Sumário
1 Introdução
1.1 Quem são os Padres Apostólicos
1.2 Formação da coleção
1.3 Natureza da coleção
2 Características Gerais
3 Breve apresentação de cada obra em particular
4 Referências bibliográficas
1 Introdução
1.1 Quem são os Padres Apostólicos
Com a expressão Padres Apostólicos entende-se hoje um corpus de escritos dos séculos I-II, de autores que teriam conhecido diretamente os apóstolos ou que teriam tido contato com testemunhas diretas de seu ensinamento. Por esse motivo, essas obras gozaram de grandíssima autoridade na época antiga, ao ponto de algumas se encontrarem listadas nos elencos primitivos de Escritura canônica (como o Cânon de Muratori ou o Código sinaítico do séc. IV). Tal corpus, hoje, é variadamente considerado nas edições modernas. Considera-se parte dele a Carta aos Coríntios, de Clemente de Roma, as sete cartas autênticas de Inácio de Antioquia, a Carta aos Filipenses, de Policarpo de Esmirna, e o Martírio de Policarpo, os fragmentos de Papias de Hierápolis, a Carta do Pseudobarnabé, o Pastor de Hermas, a Didaché. Hoje se tende a considerar parte desse corpus o A Diogneto e a Homilia do Pseudoclemente.
1.2 Formação da coleção
A particularidade desse corpus consiste em que não foi formado na antiguidade, mas surgiu no séc. XVII. O termo em si, quanto sabemos, foi usado pela primeira vez por um autor do séc. VII, Anastásio Sinaíta, abade do mosteiro de Santa Catarina do Sinai (cf. EHRMAN, 2003, p.1), para indicar o corpus de escritos que naquele tempo era atribuído a Dionísio Areopagita, obra que certamente não é anterior ao fim do séc. V e que hoje se denomina com o termo Pseudoareopagita. Mas só a partir de 1672, com a publicação realizada por J. Cotelier, da obra SS. Patrum qui temporibus apostolicis floruerunt etc., começa a formar-se esse grupo de escritos. Cotelier, que usa por primeiro, duas vezes, em sua obra o termo futuramente consagrado pelo uso apostolicorum patrum collectio (“coleção dos padres apostólicos”), inclui nessa coletânea cinco autores: Barnabé, Clemente de Roma, Hermas, Inácio de Antioquia e Policarpo de Esmirna. O critério usado por Cotelier para formar esse grupo era que os autores tivessem conhecido os apóstolos ou Paulo, ou que tivessem sido seus discípulos diretos (cf. EHRMAN, 2003, p.8-9). Em 1765, A. Galandi, Bibliotheca veterum patrum, acrescenta-lhe os fragmentos de Papias de Hierápolis e o A Diogneto. Em 1883 foi descoberto um manuscrito que fez conhecer o texto da Didaché, que imediatamente foi incorporado a essa coleção.
1.3 Natureza da coleção
Uma dificuldade levantada por alguns autores contemporâneos é que tal corpus não segue critérios unívocos. Aí se encontram, de fato, gêneros literários diversos (há cartas, o Pastor é considerado por muitos autores como um exemplo de apocalíptica; Pseudoclemente é uma homilia; A Diogneto é uma apologia, etc). Se o critério é ter conhecido os apóstolos ou Paulo, a dificuldade consiste em que a Carta de Barnabé (que é, antes, um tratado), por exemplo, é um caso de pseudepigrafia, ou seja, não é escrita pelo colaborador de Paulo, como não é, certamente, Clemente o autor da homilia que faz parte do corpus.
Alguns autores, como Drobner (1998, p.98-9), acreditam que a expressão corpus deveria ser abandonada e as obras recolocadas na história da literatura cristã com critérios mais homogêneos (cronológico ou de gênero literário). Não vemos dificuldade alguma em continuar usando a expressão, já consagrada na tradição plurissecular, uma vez que estejamos conscientes de sua natureza heterogênea e da singularidade de cada obra. Os Padres Apostólicos, juntamente com outras fontes pertinentes, são um testemunho indispensável para compreender a dinâmica dos primeiros momentos da formação da consciência crente e da Igreja: “são uma fonte privilegiada para estudar a cristologia, a questão da penitência, que emerge em particular do Pastor de Hermas, o martírio, a opção preferencial pelos pobres, a práxis sacramental, a vida e a organização da Igreja primitiva” (DELL’OSSO, 2011, p.10).
2 Características Gerais
Todos os autores que se ocuparam com os Padres Apostólicos, assim como os simples leitores, sem interesse direto pela Patrística ou pela literatura cristã antiga, concordam em que, nas páginas desses Padres, se percebe uma simplicidade que parece desaparecer nas obras dos Padres posteriores, sobretudo a partir do séc. IV. Significativos são os juízos de autores clássicos e contemporâneos: “Ainda está distante a preocupação que inspirará os apologistas do séc. II, de oferecer uma explicação científica do cristianismo ou dos dogmas em particular” (ALTANER, 1968, §23). “Os escritos dos Padres Apostólicos tem um caráter pastoral. Seu conteúdo como seu estilo os aproximam dos livros do Novo Testamento” (QUASTEN, 1980/2009, p.44). “Cada vez que se abre uma de suas páginas, descobrem-se novos aspectos de humanidade, de sabedoria e de experiências iluminadas. Não envelhecem nunca porque têm uma verdadeira superabundância de vida espiritual. (…) De toda a literatura cristã antiga, a dos Padres Apostólicos é talvez a mais espontânea que consegue fazer convergir para ela também o interesse dos mais críticos do cristianismo de hoje” (QUACQUARELLI, 1991, p.375-6). “Os autores dessas obras não eram escritores de profissão, mas escreviam para os cristãos, com a linguagem compreensível e simples, com que se dirigiam aos seus irmãos na fé” (DELL’OSSO, 2011, p.6).
No entanto, seria um erro considerar esses escritos como “mais puros” em relação a uma pretensa decadência das obras posteriores que iriam numa direção intelectualística. Na realidade, esses escritos não se ocupam de “teologia” como a entendemos hoje e como a encontramos nos autores, principalmente a partir do séc. IV, porque o cristianismo ainda não tinha sido desafiado por questões a respeito da verdade de suas afirmações. Isso ocorrerá, sobretudo, no confronto com o gnosticismo e o arianismo, que provocará a necessidade de uma resposta em acordo com o depósito da fé tal como foi recebido. E os primeiros textos realmente teológicos, como os entendemos, são os de Irineu de Lyon e, sobretudo, os de Orígenes, em reação aos gnósticos; um passo ulterior será dado pelos Padres Capadócios (Basílio de Cesareia, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa) em reação ao arianismo e ao apolinarismo. Os textos dos Padres Apostólicos permanecem no estilo bíblico, têm especialmente interesse parenético, de exortação moral, e abordam questões que dizem respeito à vida da comunidade. Sua linguagem é concreta, eles ainda usam as categorias do Antigo Testamento no intento de dar conta da novidade experimentada com o acontecido com Jesus. Em suas páginas encontramos a expressão da novidade cristã mostrando que ainda não tem necessidade de categorias e linguagem diferentes das da Sagrada Escritura, diversamente de quando será necessário responder a questões diferentes a respeito da própria fé. A teologia trinitária de Orígenes e o desenvolvimento dogmático a partir de Niceia (325) e Constantinopla I (381), assim como os momentos finais da reflexão teológica de Atanásio de Alexandria e dos Capadócios, são as respostas adequadas às novas perguntas postas, respectivamente, pelos gnósticos e por Ário. Os Padres Apostólicos não abordam esses temas porque simplesmente a consciência teológica de seu tempo ainda não tinha tido necessidade de diferenciar-se teoricamente. Isso não tira, ao contrário, reforça o seu caráter extraordinário de fonte de altíssimo valor para os inícios do cristianismo em todas as suas dimensões: “as suas ricas e significativas diversidades e o desenvolvimento da compreensão da própria autoidentidade, distinção social, teologia, normas éticas e práticas litúrgicas” (EHRMAN, 2003, p.13-4).
3 Breve apresentação de cada obra em particular
Carta aos Coríntios de Clemente Romano, indicada também como 1Clem. O texto em si mesmo é anônimo, mas certamente é uma carta do âmbito romano e a atribuição ao bispo de Roma, Clemente, é constante nas fontes antigas e no consenso geral dos estudiosos modernos. Citada por fontes antigas escritas antes de 170 e fazendo referência à perseguição de Nero (64) e a um tempo de perseguição enquanto o autor escreve, leva a pensar no período final do governo do Imperador Domiciano (81-96). O texto é uma exortação à paz escrita por parte da Igreja de Roma e endereçada à Igreja de Corinto por ocasião de graves tensões internas nessa última. A popularidade da carta foi enorme, a ponto de, ainda em 170, ser lida nas assembleias cristãs. Tradicionalmente se viu nesta carta uma indicação da posição preeminente da Igreja de Roma que pode intervir nas dinâmicas internas de outra Igreja. Recentemente se propôs também ver nesta carta um caso “de correptio fraterna [correção fraterna], a ser entendida não como simples exortação, mas como um procedimento jurídico preciso que poderia conduzir à exclusão da comunidade” (LONGOBARDO, 2007, p.141)[1]. Se não no plano jurídico, contudo, a legitimidade da intervenção da Igreja de Roma certamente era reconhecida ao menos no plano da preocupação pastoral. A carta é interessante, ainda, pelos temas filosóficos presentes na trama do seu texto, além do “sabor” bíblico que a permeia.
Homilia do Pseudoclemente. Na tradição manuscrita da 1Clem, exatamente em três manuscritos, depois da Carta aos Coríntios, da qual falamos acima, encontra-se este texto, chamado em dois dos três manuscritos “Segunda Carta de Clemente aos Coríntios”. O texto parece na realidade uma antiga homilia, provavelmente batismal, mas do âmbito oriental (Egito, Síria), que remonta à metade do séc. II. “É o mais antigo sermão cristão que chegou até nós, dirigido a neófitos, cujo tom simples e sóbrio revela um escritor desprovido de aspirações literárias” (DELL’OSSO, 2011, p.213).
Cartas de Inácio de Antioquia. A discussão em torno a essas cartas foi, a seu tempo, enorme. Inácio foi bispo de Antioquia entre os séculos I e II (tradicionalmente sua morte é datada do ano 107, sob o Imperador Trajano). A antiguidade e, portanto, a autoridade dessas cartas é de enorme importância, porque nos fornecem indicações precisas sobre a estrutura e a organização da Igreja em seu tempo. De maneira particular impressiona o episcopado monárquico, onde o bispo é o garante da unidade da Igreja; a estrutura bispo-presbítero-diácono da ordem ministerial; mas, também, a centralidade do mistério de Cristo, com insistência na realidade da encarnação contra as evidentes posições adversas de tipo docetista; notável, além disso, a espiritualidade do martírio ligada a uma famosa imagem eucarística. O fato que o corpus de suas cartas nos tenha chegado de modo complexo favoreceu as posições de quem, contrário ao reconhecimento de tal organização hierárquica eclesial já nos séculos I-II, negava a autenticidade das cartas, considerando-as muito posteriores. “Até os nossos dias o ceticismo foi alimentado pela complicada história do texto, na qual a crítica textual bem pronto se enlaçou com questões teológicas e foi influenciada e às vezes até guiada por opções confessionais e se tornou sempre mais o veículo de uma crítica literária nem sempre livre de pressupostos no que dizia respeito ao conteúdo” (PROSTMEIER, 2006, p.490). Hoje há um consenso bastante generalizado no reconhecimento da autenticidade das sete cartas que Inácio escreveu em sua deportação para Roma, para aí ser julgado e morto, tendo-as redigido à guisa de um “diário de viagem escrito pelo mártir designatus, para usar uma expressão de Tertuliano” (QUACQUARELLI, 1991, p.97). Essas cartas são Aos Efésios, Aos Magnésios (ou seja, à comunidade de Magnésia no Meandro, hoje território da Província de Aydin, na Turquia), Aos Tralianos (ou seja, à comunidade de Trália ou Trales, hoje Aydin, na Turquia), Aos Romanos, Aos Filadélfios (ou seja, à comunidade de Filadélfia, hoje Alaşehir, na Turquia), Aos Esmírnios (de Esmirna, hoje Izmir, na Turquia), A Policarpo.
Carta aos Filipenses de Policarpo de Esmirna. Tendo a comunidade de Filipos solicitado a Policarpo cópia das cartas de Inácio, que ele possuía, o bispo de Esmirna as enviou acompanhadas de uma carta sua, que hoje, contrariamente a hipóteses anteriores, se considera única e não a fusão de uma carta com um bilhete (cap. 13). A carta é importante porquanto fala justamente das mencionadas cartas de Inácio. Aproveitando a circunstância, Policarpo exorta os cristãos de Filipos em matéria de moral cotidiana e os incentiva a resistir às tentações docetistas. Deve ter sido escrita não muito tempo depois da morte de Inácio.
Martírio de Policarpo. Policarpo, segundo Irineu, teria conhecido o apóstolo João. Parece, no entanto, que o bispo de Lyon confunde o apóstolo com um presbítero homônimo, contemporâneo de Policarpo, mencionado por Papias de Hierápolis (DELL’OSSO, 2011, p.131). Após sua morte, muitas comunidades solicitaram notícia sobre o martírio do bispo ancião (morreu aos 86 anos), que gozava de grande autoridade. O texto, que em si seria uma carta, inaugura (cf. LONGOBARDO, 2007, p.143), no entanto, o gênero literário martirial, e usa pela primeira vez o termo “mártir”, no sentido em que será conhecido sobretudo a partir das perseguições da metade do séc. III. No Martírio de Policarpo encontramos quase todos os elementos que servirão de base ao culto e à espiritualidade dos mártires.
Carta de Barnabé (ou Pseudobarnabé). Encontramos este importante texto elencado logo depois do Apocalipse, no famoso Codex Sinaiticus, um manuscrito do séc. IV que contém a mais antiga cópia do Novo Testamento completo, portanto entre os livros tidos como inspirados. Algumas evidências internas nos levam a datar o escrito da primeira metade do séc. II, talvez no âmbito alexandrino, mas sem excluir a possibilidade da Palestina ou da Síria. Certamente não é de autoria do companheiro e colaborador de Paulo, razão pela qual hoje se indica também como Pseudobarnabé. Embora a forma seja do gênero epistolar, o texto na realidade é um verdadeiro tratado, onde pela primeira vez – quanto sabemos – é abordada a questão da relação entre o cristianismo e o judaísmo. A primeira parte é escrita em perspectiva fortemente crítica ao judaísmo, do qual toma claramente distância; na segunda parte encontra-se uma catequese parenética, segundo a clássica imagem das duas vias. Como em todas as obras de polêmica com o judaísmo deste período, ou na literatura siríaca do séc. IV, como em Afraates e Efrém de Nísibi, seria um grave erro ler esses textos como “antissemitismo” ante litteram. As disputas mais furiosas se dão muitas vezes entre irmãos. E nesses textos temos o desenvolvimento de uma nova compreensão e o processo de afirmação de uma nova identidade devida à adesão à experiência do acontecido com Jesus, pela qual a diferenciação com relação à origem judaica comportou tensões não irrelevantes de ambos os lados. Concordamos plenamente com C. Dell’Osso quando diz que o Pseudobarnabé é “o êxito daquele esforço de reflexão que o movimento cristão emergente estava fazendo em busca das razões de sua diferença com relação ao judaísmo, ou em busca da identidade cristã em relação com a matriz judaica” (2011, p.178).
O Pastor de Hermas. Este texto, em comparação com os demais que pertencem ao corpus dos Padres Apostólicos, é certamente o mais difícil de situar dentro do quadro. O autor seria Hermas, irmão do Papa Pio (140-155), de acordo a informação do Cânon de Muratori. Orígenes, por outro lado, levanta a hipótese de que o autor do Pastor é o Hermas saudado por Paulo em Romanos 16,14. O texto também foi considerado como formado por um material variado, que passou por várias redações e que teria recebido sua forma atual por volta da metade do séc. II. O escrito está claramente dividido em três partes que pareceram a alguns independentes, a tal ponto de levantarem a hipótese de vários autores organizados por um redator final. Outros, ao contrário, tendem a uma unidade global, e essa é hoje a posição corrente entre os estudiosos. A obra está estruturada em 5 visões, 12 mandamentos e 10 parábolas. Os números, obviamente, não são casuais e há evidências da vontade positiva do autor de usar exatamente essas cifras fortemente simbólicas. Para alguns, é um apocalipse, para outros um livro de alegorias. Certamente, foi escrito numa época de crise, e seu apelo à conversão está perfeitamente em consonância com o que se espera em um momento como esse, na esperança de um futuro melhor. A comunidade onde surge o Pastor é a romana, e esse texto é muito interessante para a história e a compreensão do desenvolvimento da disciplina penitencial. Deduz-se que se trata de uma comunidade que perdeu seu fervor inicial e, portanto, do ponto de vista moral, a deterioração é evidente. Diante disso, surge uma tentação rigorista, segundo a qual o batismo era a última possibilidade de receber o perdão dos pecados e não havia possibilidade de perdoar os cometidos depois do banho da regeneração; e uma postura mais aberta e compreensiva, que tentava encontrar uma chance ulterior para aqueles que tivessem caído depois do batismo. Esta tensão era constante na comunidade romana e norte-africana, como mostram os casos do Papa Calisto e seu adversário rigorista, o autor de Elenchos (outrora se considerava que fosse de Hipólito de Roma, mas sendo atribuído ao mesmo nome obras de autores certamente diversos, prefere-se hoje indicá-los desse modo), na Roma entre os séculos I e II; ou as controvérsias sobre os lapsi após as perseguições de Décio e Valeriano, na segunda metade do séc. III, que verão Cipriano de Cartago e o Papa Cornélio representar a linha da misericórdia, esse último contra Novaciano, provavelmente um expoente da mesma linha rigorista, minoritária mas potente, presente em Roma desde o tempo de Hermas. O Pastor tende a reconhecer só uma possibilidade de penitência após o batismo, exortando ao mesmo tempo a uma conversão séria em vista do fim iminente. De todos os textos dos Padres Apostólicos, o Pastor é o que talvez esteja mais distante de nós no nível da linguagem, devido à floresta de imagens e alegorias. Não está desprovido, porém, de aspectos bastante interessantes, especialmente à luz do recente magistério do Papa Francisco. A. Quacquarelli escrevia há cerca de quarenta anos atrás: “É um ensinamento contínuo que diz respeito à simplicidade, à sinceridade, à castidade, à indissolubilidade do casamento, à caridade de perdoar o cônjuge culpado, mas não reincidente, às segundas núpcias após a viuvez” (1991, p.240).
A Didaché. Este texto, fundamental para a história da liturgia, da disciplina eclesiástica, da moral e da doutrina cristã, foi descoberto em 1863 em Constantinopla, dentro de um código de 1056. Os materiais que o compõem provavelmente datam do mesmo período em que foram escritos os sinóticos, embora o texto atual seja certamente redacional, mas não para além do séc. I, e a área da composição terá sido a Síria. O que é a Didaché? Didaché significa “doutrina” e no texto descoberto em Constantinopla a obra tem dois títulos, talvez adicionados por algum copista: “Doutrina dos doze apóstolos” e “Doutrina do Senhor às nações por meio dos doze apóstolos”. É “uma espécie de regra para a comunidade cristã” (LONGOBARDO, 2007, p.145). É “um gênero catequético influenciado pelo estilo evangélico(…), um manual, talvez um dos muitos, que então circulavam pela comunidade (…), uma antologia de preceitos com reflexões e exortações que poderiam dar a impressão de um conjunto de notas” (QUACQUARELLI, 1991, p.25). Justamente devido a sua antiguidade, é de extraordinário interesse para a história da liturgia (especialmente para a celebração da eucaristia) e para o estudo da organização da Igreja nos primeiríssimos tempos. Na parte da instrução moral, encontramos a doutrina das duas vias, como vimos no Pseusobarnabé. Alguns autores acreditam que, já que a mesma doutrina se encontra nos escritos de Qumran, a matriz comum de tal ética possa ser encontrada na literatura sapiencial judaica; outros fazem notar que a imagem dos dois caminhos é clássica no mundo antigo (cf. DELL’OSSO, 2011, p.16). Seja como for, o texto é preciosíssimo, pois “deita raízes nas camadas mais profundas das origens cristãs, lá onde ainda é viva e fluente a tradição sobre Jesus, onde ainda é vital a ligação com a espiritualidade, a ética e a liturgia judaicas e onde ressoa ainda o eco direto da eucaristia protocristã e do anúncio dos profetas cristãos” (cf. DELL’OSSO, 2011, p.16).
Papias de Hierápolis. Nas coleções dos Padres Apostólicos, como dissemos, a partir de 1765, aparecem também alguns fragmentos da Exposição dos ditos do Senhor, obra de Papias, bispo de Hierápolis (hoje os seus restos se situam nas proximidades de Pamukkale, Turquia). Segundo Irineu de Lyon, Papias teria sido discípulo do apóstolo João e companheiro de Policarpo. Eusébio de Cesareia, no entanto, o localiza como discípulo de outro João, um presbítero diferente do apóstolo. Portanto, Papias pertenceria à geração que foi instruída por aqueles que conheceram os apóstolos, mas não pelos próprios apóstolos. Considera-se como data de composição de sua obra a primeira metade do séc. II, talvez entre os anos 125-130 (cf. DELL’OSSO, 2011, p.159). O testemunho de Papias é importante por suas referências às origens do evangelho de Mateus (que teria sido escrito em hebraico) e de Marcos (que se teria originado da pregação de Pedro), mas também porque revela a importância da tradição oral dos ensinamentos de Jesus, que eram transmitidos por meio dos “presbíteros”.
A Diogneto. Este texto se chama assim pelo nome que se encontrava no único manuscrito que o continha, descoberto em Constantinopla em 1436 e infelizmente destruído em Estrasburgo durante a Guerra Franco-Prussiana de 1870. Felizmente pouco antes se havia feito duas cópias. O texto não é tanto uma carta, quanto uma obra do gênero apologético, que se localiza aproximadamente no fim do séc. II e início do séc. III. É uma apresentação do cristianismo a um personagem, provavelmente fictício, chamado Diogneto. O estilo é elevado e a língua grega excelente, o que faz pensar que o autor tenha sido uma pessoa culta e de ambiente social elevado. No texto, os cristãos são apresentados como pessoas que vivem a vida de todos os dias, como o restante dos homens e das mulheres de seu tempo, diferenciando-se, essencialmente, pelo fato de serem perseguidos e desprezados, e por responderem a isso com mansidão e testemunhando amor para com todos, indistintamente. Com uma célebre imagem (cap. 6), o autor estabelece um sugestivo paralelo: os cristãos são para o mundo o que a alma é para o corpo. Em seguida, passa a descrever alguns pontos da visão teológica dos cristãos, terminando com uma exortação parenética à conversão. Este texto foi, muitas vezes, utilizado para falar do laicato cristão e, sobretudo depois do Vaticano II, indicado como um instrumento de inspiração para a formação da maturidade do laicato católico.
Massimo Pampaloni S.J.
4 Referências bibliográficas
Para um trabalho científico:
Para fazer um trabalho científico sobre os Padres Apostólicos, a edição crítica mais usada atualmente é a última edição de FUNK, F. X.; BIHLMEYER, K.; WHITTAKER, M. Die Apostolischen Väter. Tübingen, 1992.
Para as obras em particular (exceto para Papias e a Homilia do Pseudoclemente) existe uma edição crítica na coleção Sources Chrétiennes, a que se poderá recorrer utilmente. Para a Didaché, SC 248, Paris, 1978; para a Carta aos Coríntios, de Clemente, SC 167, Paris, 1971; para as cartas de Inácio de Antioquia, a Carta aos Filipenses de Policarpo e o Martírio de Policarpo, SC 10, Paris, 1958; para a Carta do Pseudobarnabé, SC 172, Paris, 1971; para o Pastor de Hermas, SC 53, Paris, 1958; para A Diogneto, SC 33, Paris, 1965.
Para uma apresentação geral sobre cada obra em particular:
– As Patrologias clássicas:
ALTANER, B.; STUIBER, A. Patrologia. Vida, obras e doutrina dos padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2010.
DROBNER, H. Manual de Patrologia. Petrópolis: Vozes, 2008.
QUASTEN, J. Patrología I: hasta el Concilio de Nicea. v. I. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1978.
– Um dicionário útil:
BERARDINO, A. DI (org.). Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002.
Bibliografia citada no texto:
ALTANER, B. Patrologia. Genova, 1968.
DELL’OSSO, C. (ed). I Padri Apostolici, Testi patristici 5. Roma: Città Nuova, 2011.
DROBNER, H. R. Patrologia. Casale Monferrato, 1998.
EHRMAN, B. D. (ed). The Apostolic Fathers. v I. Cambridge – London: Loeb Classical Library, 2003.
LONGOBARDO, L. Apostolica, letteratura – Padri Apostolici. In: BERARDINO, A. DI (ed). Letteratura patrística. Cinisello Balsamo, 2007. p.140-8.
PROSTMEIER, F. R. Ignazio di Antiochia. In: DOPP, S.; GEERLINGS, W. (eds). Dizionario di letteratura cristiana antica. Roma, 2006. p. 489-92.
QUACQUARELLI, A. (ed). I Padri Apostolici, Testi patristici 5. Roma, 1991.
QUASTEN, J. Patrologia I. Genova-Milano, 1980. Reimpressão: 2009.
VISOGNÀ, G. (ed). Didachè. Insegnamento degli Apostoli. Milano, 2000.
[1] O autor da tese sobre a carta como correção fraterna é E. CATTANEO, La Prima Clementis come un caso di correptio fraterna. In P. LUISIER. Studi su Clemente Romano. 2003, OCA (268), 83-105.