, de forma semelhante ao grito de Jesus abandonado na cruz, faz sentido e ninguém pode silenciá-la (Mc 15, 33-34). Além disso, a dor e a sangue dos mártires que, como Jesus, o primeiro mártir, dão a vida por causa da fé e da justiça do reino, caracterizam o seguimento radical de Cristo.

O seguidor de Jesus teve que descobrir que Cristo morreu “por ele.” Diante da cruz é revelado ao cristão o seu pecado e, ao mesmo tempo, o perdão de Deus. Beijar o crucifixo na Semana Santa é uma expressão do reconhecimento da misericórdia de Cristo por uma pessoa que se sabe amada e conhecida de uma forma única e insuperável. Na experiência deste amor, o cristão conclui que  quem justifica é Deus e não suas obras. A práxis messiânica (construtiva) e profética (crítica) dos cristãos é purificada na entrega sacrificada do Filho encarnado.

3.2. Triunfo sobre o mal e sucesso da criação

 “E ele é a cabeça do corpo, da igreja; é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência. Porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse, e que, havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra, como as que estão nos céus” (Cl 1, 18-20).

Sob a ressurreição de Cristo, os cristãos são gratuitamente libertados do pecado e da morte. Os seguidores de Cristo se tornam novas criaturas, e não deve pecar novamente. Neles se antecipa a vitória escatológica sobre o mal, além do triunfo da vida eterna sobre a morte. Agora é possível para eles viverem sub specie aeternitatis.

Os seguidores de Jesus têm de optar pelos pobres para que neles seja antecipado de forma preferencial o efeito libertador do juízo final e o banquete do reino (Mt 25, 31-46). Eles, os questão privados da vida, e as vítimas do pecado, devem ser os primeiros a experimentar o Cristo ressuscitado, porque eles são os primeiros a compartilhar sua cruz. Sob a ressurreição, eles devem ser reabilitados em sua inocência e dignidade, e devem ser reconhecidos como protagonistas na luta diária pela vida e a construção de uma sociedade mais humana. Eles, que muitas vezes não são considerados pessoas, devem ter um lugar ativo na articulação de novas relações sociais.

Os seguidores de Cristo vivem uma fé em Deus que é possível comprovar em obras concretas. Entre eles reina a caridade, a paz e compartilham o que eles têm. Continuam a prática de Jesus de Nazaré em favor do reino, lutam contra a injustiça e misericordiosamente vão para curar os doentes de corpo e alma (At 2, 42-47).

Cristo ressuscitado, além do seu triunfo sobre a morte e o pecado, leva a criação até a plenitude que Deus tinha em mente ao criar o mundo. Esta é ainda uma plenitude maior do que a da criação antes do pecado.

Da ressurreição de Cristo deriva a alegria que possibilita aos  cristãos viverem, mesmo nas piores circunstâncias, e a capacidade de reconhecer a beleza e viver dela, ainda que feiura prevaleça em todos os lugares. Os cristãos sintonizam e se sentem parte e responsáveis dos outros seres da criação. E eles esperam a sua glória para o dia do retorno do Senhor do universo (Jo 14, 3).

Da ressurreição de Cristo, os cristãos tiram a energia espiritual e a criatividade para fazer o máximo uso da razão com que o Criador os dotou, e gerar a ciência e as culturas necessárias para construir uma sociedade e um mundo compartilhado e fraterno. Além disso, eles devem distinguir-se como trabalhadores de reconciliação e construtores de paz.

3.3 Vida na liberdade dos filhos e filhas de Deus

“E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai. Assim que já não és mais servo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro de Deus por Cristo” (Gl 4,6-7).

Na Igreja os cristãos vivem antecipadamente o reino escatológico. Nela, é possível reconhecer as relações humanas livres e pessoais, respeitosas da dignidade de filhos e filhas de Deus e responsáveis com os pequenos ou mais fracos. Entre os cristãos as relações de predomínio de uns sobre outros ou as relações alienadas no âmbito dos ídolos do mercado e do consumo,  são superadas pelo amor e a solidariedade. Esta mesma experiência de fraternidade torna-os missionários do Evangelho e do reino.

Na Igreja e graças a ela, os seguidores de Cristo fazem um caminho histórico de seguimento de Cristo. Devem examinar nos sinais dos tempos, a voz de Deus (Mt 16, 1-3), e para isso contam com a Escritura, a Tradição e o Magistério, além de outros lugares teológicos, como critérios de discernimento. Deus fala na história presente de uma forma semelhante como ele falou no passado. A Palavra de Deus tem prioridade em suas vidas. De forma semelhante, os cristãos vivem suas vidas em discernimento espiritual constante, pois vozes diferentes à voz do Espírito os tentam por caminhos que não são os dele. Todo mundo tem que encontrar sua própria vocação e segui-la fielmente.

Os cristãos encontram certamente o Senhor nos sacramentos da Igreja que tornam efetiva a graça do amor de Deus para os seus filhos. As normas da Igreja orientam as vidas dos seguidores de Deus. Elas são uma guia, muitas vezes pedagógica, que terá de ser interpretada por pessoas adultas na fé. Nem as boas obras, nem o mero cumprimento das leis da Igreja justificam diante de Deus, mas a fé na bondade e na ação de Deus (Rom 3, 27-28; Tg 2, 18). É Deus que as transforma em ações verdadeiramente livres, fazendo que os seguidores de Cristo amem a todos de uma forma verdadeiramente criativa e única.

4 Conclusão

O cosmos inteiro e todos os seres humanos trazem a marca de Cristo. Toda a criação está cristificada, o que torna possível para qualquer pessoa participar no modo de ser de Cristo com Deus, com o  mundo e com o próximo, embora não tenha consciência disso. Toda a criação reflete o amor de Deus manifestado em Cristo e, no caso do ser humano, ele pode corresponder diretamente a esse amor simplesmente amando.

Os cristãos, ao contrário daqueles que não o são, participam  conscientemente de Cristo. Eles fazem isso por meio de seu seguimento, que é possível, porque o Espírito Santo dá aos cristãos o dom da fé com a qual a imitação de Jesus é transformada e melhorada radicalmente. A fé faz crer que Jesus é o Cristo. Aqueles que não são cristãos podem ter uma ideia de Jesus, cujo perfil humano pode ser conhecido através dos Evangelhos e do ensinamento da Igreja, e pode até mesmo admirar ou imitar algumas das suas características. Jesus pode ser imitado sem crer que depois de sua crucificação tenha ressuscitado. Os cristãos, no entanto, não só imitam Jesus, mas vivem de Cristo morto e ressuscitado. O seguimento de Cristo começa com uma imitação de Jesus, mas é superior a ela. A imitação é insuficiente. Ninguém conhece  mais a Cristo do que aquele que segue a Cristo.

Jorge Costadoat, SJ. Centro Teológico Manuel Larraín/Facultad de Teología, P. Universidad Católica de Chile. Texto original Espanhol.

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Unção dos enfermos (Sacramento)

Sumário

1 O ser humano frente à enfermidade

2 A enfermidade e a cura na Sagrada Escritura

2.1 No Antigo Testamento

2.2 No Novo Testamento

3 A enfermidade e a cura na prática da Igreja

3.1 Dos séculos III ao VIII

3.2 Do século VIII ao Concílio de Trento

3.3 De Trento ao Concílio Vaticano II

4 Desafios pastorais

5 Referências bibliográficas

A abordagem sobre o sacramento da unção dos enfermos virá apresentada a partir dos seguintes pontos: 1) O ser humano frente à enfermidade; 2) A enfermidade e a cura na Sagrada Escritura; 3) A enfermidade e a cura na prática da Igreja; 4) Desafios pastorais.

1 O ser humano frente à enfermidade

Dentre os muitos dramas enfrentados pelo ser humano está a doença. Sem marcar dia e hora ela chega, e sem previsão e duração de tempo ela se instala, trazendo consequências tanto para o paciente como para as pessoas que estão ao seu redor, sobretudo familiares e amigos. A busca da cura nem sempre é caminho fácil. Dependendo do lugar social em que o paciente se encontra, o drama pode transformar-se em pesadelo, como escassez de centros e profissionais da saúde, precária infraestrutura para atendimento dos enfermos. Nos tempos atuais, há o paradoxo do avanço da medicina e o consequente prolongamento da vida a qualquer custo. Em muitos casos, esse prolongamento tem levado pacientes e pessoas idosas ao isolamento, à marginalização, ao abandono.

É comum, no Brasil e em outros países da América Latina, o dilema dos pobres que, não tendo condições de arcar com elevadas taxas dos planos de saúde, se veem obrigados a enfrentar a dura realidade do descaso dos poderes públicos quanto à prevenção de doenças e ao atendimento médico e hospitalar. A privatização da saúde, além de seu caráter restritivo e elitista, tem se convertido em empreendimento rentável e lucrativo.

Esses e outros fenômenos têm impacto direto na comunidade de fé. Vale recordar, aqui, a clássica imagem do corpo e de seus membros descrita pelo apóstolo Paulo: “O corpo não é feito de um membro apenas, mas de muitos. […] Se um membro sofre, todos sofrem com ele” (1Cor 12,13.26). Em atenção a esses membros sofredores, a Igreja, desde seus primórdios, tem marcado presença e prestado assistência aos seus filhos e filhas enfermos.

2 A enfermidade e a cura na Sagrada Escritura

Uma vez que os textos escriturísticos foram compilados em épocas e contextos bem distintos, buscar uma compreensão do sentido da doença e da cura na Bíblia é tarefa complexa. Por questão de espaço e pela brevidade deste estudo, limitar-nos-emos a apresentar apenas alguns elementos que poderão servir de base para o entendimento do sentido teológico-litúrgico do sacramento da unção dos enfermos.

2.1 No Antigo Testamento

O binômio doença-cura no Antigo Testamento deve ser compreendido a partir do contexto cultural do Oriente Antigo. Aqui, a doença aparece relacionada com as forças do mal e com o pecado. Uma forma comum de se obter a cura era a prática de exorcismos e ritos mágicos de cura. Na Bíblia, a questão da doença não é abordada de forma isolada ou mesmo do ponto de vista estrito da ciência, mas sim a partir da perspectiva religiosa, da relação do enfermo com Deus e vice-versa. A doença é tida como algo que afeta o ser humano na sua inteireza.

Mais que perguntar sobre a causa natural da doença, a Sagrada Escritura se ocupa de sua significação ou de seu porquê. Disso decorrem interpretações diversas, sendo comum a vinculação da enfermidade ao pecado, ao castigo de Deus e à possessão demoníaca. Também continuam sem respostas satisfatórias questões relacionadas com o sofrimento, sobretudo dos justos, como bem aparecem retratadas no livro de Jó.

Para a cura de enfermidades, recorre-se a meios terapêuticos extraídos da natureza, especialmente das plantas. Dentre esses produtos, destaca-se o óleo, que além de ser empregado na cura e purificação de doenças era também utilizado na consagração de objetos (altares e monumentos) ou de pessoas (sacerdotes, profetas e reis). O comportamento com os doentes consiste a dupla atitude: por um lado, aconselha-se a prática de visitá-los e dar-lhes a devida atenção (cf. Sl 40,4; Jó 2,11); por outro, a lei prescreve a exclusão da comunidade de todas as pessoas vítimas de doenças contagiosas como a lepra (cf. Lv 13-14; Nm 12,10.15). É nesse contexto que se deve compreender determinadas atitudes de Jesus para com os enfermos.

2.2 No Novo Testamento

No Novo Testamento, há inúmeras referências sobre diferentes tipos de doença (febre, hemorragia, hidropisia…), bem como sobre pessoas deficientes (coxos, cegos, surdos, mudos, paralíticos…). Os meios empregados para a cura são: óleo (Mc 6,13; Lc 3,18; Tg 5,14), vinho (Lc 10,34), colírio para os olhos (Ap 3,18), águas termais (Jo 5,2ss.), saliva (Mc 7,33; Jo 9,6), barro (Jo 9,6ss.). Jesus se utiliza desses meios terapêuticos para dar novo sentido ao mistério do sofrimento humano. Longe do curandeirismo, as curas realizadas por Jesus são, na verdade, sinais messiânicos da salvação acontecendo aqui e agora e apontam para a escatologia plena do Reino do Pai, onde não haverá sofrimento, nem choro, nem dor. Tais curas realizadas são sinais simbólico-sacramentais do poder libertador de Jesus em favor do ser humano integral, a saber: a cura da enfermidade do corpo e a libertação da pessoa do pecado e da morte.

Jesus, por um lado, desvincula a concepção de que a doença é consequência do pecado ou castigo de Deus. Por outro, procura incutir na mente de seus contemporâneos que a enfermidade pode ser enfrentada no âmbito da fé, como algo relacionado ao plano de Deus: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas é para que nele sejam manifestadas as obras de Deus” (Jo 9,3). Aliás, Jesus deu novo sentido ao sofrimento e à morte, graças à sua entrega incondicional nas mãos do Pai, assumindo e redimindo a dor da humanidade. Desde então,

a dor, a enfermidade e a morte não são obstáculos para o plano salvífico que Deus manifestou em Jesus Cristo. O caminho libertador de Cristo, e agora da Igreja, passa pelo acontecimento da Páscoa, em sua dupla vertente de morte e ressurreição. E como Cristo, também a Igreja luta e vence o mal, a enfermidade e a morte (ALDAZÁBAL, 1999, p.865).

Os discípulos de Jesus deram continuidade ao exemplo do Mestre. Curar os enfermos era tarefa primordial da missão evangelizadora da comunidade apostólica: “Eles saíram para proclamar que o povo se convertesse. Expulsavam muitos demônios, ungiam com óleo numerosos doentes e os curavam” (Mc 6,12-13). O livro dos Atos dos Apóstolos, especialmente nos capítulos 2 e 3, descreve como a comunidade dos fiéis crescia mediante a pregação, a conversão, o batismo, a eucaristia e outras ações extraordinárias realizadas em nome de Cristo, como, por exemplo, a “cura do paralítico” (At 3,1-26). Essas ações são como uma repetição daquelas que Jesus realizou e têm as mesmas sequências do que vem narrado nos evangelhos.

3 A enfermidade e a cura na prática da Igreja

As comunidades cristãs, desde cedo, buscaram pôr em prática os gestos (rituais) de cura realizados por Jesus. O texto da Carta de Tiago é um importante testemunho disso. Esse texto serviu de base para a reflexão teológica posterior sobre o que chamamos hoje de “Sacramento da unção dos enfermos”. Ei-lo:

Alguém de vós está sofrendo? Recorra à oração. Alguém está alegre? Entoe hinos. Alguém de vós está doente? Mande chamar os presbíteros da igreja, para que orem sobre ele, ungindo-o com óleo no nome do Senhor. A oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará. E se tiver cometido pecados, receberá o perdão (Tg 5,13-16).

O apóstolo Tiago, além de apresentar uma prática em vias de institucionalização, utiliza termos que expressam a complexidade existencial da situação do doente e a ação pastoral da comunidade: oração, unção, conforto e alívio, cura, perdão dos pecados. Diferente das demais referências neotestamentárias sobre a enfermidade e a cura, o texto de Tiago apresenta, de forma mais explícita, a intenção sacramental do gesto, unido à palavra de oração que a comunidade eleva a Deus em favor do enfermo. Ao falar do sofrimento e da alegria, o Apóstolo deixa entrever que, seja qual for a circunstância vital, tudo deve ser visto a partir de Deus e para Deus (oração e canto). Em seguida, fala da enfermidade como tal, e é quando se chama os presbíteros da comunidade. Esses agem com um gesto simbólico, a unção com óleo e uma oração feita com fé. O efeito dessa dupla ação será a salvação, o reerguimento e o perdão dos pecados.

Enfim, Tiago fala de ritos destinados a quem está doente, não necessariamente moribundo. Trata-se de uma ação de caráter eclesial e comunitário, uma vez que é ministrada pelos presbíteros da Igreja. A eficácia está relacionada à oração de fé no Senhor. Os efeitos se referem ao ser humano, na sua totalidade, embora não excluam a cura corporal e não se restrinjam a ela. Todavia, o texto em questão, para ser entendido no sentido do sacramento da unção dos enfermos, deve ser lido à luz da Tradição da Igreja e não isoladamente dessa, como veremos a seguir.

A história da prática e da teologia desse sacramento pode ser dividida em três períodos, a saber: a) Dos séculos III ao VIII, b) Do século VIII ao Concílio de Trento, c) De Trento ao Concílio Vaticano II (cf. SCICOLONE, 1989, p.235-64).

3.1 Dos séculos III ao VIII

Nos três primeiros séculos da era cristã, tidos como tempo de “improvisação” das fórmulas litúrgico-sacramentais, encontramos poucos registros de textos eucológicos para a celebração da unção. O texto mais eloquente desse período é a “bênção do óleo”, contido na Tradição Apostólica e atribuído a Hipólito de Roma (ano 215):

Assim como, santificando este óleo, com o qual ungistes reis, sacerdotes e profetas, concedei, ó Deus, a santidade aos que com ele são ungidos e aos que o recebem, assim também ele dê alívio àqueles que vierem a prová-lo e saúde aos que dele se servirem (ANTOLOGIA LITÚRGICA, 2003, p.231).

Essa bênção aparece enxertada na prece eucarística, com a cláusula: “Se alguém oferece óleo”. Nela, o bispo rende graças a Deus e pede santidade, alívio e saúde para quem se servisse daquele óleo. Ao se referir à unção de reis, sacerdotes e profetas, é possível que esse óleo abençoado também fosse usado para outros fins, não se restringindo aos enfermos. O texto nada diz sobre o ministro da unção.

Um importante documento pontifício que gozou de notável influência também sobre autores posteriores é a carta de Inocêncio I a Decêncio, bispo de Gúbio (ano 416). À pergunta de Decêncio – se o bispo pode dar a unção aos doentes, pois Tiago fala apenas de presbíteros –, Inocêncio responde:

Tua caridade mencionou o que está escrito na carta do bem-aventurado Apóstolo Tiago: “Se há um enfermo entre vós, chame os presbíteros, e rezem sobre ele, ungindo-o com óleo no nome do Senhor, e a oração da fé salvará aquele que sofre, e que o Senhor o levantará; e, se cometeu algum pecado, lhe perdoará”. Não há dúvida de que isto deva ser recebido e entendido a respeito dos fiéis enfermos, os quais podem ser ungidos com o santo óleo do crisma, que, consagrado pelo bispo, pode ser usado para unção não somente pelos sacerdotes, mas também por todos os cristãos para necessidade própria ou dos parentes.

De resto, consideramos supérfluo o acréscimo que pergunta se é lícito ao bispo o que certamente o é aos presbíteros. Pois nesta matéria são mencionados os presbíteros porque os bispos, empenhados em outros afazeres, não podem visitar cada doente. Mas se um bispo pode ou julga digno visitar alguém, pode também, já que lhe compete a consagração do crisma, sem dúvida, tanto benzer como ungir com o crisma. Ora, não pode ser derramado sobre quem é penitente, pois é do gênero do sacramento. Como pensar que àqueles aos quais são negados outros sacramentos possa ser concedido um gênero “de Sacramento”? (DENZINGER-HÜNERMANN, 2007, n.216).

Como se vê, não somente o bispo, mas também presbíteros e todos os cristãos (com exceção dos penitentes) podem ministrar o sacramento. No entanto, a “confecção” do óleo destinado a este sacramento (à semelhança da eucaristia) compete ao bispo.

No século VI, merecem destaque os sermões de Cesário de Arles (503-543). Neles, Cesário fala da unção no contexto da luta contra os ritos mágicos pagãos de cura. Além de apresentar a unção como remédio mais seguro contra as forças diabólicas, o bispo de Arles acena para o perdão dos pecados, especialmente daqueles cometidos em práticas pagãs.

As principais conclusões que compreendem o arco entre séculos III e VIII da história do sacramento da unção dos enfermos são:

a) A continuidade da prática das primeiras comunidades, sobretudo no que tange à visita e atenção aos doentes. Consciente de que devia prolongar o ministério de Cristo e dos apóstolos, a Igreja se serve do testemunho e do sinal: a unção com óleo.

b) A documentação de fórmulas eucológicas (bênçãos do óleo) para os enfermos, a partir do século III. Nessas fórmulas se suplica a efusão do Espírito Santo para que cure os doentes das doenças e lhes restitua a saúde do corpo, da alma e do espírito.

c) O ministro da bênção do óleo é o bispo, que a faz durante a oração eucarística (na eucaristia da quinta-feira santa).

d) Os destinatários da unção são todos os cristãos enfermos, exceto os penitentes, uma vez que o óleo pertence ao gênero dos sacramentos.

e) O efeito esperado da unção é, sobretudo, a restituição da saúde corporal. Só a partir do século VIII é que se começa a acentuar o efeito espiritual, ou seja, a remissão dos pecados.

3.2 Do século VIII ao Concílio de Trento

Do séc. VIII ao séc. XI, encontramos diversos rituais de unção dos enfermos. Nesses rituais aparecem, além de formulários para a oração de bênção sobre o óleo, outros ritos com especificações bem precisas. Nesse período, além da proliferação de rituais, acontecem mudanças significativas na teologia e na prática pastoral do sacramento da unção dos enfermos, como: a) clericalização e consequente monopólio do clero na administração do sacramento; b) espiritualização dos efeitos do sacramento, ficando à margem o efeito corporal de cura; c) penitencialização do sacramento, ou seja: para recebê-lo, é necessário o perdão dos pecados pela penitência; d) extremização dos sujeitos: a unção passou a ser considerada como sacramento de preparação para a morte. O sujeito passa a ser de simples enfermo a doente que se encontra em perigo de morte. Daí, o nome que prevaleceu até o século XX: “Extrema Unção”.

Em geral, esses ritos da extrema unção obedecem à seguinte ordem: entrada na casa, bênção e aspersão da água, confissão e ritos penitenciais (salmos e orações), unções (em geral, dos cinco sentidos), comunhão como viático. Na realidade, a partir do séc. XIII, por influência da crescente “escatologização”, muda-se a sequência: penitência – unção – viático, para: penitência – eucaristia – unção (esta deve ser o último sacramento, pois prepara imediatamente para a glória do céu, apagando os últimos resquícios do pecado). Essa sequência permanecerá nos rituais até a reforma litúrgica do Vaticano II, quando se voltará à tradição mais antiga.

Do séc. XI ao Concílio de Trento (séc. XVI), a celebração e a prática da extrema unção não sofrem mudanças significativas. Contudo, nesse período dá-se a “sistematização escolástica” desse sacramento. Os teólogos escolásticos (Pedro Lombardo, Alberto Magno, Tomás de Aquino, Boaventura, João Duns Scotus etc) desenvolvem uma teologia da unção que, de certa forma, se distancia da tradição primitiva. Insistem no efeito espiritual do sacramento, no sujeito em perigo de morte e no caráter secundário da cura.

O Concílio de Trento, preocupado em rebater as contestações dos reformadores, toma como base de argumentação da legitimidade e eficácia do sacramento da unção a teologia escolástica, especialmente a de Tomás de Aquino. Apoiando-se nos textos neotestamentários de Mc 6,13 e de Tiago 5,14-16, Trento ensina, dentre outras coisas, que a unção é sacramento que remonta, em última instância, à vontade de Cristo, como se vê na missão dos doze e em seu comportamento com os doentes. O conteúdo do sacramento é a graça do Espírito Santo, cuja unção (efeito) apaga os delitos e as sequelas do pecado, consola e confirma a alma do doente, excitando nele uma grande confiança na misericórdia divina e, eventualmente, obtém a saúde do corpo quando for conveniente à salvação da alma. O ministro da sagrada unção é o presbítero, e o momento da administração do sacramento é, de preferência, quando o enfermo estiver correndo risco iminente de morte (cf. DENZINGER-HÜNERMANN, 2007, n.1695-1697).

3.3 De Trento ao Concílio Vaticano II

Ao longo dos quatro séculos que separam o Concílio de Trento e o Concílio Vaticano II, não se pode dizer que tenha havido grandes progressos na teologia e na prática da unção. Aliás, o estudo desse sacramento praticamente ficou vinculado ao tratado sobre a penitência. Com o Movimento Litúrgico, especialmente a partir da década de 1940, é que se desencadeou uma renovação teológica. Isso graças ao estudo das fontes da genuína Tradição e ao desejo de superar a concepção mágica dos sacramentos. Duas linhas de renovação merecem destaque: a escola alemã e a escola francesa.

Os teólogos alemães acentuam a dimensão escatológica do sacramento, relacionando a última unção com a unção batismal. A unção é tida como “consagração para a última luta”, como “sacramento da ressurreição”, como lugar da autorrealização da esperança escatológica da Igreja no momento definitivo. Os franceses, por sua vez, enveredam por uma teologia de cunho mais existencial. Seguem de perto a teologia subjacente da Igreja primitiva, acentuam a destinação da unção dos enfermos (não necessariamente em perigo de morte) em seu caráter curativo e terapêutico para o ser humano integral. Nesse entendimento, só o viático deve ser “sacramento na perspectiva da morte” (cf. BOROBIO, 1993, p.557-8).

O Concílio Vaticano II não teve pretensão de oferecer uma doutrina completa sobre a unção e muito menos dirimir questões ainda discutíveis. Contudo, concentrou a atenção no âmbito litúrgico-pastoral. Dentre os documentos conciliares que aludem ao sacramento da unção dos enfermos, além da Sacrosanctum Concilium, merece destaque a Constituição Lumen Gentium (n.11). Aqui, vêm sublinhadas as dimensões eclesiológica, cristológica e antropológica do sacramento.

Nos três números dedicados a esse sacramento, a Sacrosanctum Concilium determina: a) Que seu melhor nome é “unção dos enfermos” e que não se trata de um sacramento só para quem está em perigo de morte, mas para outros doentes e pessoas idosas (cf. SC n.73); b) Que, além dos ritos separados da unção dos enfermos e do viático, faça-se um rito conjunto pelo qual se administre a unção ao enfermo depois da confissão e antes da recepção do viático (cf. SC n.74). Essa ordenação penitência-unção-viático reproduz, de alguma forma, aquela dos sacramentos de iniciação: batismo-confirmação-eucaristia; c) Que o número de unções seja acomodado às circunstâncias dos enfermos e que os ritos sejam revistos para melhor corresponderem às condições dos destinatários do sacramento (cf. SC n.75). Outras orientações teológico-litúrgico-pastorais são encontradas na “Constituição apostólica sobre o sacramento da unção dos enfermos” de Paulo VI e na “Introdução” do novo ritual da unção dos enfermos, publicado em janeiro de 1973.

A “Constituição apostólica” foi oportuna pelo fato de ter havido mudanças de elementos essenciais do rito, como a matéria, a forma e as disposições sobre a reiterabilidade do sacramento. Para a matéria, ficou estabelecido que se pode utilizar outro tipo de óleo vegetal, não exclusivamente o de oliveira. A fórmula do sacramento foi alterada em função de exprimir maior clareza sobre sua natureza e seus efeitos. O texto definitivo, na tradução oficial brasileira, ficou assim: “Por esta santa unção e pela sua infinita misericórdia, o Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo, para que, liberto dos teus pecados, ele te salve e, na sua bondade, alivie os teus sofrimentos”. O número de unções é reduzido a duas (na fronte e nas mãos), podendo ser restringido a uma só, na fronte, ou em outra parte do corpo. O sacramento pode ser administrado mais vezes, dependendo da duração da enfermidade ou de seu agravamento.

A “Introdução” do novo ritual contém cinco seções intituladas: 1) “A enfermidade humana e seu significado no mistério da salvação”. Aqui, vem apresentada uma síntese do pensamento cristão sobre o estado de doença e seu significado na história da salvação. 2) “Os sacramentos a serem conferidos aos doentes”. Nesta seção, vêm claramente expressos os dois sacramentos: a unção e o viático. 3) “Funções e ministérios em relação aos enfermos”. Aqui são contemplados os diversos ofícios e serviços em favor dos doentes. É avaliado como positivo e louvável o esforço de toda a humanidade (especialmente os profissionais da saúde e cientistas) na tarefa de aliviar os sofrimentos provocados pela doença e o consequente prolongamento da vida. Também os familiares são contemplados pela especial participação nesse “ministério de consolação”. Por fim, os ministros (presbíteros) são lembrados de seu dever de visitar pessoalmente os enfermos, de administrar-lhes os sacramentos, de cuidar da catequese tanto para os enfermos como para os fiéis em geral, tendo em vista sua participação ativa e frutuosa na celebração dos sacramentos. 4) “Adaptações que competem às conferências episcopais”. Nesta seção, são apresentadas várias possibilidades de adaptações do novo ritual, de acordo com as tradições e culturas de cada povo. 5) “Adaptações que competem ao ministro”. Cabe ao ministro, em sua solicitude pastoral, levar em conta as circunstâncias em que se encontram os enfermos e a melhor maneira de celebrar o sacramento.

O rito como tal (Ordo) compreende sete capítulos, a saber: 1) Visita e a comunhão dos enfermos; 2) Rito ordinário da unção (rito comum, rito durante a Missa, rito em grande concentração de fiéis); 3) O viático (dentro e fora da missa); 4) A administração dos sacramentos a enfermo em perigo de morte (rito contínuo penitência-unção-viático, unção sem viático e unção na dúvida se o enfermo ainda está vivo); 5) A confirmação em perigo de morte; 6) Rito de encomendação dos agonizantes; 7) Textos bíblicos e outras fórmulas eucológicas a serem usados nos ritos de assistência aos enfermos.

Do ponto de vista da teologia litúrgica, o “Ritual da unção dos enfermos e sua assistência pastoral” (1973) traz expressivos avanços, se comparado ao precedente (1614). Dentre as inovações, merecem destaque:

a) A centralidade do mistério pascal de Cristo que veio salvar o ser humano integral. O sacramento dos enfermos é memorial desse mistério, pois continua e atualiza a ação salvífica de Cristo em favor dos doentes, completando, assim, neles, o que falta à sua paixão (cf. Cl 1,24).

b) A redescoberta do valor pneumático do sacramento, especialmente na fórmula de bênção do óleo.

c) A dimensão eclesial e comunitária que perpassa todo o ritual. A Igreja se faz presente junto ao enfermo com solicitude pastoral permanente, pois tem consciência de que o doente é membro (sofredor) do corpo vivo de Cristo e que espera participar da sua glorificação. O enfermo, por sua vez, imerso no mistério de seu sofrimento, também edifica a Igreja. As diversas possibilidades e formas de celebração do sacramento – sobretudo com vários enfermos ao mesmo tempo e com numerosa assembleia – atestam sua índole comunitária.

Do ponto de vista antropológico, o novo ritual avança na compreensão holística do ser humano e o consequente efeito (holístico) do sacramento para quem o recebe.

4 Desafios pastorais

Conforme dito acima, o novo ritual da unção dos enfermos possui forte apelo pastoral, a começar pelo próprio nome: “Ritual da unção dos enfermos e sua assistência pastoral”. As celebrações ali previstas devem ser “cume e fonte” de uma ação pastoral da Igreja que leva a sério o drama vivido por quem enfrenta o peso da doença, da idade avançada e de toda sorte de sofrimento. Disso decorre a necessidade de formação teológico-litúrgica para toda a comunidade com os seguintes objetivos, dentre outros:

a) Romper a antiga mentalidade de que o sacramento da unção é somente para quem está à beira da morte.

b) Obter uma visão global dos efeitos do sacramento. Essa visão também livrará os fiéis do risco de se fixarem na ideia de cura da doença ou do sentido do sacramento como algo mágico.

c) Ampliar a compreensão do que constitui a pastoral da saúde. Em última instância, essa pastoral deverá abranger todas as etapas e momentos da vida humana, não apenas restringindo seu campo de ação a quem se encontra gravemente enfermo. Enfim, uma pastoral que tenha implicações no contexto familiar, comunitário, social. Mais que uma pastoral de conservação e remédio ante a doença que se impõe, é uma ação que promove a saúde e o bem-estar de todas as pessoas, à luz do Evangelho.

d) Recuperar a Tradição da Igreja Primitiva, buscando desvincular a unção dos enfermos do sacramento da penitência. Nesse caso, seria desejável que houvesse leigos instituídos ministros extraordinários da unção.

e) Incrementar a prática de celebrações comunitárias do sacramento da unção, reafirmando sua índole eclesial. Valendo o alerta de que essa prática não resulte na banalização do sacramento, ou seja, ministrando-o a qualquer pessoa, de forma indiscriminada.

Joaquim Fonseca, OFM. ISTA. Texto original Português.

5 Referências bibliográficas

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Sexualidade conjungal e extra-conjugal

Sumário

1 Significado da sexualidade

1.1 Definição

1.2 Desafios

2 Significado da sexualidade conjugal

2.1 Matrimônio e sexualidade

2.2 Desafios

3 Significado da sexualidade extraconjugal

3.1 Sexo entre os não casados

3.2 Desafios

4 Por uma nova compreensão da sexualidade

4.1 Ética e sexualidade

4.2 Perspectivas

5 Referências bibliográficas

1 Significado da sexualidade

1.1 Definição

A sexualidade é um “componente fundamental” da personalidade humana, “parte integrante do desenvolvimento da personalidade e do seu processo educativo” (CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 1983, n.4); é “uma das energias estruturantes do ser humano” (MOSER, 2001, p.35-6) que se apresenta numa complexidade de dimensões (biopsicológica, sociocultural, político-econômica, antropológico-religiosa, sanitário-educativa, ético-moral). Sendo uma dimensão constitutiva do humano, a sexualidade abarca-o na sua totalidade, “pressupõe, exprime e realiza o mistério integral da pessoa” (VIDAL, 2002, p.23). Ela é, também, uma “realidade dinâmica”, em contínua evolução, “orientada para a integração pessoal” (VIDAL, 2002, p.22) e, portanto, capaz de favorecer ou comprometer a realização da pessoa durante toda a sua existência.

A sexualidade, diferentemente da genitalidade, expressa quem a pessoa é e o seu modo de colocar-se diante dos outros. Ela caracteriza “um modo de ser, de se manifestar, de se comunicar com os outros, de sentir, de expressar e de viver o amor humano” (CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 1983, n.4). Sendo uma realidade que impele o ser humano a sair de si mesmo e entrar em relação com os demais, a sexualidade “tem como fim intrínseco o amor, mais precisamente o amor como doação e acolhimento, como dar e receber” (PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA, 2002, n.11) e torna-se, assim, o “lugar” por excelência da abertura, do diálogo, da comunicação, da comunhão, “da mais genuína experiência de reciprocidade e de amor” (ZACHARIAS, 2006, p.7).

1.2 Desafios

Para que seja uma realidade personalizada e personalizante, a sexualidade deve ser abraçada como dom e integrada num projeto de vida que lhe dê significado. Desvinculada de um projeto de vida, ela corre o risco de tornar-se uma realidade desumana e desumanizante, pois, assim como ela pode ser o lugar das experiências mais belas da vida, pode ser, também, o lugar da experiência das consequências da fragilidade e da vulnerabilidade humanas, “fonte de frustração e sofrimento” (GUIMARÃES, 2014, p.61).

Integrada num projeto de vida, isto é, fazendo parte do sentido mais profundo dado à existência, a sexualidade humana é chamada a ser linguagem deste significado. Por mais diversas que sejam as razões pelas quais as pessoas vivem, todas querem amar e ser amadas. Neste sentido, o amor, enquanto “afetiva, afirmativa participação na bondade de um ser” (VACEK, 1994, p.34), não apenas pode ser assumido como o significado último de todo projeto de vida, mas pode ser “o” projeto de vida por excelência. É o amor a única realidade que, de fato, humaniza a sexualidade (CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 1983, n.6); é ele que permite discernir os apelos que provêm das relações que estabelecemos com quem faz parte da nossa vida. Quando autêntico, o amor leva-nos para fora de nós mesmos e abre-nos ao outro. E, ao reconhecermos o outro como alguém a ser amado, reconhecemos todos os seus direitos de se realizar como pessoa.

2 Significado da sexualidade conjugal

2.1 Matrimônio e sexualidade

A vivência do amor, como significado mais profundo da própria existência, pode ser concretizada no matrimônio, entendido como comunhão total de vida e amor para toda a vida (JOÃO PAULO II, 1981, n.11). É pelo amor conjugal que o homem e a mulher se dão totalmente um ao outro, num contexto de compromisso definitivo, e se abrem para o dom pelo qual se tornam cooperadores com Deus ao dar vida a um novo ser humano. Para o Magistério da Igreja Católica, é somente como parte integral desse amor que a doação sexual se realiza verdadeiramente e, por isso, “a este amor conjugal, e somente a este, pertence a doação sexual” (CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A FAMÍLIA, 1995, n.14).

Orientada para o diálogo interpessoal, a sexualidade conjugal contribui para a maturação integral da pessoa, abrindo-a para o dom de si no amor. E, “ligada, na ordem da criação, à fecundidade e à transmissão da vida, é chamada a ser fiel também a esta sua finalidade interna. Amor e fecundidade são, todavia, significados e valores da sexualidade que se incluem e reclamam mutuamente e não podem, portanto, ser considerados nem alternativos nem opostos” (CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 1983, n.32).

2.2 Desafios

De acordo com a Humanae Vitae – que bem sintetiza a doutrina católica até os dias de hoje – existe uma

conexão inseparável que Deus quis e que o homem não pode alterar por sua iniciativa, entre os dois significados do ato conjugal: o significado unitivo e o significado procriador. Na verdade, pela sua estrutura íntima, o ato conjugal, ao mesmo tempo que une profundamente os esposos, torna-os aptos para a geração de novas vidas, segundo leis inscritas no próprio ser do homem e da mulher. Salvaguardando estes dois aspectos essenciais, unitivo e procriador, o ato conjugal conserva integralmente o sentido de amor mútuo e verdadeiro e a sua ordenação para a altíssima vocação do homem para a paternidade (PAULO VI, 1968, n.12).

Fora do contexto matrimonial, portanto, toda relação de intimidade sexual constitui uma “desordem grave”, porque expressa uma realidade que ainda não existe, a da comunidade definitiva de vida com o necessário reconhecimento e garantia da sociedade civil e, para os cônjuges católicos, também religiosa (CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 1983, n.95). Ao assumir o matrimônio como o “único” lugar que torna possível a totalidade da doação (JOÃO PAULO II, 1981, n.11) e, portanto, como “único” contexto lícito para os relacionamentos sexuais responsáveis, são exclusos “outros contextos” e “outras narrativas” feitas por tantas pessoas não casadas, pois todas elas, sem exceção, deveriam ser sexualmente abstinentes (HARTWIG, 2000, p. 90).

3 Significado da sexualidade extraconjugal

3.1 Sexo entre os não casados

Abraçar o matrimônio como opção concreta de vida para se realizar no amor significa não reduzir o consentimento a “um ato pontual”, mas assumi-lo como “a expressão do dom recíproco dos esposos durante a totalidade da vida conjugal” (VIDAL, 2007, p.104). Isso implica, concretamente, o compromisso de realizar-se sexualmente, exclusivamente um por meio do outro (CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, 1987, II. A1); o esforço contínuo para estar totalmente presente na relação; a decisão sincera de não mentir ao outro e o empenho para viver em função do valor que se deseja preservar, isto é, o amor como projeto comum de vida. Unidade e fidelidade não são apenas exigências que brotam de um contrato, mas duas dimensões do amor conjugal que, quando não assumidas, impedem que o amor se faça história, que as pessoas se realizem e realizem a vocação à qual foram chamadas e sejam, portanto, felizes. São valores não apenas propositivos, mas imperativos para quem abraça o matrimônio. É por meio da unidade e da fidelidade do casal que a comunhão de vida e de amor se realiza e se torna fonte de realização mútua.

A relação sexual, dentro ou fora do matrimônio, concorre para a satisfação do desejo sexual. Por mais prazerosa que seja a satisfação desse desejo, ela sempre testemunha que o sexo promete o que não pode dar, pois o prazer em si mesmo é incapaz de satisfazer a infinita capacidade que a pessoa tem de ser amada. O eu não pode ter a pretensão de bastar-se para o tu e vice-versa (VALSECCHI, 1989, p.74-87). Nesse sentido, embora o prazer sexual expresse o desejo e a abertura à mutualidade, é apenas um meio para isso. Sendo a essência da sexualidade o amor, entendido como doação e acolhimento, então a intimidade sexual deveria ser uma expressão dessa essência fundamental. É nesse sentido que o amor se torna a condição sine qua non para expressar adequadamente a própria sexualidade. O problema está em que a capacidade de amar da pessoa pode ser destruída quando se faz do prazer a finalidade da sexualidade, reduzindo as outras pessoas a objetos da própria gratificação. Sem dúvida alguma, o prazer não pode ser o fim último da sexualidade, assim como uma pessoa não pode ser usada como meio.

3.2 Desafios

É mister compreender a verdadeira essência do amor: dom de si mesmo e de acolhida ao outro que suscitam o desejo de responder com amor. Disso deriva a responsabilidade ético-moral de nos colocarmos diante do prazer para acolhê-lo e fazer dele fonte de crescimento e de vida (e não de posse ou consumo), descobrir a realidade da qual é imagem, isto é, da abertura aos outros (e não fim em si mesmo) e reconhecer que, mesmo satisfazendo todos os nossos desejos, jamais nos sentiremos plenamente realizados (a experiência do prazer envolve muito mais do que a satisfação de desejos). Mas o maior dos desafios consiste em fazer uma leitura interpretativa dos nossos desejos. Alguns poderão ser integrados em nosso projeto de vida. Outros, não, se formos responsáveis (GUDORF, 1994, p.84). Se assumidos e integrados a um projeto de vida, nossos desejos e, consequentemente, a experiência que eles proporcionam, podem-nos ajudar a alcançar a mutualidade a que tanto aspiramos (ZACHARIAS, 2014, p.161-3).

O matrimônio, compreendido como comunhão definitiva de vida, e o amor conjugal, como “elemento básico e nuclear da realidade viva do casal” (VIDAL, 2007, p.123), constituem a chave de leitura para o entendimento do porquê serem consideradas ilícitas todas as demais relações de intimidade fora dele, sejam entre pessoas solteiras, envolvidas em novas configurações familiares ou viúvas, sejam entre pessoas hétero ou homossexuais. Existe, sem dúvida, uma unidade complexa entre matrimônio e família; mas é apenas a partir do seu núcleo integral – o amor conjugal – que conseguimos captar mais profundamente a avaliação ética que o Magistério católico faz dessas relações. Abordar a questão das novas configurações familiares e até mesmo da intimidade sexual entre pessoas fora do casamento implica reconhecer que família, casamento e sexo não estão necessariamente ligados entre si e que, portanto, princípios a priori e status jurídico não podem ser critérios exclusivos usados para avaliar a vivência sexual das pessoas; que a sexualidade deve ser considerada mais em referência às pessoas e seus relacionamentos do que aos atos; que assumir o casamento heterossexual como ideal para as sociedades não implica negar o reconhecimento ético de outros contextos fundamentados no respeito, na doação, na responsabilidade, no cuidado, no afeto.

4 Perspectivas para uma nova compreensão da sexualidade

4.1 Ética e sexualidade

Tanto o exercício da sexualidade conjugal quanto o da extraconjugal suscitam questões ético-morais. Em ambos os contextos, podem-se manifestar tanto a riqueza quanto a fragilidade da sexualidade. O fato de as pessoas serem casadas não garante a elas que as suas relações serão, automaticamente, expressão de amor, fidelidade, abertura, comunhão, doação. E o fato de não serem casadas não significa que suas relações sejam, automaticamente, expressão de desamor, infidelidade, egoísmo, violência, abuso. Se não for bem integrada, bem conduzida, bem harmonizada com o todo da existência, a vivência da sexualidade, seja qual for o seu contexto, pode destruir as pessoas, desumanizando-as (COELHO, 2010, p.49-50). E temos de admitir que estado civil e orientação afetivo-sexual se tornam questões secundárias.

Se a ética é a ciência dos valores que orientam a pessoa no seu processo de humanização (LÓPEZ AZPITARTE, 1983, p.251), precisamos ir além dos meros dados sociológicos (que nos levariam apenas a reconhecer a existência de contextos distintos do ideal para a vivência da sexualidade) e da liceidade jurídica (que nos faria contentar-nos em saber se o contexto garante a licitude ou ilicitude desta ou daquela prática). No processo de humanização da pessoa, têm sempre primazia a consciência moral, a escala pessoal de valores e a realização do bem comum como expressão de justiça. E temos de reconhecer que a vivência do amor pode expressar-se de múltiplas formas. Todas elas, no entanto, sujeitas à vulnerabilidade e à fraqueza de quem ama. Praticamente, isso significa que, por mais que o amor seja o sentido mais profundo da nossa existência e a única realidade que humaniza a vivência da nossa sexualidade, aprendemos a amar e essa aprendizagem, também ela, depende da nossa maior ou menor maturidade e integração afetivo-sexual.

4.2 Por uma renovada ética da sexualidade

O amor, quando verdadeiro, gera, expressa e fortifica a mutualidade (SALZMAN – LAWLER, 2012, p.223). Isso significa que “o amor é verdadeiro e justo, certo e bom, enquanto for uma resposta verdadeira à realidade da pessoa amada, uma união genuína entre aquele que ama e a pessoa amada, e uma precisa e adequada afetiva afirmação da pessoa amada” (FARLEY, 2006, p.198). Para que uma relação de intimidade seja expressão de amor verdadeiro, deve favorecer a reciprocidade, isto é, o mútuo dom de si, deve superar os interesses meramente pessoais, passar do eros ao ágape (BENTO XVI, 2005, n.2-11).

Se o amor se caracteriza por ser uma efetiva e/ou afetiva afirmação do outro, é preciso que o meu amor seja reconhecido como amor. Se isso não acontecer, não haverá reciprocidade. Mas, para que isso ocorra, é preciso que haja certo grau de compromisso entre as partes. Relações extraconjugais que se caracterizam por serem anônimas, promíscuas, adúlteras, mentirosas carecem de um contexto que favoreça a mutualidade e, portanto, não poderão contar com legitimidade ética, pois nunca serão promotoras do humano. Somente um compromisso que se prolongue no tempo poderá conferir à relação o contexto adequado para o amadurecimento. Pode ser que tal compromisso dure para sempre; pode ser que não. Isso não é o mais importante, do ponto de vista ético, pois se trata de uma realidade totalmente dependente da capacidade de amar e da intensidade do amor das pessoas envolvidas. O mais importante é que esse compromisso, enquanto durar, expresse-se como afeto, responsabilidade, cuidado. Tudo isso faz parte da experiência amorosa e, à medida que as pessoas vão crescendo e amadurecendo na capacidade de amar e, portanto, na experiência de mutualidade ou reciprocidade, o compromisso também vai amadurecendo e solidificando-se. Mesmo que o compromisso não seja necessário como ponto de partida para relações de intimidade sexual, ele deverá ser o ponto de chegada daquelas que, de fato, são expressão de amor.

Eticamente, está em jogo a qualidade das relações que estabelecemos, pois nem todas colaboram para a nossa humanização e para a qualidade do modo de nos colocarmos diante dos outros, pois nem todas geram relações de reciprocidade, sejam elas conjugais ou extraconjugais. Urge uma ética sexual que reconheça a bondade moral das relações que expressam os valores próprios do matrimônio mesmo que as pessoas não sejam casadas; que não exija a definitividade do compromisso para justificar as relações de intimidade; que reconheça que o amor não precisa ser necessariamente conjugal e heterossexual para que ele humanize a sexualidade; que considere mais a qualidade das relações do que o que pode ou não ser feito neste ou naquele contexto.

Ronaldo Zacharias, sdb. Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Texto original Português.

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Reformas e movimentos reformistas na Igreja na Idade Média

Sumário

1 Introdução

2 O Renascimento Carolíngeo: antecedentes

2.1 Coroação de Carlos Magno e a Renovatio Imperii

2.2 A Reforma Carolíngea

3 Antecedentes à Reforma Gregoriana

3.1 A Reforma Gregoriana

4 Contestadores, hereges e ortodoxos nos século XI-XIII: Contexto

4.1 Ortodoxos

4.2 Hereges

4.2.1 Valdenses

4.2.2 Cátaros

5 Mendicantes

5.1 Franciscanos

5.2 Dominicanos

5.3 Originalidade de Francisco e Domingos

6 Referências Bibliográficas

1 Introdução

Desde sua origem, a Igreja foi marcada por momentos de crise que demandaram esforços de reforma. O conhecido epíteto Ecclesia semper refomanda est sintetiza esta afirmação. No século VIII, com a ascensão dos francos, e em virtude da estreita união entre os poderes, o governante toma a iniciativa da reforma. Carlos Magno é o protagonista daquele que ficou conhecido como o renascimento carolíngeo. A decadência do império, a partir de meados do século IX, atinge também a Igreja. A partir do século X, um anseio por renovação, vindo de vários setores, principalmente da vida monástica, vai desembocar naquela que será conhecida como a reforma gregoriana. Entre os séculos XI e XIII, leigos, clérigos, ortodoxos e hereges, movidos pelas complexas transformações que marcaram a sociedade medieval, farão ressoar seus clamores por reformas na Igreja e na sociedade. Os mendicantes serão uma resposta eficaz a esse clamor.

2 O Renascimento Carolíngio: antecedentes

Nas transformações causadas pelas invasões no Ocidente a partir do século VI, muitos bispos passaram a ser chefes polivalentes, aliando à função religiosa funções políticas e sociais, além de fazer alianças com os novos “donos do poder”. Eram os primeiros ensaios daquela que viria a ser a “cristandade medieval” (LE GOFF, 1983, p.60). O batismo de Clóvis (496), marca o início da ascensão dos francos no Ocidente. A Igreja vislumbrou, nessa aliança, a possibilidade da criação do Reino de Deus na terra, inspirada na Civitas Dei de Agostinho. A atuação de Carlos Magno (747-814), rei dos francos a partir de 768, foi marcada por uma série de reformas políticas, culturais e religiosas, denominadas renascimento carolíngeo. Tais reformas têm que ser entendidas à luz desta estreita relação entre a Igreja de Roma e os governantes francos que, sob o cetro de Carlos, atinge seu ápice.

O rei franco Carlomanno e o bispo Bonifácio, em sintonia com o bispo de Roma, Zacarias (741-752), haviam empreendido uma reforma na Igreja no reino, combatendo abusos e zelando pela reta observância dos preceitos cristãos. Numa sociedade ainda muito ligada a ritos pagãos, esperava-se do rei que, tal qual um sacerdote, zelasse pela salvação do povo a ele confiado. Desde Pepino, o Breve, bispos e abades, com os nobres leigos, ocupavam lugar de destaque na administração real. Um “Concílio Germânico” foi realizado em 742 ou 743, “visando a salvação do povo de Deus”. A eficácia dessa salvação dependia da sintonia dos governantes com a Sé de Pedro.

2.1 Coroação de Carlos Magno e a Renovatio Imperii

O advento de Carlos Magno consolidava o longo processo de “substituição” da dinastia merovíngia pela carolíngia, mas seu horizonte de atuação era a restauração do Império no Ocidente. Para isso, era fundamental a aliança do trono com o altar. Sua coroação em Roma como “rei dos romanos”, pelo papa Leão III, na noite de natal de 800, simbolizava o renascimento do antigo Império. A coroação tinha a forma de uma consagração episcopal. Ungido com o mesmo “óleo sagrado” que, segundo a tradição, ungira Clóvis, Carlos considerava-se um novo Constantino e o seu seria o novo Império Romano. Diante dos protestos dos orientais, cujo trono no ano 800 era ocupado por uma mulher, os sucessores de Carlos vão reivindicar para o império carolíngio “a plena legitimidade de proclamar-se império romano, baseando-se no conceito da translatio do poder imperial dos Romanos aos Francos” (GASPARRI, SALVO & SIMONI, 1992, p.378). Na concepção carolíngia de poder, Igreja e Estado não eram realidades separadas. Agindo como chefe do reino e da Igreja, Carlos sentia-se, de fato, rei e sacerdote, Vigário de Cristo tal como o Papa. Nas assembleias do reino, autoridades civis e religiosas discutiam assuntos políticos e eclesiásticos. As resoluções sobre a liturgia, a moral, educação e disciplina do clero, nomeação de bispos e abades eram transformadas em leis do império.

2.2 A Reforma Carolíngea

Carlos continuou o projeto de Pepino, mas foi além, ao conceber um plano que iria remodelar a cultura, a religião e os saberes. Para isso, contou com os maiores expoentes da cultura do Ocidente. O palácio em Aquisgrana tornou-se a sede do saber carolíngio e dos “sábios palatinos”, poetas, escritores, cientistas, historiadores, homens célebres pelo seu conhecimento e inteligência, nas mais variadas áreas: Paulo Diácono, o leigo Eginardo, Teodolfo de Órleans, Pedro de Pisa, eram alguns destes homens. O inglês Alcuíno, monge de York, um dos homens mais cultos de seu tempo, colocado à frente da escola palatina, tornou-se o principal mentor da reforma (GARCIA-VILLOSLADA, 1986, p.262-8).

Em 789, com a Admonitio Generalis, conjunto de normas elaboradas por Alcuíno em vista da reforma, Carlos ordena a abertura de escolas em todo o reino, nos mosteiros, bispados e nas zonas rurais. O objetivo das reformas era, a princípio, preparar os pastores para que pudessem bem instruir o povo, mas também para benefício da nobreza carolíngia, formada nessas escolas. Os clérigos deveriam aprender o latim, para celebrar corretamente a liturgia; deveriam saber de memória ao menos o Credo e o Pai-Nosso, deveriam entender as orações da missa e os salmos, saber “ler” as homilias e algumas partes das Escrituras. Aqueles que não se mostrassem suficientemente instruídos seriam depostos. O clero deveria ser instruído, mas também virtuoso: que fossem celibatários, não participassem de caçadas ou guerras (GATTO, 1995, p.153-6.) Numa carta dirigida ao abade de Fulda, Carlos afirmava que recebia dos monges cartas cheias de devoção, mas “num estilo grosseiro e cheias de erros, por causa da sua negligência para instruir-se”. Afirmava também que precisava de homens que tivessem ao mesmo tempo “vontade e poder de se instruir e a vontade de instruir os outros. Nós desejamos que vós sejais, como convém aos soldados da Igreja, primeiro devotos e depois sábios” (Pedrero-Sánchez, 1999, p.170-1).

Alcuíno elaborou um currículo para as escolas dos mosteiros e catedrais, propondo o estudo das artes liberais como propedêutico ao estudo da Bíblia. A ilegível escrita merovíngia foi substituída pela minúscula carolíngia. Os mosteiros transformaram-se em importantes centros de cultura. Além do ensino, nos scriptoria eram copiados códices antigos, com miniaturas e iluminuras. Carlos também incentivou a adoção da Regra de São Bento para os monges, e a vida canônica para os sacerdotes seculares. A liturgia romana tornou-se a referência para as celebrações no reino. Carlos conseguiu do papa Adriano (772-795) um sacramentário gregoriano como modelo para a liturgia. Seus melhores cantores foram enviados à capela papal, em Roma, para aprenderem o canto gregoriano, e difundi-lo no reino.

Em relação aos fiéis, exigia-se o pagamento do dízimo, a frequência à missa dominical, o repouso dominical, a frequência aos sacramentos, principalmente a Eucaristia em algumas épocas do ano. Isso exigiu uma melhor organização das paróquias e dioceses. Peregrinações, culto às relíquias e aos santos aos poucos foram sendo incrementadas. O espírito de reforma vai influenciar também a pintura, a arquitetura, as artes decorativas. A catedral de Aquisgrana é um testemunho do alto espírito artístico que marcou esse período.

O renascimento carolíngio marca o ápice na aproximação entre a Igreja de Roma e os soberanos francos. Carlos Magno vai sintetizar o modelo do rei-sacerdote. As reformas serão continuadas por seu sucessor, Luís, o Piedoso, estendendo por todo o Ocidente um renovamento cultural baseado na mentalidade cristã. O surgimento das Universidades, a melhora no nível intelectual e moral do clero e religiosos, a preservação do rico patrimônio literário do mundo greco-romano, serão alguns dos frutos deste renascimento. A partir do século XI uma nova consciência acerca da natureza e identidade da Igreja, diferente dos poderes temporais, começa a surgir e a ganhar terreno, principalmente nos mosteiros, dando origem àquela que será conhecida como a reforma gregoriana.

3 Antecedentes à Reforma Gregoriana

A expressão “reforma gregoriana”, que deve seu nome ao papa Gregório VII (1073-1085), tornou-se, a partir de meados do século XX, objeto de uma verdadeira “revisão historiográfica”, tal a riqueza de nuances que este período histórico oferece ao estudioso (Rust, Silva & FRAZÃO, 2009, p.135-52; RUST, 2014). Turbulências políticas, invasões e novas demandas sociais marcaram o Ocidente a partir de meados do século IX. Em 962, a coroação do imperador Otão I pelo papa traz um novo impulso às instituições políticas e eclesiásticas, às atividades intelectuais e culturais, a ponto de esse período ser denominado de “novo renascimento” (Verger, 1997, p.13-26; LE GOFF, 1983, p.53).

Com o advento de Otão, a aliança entre o poder político e o clero se fortalece. O soberano tinha o direito de investir os clérigos e conceder-lhe benefícios. Não se tratava de uma ordenação sacerdotal, mas o imperador, através da “investidura”, conferia ao eleito o cargo civil e religioso, simbolizados pela entrega do anel e do báculo. No fim do século X, os bispos-condes e abades gozavam de imenso poder, verdadeiros senhores feudais, cujo cargo não era conferido pelos dotes morais, mas somente pela fidelidade ao soberano. Isto dava origem a abusos. Os problemas mais graves eram o nicolaísmo (clero casado ou em concubinato, com filhos), e a simonia, quando bispados, mosteiros e abadias (os benefícios eclesiásticos), eram concedidos mediante pagamento. Em Roma, a situação não era muito diferente, com nobres romanos disputando com violência a Sé de Pedro.

No século XI, sinais de contestação a esse modelo político eclesiástico começam a surgir. Os mosteiros, por sofrerem menos as investidas do poder temporal, são o meio privilegiado onde se reflete sobre a necessidade de reforma. Cluny (910), Brogne (929), Gorze (933), são apenas alguns destes mosteiros, que primavam pela severa disciplina e a seriedade no seguimento da Regra de São Bento e que, com excelentes abades, tiveram efeitos benéficos sobre toda a Igreja. Gregório VII (1073-1085), principal nome da reforma gregoriana, era próximo dos cluniacenses. Urbano II (1088-1099), um dos maiores papas medievais, saiu das fileiras de Cluny. Pedro, o Venerável, e o monge e cardeal Humberto, conselheiros dos papas, eram monges cluniacenses.

Aos poucos foi crescendo a percepção de que simonia, nicolaísmo e investiduras leigas eram questões intrínsecamente conexas, condicionando e limitando a atuação da Igreja, desfigurando assim sua verdadeira fisionomia. Antes da irrupção de Gregório VII, vários bispos e papas atuaram no combate a esses males.  Cercando-se de colaboradores entusiastas da reforma, convocavam sínodos, visitavam as dioceses, onde defendiam a autonomia e a liberdade da Igreja.

3.1 O Cisma de 1054

O período da Reforma Gregoriana é marcado também pela cisão entre a Igreja do Oriente e do Ocidente, conhecida como o Cisma de 1054. Com o advento de Miguel Celurário como Patriarca de Constantinopla (1043-1054), e com as reformas no Ocidente, principalmente em relação ao celibato, as diferenças entre latinos e gregos, latentes desde o século VIII, se acentuaram. Após medidas repressoras contra os cristãos latinos por parte de Miguel, incluindo o fechamento de igrejas, o cardeal Humberto da Silva Cândida elaborou o opúsculo Adversus graecorum calumnias, assinado pelo papa Leão IX (1049-1054). Em tom polêmico, o escrito defendia o Primado papal, argumentando com a Donatio Constantini, desconhecida dos gregos. A pedido do Imperador Bizantino, uma delegação romana foi a Constantinopla para entabular um diálogo. O cardeal Humberto, no entanto, chefe da delegação, agiu mais como juiz do que como portador da paz. Seu tom duro e ameaçador fez com que Miguel Celurário se recusasse a participar das discussões. Depois de alguns meses, Humberto e os demais, tendo recebido a notícia da morte de Leão IX, antes de partir, no dia 16 de julho de 1054, depositaram no altar da igreja de Santa Sofia uma bula de excomunhão contra o Patriarca e seus seguidores. Esse, por sua vez, convocou um Sínodo para a mesma igreja, e no dia 24 de julho também excomungou o cardeal Humberto e os demais delegados, queimando a bula. Embora as diferenças dogmáticas e disciplinares fossem sérias, o trágico desfecho foi também resultado  de um longo processo de distanciamento cultural, além do espírito intransigente dos dois principais protagonistas.

3.2 A Reforma Gregoriana

Em 1049, um sínodo na cidade de Reims, promovido pelo papa Leão IX (1049-1054) condenava duramente a investidura leiga. Em 1059, Humberto da Silva Cândida na obra Adversus Simoniacos, também negava aos reis o direito de investidura. Aos poucos se impunha um novo conceito na relação entre a Igreja e o império, que indicava para uma nova definição do próprio conceito de Igreja, de separação entre a sacralidade do clero e a secularidade dos leigos. Esses últimos deveriam ser excluídos de qualquer intervenção direta na esfera eclesiástica. Na verdade, esta concepção fundava-se na ideia de que o Sumo Pontífice deveria estar no topo da sociedade, e não o imperador.

Logo que assumiu, Gregório VII reafirmou as medidas de reforma. Seu Dictatus Papae, verdadeiro libelo reformador, deixava clara sua concepção sobre a natureza da Igreja: o papa, enquanto máxima autoridade, podia depor o imperador, através da excomunhão. Podia também desligar os súditos de seu juramento de fidelidade a um soberano injusto (Pedrero-Sánchez, 1999, p.128-9).

Em 1075, Henrique IV (1050-1106), antes de ser coroado imperador, nomeara o bispo para a sede de Milão, embora esta não estivesse vacante. Ameaçado de excomunhão, Henrique reagiu, nomeando outros três bispos, e declarou que Gregório, “falso monge”, estava deposto. Gregório o excomungou. Sucederam-se duros libelos de ambas as partes. Os vassalos de Henrique, aproveitando da situação, abandonaram-no. Isolado, o rei dirigiu-se a Canossa, onde encontrava-se o papa, em viagem à Alemanha. Ali, em 1077, depois de penitenciar-se, pediu e recebeu o perdão papal. De volta à Alemanha, acalmados os ânimos, Henrique convocou um concílio em 1080, onde reafirmou as prerrogativas imperiais em relação às investiduras leigas, e nomeou o antipapa, Guilberto, arcebispo de Ravena (Clemente III – 1080-1100). Em seguida, invadiu Roma. Gregório VII refugiou-se em Salerno, onde morreu em 1085.

A polêmica ocupou os canonistas, que buscavam soluções ao impasse. Os sucessores de Gregório continuaram no caminho da reforma, mas foram mais realistas e abertos ao diálogo. O papa Pascal II buscou um acordo com Henrique V, por ocasião de sua coroação, em 1111, mas o futuro imperador encarcerou o papa e alguns cardeais, e conseguiu arrancar deles o direito de investidura com anel e báculo, além da coroação. Henrique V foi excomungado, mas o caminho para a solução estava aberto.

A Concordata de Worms (1122) vai propor a solução à controvérsia. Com a entrega do anel e do báculo, a Igreja investia o eleito nos cargos eclesiásticos. A nomeação, no entato, deveria ser feita na presença do imperador ou de seu representante. Esse, por sua vez, atribuía ao escolhido o poder temporal, com a entrega do cetro (Pedrero-Sánchez, 1999, p.132). No 1º Concílio do Latrão, em 1123, a Concordata de Worms foi reconfirmada. A Concordata não pôs fim aos conflitos entre a Igreja e império, mas foram colocadas as bases jurídicas para a delimitação dos poderes temporal e espiritual. Por outro lado, passou-se a identificar cada vez mais a Igreja com o clero e o papa, enquanto os poderes laicos assumiram, paulatinamente, a consciência da própria autonomia.

4 Contestadores, hereges e ortodoxos nos séculos XI-XIII: Contexto

A partir de fins do século XI até meados do século XIII apareceram, por todo o Ocidente, monges, leigos, clérigos, que, com um zelo e vigor renovados, propunham o retorno ao Evangelho e à Igreja primitiva. O esforço de “nus seguir o Cristo nu” era expresso através da vida comunitária, da pregação e pobreza voluntária. “A renúncia ao mundo, seguida pelo isolamento numa vida de oração, deixou de ser o único caminho para a salvação” (Bolton, 1986, p.14). Alguns destes grupos, a princípio suspeitos de heresia, conseguiram inserir-se na Igreja, renovando-a a partir de dentro. Outros, mais radicais, colocavam em xeque a doutrina, e acabaram sendo perseguidos e eliminados. A pregação, proibida aos leigos, era o ponto principal de conflito. Um terceiro grupo defendia teses essencialmente heréticas, e desde o princípio foram combatidos pela Igreja. A bula Ad Abolendam, de 1184, prescrevia a excomunhão a “condes, barões, reitores e cônsules, das cidades e outros lugares”, que não se empenhassem na repressão à heresia. Suas terras seriam colocadas sob interdição (Merlo, 1989, p.86)

O surgimento desses movimentos deve-se a uma série de fatores, entre eles o elã reformador da reforma gregoriana, a urbanização incipiente, o surgimento da burguesia e do comércio, com maior circulação de riqueza, e o acentuar-se dos problemas sociais, que colocava em xeque o antigo sistema feudal. No campo cultural também há novo florescimento, com o surgimento das universidades e a circulação de novas ideias, além da ampliação dos horizontes, com as peregrinações e cruzadas. Jacques Verger afirma que “é incontestável que o século XII foi, com maior ou menor precocidade e intensidade, (…) praticamente em todo o Ocidente, um tempo de mutação e de impulso no plano cultural” (VERGER, 2001, p. 17). Estes são  apenas alguns elementos de contexto que constituíram o terreno fecundo para o surgimento destes grupos contestatórios. Some-se a isso o fato de que, em contraposição a um grupo de pessoas que ansiava por uma vida evangélica e cristã exemplar, havia uma Igreja poderosa, rica e mundana, incapaz de corresponder aos anseios destes setores (Falbel, 1976, p.14-5).

4.1 Ortodoxos

Entre os protagonistas da reforma encontram-se vários membros do clero. Vital de Savigny (+1123), Bernardo de Tiron (1046-1117), Estevão de Muret (1045±-1124), Roberto de Arbrissel (1047-1117), Norberto de Xanten (1080±-1134), entre outros, tinham em comum o fato de, renunciando a uma vida cômoda e bem sucedida, deixarem tudo e passarem a viver uma vida austera de pobreza, oração e penitência. Além disso, eram grandes pregadores, e atraíam seguidores. Apesar de conflitos com as autoridades eclesiásticas, continuaram na Igreja e promoveram a reforma, fundando mosteiros que se tornaram grandes centros irradiadores de espiritualidade.

Alguns movimentos de reforma de origem laical também conseguiram se inserir na Igreja. Dentre eles destacam-se os humilhados da Lombardia, do norte da Itália, divididos em três grupos: comunidade de homens, outra de mulheres, e pessoas vivendo com suas famílias. Viviam do trabalho das próprias mãos e se propunham a observar à risca os preceitos evangélicos e a pobreza voluntária. Os que viviam em comunidade deveriam observar também a castidade. Cuidavam dos doentes e pobres, e também exerciam a pregação. Condenados em 1184, recorreram a Inocêncio III e, após redigirem uma breve regra, este os aprovou em 1201.

4.2 Hereges

Na Idade Média, a linha que separa a contestação dentro dos limites da ortodoxia e a heresia é muito tênue. Alguns pregadores, no anseio da reforma, avançavam doutrinas novas e radicais, não necessariamente heréticas, mas acabavam entrando em confronto com as autoridades. Nos inícios do século XII, destaca-se o eremita Henrique de Lousanne. Convidado a pregar pelo bispo de Mans, em 1116, incitou de tal modo os ouvintes que atacaram o clero. Expulso pelo bispo, continuou a pregação itinerante. Preso em 1135, enviado a Cluny, fugiu, mas acabou preso e morreu na prisão, depois de 1145.

Pedro de Bruys foi outro pregador itinerante, que, com radicalismo e violência, negava toda a materialidade da religião, em favor de uma Igreja espiritual. Incitava seus ouvintes a atacar os sacerdotes, profanar igrejas, tirar crucifixos e queimá-los. Em 1132, uma reação popular o queimou numa fogueira que ele mesmo havia aceso. Outros clérigos que lideraram movimentos de contestação poderiam ser citados, como Tanquelmo, assassinado em 1115 por um outro sacerdote, Eon de Stela, morto na prisão em 1150; ou o cônego Arnaldo de Brescia, que pregava uma Igreja pobre e peregrina, e acabou enforcado e queimado em  Roma em 1155.

4.2.1 Valdenses

Por volta de 1175, após uma crise religiosa, o próspero comerciante de Lião, Pedro Valdo (±1140-1217), conhecido também como Valdo de Lião, conseguiu uma tradução dos Evangelhos e outros escritos  do Novo Testamento, abandonou a família, doou os bens aos pobres e tornou-se um pregador itinerante. Seus seguidores, conhecidos como valdenses ou os Pobres de Lião, viviam a pobreza, a vida em comum e a castidade. Pedro pregava o retorno ao Evangelho, mas também criticava o clero indigno e algumas práticas da Igreja. Afirmava ainda que sua vocação não vinha da Igreja, mas do próprio Deus. Um contemporâneo os descreve: “Não possuem casa própria, caminhando em pares, com os pés descalços, sem provisões; possuem tudo em comum, a exemplo dos apóstolos, e seguem desnudos o Cristo desnudo” (Falbel, 1977, p.106). Impedidos de pregar pelo bispo de Lion, recorreram a Roma, em 1179, onde se realizava o 3º Concílio do Latrão. O movimento foi aprovado, com a condição de que pedissem a autorização dos bispos para pregar. Como os bispos negassem, e mesmo assim eles continuassem pregando, acabaram excomungados em 1184. A partir daí, o movimento assumiu contornos cada vez mais heterodoxos, com relação à doutrina, com ataques mais duros contra as autoridades religiosas, e a criação de uma hierarquia própria, com bispos, sacerdotes e diáconos. Uma cisão no movimento ocorreu em 1210, acentuada após a morte de Pedro, em 1217. Dois grupos reconciliaram-se com a Igreja: os Pobres Católicos, guiados por Durand de Huesca e o grupo liderado por Bernardo Prim (Bolton, 1986, p.66-70). Dos movimentos heréticos medievais, os valdenses foram o único que sobreviveu até os tempos modernos, aderindo, posteriormente, à Reforma Protestante.

4.2.2 Cátaros

Os cátaros (do grego katarói, perfeitos) foram, desde o seu surgimento no século XI, identificados com a heresia (Falbel, 1976, p. 36-7). Eram conhecidos também como albigenses, por sua forte presença na cidade de Albi, na França, e no Languedoc (THOUZELLIER, 1969). Além dos elementos comuns aos demais movimentos heréticos, distinguiam-se por um acentuado dualismo, que os opunha radicalmente à doutrina católica: aceitavam só o Novo Testamento, negavam a humanidade de Cristo, negavam a Eucaristia. Eles mesmos abençoavam o pão na ceia. Rejeitavam a evolução histórica da Igreja, considerando a Igreja primitiva a verdadeira Igreja. Os cátaros tinham adeptos entre as elites senhorais e aos poucos foram ocupando importante espaço na sociedade. Foram combatidos, a princípio, através de debates públicos. São Bernardo e São Domingos foram os principais nomes da parte da Igreja, obtendo escasso sucesso. Foram condenados em 1184, pela bula Ad Abolendam, e em 1199, com a Vergentis in Senium. Em 1209, uma cruzada foi proclamada contra eles.

5 Os mendicantes

No contexto destes movimentos de reforma, surgiram alguns grupos que, por viverem de esmolas, foram denominados “mendicantes”. Dois destes se destacam como catalizadores de todo o anseio de renovação expressos até então, tornando-se os mais importantes aliados do papado na contenção da heresia e na difusão dos ideais reformadores: “Naquele tempo (…) no mundo que já envelhecia, nasceram na Igreja, cuja juventude se renova como a da águia, duas religiões (…) a dos Frades Menores e a dos Pregadores” (TEIXEIRA, 2004, p. 1431).

5.1 Franciscanos

Filho de um rico mercador de Assis, Francisco (1181/2-1226) buscou o sucesso nas armas, mas, convertido, passou a viver a pobreza evangélica como penitente e pregador itinerante, e logo conseguiu adeptos. Francisco amava, sobretudo, a pobreza evangélica, mas a fraternidade tornou-se também um diferencial de seu movimento: “E depois que o Senhor me deu irmãos, (…) o altíssimo mesmo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do santo Evangelho” (Teixeira, 2004, p.189). Seu modelo não era a Igreja dos apóstolos, mas o próprio Cristo. Por outro lado, não atacava o clero e demonstrava um reverente respeito à Igreja e à hierarquia (BARROS, 2012, p.177). A coerência entre pregação e vida atraiu seguidores. Nos inícios de 1209, Francisco submeteu ao papa Inocêncio III um programa de vida, que foi aprovado oralmente, permitindo-lhes exercer a pregação exortativa: estava fundada a Ordem dos Frades Menores. Em 1212, a jovem Clara, de Assis, foi admitida ao grupo. As clarissas, vivendo em clausura, tornaram-se o ramo feminino do franciscanismo. Homens e mulheres, célibes e casados também aderiram à “fraternidade”, seguindo uma regra própria. A regra definitiva dos franciscanos foi aprovada em 1223. Francisco enviou seus discípulos em missão por todo o Ocidente, e surgiram os inevitáveis problemas institucionais e disciplinares. Quando morreu, em 1226, a Ordem estava em franca expansão, mas os frades encontravam-se numa encruzilhada, entre manter-se fiéis aos ideais do fundador e seus primeiros companheiros, ou assumir as missões que a Igreja aos poucos lhes confiava. Assumindo os “menores” posições de poder e comando, a “santíssima pobreza” inevitavelmente seria colocada em xeque. Por todo o século XIII e XIV, a Ordem vai passar por uma grande evolução, tornando-se um dos principais sustentáculos da missão da Igreja.

5.2 Dominicanos

Domingos de Gusmão (1175-1221), nobre clérigo espanhol, depois de uma viagem à Alemanha com seu bispo, Diego de Azebès, ficou impressionado com o avanço da heresia. No regresso à Espanha, em 1206, admirados com a ostentação e o luxo exagerado dos legados papais, contrastando com a pobreza e frugalidade de vida dos hereges que tentavam, em vão, converter, comentaram com os legados: “Não é este, irmãos, a meu ver, não é este o caminho… com um espetáculo contrário edificareis pouco, destruireis muito e não obtereis nada” (GELABERT & MILAGRO, 1947, p.172-3) Os dois decidiram pregar em pobreza e itinerância, na região do Languedoc, sul da França, famosa por ser um reduto de hereges. Em 1207, um grupo se converteu em Montreal. No mesmo ano, fundam uma comunidade em Prouille, para acolher mulheres cátaras convertidas. Diego, por sua vez, conseguia uma importante vitória em Palmiers, com a conversão dos Pobres Católicos, valdenses guiados por Durand de Huesca. Após a morte de Diego, Domingos criou uma pequena comunidade de pregadores que foi aprovada no IV Concílio do Latrão com o nome de Ordem dos Pregadores, seguindo a Regra de Santo Agostinho. Domingos concluiu as Constituições em 1221, acentuando a pobreza individual e em comum. Os Pregadores se dedicavam ao estudo em grandes centros universitários, em vista da pregação. A austeridade de vida e o ardor apostólico atraíram novos membros. Algumas comunidades femininas se juntaram à Ordem. Quando Domingos morreu, em 1221, a Ordem estava em franco processo de expansão.

5.3 Originalidade de Francisco e Domingos

Domingos e Francisco conseguiram dar uma resposta “católica” aos anseios de reforma que de toda a parte surgiam. Ao contrário das ordens religiosas tradicionais, ambos mostraram uma abertura ao mundo que queriam evangelizar (LAWERENCE, 1998, p.9;  LITTLE, 1978, 168-9). A mobilidade era uma de suas principais características. Embora Francisco elabore uma regra original e Domingos seja obrigado a assumir a regra agostiniana, ambas as fundações têm como alicerce o desejo de dedicar-se de corpo e alma à salvação dos cristãos, através da pregação apostólica, pobre, itinerante. Por isso, embora vivendo em comunidades, o “mundo era o seu claustro”. Diferentemente de Francisco, que demonstra reserva quanto aos estudos acadêmicos, Domingos exige de seus frades uma formação acadêmica ideal, em vista da pregação. Ainda durante a vida de Francisco, porém, seus frades vão começar a inserir-se no mundo acadêmico, e aos poucos os membros das duas Ordens vão estar lado a lado nas universidades, ora defendendo os mesmos ideais, ora em campos opostos, mas sempre buscando atender às urgentes necessidades da Igreja.

Frei Sandro Roberto da Costa, OFM. Instituto Teológico de Petrópolis, RJ. Texto original Português

6 Referências Bibliográficas

 BARROS, J. D. Papas, imperadores e hereges na idade média. Petrópolis: Vozes, 2012.

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THOUZELLIER, C. Catharisme et valdéisme en Languedoc à la fin du XIIe et au début du XIIIe siècle. 10.ed. Louvain/Paris: Nawelaerts, 1969.

Função social da propriedade no ensino social da Igreja

Sumário

1 Introdução

2 Princípios e valores da doutrina social da Igreja

2.1 Princípios

2.2 Valores

3 O princípio da destinação universal dos bens

3.1 Significado deste princípio

3.2 Destinação universal dos bens e propriedade privada

3.3 Destinação universal e opção preferencial pelos pobres

4 Função social da propriedade

4.1 Função social ou hipoteca social

4.2 Distribuição da propriedade da terra

5 Outras formas de propriedade

6 Origem das distorções na visão e vivência a propriedade

7 Referências bibliográficas

1 Introdução

O ensinamento social da Igreja sobre a propriedade tem como referência básica o princípio da destinação universal dos bens. No Compêndio de Doutrina Social da Igreja (em diante: CDSI), a doutrina sobre a propriedade e sua função social aparecem como uma decorrência desse princípio básico. Por essa razão, iniciamos esse verbete com uma análise do significado desse princípio para a doutrina sobre a propriedade. O ensinamento da Igreja sobre a propriedade e sua função social tem fortes raízes bíblicas e faz parte do ensino social constante da Igreja nas suas encíclicas sociais, desde a Rerum Novarum (em diante: RN), do papa Leão XIII (1891), até a Laudato Si’ (em diante, LS), do papa Francisco (2015).

2 Princípios e valores da doutrina social da Igreja

Inicialmente, convém apresentar brevemente os seis princípios e os quatro valores que fundamentam a doutrina social da Igreja (em diante, DSI). Já que essa doutrina tem unidade e coerência interna, a compreensão de cada princípio se enriquece com a visão do conjunto dos princípios e valores do ensinamento social.

2.1 Princípios

Eis os seis princípios da doutrina social da Igreja (CDSI p.99-122):

1º. A dignidade da pessoa humana: o ser humano é imagem viva do próprio Deus; a pessoa é titular de direitos e deveres, que são inerentes a cada ser humano.

2º. O bem comum: é o bem de todos e é indivisível (como a saúde, a segurança e a paz); é responsabilidade de todos, sob a coordenação do poder público.

3º. A destinação universal dos bens: ou princípio do uso comum dos bens, que precede às diversas formas concretas de propriedade (Sollicitudo Rei Socialis, em diante SRS, n.42); a distribuição da propriedade deve ser tal que todos tenham pelo menos o necessário para viver com dignidade.

4º. A subsidiariedade: o maior não deve substituir-se ao menor, nem tolher sua livre iniciativa; implica no respeito às competências de cada nível de responsabilidade e no direito de empreender.

5º. A participação: direito e dever de contribuir à vida em sociedade; implica nos direitos e deveres da cidadania ativa.

6º. A solidariedade: determinação firme e perseverante de empenhar-se pelo bem comum; opõe-se à “globalização da indiferença”.

2.2 Valores

A seguir, apresentamos os quatro valores da doutrina social da Igreja: (CDSI n.198-203):

1º. A verdade: é a busca de conformar nossas ações com as exigências objetivas da moralidade. Afasta-nos do arbítrio e aproxima-nos da retidão, da transparência e da honestidade.

2º. A liberdade: autodeterminação no horizonte da verdade; podemos distinguir duas dimensões da liberdade: a liberdade de (coação) e a liberdade para (fazer o bem).

3º. A justiça: consiste em dar a cada um aquilo que lhe é devido; a justiça pode ser: comutativa; distributiva; legal; social e restaurativa.

4º. O amor: é a forma de todas as virtudes, que anima por dentro todo empenho social. Ele se expressa como benevolência e misericórdia.

3 O princípio da destinação universal dos bens

3.1 O significado desse princípio

O Concílio Vaticano II sintetiza o sentido desse princípio da seguinte forma: “Deus destinou a terra, com tudo que ela contém, para o uso de todos os homens e de todos os povos, de tal modo que os bens criados devem bastar a todos, com equidade, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade” (Gaudium et Spes, em diante GS, n.69).

O princípio da destinação universal dos bens da terra está na base do direito universal ao uso dos bens. Toda pessoa deve ter a possibilidade de usufruir do bem-estar necessário para seu pleno desenvolvimento. O princípio do uso comum dos bens é o “primeiro princípio de toda ética social e o princípio típico da doutrina social cristã” (SRS n.42). Esse princípio afirma a igualdade básica de todos no que se refere ao sustento das próprias vidas: “Deus deu a terra a todo gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém” (Centesimus Annus, em diante CA, n.31). Já Pio XII, em sua radiomensagem de Natal de 1941, afirmava o direito de toda pessoa ao atendimento de suas necessidades básicas, como base para a paz no mundo: “A pessoa não pode prescindir dos bens materiais que respondem às suas necessidades primárias e constituem as necessidades basilares de sua existência”.

Trata-se de um direito natural, original e prioritário. Afirma o papa Paulo VI:

Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, incluindo o da propriedade e do livre comércio, lhe são subordinados; não devem, portanto, impedir, ao contrário, facilitar sua realização; e é um dever social grave e urgente reconduzi-los à sua finalidade primeira” (Populorum Progressio, em diante PP, n.22).

Esse princípio também implica na afirmação de que a economia é feita para o homem e não o homem para a economia. “Devemos educar para um humanismo do trabalho, onde o homem, e não o lucro, esteja no centro; onde a economia sirva ao homem, e não se aproveite do homem”, afirmou o papa Francisco, em 16 de outubro 2016, numa audiência aos membros do Movimento Cristão dos Trabalhadores, da Itália.

A aplicação concreta do princípio da destinação universal dos bens, segundo os diferentes contextos sociais e culturais, implica em uma definição precisa dos modos, dos limites e dos objetos.  Não significa que tudo esteja à disposição de cada um e de todos. Por isso, é necessário regular este direito na ordem jurídica. Essa ordem jurídica deve ser tal que faculte a todos o acesso aos bens necessários a uma vida digna e a um desenvolvimento integral, numa sociedade “onde o progresso de uns não seja mais um obstáculo ao desenvolvimento de outros, nem um pretexto para sua sujeição” (Instrução Libertatis Conscientia, em diante LC, n.90). A ordem jurídica deve respeitar outro princípio enunciado por São Tomás de Aquino: “in necessitate sunt omnia communia”, isto é, “em caso de necessidade, todas as coisas são comuns” (Summa Theologica, 2, 2, q. 66, ad 7). De acordo com esse princípio, a DSI considera lícito que uma pessoa que passa fome lance mão do necessário para se alimentar, (situação enquadrada na figura jurídica do “furto famélico”). Assim, uma renda mínima (do tipo “Bolsa Família” ou benefício de prestação continuada) para pessoas comprovadamente pobres, que não tem outra fonte de renda, não é um favor, mas um direito.

O princípio da destinação universal dos bens é um convite a cultivar uma visão de economia inspirada em valores morais, que permitam nunca perder de vista nem a origem nem a finalidade de tais bens, de modo a realizar um mundo equitativo e solidário. Esse princípio também corresponde ao apelo do Evangelho a vencer a tentação da avidez da posse.

3.2 Destinação universal dos bens e propriedade privada

Mediante o trabalho, a pessoa humana, usando sua inteligência, consegue dominar a terra e torná-la sua digna morada. “Deste modo, ele se apropria de uma parte da terra, adquirida precisamente com trabalho. Está aqui a origem da propriedade individual” (CA n.31). A propriedade privada, associada a outras formas de domínio privado de bens, confere a cada pessoa uma extensão absolutamente necessária à autonomia pessoal e familiar e “deve ser considerada como um prolongamento da liberdade humana” (GS n.71). O direito de propriedade não deve tolher o direito à propriedade. Isto é, o direito de alguns (ricos) não deve ser obstáculo a que muitos outros (pobres) acessem a propriedade. Nas palavras de Paulo VI, “não é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos pobres e tornando maior a escravidão dos oprimidos” (PP n.33).

Essa compreensão da propriedade difere tanto da visão do coletivismo como da visão do capitalismo, como foi posto em prática pelo liberalismo. Escreve João Paulo II: “A tradição cristã nunca defendeu tal direito como algo absoluto e intocável; pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira” (Laborem Exercens, em diante LE, n.14). E termina resumindo: “o direito à propriedade privada está subordinado aos direito ao uso comum, subordinado à destinação universal dos bens” (LE n.14).

A origem primeira da propriedade está no trabalho. O trabalho acumulado em forma de capital tem a função básica de servir ao trabalho. Daí decorre o “princípio da prioridade do ‘trabalho’ sobre o ‘capital’” (LE n.12). João Paulo II fundamenta assim esse princípio:

Este princípio diz respeito diretamente ao próprio processo de produção, relativamente ao qual o trabalho é sempre uma causa eficiente primária, enquanto que o ‘capital’,  sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas um instrumento  ou causa instrumental. Este princípio é uma verdade evidente, que resulta de toda experiência histórica do homem (LE n.12).

A propriedade privada estimula ao trabalho e à responsabilidade. É importante que seja acessível a todos. Assim a propriedade privada se constitui em “um instrumento para o cumprimento do princípio da destinação universal dos bens”. É um meio, não um fim (PP n.22-23).

A propriedade pública (estatal ou comunal) é uma forma importante de propriedade pela qual se realiza a destinação universal dos bens. Uma obrigação que incumbe aos responsáveis pelos bens públicos é sua administração competente, dentro de sua finalidade, e o cuidado para que tais bens sejam bem utilizados e conservados.

3.3 Destinação universal dos bens e opção preferencial pelos pobres

O princípio da destinação universal dos bens requer que se cuide com particular solicitude dos pobres, daqueles que se encontram em posições de marginalidade e, em todo caso, das pessoas cujas condições de vida impedem um crescimento adequado. “A esse propósito deve ser reafirmada, com toda força, a opção preferencial pelos pobres” (João Paulo II, Puebla, 1979). Trata-se de uma forma especial de primado na prática da caridade cristã e da prática das nossas responsabilidades sociais.

A atenção de Jesus aos pobres era constante e prioritária, como revelam os evangelhos. O cuidado dos cristãos pelos pobres inspira-se no Evangelho e refere-se tanto à pobreza material como a numerosas formas de pobreza cultural, espiritual, psicossocial e religiosa.

São louváveis todos os esforços para superar a pobreza e é preciso colocar-se em guarda contra posições ideológicas e messianismos. Os pobres ficam confiados a nós e sobre essa responsabilidade seremos julgados por Deus (Mt 25, 31-46).

A destinação universal dos bens exige que a propriedade privada sirva para atender as necessidades das pessoas, sobretudo dos pobres. Implica também que se promovam políticas para sua inclusão social. Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, o papa Francisco considera a inclusão social dos pobres uma das “grandes questões que (…) parecem fundamentais neste momento da história” (Evangelii Gaudium, em diante EG, n.185), junto com a questão da paz e do diálogo social. Em seu discurso no encontro mundial dos movimentos populares, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, no dia 9 de julho 2015, afirmou Francisco:

O destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina social da Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada. A propriedade, sobretudo quando afeta os recursos naturais, deve estar sempre em função das necessidades das pessoas. E estas necessidades não se limitam ao consumo. (…) Os planos de assistência que acodem a certas emergências deveriam ser pensados apenas como respostas transitórias. Nunca poderão substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre, criativo, participativo e solidário.

É necessário prestar atenção à dimensão social e política da pobreza. “Não se dê como caridade o que já é devido a título de justiça” (Apostolicam Actuositatem, em diante AA, 8).

4 Função social da propriedade

4.1 Função social ou hipoteca social

A DSI ensina a reconhecer a função social de qualquer forma de propriedade privada, fazendo referência frequente às exigências imprescindíveis do bem comum (cf. Quadragesimo Anno, em diante QA, 23). Essas exigências podem ser assim resumidas: ninguém deve ter os bens como sendo apenas próprios, só dele, mas como comuns quanto ao uso, para que possam ser úteis também a outros; não se pode prescindir dos efeitos no uso dos próprios bens e recursos (o que implica, por exemplo, evitar o desperdício); não é justo manter ociosos os bens possuídos, sobretudo os bens de produção, mas é preciso confiá-los a quem tem o desejo e a capacidade de fazê-los produzir. A função social abrange também os frutos do recente progresso nos campos científico e tecnológico.

Cabe uma responsabilidade especial aos empreendedores, no sentido de usarem sua capacidade empresarial para criar novos empreendimentos ou modernizarem empresas tradicionais, visando garantir sua sustentabilidade econômica, política e socioambiental e promovendo o desenvolvimento com justiça social. Cristãos e pessoas de boa vontade são chamados a “preocupar-se com a construção de um mundo melhor” e a cuidar da terra, “nossa casa comum” (EG n.183). Para o empenho de organizar a economia e promover o bem comum, diz o papa Francisco, “temos um instrumento muito apropriado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, cujo uso e estudo vivamente recomendo” (EG n.184).

Na encíclica Laudato Si’, o papa Francisco associa o uso social dos bens a uma “ecologia humana”, que por sua vez, “é inseparável da noção do bem comum, princípio este que desempenha um papel central e unificador na ética social” (LS n.156). O bem comum “pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis, orientados para seu desenvolvimento integral” (LS n.156), que exige a criação de dispositivos de bem-estar e segurança social e o desenvolvimento de grupos intermédios. Exige também a aplicação do princípio de subsidiariedade, com destaque para a família. Requer, ainda, a paz social, a segurança e a justiça distributiva (cf. LS n.156).

Além disso, exigem-se ações no plano internacional, “para quebrar barreiras e monopólios”, que impedem ou dificultam o exercício da função social da propriedade (cf. CA n.35). Ao criticar a falta de ética na gestão das finanças na crise de 2008-2009,  escreve Bento XVI: “As finanças, depois da sua má utilização que prejudicou a economia real, voltem a ser um instrumento que tenha em vista o desenvolvimento”. E acrescenta: “Os operadores das finanças devem redescobrir o fundamento ético próprio da sua atividade” (Caritas in Veritate, em diante CV, n.62-64).

O documento de Puebla assumiu o ensinamento de João Paulo II sobre a hipoteca social que pesa sobre toda propriedade privada:

Como nos ensina João Paulo II, sobre toda propriedade privada pesa uma hipoteca social. A propriedade compatível com a destinação universal dos bens é acima de tudo um poder de gestão e administração, que, sem excluir o domínio, não o faz absoluto nem ilimitado.” (Documento de Puebla, em diante DP, n.492).

A expressão “hipoteca social” ressalta, assim, o papel de gestores como inerente aos detentores da propriedade de bens e conhecimentos. A propriedade privada nunca é um direito absoluto, mas condicionado a regras e limites que a lei pode estabelecer. A Constituição do Brasil, de 1988, em dois momentos distintos (nos artigos 5º, inciso XXIII, e 170, inciso III), logo após garantir o direito de propriedade, estabeleceu a necessidade de se observar a sua função social. Com base nesse dispositivo constitucional, um município pode estabelecer o IPTU progressivo sobre terrenos ou prédios ociosos e, no limite, desapropriar esse bem.

Uma forma de realizar na prática a função social da propriedade é promover formas de participação dos trabalhadores na propriedade das empresas. João Paulo II propõe as seguintes formas: copropriedade, acionariado do trabalho e participação nos lucros. Propõe, ainda, associar o trabalho à propriedade do capital através de “corpos intermediários com finalidades econômicas”, que costumam ser chamados de “empresas de autogestão” (LE n.14). Nessas empresas, possuídas pelos trabalhadores, em geral sob a forma de cooperativas, a iniciativa passa às mãos dos trabalhadores, de onde nunca deveria ter saído. O sistema de empresas autogeridas mostra que é possível produzir com eficiência, sem patrões capitalistas. Nelas se realiza a prioridade do trabalho sobre o capital, sendo que o capital nada mais é que trabalho acumulado. Os bens da natureza, a tecnologia e capital, são fatores instrumentais, colocados a serviço do trabalho humano, única causa eficiente da produção.

Uma conclusão lógica da doutrina da função social inerente a toda propriedade é que uma parte das fortunas cumuladas pelos donos de grandes empresas pertence, de direito, aos trabalhadores, cujo trabalho foi essencial para a acumulação desses bens.

A propriedade intelectual é garantida pelas leis em muitos países e constitui uma forma de recompensar os investimentos feitos em pesquisas que geraram um invento ou a criação de um medicamento. Mas é importante verificar se essas leis levam em conta o princípio da função social da propriedade, permitindo o acesso a esses conhecimentos a um custo adequado, e atendendo a necessidades sociais de populações inteiras (por exemplo, medicação de controle de epidemias). Outra discussão que se impõe é em relação à privatização de serviços públicos, como a água e o saneamento básico. O risco implicado na privatização de tais serviços é que, ao se converterem em mercadoria, eles se tornem inacessíveis às populações pobres, devido aos altos preços cobrados pelas empresas concessionárias de tais serviços.

4.2 Distribuição da propriedade da terra

Questão crucial, em todos os povos, é a distribuição equitativa da terra, seja sob a forma de solo urbano, seja como solo rural. Também em relação a essa questão vale o princípio da destinação universal dos bens e o da função social da propriedade. Convém recordar a advertência dos S. Padres: “A terra foi dada a todos, não apenas aos ricos” (S. Ambrosio, De Nabuthe, c. 12, n. 53; PL 14, 747. apud PP n.23).  A possibilidade de posse de terra nas zonas rurais é condição para o acesso a outros bens e serviços, como o crédito (cf. Pontifício Conselho Justiça e Paz, “Para uma melhor distribuição da terra. O desafio da Reforma Agrária”, 1997, n.27-31).

Da propriedade derivam uma série de vantagens objetivas, mas dela podem provir também promessas ilusórias e tentadoras. Quem absolutiza a propriedade e só pensa em cumular bens, acaba por experimentar a mais radical escravidão.

Entre os desafios do mundo atual, a Evangelii Gaudium coloca uma economia de exclusão, uma nova idolatria do dinheiro, um dinheiro que governa ao invés de servir e a desigualdade que gera a violência (cf. EG n.55-58). A EG pede também que se pratique o diálogo na construção de novas políticas nacionais e locais, assim como o “diálogo e transparência nos processos decisórios” (LS n.182), no campo da economia, do desenvolvimento sustentável e no combate à corrupção.

5 Outras formas de propriedade

Dado o predomínio da apropriação privada de bens nas sociedades capitalistas, é importante não esquecer as formas tradicionais, como a propriedade comunitária, que se reveste de particular importância e caracteriza a estrutura social de numerosos povos indígenas e de quilombolas. A sobrevivência física e cultural dos povos originários depende em larga medida da garantia da posse e uso dos territórios, em que já viviam seus ancestrais. A garantia da preservação da posse dessas terras, matas e subsolo é fator fundamental para sua sobrevivência, segurança e bem-estar. A defesa e valorização desta forma de propriedade não deve excluir a consciência que também este tipo de propriedade pode evoluir.

Outra forma de propriedade é a propriedade coletiva, sob a forma cooperativa ou associativa. Na Mater et Magistra (em diante MM), o papa João XXIII manifesta apoio ao cooperativismo (MM n.82-87), especialmente no setor agrícola (MM n.143), que segundo ele tem sido negligenciado por muitos governos. Há um reconhecimento implícito das formas de propriedade nas quais se assenta o cooperativismo e dos princípios que esse sistema pratica na gestão dos seus negócios. Um princípio é o da gestão democrática (uma voz, um voto); outro, o da distribuição das sobras, no fim de cada exercício, em proporção das operações de cada associado com a cooperativa e não em função do volume de capital aportado pelo associado (em forma de quotas-partes), ressaltando assim o princípio da prioridade do trabalho sobre o capital.

6 Origem das distorções na visão e vivência a propriedade

Podemos perguntar-nos sobre a origem das graves e frequentes distorções que hoje ocorrem na distribuição dos bens e na gestão dos negócios. A tendência que os analistas observam em nossa economia globalizada é que a propriedade se converteu em um direito (quase) absoluto. Constatam o domínio cada vez maior do capital financeiro sobre o capital produtivo. Essas tendências têm como resultado a concentração crescente das riquezas nas mãos de poucos, com o crescimento desmesurado das grandes fortunas. Os estudos do economista Thomas Piketty sobre a desigualdade, a concentração do capital e a financeirização da economia moderna oferecem sólidas evidências nesse sentido.

Bento XVI, na encíclica Caritas in Veritate, destaca a função social da empresa, que se realiza tanto na produção de bens e serviços como na geração de postos de trabalho. No cumprimento de suas funções, a empresa não pode ter em conta apenas o interesse dos proprietários ou acionistas:

a empresa não pode ter em conta unicamente os interesses dos proprietários da mesma, mas deve preocupar-se também com as outras diversas categorias de sujeitos que contribuem para a vida da empresa: os trabalhadores, os clientes, os fornecedores dos vários fatores de produção, a comunidade de referimento. (CV n.40)

 O papa advertia contra o uso especulativo dos recursos da empresa no mercado financeiro, pondo em risco a sustentabilidade da empresa:

É preciso evitar que o motivo para o emprego dos recursos financeiros seja especulativo, cedendo à tentação de procurar apenas o lucro a breve prazo, sem cuidar igualmente da sustentabilidade da empresa a longo prazo, de seu serviço concreto à economia real e de uma adequada e oportuno promoção de iniciativas econômicas, também nos países necessitados de desenvolvimento. (CV n.40).

 O papa Francisco, por sua vez, diagnostica uma crise antropológica profunda na base do sistema de economia de marcado. Escreve ele na Exortação Apostólica Alegria do Evangelho:

A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-5) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial que investe as finanças e a economia, põe a descoberto seus próprios desequilíbrios e, sobretudo, a grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma de suas necessidades: o consumo” (EG n.55).

A crise antropológica resultante está em consonância com a ideologia de total liberdade do mercado e da afirmação de um Estado mínimo: “Esse desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum” (EG n.56). Depois de falar das dívidas, do juro, da corrupção e evasão fiscal egoísta, que assumem dimensões mundiais, o papa afirma:

A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema, que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil como o meio ambiente, fica indefesa diante dos interesses do mercado divinizado, transformado em regra absoluta. (EG n56).

Resultado dessa crise antropológica e das ideologias do individualismo e do materialismo são o maciço desrespeito aos direitos humanos básicos de indivíduos e povos inteiros, as mudanças climáticas e a degradação ambiental, de dimensões planetárias, com nos alertou a Encíclica Laudato Si’.

O grande desafio é como fortalecer práticas econômicas e sociais que se afinem com os princípios da doutrina social da Igreja sobre a propriedade e o uso comum dos bens, de modo a reverter as atuais tendências nocivas ao bem comum e autodestrutivas da humanidade.

Matias Martinho Lenz, SJ. Universidade Católica de Pelotas, RS. Texto original Português.

7 Referências bibliográficas

Lista das grandes encíclicas sociais dos papas, em ordem cronológica, com sigla e ano de publicação:

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JOÃO XXIII. Mater et Magistra (MM). Sobre a evolução contemporânea da vida social à luz dos princípios cristãos, 1961.

______. Pacem in Terris (PT). Sobre a paz cristã, 1963.

PAULO VI. Populorum Progressio (PP). Sobre o desenvolvimento dos povos, 1967.

JOÃO PAULO II. Laborem Exercens (LE). Sobre o trabalho humano. No 90º aniversário da Rerum Novarum, 1981.

______. Sollicitudo Rei Socialis (SRS). Solicitude social da Igreja. No 20º aniversário da Populorum Progressio, 1987.

______. Centesimus Annus (CA). No centenário da Rerum Novarum, 1991.

BENTO XVI. Caritas in Veritate (CV). Sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade, 2009.

FRANCISCO. Evangelii Gaudium (EG). A Alegria do Evangelho. Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual, 2013.

______. Laudato Si’ (LS) – Louvado Sejas. Sobre o cuidado da casa comum, 2015.

Outros documentos sociais oficiais da Igreja Católica.

CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS). Sobre a Igreja no Mundo de Hoje, 1965.

______. Decreto Apostolicam Actuositatem (AA). Sobre o Apostolado dos Leigos, 1965.

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução Libertatis Conscientia (LC), 1987.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Conclusões da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano. Documento de Puebla (DP), 1979.

______. Conclusões da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano. Evangelização no presente e no futuro da América Latina. Documento de Aparecida (DA), 1979.

2 Textos e livros de referência

ANTONCICH, R.; SANS, J. M. Ensino Social da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1986.

CALLEJA, J. I. Moral Social Samaritana I. Fundamentos e noções de ética econômica cristã. São Paulo: Paulinas, 2006.

CNBB. Igreja e Questão Agrária no início do Século XXI. Estudos da CNBB n. 99. Brasília: CNBB, 2010.

LENZ, M. M. A propriedade e sua função social. In: CNBB. Temas da Doutrina Social da Igreja.  Projeto Nacional de Evangelização Queremos Ver Jesus, Caminho, Verdade e Vida.  São Paulo: Paulinas e Paulus, 2006, p.77-90.

______ (e equipe do projeto ensino social da Igreja, desafio às comunidades). Riqueza e Pobreza e o Ensino Social da Igreja. Coleção Ensino Social da Igreja, V. Petrópolis: Vozes, 1993.

MARTINS, José de Souza. Reforma agrária: o diálogo impossível. São Paulo: Edusp, 2000.

PIKETTY, T. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

______. A Economia da Desigualdade. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.

PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI). São Paulo: Paulinas, 2005.