Sumário
1 Introdução
2 Princípios e valores da doutrina social da Igreja
2.1 Princípios
2.2 Valores
3 O princípio da destinação universal dos bens
3.1 Significado deste princípio
3.2 Destinação universal dos bens e propriedade privada
3.3 Destinação universal e opção preferencial pelos pobres
4 Função social da propriedade
4.1 Função social ou hipoteca social
4.2 Distribuição da propriedade da terra
5 Outras formas de propriedade
6 Origem das distorções na visão e vivência a propriedade
7 Referências bibliográficas
1 Introdução
O ensinamento social da Igreja sobre a propriedade tem como referência básica o princípio da destinação universal dos bens. No Compêndio de Doutrina Social da Igreja (em diante: CDSI), a doutrina sobre a propriedade e sua função social aparecem como uma decorrência desse princípio básico. Por essa razão, iniciamos esse verbete com uma análise do significado desse princípio para a doutrina sobre a propriedade. O ensinamento da Igreja sobre a propriedade e sua função social tem fortes raízes bíblicas e faz parte do ensino social constante da Igreja nas suas encíclicas sociais, desde a Rerum Novarum (em diante: RN), do papa Leão XIII (1891), até a Laudato Si’ (em diante, LS), do papa Francisco (2015).
2 Princípios e valores da doutrina social da Igreja
Inicialmente, convém apresentar brevemente os seis princípios e os quatro valores que fundamentam a doutrina social da Igreja (em diante, DSI). Já que essa doutrina tem unidade e coerência interna, a compreensão de cada princípio se enriquece com a visão do conjunto dos princípios e valores do ensinamento social.
2.1 Princípios
Eis os seis princípios da doutrina social da Igreja (CDSI p.99-122):
1º. A dignidade da pessoa humana: o ser humano é imagem viva do próprio Deus; a pessoa é titular de direitos e deveres, que são inerentes a cada ser humano.
2º. O bem comum: é o bem de todos e é indivisível (como a saúde, a segurança e a paz); é responsabilidade de todos, sob a coordenação do poder público.
3º. A destinação universal dos bens: ou princípio do uso comum dos bens, que precede às diversas formas concretas de propriedade (Sollicitudo Rei Socialis, em diante SRS, n.42); a distribuição da propriedade deve ser tal que todos tenham pelo menos o necessário para viver com dignidade.
4º. A subsidiariedade: o maior não deve substituir-se ao menor, nem tolher sua livre iniciativa; implica no respeito às competências de cada nível de responsabilidade e no direito de empreender.
5º. A participação: direito e dever de contribuir à vida em sociedade; implica nos direitos e deveres da cidadania ativa.
6º. A solidariedade: determinação firme e perseverante de empenhar-se pelo bem comum; opõe-se à “globalização da indiferença”.
2.2 Valores
A seguir, apresentamos os quatro valores da doutrina social da Igreja: (CDSI n.198-203):
1º. A verdade: é a busca de conformar nossas ações com as exigências objetivas da moralidade. Afasta-nos do arbítrio e aproxima-nos da retidão, da transparência e da honestidade.
2º. A liberdade: autodeterminação no horizonte da verdade; podemos distinguir duas dimensões da liberdade: a liberdade de (coação) e a liberdade para (fazer o bem).
3º. A justiça: consiste em dar a cada um aquilo que lhe é devido; a justiça pode ser: comutativa; distributiva; legal; social e restaurativa.
4º. O amor: é a forma de todas as virtudes, que anima por dentro todo empenho social. Ele se expressa como benevolência e misericórdia.
3 O princípio da destinação universal dos bens
3.1 O significado desse princípio
O Concílio Vaticano II sintetiza o sentido desse princípio da seguinte forma: “Deus destinou a terra, com tudo que ela contém, para o uso de todos os homens e de todos os povos, de tal modo que os bens criados devem bastar a todos, com equidade, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade” (Gaudium et Spes, em diante GS, n.69).
O princípio da destinação universal dos bens da terra está na base do direito universal ao uso dos bens. Toda pessoa deve ter a possibilidade de usufruir do bem-estar necessário para seu pleno desenvolvimento. O princípio do uso comum dos bens é o “primeiro princípio de toda ética social e o princípio típico da doutrina social cristã” (SRS n.42). Esse princípio afirma a igualdade básica de todos no que se refere ao sustento das próprias vidas: “Deus deu a terra a todo gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém” (Centesimus Annus, em diante CA, n.31). Já Pio XII, em sua radiomensagem de Natal de 1941, afirmava o direito de toda pessoa ao atendimento de suas necessidades básicas, como base para a paz no mundo: “A pessoa não pode prescindir dos bens materiais que respondem às suas necessidades primárias e constituem as necessidades basilares de sua existência”.
Trata-se de um direito natural, original e prioritário. Afirma o papa Paulo VI:
Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, incluindo o da propriedade e do livre comércio, lhe são subordinados; não devem, portanto, impedir, ao contrário, facilitar sua realização; e é um dever social grave e urgente reconduzi-los à sua finalidade primeira” (Populorum Progressio, em diante PP, n.22).
Esse princípio também implica na afirmação de que a economia é feita para o homem e não o homem para a economia. “Devemos educar para um humanismo do trabalho, onde o homem, e não o lucro, esteja no centro; onde a economia sirva ao homem, e não se aproveite do homem”, afirmou o papa Francisco, em 16 de outubro 2016, numa audiência aos membros do Movimento Cristão dos Trabalhadores, da Itália.
A aplicação concreta do princípio da destinação universal dos bens, segundo os diferentes contextos sociais e culturais, implica em uma definição precisa dos modos, dos limites e dos objetos. Não significa que tudo esteja à disposição de cada um e de todos. Por isso, é necessário regular este direito na ordem jurídica. Essa ordem jurídica deve ser tal que faculte a todos o acesso aos bens necessários a uma vida digna e a um desenvolvimento integral, numa sociedade “onde o progresso de uns não seja mais um obstáculo ao desenvolvimento de outros, nem um pretexto para sua sujeição” (Instrução Libertatis Conscientia, em diante LC, n.90). A ordem jurídica deve respeitar outro princípio enunciado por São Tomás de Aquino: “in necessitate sunt omnia communia”, isto é, “em caso de necessidade, todas as coisas são comuns” (Summa Theologica, 2, 2, q. 66, ad 7). De acordo com esse princípio, a DSI considera lícito que uma pessoa que passa fome lance mão do necessário para se alimentar, (situação enquadrada na figura jurídica do “furto famélico”). Assim, uma renda mínima (do tipo “Bolsa Família” ou benefício de prestação continuada) para pessoas comprovadamente pobres, que não tem outra fonte de renda, não é um favor, mas um direito.
O princípio da destinação universal dos bens é um convite a cultivar uma visão de economia inspirada em valores morais, que permitam nunca perder de vista nem a origem nem a finalidade de tais bens, de modo a realizar um mundo equitativo e solidário. Esse princípio também corresponde ao apelo do Evangelho a vencer a tentação da avidez da posse.
3.2 Destinação universal dos bens e propriedade privada
Mediante o trabalho, a pessoa humana, usando sua inteligência, consegue dominar a terra e torná-la sua digna morada. “Deste modo, ele se apropria de uma parte da terra, adquirida precisamente com trabalho. Está aqui a origem da propriedade individual” (CA n.31). A propriedade privada, associada a outras formas de domínio privado de bens, confere a cada pessoa uma extensão absolutamente necessária à autonomia pessoal e familiar e “deve ser considerada como um prolongamento da liberdade humana” (GS n.71). O direito de propriedade não deve tolher o direito à propriedade. Isto é, o direito de alguns (ricos) não deve ser obstáculo a que muitos outros (pobres) acessem a propriedade. Nas palavras de Paulo VI, “não é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos pobres e tornando maior a escravidão dos oprimidos” (PP n.33).
Essa compreensão da propriedade difere tanto da visão do coletivismo como da visão do capitalismo, como foi posto em prática pelo liberalismo. Escreve João Paulo II: “A tradição cristã nunca defendeu tal direito como algo absoluto e intocável; pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira” (Laborem Exercens, em diante LE, n.14). E termina resumindo: “o direito à propriedade privada está subordinado aos direito ao uso comum, subordinado à destinação universal dos bens” (LE n.14).
A origem primeira da propriedade está no trabalho. O trabalho acumulado em forma de capital tem a função básica de servir ao trabalho. Daí decorre o “princípio da prioridade do ‘trabalho’ sobre o ‘capital’” (LE n.12). João Paulo II fundamenta assim esse princípio:
Este princípio diz respeito diretamente ao próprio processo de produção, relativamente ao qual o trabalho é sempre uma causa eficiente primária, enquanto que o ‘capital’, sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas um instrumento ou causa instrumental. Este princípio é uma verdade evidente, que resulta de toda experiência histórica do homem (LE n.12).
A propriedade privada estimula ao trabalho e à responsabilidade. É importante que seja acessível a todos. Assim a propriedade privada se constitui em “um instrumento para o cumprimento do princípio da destinação universal dos bens”. É um meio, não um fim (PP n.22-23).
A propriedade pública (estatal ou comunal) é uma forma importante de propriedade pela qual se realiza a destinação universal dos bens. Uma obrigação que incumbe aos responsáveis pelos bens públicos é sua administração competente, dentro de sua finalidade, e o cuidado para que tais bens sejam bem utilizados e conservados.
3.3 Destinação universal dos bens e opção preferencial pelos pobres
O princípio da destinação universal dos bens requer que se cuide com particular solicitude dos pobres, daqueles que se encontram em posições de marginalidade e, em todo caso, das pessoas cujas condições de vida impedem um crescimento adequado. “A esse propósito deve ser reafirmada, com toda força, a opção preferencial pelos pobres” (João Paulo II, Puebla, 1979). Trata-se de uma forma especial de primado na prática da caridade cristã e da prática das nossas responsabilidades sociais.
A atenção de Jesus aos pobres era constante e prioritária, como revelam os evangelhos. O cuidado dos cristãos pelos pobres inspira-se no Evangelho e refere-se tanto à pobreza material como a numerosas formas de pobreza cultural, espiritual, psicossocial e religiosa.
São louváveis todos os esforços para superar a pobreza e é preciso colocar-se em guarda contra posições ideológicas e messianismos. Os pobres ficam confiados a nós e sobre essa responsabilidade seremos julgados por Deus (Mt 25, 31-46).
A destinação universal dos bens exige que a propriedade privada sirva para atender as necessidades das pessoas, sobretudo dos pobres. Implica também que se promovam políticas para sua inclusão social. Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, o papa Francisco considera a inclusão social dos pobres uma das “grandes questões que (…) parecem fundamentais neste momento da história” (Evangelii Gaudium, em diante EG, n.185), junto com a questão da paz e do diálogo social. Em seu discurso no encontro mundial dos movimentos populares, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, no dia 9 de julho 2015, afirmou Francisco:
O destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina social da Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada. A propriedade, sobretudo quando afeta os recursos naturais, deve estar sempre em função das necessidades das pessoas. E estas necessidades não se limitam ao consumo. (…) Os planos de assistência que acodem a certas emergências deveriam ser pensados apenas como respostas transitórias. Nunca poderão substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre, criativo, participativo e solidário.
É necessário prestar atenção à dimensão social e política da pobreza. “Não se dê como caridade o que já é devido a título de justiça” (Apostolicam Actuositatem, em diante AA, 8).
4 Função social da propriedade
4.1 Função social ou hipoteca social
A DSI ensina a reconhecer a função social de qualquer forma de propriedade privada, fazendo referência frequente às exigências imprescindíveis do bem comum (cf. Quadragesimo Anno, em diante QA, 23). Essas exigências podem ser assim resumidas: ninguém deve ter os bens como sendo apenas próprios, só dele, mas como comuns quanto ao uso, para que possam ser úteis também a outros; não se pode prescindir dos efeitos no uso dos próprios bens e recursos (o que implica, por exemplo, evitar o desperdício); não é justo manter ociosos os bens possuídos, sobretudo os bens de produção, mas é preciso confiá-los a quem tem o desejo e a capacidade de fazê-los produzir. A função social abrange também os frutos do recente progresso nos campos científico e tecnológico.
Cabe uma responsabilidade especial aos empreendedores, no sentido de usarem sua capacidade empresarial para criar novos empreendimentos ou modernizarem empresas tradicionais, visando garantir sua sustentabilidade econômica, política e socioambiental e promovendo o desenvolvimento com justiça social. Cristãos e pessoas de boa vontade são chamados a “preocupar-se com a construção de um mundo melhor” e a cuidar da terra, “nossa casa comum” (EG n.183). Para o empenho de organizar a economia e promover o bem comum, diz o papa Francisco, “temos um instrumento muito apropriado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, cujo uso e estudo vivamente recomendo” (EG n.184).
Na encíclica Laudato Si’, o papa Francisco associa o uso social dos bens a uma “ecologia humana”, que por sua vez, “é inseparável da noção do bem comum, princípio este que desempenha um papel central e unificador na ética social” (LS n.156). O bem comum “pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis, orientados para seu desenvolvimento integral” (LS n.156), que exige a criação de dispositivos de bem-estar e segurança social e o desenvolvimento de grupos intermédios. Exige também a aplicação do princípio de subsidiariedade, com destaque para a família. Requer, ainda, a paz social, a segurança e a justiça distributiva (cf. LS n.156).
Além disso, exigem-se ações no plano internacional, “para quebrar barreiras e monopólios”, que impedem ou dificultam o exercício da função social da propriedade (cf. CA n.35). Ao criticar a falta de ética na gestão das finanças na crise de 2008-2009, escreve Bento XVI: “As finanças, depois da sua má utilização que prejudicou a economia real, voltem a ser um instrumento que tenha em vista o desenvolvimento”. E acrescenta: “Os operadores das finanças devem redescobrir o fundamento ético próprio da sua atividade” (Caritas in Veritate, em diante CV, n.62-64).
O documento de Puebla assumiu o ensinamento de João Paulo II sobre a hipoteca social que pesa sobre toda propriedade privada:
Como nos ensina João Paulo II, sobre toda propriedade privada pesa uma hipoteca social. A propriedade compatível com a destinação universal dos bens é acima de tudo um poder de gestão e administração, que, sem excluir o domínio, não o faz absoluto nem ilimitado.” (Documento de Puebla, em diante DP, n.492).
A expressão “hipoteca social” ressalta, assim, o papel de gestores como inerente aos detentores da propriedade de bens e conhecimentos. A propriedade privada nunca é um direito absoluto, mas condicionado a regras e limites que a lei pode estabelecer. A Constituição do Brasil, de 1988, em dois momentos distintos (nos artigos 5º, inciso XXIII, e 170, inciso III), logo após garantir o direito de propriedade, estabeleceu a necessidade de se observar a sua função social. Com base nesse dispositivo constitucional, um município pode estabelecer o IPTU progressivo sobre terrenos ou prédios ociosos e, no limite, desapropriar esse bem.
Uma forma de realizar na prática a função social da propriedade é promover formas de participação dos trabalhadores na propriedade das empresas. João Paulo II propõe as seguintes formas: copropriedade, acionariado do trabalho e participação nos lucros. Propõe, ainda, associar o trabalho à propriedade do capital através de “corpos intermediários com finalidades econômicas”, que costumam ser chamados de “empresas de autogestão” (LE n.14). Nessas empresas, possuídas pelos trabalhadores, em geral sob a forma de cooperativas, a iniciativa passa às mãos dos trabalhadores, de onde nunca deveria ter saído. O sistema de empresas autogeridas mostra que é possível produzir com eficiência, sem patrões capitalistas. Nelas se realiza a prioridade do trabalho sobre o capital, sendo que o capital nada mais é que trabalho acumulado. Os bens da natureza, a tecnologia e capital, são fatores instrumentais, colocados a serviço do trabalho humano, única causa eficiente da produção.
Uma conclusão lógica da doutrina da função social inerente a toda propriedade é que uma parte das fortunas cumuladas pelos donos de grandes empresas pertence, de direito, aos trabalhadores, cujo trabalho foi essencial para a acumulação desses bens.
A propriedade intelectual é garantida pelas leis em muitos países e constitui uma forma de recompensar os investimentos feitos em pesquisas que geraram um invento ou a criação de um medicamento. Mas é importante verificar se essas leis levam em conta o princípio da função social da propriedade, permitindo o acesso a esses conhecimentos a um custo adequado, e atendendo a necessidades sociais de populações inteiras (por exemplo, medicação de controle de epidemias). Outra discussão que se impõe é em relação à privatização de serviços públicos, como a água e o saneamento básico. O risco implicado na privatização de tais serviços é que, ao se converterem em mercadoria, eles se tornem inacessíveis às populações pobres, devido aos altos preços cobrados pelas empresas concessionárias de tais serviços.
4.2 Distribuição da propriedade da terra
Questão crucial, em todos os povos, é a distribuição equitativa da terra, seja sob a forma de solo urbano, seja como solo rural. Também em relação a essa questão vale o princípio da destinação universal dos bens e o da função social da propriedade. Convém recordar a advertência dos S. Padres: “A terra foi dada a todos, não apenas aos ricos” (S. Ambrosio, De Nabuthe, c. 12, n. 53; PL 14, 747. apud PP n.23). A possibilidade de posse de terra nas zonas rurais é condição para o acesso a outros bens e serviços, como o crédito (cf. Pontifício Conselho Justiça e Paz, “Para uma melhor distribuição da terra. O desafio da Reforma Agrária”, 1997, n.27-31).
Da propriedade derivam uma série de vantagens objetivas, mas dela podem provir também promessas ilusórias e tentadoras. Quem absolutiza a propriedade e só pensa em cumular bens, acaba por experimentar a mais radical escravidão.
Entre os desafios do mundo atual, a Evangelii Gaudium coloca uma economia de exclusão, uma nova idolatria do dinheiro, um dinheiro que governa ao invés de servir e a desigualdade que gera a violência (cf. EG n.55-58). A EG pede também que se pratique o diálogo na construção de novas políticas nacionais e locais, assim como o “diálogo e transparência nos processos decisórios” (LS n.182), no campo da economia, do desenvolvimento sustentável e no combate à corrupção.
5 Outras formas de propriedade
Dado o predomínio da apropriação privada de bens nas sociedades capitalistas, é importante não esquecer as formas tradicionais, como a propriedade comunitária, que se reveste de particular importância e caracteriza a estrutura social de numerosos povos indígenas e de quilombolas. A sobrevivência física e cultural dos povos originários depende em larga medida da garantia da posse e uso dos territórios, em que já viviam seus ancestrais. A garantia da preservação da posse dessas terras, matas e subsolo é fator fundamental para sua sobrevivência, segurança e bem-estar. A defesa e valorização desta forma de propriedade não deve excluir a consciência que também este tipo de propriedade pode evoluir.
Outra forma de propriedade é a propriedade coletiva, sob a forma cooperativa ou associativa. Na Mater et Magistra (em diante MM), o papa João XXIII manifesta apoio ao cooperativismo (MM n.82-87), especialmente no setor agrícola (MM n.143), que segundo ele tem sido negligenciado por muitos governos. Há um reconhecimento implícito das formas de propriedade nas quais se assenta o cooperativismo e dos princípios que esse sistema pratica na gestão dos seus negócios. Um princípio é o da gestão democrática (uma voz, um voto); outro, o da distribuição das sobras, no fim de cada exercício, em proporção das operações de cada associado com a cooperativa e não em função do volume de capital aportado pelo associado (em forma de quotas-partes), ressaltando assim o princípio da prioridade do trabalho sobre o capital.
6 Origem das distorções na visão e vivência a propriedade
Podemos perguntar-nos sobre a origem das graves e frequentes distorções que hoje ocorrem na distribuição dos bens e na gestão dos negócios. A tendência que os analistas observam em nossa economia globalizada é que a propriedade se converteu em um direito (quase) absoluto. Constatam o domínio cada vez maior do capital financeiro sobre o capital produtivo. Essas tendências têm como resultado a concentração crescente das riquezas nas mãos de poucos, com o crescimento desmesurado das grandes fortunas. Os estudos do economista Thomas Piketty sobre a desigualdade, a concentração do capital e a financeirização da economia moderna oferecem sólidas evidências nesse sentido.
Bento XVI, na encíclica Caritas in Veritate, destaca a função social da empresa, que se realiza tanto na produção de bens e serviços como na geração de postos de trabalho. No cumprimento de suas funções, a empresa não pode ter em conta apenas o interesse dos proprietários ou acionistas:
a empresa não pode ter em conta unicamente os interesses dos proprietários da mesma, mas deve preocupar-se também com as outras diversas categorias de sujeitos que contribuem para a vida da empresa: os trabalhadores, os clientes, os fornecedores dos vários fatores de produção, a comunidade de referimento. (CV n.40)
O papa advertia contra o uso especulativo dos recursos da empresa no mercado financeiro, pondo em risco a sustentabilidade da empresa:
É preciso evitar que o motivo para o emprego dos recursos financeiros seja especulativo, cedendo à tentação de procurar apenas o lucro a breve prazo, sem cuidar igualmente da sustentabilidade da empresa a longo prazo, de seu serviço concreto à economia real e de uma adequada e oportuno promoção de iniciativas econômicas, também nos países necessitados de desenvolvimento. (CV n.40).
O papa Francisco, por sua vez, diagnostica uma crise antropológica profunda na base do sistema de economia de marcado. Escreve ele na Exortação Apostólica Alegria do Evangelho:
A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-5) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial que investe as finanças e a economia, põe a descoberto seus próprios desequilíbrios e, sobretudo, a grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma de suas necessidades: o consumo” (EG n.55).
A crise antropológica resultante está em consonância com a ideologia de total liberdade do mercado e da afirmação de um Estado mínimo: “Esse desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum” (EG n.56). Depois de falar das dívidas, do juro, da corrupção e evasão fiscal egoísta, que assumem dimensões mundiais, o papa afirma:
A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema, que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil como o meio ambiente, fica indefesa diante dos interesses do mercado divinizado, transformado em regra absoluta. (EG n56).
Resultado dessa crise antropológica e das ideologias do individualismo e do materialismo são o maciço desrespeito aos direitos humanos básicos de indivíduos e povos inteiros, as mudanças climáticas e a degradação ambiental, de dimensões planetárias, com nos alertou a Encíclica Laudato Si’.
O grande desafio é como fortalecer práticas econômicas e sociais que se afinem com os princípios da doutrina social da Igreja sobre a propriedade e o uso comum dos bens, de modo a reverter as atuais tendências nocivas ao bem comum e autodestrutivas da humanidade.
Matias Martinho Lenz, SJ. Universidade Católica de Pelotas, RS. Texto original Português.
7 Referências bibliográficas
Lista das grandes encíclicas sociais dos papas, em ordem cronológica, com sigla e ano de publicação:
LEÃO XIII. Rerum Novarum (RN). Sobre a condição dos operários, 1891.
PIO XI. Quadragesimo Anno (QA). Sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social em conformidade com a Lei Evangélica, 1931.
JOÃO XXIII. Mater et Magistra (MM). Sobre a evolução contemporânea da vida social à luz dos princípios cristãos, 1961.
______. Pacem in Terris (PT). Sobre a paz cristã, 1963.
PAULO VI. Populorum Progressio (PP). Sobre o desenvolvimento dos povos, 1967.
JOÃO PAULO II. Laborem Exercens (LE). Sobre o trabalho humano. No 90º aniversário da Rerum Novarum, 1981.
______. Sollicitudo Rei Socialis (SRS). Solicitude social da Igreja. No 20º aniversário da Populorum Progressio, 1987.
______. Centesimus Annus (CA). No centenário da Rerum Novarum, 1991.
BENTO XVI. Caritas in Veritate (CV). Sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade, 2009.
FRANCISCO. Evangelii Gaudium (EG). A Alegria do Evangelho. Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual, 2013.
______. Laudato Si’ (LS) – Louvado Sejas. Sobre o cuidado da casa comum, 2015.
Outros documentos sociais oficiais da Igreja Católica.
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS). Sobre a Igreja no Mundo de Hoje, 1965.
______. Decreto Apostolicam Actuositatem (AA). Sobre o Apostolado dos Leigos, 1965.
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução Libertatis Conscientia (LC), 1987.
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Conclusões da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano. Documento de Puebla (DP), 1979.
______. Conclusões da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano. Evangelização no presente e no futuro da América Latina. Documento de Aparecida (DA), 1979.
2 Textos e livros de referência
ANTONCICH, R.; SANS, J. M. Ensino Social da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1986.
CALLEJA, J. I. Moral Social Samaritana I. Fundamentos e noções de ética econômica cristã. São Paulo: Paulinas, 2006.
CNBB. Igreja e Questão Agrária no início do Século XXI. Estudos da CNBB n. 99. Brasília: CNBB, 2010.
LENZ, M. M. A propriedade e sua função social. In: CNBB. Temas da Doutrina Social da Igreja. Projeto Nacional de Evangelização Queremos Ver Jesus, Caminho, Verdade e Vida. São Paulo: Paulinas e Paulus, 2006, p.77-90.
______ (e equipe do projeto ensino social da Igreja, desafio às comunidades). Riqueza e Pobreza e o Ensino Social da Igreja. Coleção Ensino Social da Igreja, V. Petrópolis: Vozes, 1993.
MARTINS, José de Souza. Reforma agrária: o diálogo impossível. São Paulo: Edusp, 2000.
PIKETTY, T. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
______. A Economia da Desigualdade. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.
PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI). São Paulo: Paulinas, 2005.