Sumário
1 Definição conceitual
2 Ato cismático na História da Igreja
3 O cisma como luta pelo poder na Igreja
3.1 Primeiro exemplo: o cisma de Novato em Roma (251)
3.2 Segundo exemplo: o cisma das igrejas norte-africanas no século IV
4 Cisma, heresia e violência: os limites da ortodoxia
5 Conclusão
6 Referências bibliográficas
1 Definição conceitual
De um ponto de vista etimológico, o termo cisma, oriundo do grego, significa o ato de separação, divisão ou ruptura que acomete uma coletividade, particularmente no interior do cristianismo, pelo qual um grupo de membros de uma dada comunidade decide vivenciar aspectos da fé ou do culto de um modo diferente de sua comunidade inicial. Para tanto, este grupo afasta-se da prática comum a fim de procurar uma experiência mais específica ou particular da fé, ora afirmando aspectos doutrinais diferentes (como no caso do arianismo ou do pelagianismo), ora defendendo uma postura disciplinar ou moral diversa (como no caso do novacianismo ou do donatismo) (STARK, 2007, p. 54).
No entanto, de um ponto de vista histórico, é muito difícil sustentar uma compreensão fixista e universal de cisma, pois percebe-se que as comunidades religiosas elaboram, a seu modo, o conceito de cisma guiando-se por suas tradições e interesses particulares, o que pode ampliar, endurecer ou flexibilizar o significado real de ruptura ou separação. Assim, não é fácil para o estudioso contemporâneo identificar o ato cismático no seu sentido empírico, no passado, pois a compreensão de cisma, muitas vezes, guiava-se por jogos de poder no interior das comunidades e tornava-se instrumento de deslegitimação de sujeitos eclesiais específicos que se pretendia retirar do cenário oficial. Esta constatação nos forçará, neste texto, a indagar pela construção histórica do conceito de cisma, do ponto de vista da História da Igreja, tomando-o como parte do desenvolvimento institucional das comunidades cristãs. Por isso, faremos uma discussão histórica ampla e geral do conceito, levando em conta as manifestações concretas de atos cismáticos sem, contudo, particularizá-los ou isolá-los como acontecimentos atípicos ou circunstanciais.
2 Ato cismático na História da Igreja
Sendo um ato de ruptura derivado de uma situação de rebeldia, o cisma é particularmente sentido quando a comunidade religiosa afirma a unidade como natureza fundamental, visível num corpo doutrinário, disciplinar, sacramental e litúrgico compartilhado pelos membros da comunidade; neste caso, o cisma é interpretado como secessão de uma parte desta comunidade que, a partir de um dado momento, toma um caminho particular, distanciando-se da tradição comum. Esta ruptura é, então, experimentada como um trauma, um acontecimento de enorme magnitude que, não raras vezes, vem acompanhado de conflitos violentos, às vezes mortais, praticados pela comunidade majoritária que, no intuito de salvaguardar a unidade, investe todas as suas forças persuasivas para manter o grupo considerado dissidente dentro da unidade original (GADDIS, 2005).
No caso cristão, a experiência comunitária do cisma apresenta-se especialmente traumática em decorrência de uma particular consideração da unidade que, no caso do Evangelho de João, é proclamada por Jesus durante o discurso de despedida, sobretudo na oração sacerdotal: “Pai santo, guarda-os em teu nome, que me encarregaste de fazer conhecer, a fim de que sejam um como nós” (Jo 17,11); na Primeira Carta aos Coríntios (12,12-14), Paulo identifica a Igreja ao corpo místico de Cristo que, por analogia, deve ser una, como ele, apesar da diversidade de seus membros. Assim considerado, o ato cismático torna-se um atentado não apenas contra a comunidade, mas sobretudo contra o mistério do Corpo de Cristo que a Igreja-una representa.
Como se pode notar, as primitivas comunidades cristãs não viam os cismas como acontecimentos prováveis e compreensíveis segundo as lógicas sociais que regem os grupos humanos, cujo desenvolvimento favorece amiúde as separações e desmembramentos em vista de permitir a sobrevivência de heteronomias que, ao longo do tempo, foram assumidas como parte da identidade de comunidades precisas dentro de uma grande federação de comunidades. Ao contrário, as comunidades, apesar da diversidade de cidades, línguas e proveniências étnicas a partir das quais se enquadravam, professavam uma unidade, confundida com uma pretensa homogeneidade, que, na prática, ocultava suas naturais divergências de práticas e de crenças (BROWN, 1999, p. 22).
Num período em que não era ainda preciso um elaborado símbolo da fé e não havia ainda um cânon exclusivo dos textos bíblicos válido para todas as comunidades, é quase impossível delimitar até onde ia a diversidade tolerada (que todavia expressa a unidade) e onde começava a diversidade intolerável (esta sim definida como cisma). Um exemplo desta complicada compreensão encontra-se em Atos dos Apóstolos, capítulo 15, quando seu autor, ao retratar a divergência entre a comunidade-mãe de Jerusalém, dirigida por Tiago, e a comunidade-filha de Antioquia, dirigida por Paulo e Barnabé, preferiu silenciar as profundas discordâncias entre duas igrejas (e entre Tiago e Paulo), dando ao episódio uma resolução fácil que afirmava uma unidade muito frágil e ameaçada, como revelou o próprio apóstolo Paulo, em sua Carta aos Gálatas, capítulo 2. Pode-se argumentar que Lucas, na qualidade de historiador do cristianismo nascente, guiava-se mais pela teologia e pela visão providencialista da História do que pelos cânones da historiografia helênica, que devia conhecer (MARGUERAT, 2003, p. 31); no entanto, sua posição teológica dos fatos, centrada na condução pneumática, levou à predominância de uma visão conciliadora das diversidades eclesiais. Uma vez que os Atos dos Apóstolos tornaram-se uma espécie de protótipo daquilo que veio a se chamar de História Eclesiástica, expressão cunhada pelo bispo Eusébio de Cesareia (263-339), pode-se dizer que esta visão conciliadora lucana afirmou-se como paradigma originário para os autores cristãos antigos e continuou forte mesmo depois, quando da sistematização geral da fé com o Concílio de Niceia (325).
O bispo Ireneu de Lyon (130-202), em seu tratado Contra as Heresias (Liv. I, 10,2), reforçava a unidade da Igreja que, segundo ele, já estava espalhada pelo Oriente e Ocidente, atribuindo-lhe a uniformidade da fé, da tradição e do ensino a despeito da variação linguística que caracterizava as regiões do mundo romano onde as igrejas se implantaram. Embora sua própria obra denunciasse a existência e a força persuasiva de comunidades cristãs que seguiam outra teologia, por ele chamadas de heréticas ou gnósticas, Ireneu acreditava que a unidade do crer era o selo de autenticidade da Igreja da qual fazia parte. No mesmo sentido, o teólogo Orígenes (185-254), nas Homilias sobre Ezequiel (9,1), considerava que a unidade e a comunhão derivavam da virtude, enquanto a diversidade ou multiplicidade originavam-se nos pecados, donde os cismas, as heresias e as dissensões serem necessariamente lidos como expressão daquela rebeldia original que causou a desgraça da ordem da criação.
À luz de ambos os testemunhos antigos, vê-se que a histórica diversidade e disputas entre as igrejas, evidentes desde o chamado Acordo de Jerusalém (At 15; Gl 2), foram encobertas por uma leitura espiritualizante, isto é, que minimizou o dado histórico e social, com vistas à defesa de uma ortodoxia que, sabemos, não se formou sem lutas e dissensões. Para a corrente eclesial representada por Irineu e Orígenes, os cismas não eram dados entendidos apenas como algo muito mais grave do que a separação ou a individualização de comunidades, mas, principalmente, como uma tremenda continuação do pecado no mundo. Ao associar a diversidade ao pecado e a uniformidade à graça, os discursos eclesiásticos contorceram as manifestações de heteronomias e identidades locais tornando-as um obstáculo para a uniformização que deveria autenticar a comunidade; assim, a diversidade passou a ser vista como algo arriscado e, provavelmente, um atentado contra a suposta uniformidade original. O caso do Contra as Heresias, de Irineu, nos permite ver como a salvaguarda de uma cristologia encarnada e histórica lançou mão de uma certa plastificação da uniformidade que, no futuro, tornou motivo para a acusação de cisma aquilo que não passava de resposta local à fé apostólica.
Esta compreensão iriniana da unidade da Igreja, de certa forma, condicionou a chamada História dos Dogmas. Costuma-se interpretar as etapas da formação da doutrina cristã com base em fases generativas específicas, geralmente grafadas com o nome de controvérsias: controvérsia trinitária, controvérsia cristológica, controvérsia pneumatológica, controvérsia iconoclasta, entre outras. Historiadores e teólogos habitualmente acreditam que estas controvérsias constituem etapas cronológicas, portanto, históricas e reais (diria-se até naturais) de uma bimilenar marcha do cristianismo pela História. O curioso é que esta marcação é, na verdade, uma abstração explicativa criada a posteriori, sem o devido fundamento de realidade, desde que se olhe para as fontes históricas sem as lentes de uma evolutiva interpretação controversista da História da Igreja. Esta observação nos ensina que, ao fazer a história da teologia, é preciso evitar a sedução da Teologia da História.
Desta forma, se o cisma nasce de uma controvérsia, devemos, então, redefinir o papel do cisma na História da Igreja, pois a controvérsia (em suas diversas manifestações) constitui o próprio ethos desta história: supor um “cristianismo normativo” desde as origens é mais um ato de fé do que de investigação historiográfica que, ao contrário, evidencia as extremas heteronomias das comunidades, sejam jurídicas, doutrinárias ou litúrgicas (JOHNSON, 2001, p.58). No entanto, é preciso atenção: nem todo entendimento diferente sobre matéria teológica resulta num conflito eclesial, o que nos leva a propor a pergunta: por que certas diferenças de entendimentos geram conflitos e rupturas e outras não geram? Por que alguns conflitos redundam em acordos (assimilação da diferença) e outros em cismas (eliminação dos desviantes)? Uma leitura não generativa da História da Igreja (que não supõe fases incontornáveis e naturalizadas de crescimento) nos leva a perceber que, numa disputa teológica, ao menos na Antiguidade e na Idade Média, geralmente o que estava em jogo era a defesa do poder de quem estabelecia a doutrina e não propriamente a doutrina em si mesma, ou a desviância da doutrina.
Em outros termos, as controvérsias dogmáticas eram parte das expressões dos choques entre comunidades ou líderes destas comunidades para afirmar a superioridade de uma dada cultura eclesial sobre a cultura de outra igreja, como se percebe, tantas vezes, nos confrontos das igrejas de Antioquia, Alexandria e Roma entre os séculos III e V. Na visão, por exemplo, de Eusébio de Cesareia, a garantia da unidade da Igreja não residia na fixação de ideias, mas na sucessão apostólica, isto é, na continuidade de pessoas: esta escolha parece-nos indicativa de que as comunidades negociavam a liderança e o poder lançando mão das controvérsias como motivo para oposição dos “verdadeiros” aos “falsos” ministros (CAMERON, 2005, p. 133).
3 O cisma como luta pelo poder na Igreja: dois exemplos
3.1. O cisma de Novato em Roma (251)
Eusébio de Cesareia, no Livro VI de sua História Eclesiástica, narra os acontecimentos derivados da chamada perseguição do imperador Décio, em 249; o decreto imperial obrigava todos os cristãos a oferecerem sacrifícios aos deuses imperiais, sob risco de condenação à morte. O sacrifício tinha de acontecer perante uma autoridade romana na qualidade de testemunha do ato. Após o sacrifício, que poderia consistir simplesmente na queima de uma pedrinha de incenso, sem nenhuma necessidade de se acreditar nos deuses, o cristão recebia um certificado legal, chamado, em latim, de libellus, motivo pelo qual aqueles que ofereceram o sacrifício foram apelidados (pejorativamente) de libellatici (FREND, 1982, p. 98). Para evitar a morte e, ao mesmo tempo, o oferecimento de sacrifício, muitos cristãos ricos subornaram as autoridades para que seus nomes fossem inscritos no libellus sem que eles fizessem o sacrifício. Para muitos cristãos, esse procedimento era um escândalo, pois significava que tais pessoas eram muito covardes e, pior ainda, haviam apostatado e, por isso, não podiam mais participar da vida da Igreja. Para piorar a situação, suspeitava-se que os libellatici colaboravam com o império, oferecendo informações sobre membros da comunidade que não estavam dispostos ao compromisso imperial. Neste caso, o ato cismático estaria explícito tanto no oferecimento do sacrifício quanto na covardia frente ao martírio e sua condenação justificava-se frente à traição de alguns membros da comunidade.
Neste entretempo, correntes rigoristas começaram a pregar que todo cristão que se tornasse libellaticus perdia a graça do batismo e, caso quisesse voltar à comunidade, após a perseguição, precisava ser rebatizado. Outros sequer aceitariam a reinserção, ainda que por novo batismo. Este drama comunitário, que atingiu as igrejas de Roma, Alexandria e até Cartago, no norte da África, testemunha a existência de um quadro de exclusão interna à igreja que podia ser tão ou mais violento do que a perseguição imperial; a exclusão dos libellatici ou lapsi (isto é, aqueles que caíram por medo do martírio) tornou-se a contra-face de uma verdadeira perseguição intra-eclesial em que rigoristas procuravam expurgar das igrejas os membros indesejados. A atitude dos setores rigoristas, nessas igrejas, poderia ser descrita como uma espécie de “caça às bruxas”, o que evidentemente causava grande turbulência entre os fiéis e o clero.
Foi o que aconteceu, em Roma, quando do martírio do bispo/papa Fabiano (†250), primeira vítima do decreto de Décio. A contenda pela sucessão de Fabiano atesta o quanto a comunidade eclesial de Roma estava dividida entre duas tendências: os rigoristas, que consideravam os lapsi cismáticos, apontaram Novato (†258) como seu candidato; os demais, que podemos denominar “moderados”, isto é, que estavam dispostos a admitir os lapsi, indicaram Cornélio (†253) que acabou vencendo a eleição. Em resposta à confiança de seus apoiadores, Cornélio envidou esforços para reconciliar os lapsi sem exigir novo batismo, porém, obrigando-os a uma pública penitência. Os rigoristas aliados a Novato não engoliram a derrota e, desde então, começou a rivalidade entre o novo bispo e seu presbítero.
Novato comandou uma revolta interna na igreja romana, o que o levou, inclusive, a ser ordenado bispo fora dos procedimentos canônicos e a exigir a deposição de Cornélio – não à toa, muitos historiadores consideram Novato o primeiro antipapa. Ao narrar este acontecimento, Eusébio de Cesareia não esconde sua indignação por Novato. Percebe-se, no entanto, que esta indignação decorria, em primeiro lugar, do fato que, para ele, era verdadeiramente inconcebível que um presbítero pensasse diferente de seu bispo e, pior ainda, que se insubordinasse a ele. Revoltar-se contra seu bispo foi o crime imperdoável de Novato, seu verdadeiro cisma, não sua posição doutrinária rigorista. Cornélio, por sua vez, ao defender uma visão mais inclusiva ou misericordiosa em relação aos lapsi, procurava assegurar a autoridade superlativa do bispo de Roma.
Os adeptos de Novato, conhecidos como novacianos, não foram reintegrados à igreja romana, após o conflito, mas formaram uma igreja autônoma, desvinculada de uma cidade precisa, e seus membros espalharam-se por diversas regiões do mundo romano; quando do Concílio de Niceia (325), os novacianos subscreveram o credo niceno e, por isso, passaram a ser vistos como ortodoxos, na fé, mas dissidentes quanto à disciplina. Em suma, a controvérsia em torno dos libellatici e o cisma de Novato não apontam imediatamente para um problema doutrinal, mas para uma disputa de poder entre grupos rivais, dentro de uma mesma comunidade, e para um confronto entre autoridades hierárquicas, como o bispo e seu presbítero, frente a uma derrota eleitoral não assimilada. A rixa de Novato contra Cornélio deu ensejo para que este último mostrasse qual o lugar de um presbítero e qual o tamanho da força do episcopado romano.
Eusébio de Cesareia, ardoroso defensor da autoridade episcopal frente a tendências, digamos, mais presbiterais ou colegiais, nos leva a detestar Novato e a considerá-lo um pérfido cismático. O expurgo da memória de Novato, após sua atitude de proclamar-se bispo sem eleição canônica, nos obriga a ficarmos sem resposta para muitas questões sobre a posição de Cornélio na defesa dos lapsi. Apesar do péssimo retrato traçado por Eusébio, Novato e seu movimento não podem, impunemente, ser vistos como vítimas minoritárias e indefesas de uma comunidade majoritária e mais forte, pois tanto uma quanto a outra manifestam comportamentos excludentes e procuram, com os recursos que possuem, elevar a sua teologia à categoria de Teologia, ameaçando e perseguindo os diferentes.
3.2. O cisma das igrejas norte-africanas no século IV
O norte da África experimentou todas as consequências da perseguição de Décio, incluindo o problema dos lapsi e as dificuldades para a sua reinserção eclesial. Apesar de sabermos que grande parte das igrejas africanas eram compostas por lapsi (FREND, 1982, p.100), difundiu-se, durante e após a repressão, uma arraigada devoção pelos mártires que haviam dado testemunho de constância e fortaleza. A imensa quantidade de relatos martiriais ligados a cristãos africanos nos dá uma boa proporção do quanto as igrejas daquela região eram apegadas a seus heróis e do quanto o martírio era importante na constituição de uma identidade cristã na África. Não é difícil imaginar que esta identidade martirial logo se voltaria contra a aceitação de leigos e clérigos que, por diversas razões, preferiram resistir à morte.
A situação se agravou quando, em 303, a autoridade imperial lançou uma nova ofensiva contra os cristãos. Desta vez, pretendia-se destruir todas as cópias das Sagradas Escrituras, os objetos litúrgicos e queimar todas as igrejas a fim de que os fiéis não tivessem onde celebrar seus mistérios (FREND, 1982, p. 116). Estas ondas persecutórias movidas pelo Estado romano podem ser explicadas como reação político-social frente à incapacidade do Império de contornar seus problemas fiscais e militares, o que ocasionava contínuas lutas entre o exército romano e os exércitos não-romanos, chamados de bárbaros, que se insurgiam contra a autoridade imperial. Para as elites romanas, esta crise decorria do abandono do culto ancestral aos deuses e da adesão popular ao cristianismo, donde se entende que as perseguições da época de Diocleciano (244-311) contaram com a participação das elites municipais e provinciais, desta vez, coniventes com a punição dos cristãos.
Esta nova repressão imperial, na África, maximizou a divisão entre os cristãos adeptos de uma identidade martirial e aqueles, mais moderados, que aceitavam negociar frente ao perigo. Estes últimos foram taxados de traditores (traidores), porque supostamente entregaram às autoridades os exemplares das escrituras e denunciaram seus irmãos de fé. Com a ascensão imperial de Constantino, em 311, as perseguições cessaram, mas, na área africana, o resultado continuou negativo, pois iniciou-se uma luta interna às igrejas com o fito de impedir que os traditores continuassem a participar da vida de fé, principalmente se fossem clérigos, já que, neste caso, considerava-se que os sacramentos celebrados por eles eram inválidos.
Na cidade de Cartago, este grupo, que podemos chamar de radical, foi capitaneado pelo presbítero, depois bispo, Donato de Casae Nigrae (†c.355). Sua postura de total exclusão dos traditores, considerados colaboradores do Estado romano, originou uma concepção que a verdadeira Igreja de Cristo, por ser santa e imaculada, devia ser formada tão-somente pelos que resistiram ao Império e não temeram a morte: uma Igreja de puros e de santos que não compactuaram com o inimigo. Por isso, as assembleias litúrgicas não podiam admitir a comunhão dos traidores de Cristo e nem o ministério de clérigos que apostataram. A todos estes, caso desejassem voltar à comunidade, cabia novo batismo e, para os clérigos, nova ordenação. É bom notar que, ao negar a validade das ordenações, os donatistas encontraram um modo de desmontar a organização hierárquica das igrejas norte-africanas, substituindo-a por sua própria hierarquia.
Do outro lado, estava o grupo mais moderado, dirigido pelo arcediago (o primeiro entre os diáconos), depois bispo, Ceciliano (†c.345), que negava o rebatismo e as reordenações e considerava que a Igreja, enquanto peregrina neste mundo, comportava tanto os santos quanto os pecadores e que seria impossível excluir os últimos para só restarem os primeiros. Esta ala da igreja cartaginesa defendia que a validade dos sacramentos não dependia da santidade pessoal do ministro, mas do ministério recebido da Igreja, ela sim, santa por causa de Cristo.
O caso do donatismo, no norte da África, nos coloca frente ao problema: qual era a comunidade cismática, a donatista, constituída pela maior parte do episcopado africano, ou a católica, representada pelos poucos bispos alinhados à proposta moderada de Ceciliano e, depois, de Agostinho de Hipona? Quem se separou de quem? Do ponto de vista donatista, a comunidade católica é que perdera a fidelidade à proposta de Cristo e, neste sentido, deixara de ser uma verdadeira igreja. O ato cismático, portanto, teria partido dos católicos. Para os donatistas, o clero católico, corrompido, não era capaz de ministrar sacramentos válidos, pois a ação do Espírito Santo não beneficiava o gesto dos pecadores, ainda que celebrado em nome de Cristo.
Com o fim das perseguições imperiais, em 311, resultado da chamada paz constantiniana, os ânimos dos bispos norte-africanos não abrandaram, pois Constantino, a fim de tentar pacificar a região, tomou o partido de Ceciliano e seus seguidores, dando a eles não só o apoio do Império, mas também incentivo econômico e destacado posto político. Os donatistas viram nisso a confirmação de que a comunidade católica, pró-romana, era mancomunada com o Império e não podia, de forma alguma, ser uma autêntica igreja. Convém observar que, na acusação donatista à comunidade católica, esconde-se um certo desprezo donatista pelas referências culturais romanas que marcavam uma parte dos norte-africanos residentes nas cidades altamente romanizadas do litoral.
A postura católica professada pelo grupo de Ceciliano alinhava-se, de fato, à abertura cultural do mundo romano mediterrânico que postulava o universalismo o que, neste caso, casava bem com a ideia de catolicidade da Igreja. É por isso que Constantino apoiou os católicos, pois seu projeto de governo pretendia, justamente, afirmar a universalidade do Império contra os regionalismos fragmentadores. Os donatistas, por outro lado, formados por indivíduos e comunidades que defendiam uma cultura norte-africana local, menos romanizada e mais exclusivista, não toleravam a ligação entre a Igreja e o Império, ainda que fosse apenas em termos culturais. O que se pode apreender deste cisma norte-africano é que os argumentos de cunho eclesiológico e sacramental escondiam, mais embaixo, um problema sociopolítico que afligia a sociedade como um todo e que, inclusive, incluía uma aguda discrepância e rivalidade entre comunidades campesinas, geralmente alinhadas aos donatistas, e comunidades urbanas, mais alinhadas aos católicos. Se não se leva em conta esta complicada teia de relações, não se consegue compreender a história do cisma africano e, por consequência, nem mesmo a História da Igreja (BROWN, 2005, p. 251; FIGUINHA, 2009, p. 16; FREND, 1982, p. 126).
4 Cisma, heresia e violência: os limites da ortodoxia
No que tange à relação entre as igrejas, o século V não foi menos turbulento; talvez tenha sido ainda pior, como se lê, por exemplo, na História Eclesiástica, de Sócrates de Constantinopla (380-440), principal testemunho do chamado cisma nestoriano de 431. Nestório (386-451) fora um monge antioqueno eleito bispo de Constantinopla em 428. Famoso por sua piedade e eloquência, Nestório iniciou seu mandato exortando o imperador Teodósio II (401-450) a que expurgasse a terra de todos os heréticos, caso quisesse que Deus lhe desse a vitória sobre o Império persa inimigo. O texto de Sócrates (7.29.5 ou 7.29.10) deixa ver como, já na geração de 430, havia na Igreja uma ala de clérigos convencidos que o Estado romano era um bom instrumento de Deus para arrancar, com a força das armas, a erva daninha da heresia e do cisma. Ao Estado cabe usar a força, na Igreja, para livrá-la do erro de alguns e, à Igreja, cabe ajudar o Estado em suas necessidades políticas.
Esta opinião, de resto, não era, em si, uma novidade, pois Eusébio de Cesareia (História Eclesiástica VII, 27.29) sustentava a mesma opinião, quando relatou o destino do bispo Paulo de Samósata (200-275), na Sé de Antioquia, que, por volta de 260, resolveu expressar-se, enquanto bispo, de um modo que incomodava os demais bispos da Síria. Estes, então, recorreram à autoridade imperial a fim de retirar Paulo à força do bispado – não nos esqueçamos de que, em 260, o Império ainda perseguia a Igreja; portanto, este recurso ao Império pagão demonstra que, quando se tratava de defender seus interesses, os bispos não viam nenhum problema em aproximar-se do perseguidor. Os antigos historiadores eclesiásticos, como Eusébio e Sócrates, mencionam atos de violência praticados tanto por bispos considerados maus e perdidos, como Nestório, quanto também por bispos venerados, hoje, como santos, como Cirilo de Alexandria. Na História Eclesiástica (7.13), Sócrates narra a violência com que o bispo São Cirilo extirpou todos os judeus da cidade e mandou incendiar suas sinagogas, bem como o episódio do assassinato da filósofa alexandrina Hipácia (7.15.7). Apesar de Sócrates não nutrir simpatias por Cirilo, seu relato não era fantasioso, pois tomou cuidado de não misturar a fúria do bispo e de seus correligionários com o zelo justo e admissível demonstrado por aqueles que o historiador chama de “homens santos” da Igreja (GADDIS, 2005, p. 222). A despeito disso, a destruição do templo de Serápis e a perseguição à Hipácia sustentam-se na legislação anti-pagã promulgada pelo imperador Teodósio I, entre 391-392 (CAMERON, 1998, p. 60).
Nestas narrativas antigas, é difícil separar o conceito de heresia daquele de cisma; ambos são comportamentos flagrantemente contrários à unidade da Igreja e à autoridade de seus pastores. Por isso, vemos que os bispos recorrem quase sempre à ação do Estado para que este erradique da Igreja toda forma de expressão eclesial diferente: de um ponto de vista estritamente histórico, a manutenção da unidade e a erradicação do erro decorrem do uso da violência, tanto a do Estado quanto a da própria Igreja. É importante levar em conta que a radicalização de certos setores clericais (que não eram poucos) aconteceu durante, mas, principalmente, após o fim das perseguições contra a fé: o que explicaria isso? As igrejas não haviam sofrido o suficiente ao longo de três séculos? Não pregavam elas a paz? Não eram elas esposas de Cristo, o príncipe da paz? É curioso observar que esta radicalização, a princípio referida a judeus, pagãos e hereges, direcionou-se também contra os próprios bispos e clérigos (a princípio, não heréticos) e, por meio de uma disputa duradoura pelo poder dentro da ecumene cristã, a violência contra judeus, pagãos e hereges diminuiu um pouco para concentrar forças contra os bispos entre si.
Acreditava-se que uso da violência era justo porque muito pior era o efeito do erro presente nos cismas, heresias e idolatrias. O monge egípcio Shenoute (ou Shenouda) de Atripe (385-466), abade do Mosteiro Branco de Sohag, certa vez, invadiu a casa de um aristocrata não cristão e destruiu todos os ídolos que encontrou. Acusado de ter cometido violência e crime de invasão e banditismo, ele respondeu: “não existe crime para aqueles que possuem a Cristo” (GADDIS, 2007, p. 1). A solução de Shenoute, além de ilegal, revela que também os cristãos podiam forjar a sua própria compreensão do que era o crime, a violência, o erro, o cisma e a heresia. Estas últimas não eram coisas objetivas, mas o resultado de uma interpretação particular que podia variar ao ritmo das posições mais radicais ou mais moderadas. Assim, ao invés de nos espantarmos ao ver que as comunidades eclesiais antigas podiam ser extremamente violentas (GADDIS, 2007; JENKINS, 2013), precisamos repensar o significado sociológico do conflito e entendê-lo à luz do horizonte histórico dos personagens envolvidos.
O conflito ou a gestão do conflito, nos séculos IV-V, era um mecanismo importante na definição da autoridade episcopal (recordemos o caso da querela entre Novato e Cornélio em Roma, ou de Donato e Ciciliano em Cartago): lutar contra Novato, considerado pelos católicos um cismático e herético, fez de Cornélio um bispo ainda mais forte, porque defensor da fé, e ajudou-o a definir muito mais nitidamente o seu papel de chefe da igreja romana e, mais, colocou-o à frente das igrejas italianas, pois o episódio justificou a deposição dos bispos que ordenaram Novato ilicitamente. Em Cartago, a posição de Donato articulava-se com a opinião majoritária dos bispos da Numídia que, descontentes com a situação de seus colegas tidos por colaboracionistas, invalidavam a ordenação deles, o que mostra que combater os considerados traidores fazia parte do ofício de bispo da verdadeira Igreja, a dos puros e imaculados donatistas. Em outras palavras, os conflitos episcopais, quando eficazmente geridos, conferiam a seus gestores enorme consolidação de sua autoridade, de um lado, e de seu carisma pessoal, de outro. A declaração condenatória de heresia ou de cisma fazia parte do repertório retórico e político mobilizado pelos bispos no afã de sustentar o seu poder através da contestação do poder de seus concorrentes.
5 Conclusão
Diante do quadro exposto, conclui-se que, historicamente falando, o cisma até pode ser um ato sectário, mas é mais propriamente um modo de gerir as diferenças – sociais, culturais, doutrinais e litúrgicas – no interior de uma dada comunidade eclesial ou entre duas ou mais igrejas locais. Além disso, o cisma alude às múltiplas diferenças regionais, políticas e sociais que marcavam o Império romano e que, por extensão, marcaram também as comunidades cristãs que se desenvolveram em seu solo. É enganoso supor que as igrejas, de ontem e de hoje, respondem apenas às suas demandas próprias e que suas histórias correm paralelas à história social de seu meio. Neste caso, o cisma precisa ser reinterpretado numa chave que entende que a diversidade, não a uniformidade, é consubstancial à própria identidade do cristianismo.
Isso não significa, como dito anteriormente, que a experiência de ruptura no interior das igrejas não fosse vivida como algo doloroso e escandaloso, porém, não podemos nos esquecer que as próprias comunidades eclesiais, ao definirem e condenarem os cismas, procuravam afirmar suas idiossincrasias e, neste sentido, defendiam a sua perspectiva de vencedores, como encontramos, por exemplo, na História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia. Este bispo, quando escreveu sua obra, sabia que era membro de um império dirigido por um imperador cristão e que os bispos, sucessores dos apóstolos, eram também verdadeiros magistrados romanos que ocupavam as sedes das cidades de um império universal e, portanto, eram homens de poder. Sua História reflete esta situação altamente privilegiada do episcopado monárquico, um tipo de governo eclesial que lentamente se impôs sobre outros modos de governo mais colegiais. Ao escrever a História Eclesiástica, Eusébio tecia louvores à tradição episcopal e a elevava à condição de paradigma da própria apostolicidade da Igreja que ele enxergava como a verdadeira Igreja, o que restou de bom de todas as seitas e cismas do período anterior. Não que ele engenhosamente estivesse a manipular a história a favor do seu partido, mas não dá para não notar que, como bispo e aliado do Império, sua visão dos fatos condizia com a sua posição no mundo.
A partir da constatação que as fontes históricas de que dispomos são produtos de correntes cristãs que saíram vitoriosas de seus embates e, por isso, são discursos depreciativos das diferenças, é muito difícil compreender o real significado dos cismas, principalmente para os grupos que optaram por eles como condição de sobrevivência da própria fé. Assim, a historiografia e a teologia são convidadas a superarem a visão teleológica que marcou a História da Igreja, de ontem e de hoje, para encontrarem, por debaixo dos escombros da damnatio memoriae (a condenação de aspectos do passado) os elementos mais convenientes para elaborar a sua própria leitura da História da Igreja.
André Miatello, UFMG/FAJE – Brasil, Original português
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