Livros Históricos

Sumário

1 Introdução

2 Josué

3 Juízes

4 Rute

5 1-2 Samuel

6 1-2 Reis

7 1-2 Crônicas

8 Esdras

9 Neemias

10 Tobias

11 Judite

12 Ester

13 1-2 Macabeus

14 Considerações finais

15 Referências bibliográficas

1 Introdução

Este verbete apresenta os livros classificados, segundo o cânon da Vulgata, como “Históricos”. Tal denominação, porém, é anterior e deriva da Septuaginta (LXX), isto é, da versão grega da Bíblia Hebraica. Nessa, além de ter um cânon diferente, os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis, são denominados de “Profetas Anteriores” (nebî’îm ri’šônîm).

Os livros de Rute, Ester, Esdras, Neemias e 1-2 Crônicas, na Bíblia Hebraica, pertencem ao bloco dos “Escritos” (Ketubîm). Rute e Ester recebem ainda uma consideração ulterior dentro desse bloco, pois integram, ao lado de Cântico dos Cânticos, Lamentações e Eclesiastes, um conjunto de cinco rolos denominado de megillôt. Estes livros são lidos nas festas litúrgicas. Cântico dos Cânticos, na festa da Páscoa; Rute, na festa de Pentecostes; Lamentações, na recordação da destruição do templo de Jerusalém; Eclesiastes, na festa das Tendas; e Ester, na festa dos Purim.

Os livros de Tobias, Judite e Macabeus, deuterocanônicos para católicos e apócrifos para protestantes, não foram incluídos no cânon hebraico das Escrituras por quatro motivos principais: a) não foram escritos ou conservados em língua sagrada: o hebraico; b) não foram escritos na Terra Prometida: Palestina; c) não foram escritos antes da reforma sociorreligiosa empreendida por Neemias e Esdras; d) não foram considerados em pleno acordo com a Torá.

No que concerne à ordem dos cânones, um caso particular diz respeito ao livro de Rute e aos livros de Esdras, Neemias e 1-2 Crônicas. No primeiro caso, o livro de Rute, aparece colocado entre Juízes e Samuel no cânon grego, posição que é seguida nos demais cânones, exceto, como visto acima, no cânon hebraico, e serviu para evidenciar a fome, como um dos principais problemas da época dos juízes; bem como para reconhecer a possibilidade de uma família deixar a terra prometida, há pouco conquistada segundo a narrativa, e imigrar para além do Jordão, neste caso, para Moab, a fim de sobreviver. Pode-se pensar numa forma de um “novo êxodo” ou numa “diáspora pré-monárquica”. Acima de tudo isso, o livro de Rute serviu de transição e antecipação na narrativa (prolepse) para se falar de uma ancestral não israelita para o futuro rei Davi, que entrará em cena no livro de Samuel (cf. Rt 4,17.21). A cidade de Belém, da qual provém o futuro rei Davi, igualmente, recebeu evidência no livro de Rute.

No segundo caso, o cânon hebraico é concluído com 2 Crônicas. O último evento narrado nesse livro é um olhar de esperança para o futuro do antigo Israel, baseado na profecia de Jeremias (cf. Jr 25,11-12; 29,10; 2Cr 36,21), segundo a qual Ciro, rei dos persas, ordenou a reconstrução do templo de Jerusalém e o repatriamento dos judeus que haviam sido exilados por ocasião da conquista babilônica. Com o anúncio da reconstrução do templo de Jerusalém, o cronista acentua o papel do culto como sendo a principal instituição davídica capaz de reerguer, solidificar e devolver a identidade do povo eleito.

Nos estudos bíblicos, a partir do século XIX, os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis passaram a ser classificados como pertencentes à Obra Deuteronomista de História. Essa classificação remonta a Martin Noth que observou, nesses livros, muitos pontos de contato com o livro do Deuteronômio (vocabulário, linguagem, estilo, motivos, teologia etc.). Noth acreditava que os livros Deuteronômio, Josué, Juízes, Samuel e Reis seriam obras de um único autor, que trabalhou durante o exílio na Babilônia, a fim de elucidar a história do povo desde as vésperas da conquista, com o testamento de Moisés, até a destruição de Jerusalém e o consequente exílio. Com isso, tal autor procurou evidenciar, teologicamente, que a perda da terra prometida deveu-se não à fraqueza de Deus, mas à infidelidade das lideranças e do povo à Torá.

Esta hipótese ganhou muitos adeptos, mas, nas últimas quatro décadas, vem perdendo a sua força. Nas pesquisas atuais, a concepção já não é mais aceita nos moldes de M. Noth. É possível continuar usando a denominação Obra Deuteronomista para o bloco Js–Rs, mas levando em consideração que o processo de formação desses livros é complexo e abarca um arco temporal condizente com os tempos do rei Josias, o período do exílio, o pós-exílio e, nesse, um papel fundamental é atribuído ao período persa (RÖMER, 2008, p.21-50).

Outro bloco que, aparentemente, aparece bem coeso compreende os livros de 1-2 Crônicas, Esdras e Neemias, denominado, comumente, de Obra do Cronista. Este conjunto teria tido origem nos círculos sacerdotais que começaram a elaborar uma proposta teológica em forma de literatura a partir do século IV aC, e procurou dar uma interpretação diferente da Obra Deuteronomista quanto à perda da terra e o consequente exílio na Babilônia.

A história do povo eleito é a manifestação dos desígnios e do plano de Deus. Tudo está em suas mãos. Em 1-2 Crônicas, essa história é narrada segundo um arco temporal muito amplo, que vai da criação do mundo, passa pela eleição de Israel, prossegue no período da monarquia, com grande ênfase sobre o rei Davi, até a conquista da Babilônia por Ciro, rei dos persas, que deu anistia aos exilados e decretou a reconstrução do templo de Jerusalém. De certa forma, os livros de Esdras e Neemias continuam a história do ponto aberto deixado no final de 2 Crônicas, conduzindo-a ao momento da refundação do povo de Deus e da cidade de Jerusalém através de uma profunda reforma sociorreligiosa: o judaísmo baseado na Torá.

Os livros de Tobias, Judite e Ester não formam um bloco específico, como os anteriores, mas pertencem ao gênero literário denominado história edificante. Os acontecimentos narrados estão situados no período persa (séculos VI–IV aC) e permitem perceber as dores e dificuldades que enfrentaram os judeus piedosos que continuaram na diáspora (Tobias e Ester). O ideal sociorreligioso desejado com a fundação do judaísmo foi exemplificado não por judeus piedosos que viviam em Judá-Jerusalém, mas na diáspora. Essa afirmação encontra fundamentação no fato de os grandes reformadores, Esdras e Neemias, serem judeus piedosos que vieram da diáspora para restaurar os costumes em Judá-Jerusalém. Além disso, existe outro fator de grande relevância: a Torá. Segundo a perspectiva bíblica, a Torá aparece como obra realizada durante o período em que os filhos de Israel estiveram no deserto. A aliança renovada em Moab por Moisés, antes da sua morte, permite dizer que, se ela fosse violada, poderia ser renovada, independentemente de o povo eleito estar ou não na terra prometida.

No caso particular do livro de Judite, a datação pode ser aproximada à época da elaboração de 1-2 Macabeus, isto é, ao século II aC. Tobias, Judite e Ester narram como os judeus piedosos enfrentaram os inimigos da fé no Deus único, usando da astúcia, da violência e até do enfrentamento bélico para libertar o povo e salvaguardar os costumes segundo as leis, os decretos e os mandamentos contidos na Torá. Desde este ponto de vista, pode-se admitir que os livros de Tobias, Judite e Ester encontram-se em estreita relação com a Torá.

2 Josué

Este livro recebe o nome do seu protagonista principal: Josué, filho de Nun, da tribo de Efraim, apresentado como ajudante e sucessor do grande líder Moisés (cf. Ex 24,13; 33,11; Nm 11,28) na condução do povo rumo à terra prometida (cf. Nm 27,18-23; Dt 1,38; 3,28; 31,3.7.23; 34,9). O nome Josué significa “o Senhor salva” ou “o Senhor é salvação”.

Foi Josué, segundo a narrativa bíblica, quem fez o povo passar o rio Jordão, conduziu as batalhas da conquista, distribuiu o território entre as tribos e, antes de morrer, renovou a aliança, lembrando ao povo as consequências nefastas que se seguiriam caso as futuras gerações fossem infiéis. Com isso, surge, facilmente, a estrutura do livro: a) um discurso que introduz Josué como novo líder do povo. Deus assegura-lhe a sua assistência da mesma forma com que esteve com Moisés (Js 1); b) narrativa da ocupação da terra de forma bélica, antecedida por dois preâmbulos: uma nova circuncisão e a exploração de Jericó por espiões (Js 2,1-12,24); c) narrativa da divisão do território (Js 13,1–22,34); d) um discurso final no qual acontece a renovação da aliança (Js 23,1–24,33).

A conquista da terra e a sua divisão são os dois pilares do livro de Josué, pois a saída do Egito alcançou o seu objetivo: entrar e tomar posse da terra prometida. Os fatos narrados demonstram, acima de tudo, que Deus permaneceu fiel às promessas que havia feito aos patriarcas e a Moisés. Com a entrada, a tomada de posse e a divisão da terra entre as tribos, um novo período na história dos libertos do Egito teve início, pois, ao lado da lei já recebida no Sinai, no livro do Êxodo, e renovada nas estepes de Moab, no livro do Deuteronômio, foram lançadas as bases do futuro do povo como nação. Aconteceu a passagem do regime seminômade, vivido durante o tempo do deserto, ao regime de vida sedentária, isto é, de uma cultura eminentemente pastoril a uma cultura agrária e urbana.

A perspectiva teológica mais marcante do livro recai sobre a figura de Josué como um servo bem sucedido nas suas empresas porque foi obediente à Torá. Josué representa o tempo da formação do piedoso judeu que aprende na dureza da existência, nesse caso o tempo do deserto, a ser fiel a Deus pelo serviço. A geração comandada por Josué pode ser declarada exemplar (cf. Jz 2,10), salvo o incidente que se deu com a violação do anátema (cf. Js 7,1-26) e as dificuldades para a conquista de Hai (cf. Js 8,1-29). A ligação de Josué com Moisés tem uma função pedagógica, pois o discípulo da lei conseguiu seguir os passos e as orientações do mestre da lei. Do ponto de vista religioso, o principal elemento teológico do livro diz respeito à fidelidade a Deus através da obediência à Torá. Josué figura como exemplo disso e suas façanhas vitoriosas são narradas como prova de que Deus recompensa o justo por ser fiel à sua vontade. Esta perspectiva aparece, de forma clara, no final do livro, pois o foco central recai sobre o empenho das tribos que se comprometem a se manter fiéis à aliança, sabedores de que toda transgressão será devidamente punida por Deus.

3 Juízes

Em hebraico, este livro é denominado šōpeṭîm, um particípio plural masculino absoluto (“os que julgam”), derivado do verbo šāpaṭ, que significa “julgar”, no sentido de estabelecer o direito e a justiça, isto é: manter o povo na fidelidade ao Deus da aliança. Em grego, é denominado Krítaí (“Juízes”). O título Juízes representa o reconhecimento dado aos chefes do povo após a morte de Josué (cf. Jz 2,16). Além disso, no próprio livro os juízes são chamados de “salvadores” (cf. Jz 2,16.18; 3,9.15.31; 7,7; 10,1), porque, como líderes, atuaram em diversas situações de litígio, principalmente frente aos inimigos circunvizinhos. Foram suscitados por Deus para livrar o povo de alguma ameaça externa, trazendo a paz (cf. Jz 3,9; 4,6; 6,34). Pode-se dizer que sobre esses líderes recaem três características principais: a) foram escolhidos por Deus; b) receberam um carisma especial; c) tinham uma força particular de Deus em função da missão salvífica (combate aos inimigos).

A estrutura do livro é facilmente percebida: a) introdução: Jz 1,1–3,6, contendo uma recapitulação da ocupação de Canaã (Jz 1,1–2,5) e apresentação esquemática da perspectiva teológica do livro (Jz 2,6–3,6); b) corpo: Jz 3,7–16,31, contendo as narrativas das façanhas dos juízes; c) dois apêndices: Jz 17,1–18,31, que apresenta a idolatria de Dã, e Jz 19,1–21,15, que apresenta o crime dos benjaminitas e a guerra das tribos contra Benjamim.

O livro dos Juízes, por um lado, parece continuar a sequência do livro de Josué. Por outro lado, porém, o foco do livro continua sendo a conquista da terra e o assentamento das tribos. Esse assentamento prepara uma nova e grande etapa da história do antigo Israel na terra: a instituição da monarquia (cf. Jz 17,6; 18,1; 19,1; 21,25), que acontecerá no livro de Samuel, com a unção de Saul. Os juízes representam, então, uma instituição política intermediária entre o regime tribal e o regime monárquico, preparando o terreno para o surgimento do carisma profético.

O livro possui uma profunda teologia da história religiosa do povo eleito: se foi vítima de seus inimigos, a causa deve ser buscada na sua infidelidade; se Deus o libertou pela missão de um juiz, se deu por pura misericórdia, pois desde os tempos do Egito continuou ouvindo os seus gritos e gemidos de aflição.

O principal objetivo do livro é mostrar o castigo divino como consequência do pecado e a conversão como caminho que conduz à salvação (cf. Jz 2,11-8). Jz 2,6–3,6 permite visualizar o objetivo principal do livro: pecado de apostasia (cf. Jz 2,11; 3,7-12); entrega aos inimigos (cf. Jz 2,14; 3,8.12); clamor a Deus (cf. Jz 2,15; 3,9.15); envio do juiz (cf. Jz 2,16; 3,9.15); libertação dos inimigos e tempo de paz, por 20, 40, 80 anos (cf. Jz 3,11.30). Esse objetivo aparece exemplificado nas narrativas dos juízes: seis são mais detalhadas, denominados Juízes Maiores e seis mais breves, denominados Juízes Menores. Assim se alcançou o número doze, simbolizando as doze tribos de Israel.

Juízes Maiores Juízes Menores
Otoniel Jz 3,7-11 Samgar Jz 3,31 (5,6)
Aod Jz 3,12-30 Tola Jz 10,1-2
Barac/Débora Jz 4,1-24; 5,1-31 Jair Jz 10, 3-5
Gedeão Jz 6,1–8,35 Abesã Jz 12,8-10
Jefté Jz 10,6–12,7 Elon Jz 12,11-12
Sansão Jz 13,1–16,31 Abdon Jz 12,13-15

O esquema pecado, castigo e libertação se repete na história dos Juízes Maiores. A tradição talmúdica atribuiu a autoria do livro dos Juízes a Samuel. A crítica moderna, porém, aponta para o fato de que existe um longo processo de coleção das tradições, redações e composições deuteronômico-deuteronomistas feitas antes e durante o exílio na Babilônia, e acréscimos posteriores ao exílio. Não é possível dizer se as tradições orais estariam calcadas em autênticas memórias sobre os heróis locais e os conflitos que existiram durante o período dos assentamentos. Essas memórias foram conservadas e transmitidas de forma poética (cf. Jz 5), fábula (cf. Jz 9,8-15) ou em narrativas populares.

Nos últimos vinte anos, fortes ataques foram feitos à autenticidade dos fatos narrados, devido às recentes descobertas arqueológicas feitas por Israel Finkelstein, em diversos sítios: Meguido, Hazor e Guézer. O quadro histórico descrito no livro pouco ou nada tem a ver com os resultados obtidos pela arqueologia na região montanhosa durante o período do Ferro I (1150–900 aC). Acredita-se que na base do surgimento do Israel pré-monárquico estiveram transformações sociais muito complexas entre os povos que habitavam o território (pastores, nômades, agricultores) e não os conceitos teológicos tardios de pecado e redenção. No livro, então, esse contato do grupo que atravessou o Jordão sob o comando de Josué com os povos cananeus sobressai no período dos juízes (1200 – 1040 a.C.) pelo predomínio dos aspectos teológico-religiosos em roupagem histórica.

4 Rute

O livro recebe o nome de uma das personagens principais: Rute, uma estrangeira moabita, que figura ao lado de Noemi, uma judaíta de Belém. Embora breve, com apenas quatro capítulos, o livro possui uma riqueza muito grande de ensinamentos e se presta a vários tipos de interpretação pela diversidade de temas nele contidos: a carestia; a morte dos varões; a saída de Canaã em busca da sobrevivência; as relações entre nora e sogra; a prática dos mandamentos; o levirato; o direito do resgate da terra; a preocupação com a viúva e o estrangeiro; a bondade do homem em relação à mulher; a complementaridade entre o homem e a mulher; a virtude da mulher estrangeira etc.

O livro está estruturado, basicamente, em três partes: a) uma introdução (Rt 1,1-5); b) um corpo (Rt 1,6–4,12); c) uma conclusão (Rt 4,13-22). O corpo do livro transcorre em torno de decisões, de diálogos, de ações e de reações que movimentam a trama narrativa que vai evoluindo, de forma moderada e lenta, nas unidades ou episódios em cada capítulo, até atingir um final desejado.

  A trajetória geográfica interage com a trajetória demográfica: de Belém para os campos de Moab, a morte e as chances de sobrevivência predominaram sobre Noemi e sua família; dos campos de Moab para Belém, a vida e as chances de sobrevivência predominaram para Noemi e sua família, alcançaram os belemitas e, por Davi, todo o Israel. Rute, com a sua decisão e a sua profissão de fé no Deus de Noemi, foi o suporte dessa mudança ao lado de Booz.

  Assim, Rt 1,1-5 corresponde a Rt 4,13-22: a situação de morte foi revertida em vida; Rt 1,6-19 corresponde a Rt 4,1-12: a impossibilidade de um novo matrimônio é revertida para Rute e favorece Noemi; e Rt 1,20-22 corresponde a 3,1-18: a amargura de Noemi foi transformada em esperança. A história de Noemi alcançou um desfecho favorável graças à decisão de Rute em continuar com ela e graças a Booz, que veio ao encontro das necessidades de Noemi com generosidade e atenção pessoal por Rute. (FERNANDES, 2012, p. 23-5)

O livro de Rute mostra Deus encontrando-se com o homem no tempo e no espaço, no movimento e no mistério que envolve a morte e a vida, fazendo-o participar do seu amor previdente e providente. Assim como Deus não estava ausente da vida de Noemi, pois através de Rute e do seu amor revelaram-se a sua presença e a sua ação, também não está ausente de cada ser humano, pois o seu amor salvífico continua agindo na história.

  A situação inicial de penúria, agravada pela morte dos varões e pela desesperança de Noemi, aparece confrontada com a situação final. O desfecho foi se desenrolando, paulatinamente, na medida em que Rute foi assumindo o protagonismo ao lado de Noemi e de Booz, até alcançar o clímax desejado no matrimônio e no filho gerado que transformaram, completamente, a tragédia em felicidade, isto é, a morte em vida.

  A solução do problema veio acompanhada de uma revelação que, evidenciando Davi, ofereceu um elemento para que o livro de Rute ficasse em aberto e a narrativa pudesse prosseguir nos livros de Samuel e Reis (cânon da LXX/Vulgata), mostrando que, em última instância, Deus é quem interveio e transformou a penúria em abundância. (FERNANDES, 2012, p. 106-7)

5 1-2 Samuel

Na Bíblia Hebraica, estes dois livros eram um só rolo. A divisão em dois livros apareceu na LXX, a Vulgata seguiu e somente entre os séculos XV-XVI dC tal divisão passou para a Bíblia Hebraica. O arco temporal abarcado por 1-2 Samuel é muito amplo: vai desde o nascimento de Samuel até, praticamente, a morte do rei Davi (1070 – 970 a.C.).

Três pontos são centrais: o fim do período dos juízes, as instituições do profetismo e da monarquia, com a unificação das tribos sob o reinado de Davi. Samuel foi o primeiro profeta por instituição (cf. 1Sm 3,19-21) e foi a figura da grande transição entre o fim do período dos juízes e o início da monarquia. Na dinâmica desses três pontos se contempla, facilmente, a estrutura de 1-2 Samuel: a) nascimento de Samuel (1Sm 1–3); b) a arca da aliança e a sua perda para os filisteus (1Sm 4–7); c) Samuel unge Saul como rei, que, por sua vez, é rejeitado por Deus (1Sm 8–15); d) Saul e Davi, perseguição deste e morte daquele (1Sm 16–31); e) efeitos da morte de Saul (2Sm 1); f) Davi é eleito rei, reina sobre Hebron e conquista Jerusalém (2Sm 2–8); g) disputas sobre a sucessão ao trono (2Sm 9–20); h) suplementos (2Sm 21–24).

Outra forma de divisão mais simples de 1-2 Samuel baseia-se nas personagens centrais: Samuel (1Sm 1–7); Samuel e Saul (1Sm 8–15); Saul e Davi (1Sm 16–2Sm 1); Davi (2Sm 2–20);  e suplementos (2Sm 21–24).

Na base de 1-2 Samuel se encontram materiais antigos provindos das tradições sobre Samuel, Saul, Davi e a arca da aliança. Esses, inicialmente, tiveram origens locais, mas foram reunidos e elaborados sob a ótica teológica deuteronômico-deuteronomista, a fim de dar respostas para diversas questões sobre os inícios da monarquia e os rumos que o antigo Israel tomou pela mudança na forma de governo. Nota-se que as tradições com as quais 1-2 Samuel foi formado querem demonstrar as implicações e a interação entre o profetismo e a monarquia, como duas forças que ajudaram a compreender a sobrevivência de Israel como nação e a sua autocompreensão como povo de Deus.

Em 1-2 Samuel se notam duplicatas e incompatibilidades: duas tradições atestam a entrada de Davi na corte de Saul. Na primeira, Davi foi chamado como músico de Saul e só depois foi posto como escudeiro do rei (cf. 1Sm 16,14-23), passando a acompanhar Saul no combate aos filisteus, pelo qual se distinguiu na luta contra Golias (cf. 1Sm 17,1-11). Na segunda, Davi é um simples pastor, desconhecido de Saul e que, a pedido do pai Jessé, vai ao campo de batalha para saber notícias de seus irmãos. Nesse momento, luta, vence Golias e passa ao serviço de Saul (cf. 1Sm 17,12-30; 17,55–18,2). Por duas vezes, Saul tenta matar Davi (cf. 1Sm 18,10-11; 19,8-10). Dois textos narram a popularidade de Davi (cf. 1Sm 18,12-16; 18,25-30); a sua fuga (cf. 1Sm 19,10-17 e 20,1–21,1) e a morte de Saul (cf. 1Sm 31,1-6 e 2Sm 1,1-16). Algumas “fontes” são citadas e usadas na formação de 1-2 Samuel (cf. 2Sm 1,18; cf. 1Cr 29,29-30; 27,24).

Existem três posturas sobre a monarquia: a) antimonárquica, pela qual Deus rejeita a monarquia (cf. 1Sm 8,1-22; 10,17-25); b) pró-monárquica, pela qual Deus revela as suas intenções a Samuel (cf. 1Sm 9,1–10,16); c) neutra, pela qual a monarquia é dada a Saul pelos seus méritos de bravura (cf. 1Sm 11,1-15).

Apesar de o gênero narrativo prevalecer em 1-2 Samuel, existem algumas composições poéticas: o cântico de Ana (cf. 1Sm 2,1-10); a elegia de Davi a Saul e Jônatas (cf. 2Sm 1,17-27); o hino de ação de graças de Davi (cf. 2Sm 22,2-51 paralelo ao Sl 18) e as últimas palavras de Davi (cf. 2Sm 23,1-7).

Em 1-2 Samuel, o tema da aliança é importante. Deus fez uma aliança com Davi, pautada na Lei e na promessa de estabilidade da casa e do reino davídico, pelo qual surge o tema do messianismo régio (cf. 2Sm 7,1-17). Os filisteus figuram como principal inimigo e, assim, fica estabelecido o vínculo com o livro dos Juízes, em particular os capítulos que dizem respeito às narrativas sobre Sansão (Jz 13–16). O ciclo narrativo sobre Davi tem seu prenúncio no livro de Rute. As figuras de Saul e Davi são antagonizadas em torno da figura de Samuel. Coube ao povo eleito e, nesse, aos eleitos para o bem do povo não ab-rogar para si poder, títulos ou direito à realeza. Do ponto de vista teológico, 1-2 Samuel aponta para as condições do reinado de Deus com o seu povo. A iniciativa, que parecia ter origem no desejo do povo, pela lógica interna partiu do próprio Deus.

6 1-2 Reis

1-2 Reis, também como no caso de 1-2 Samuel, formava um único rolo na Bíblia Hebraica, denominado de Melākîm. A divisão apareceu na LXX (βασιλέων τρίτη-τετάρτη: 3º e 4º Reinos) e foi seguida pela Vulgata (Liber regum tertius, quartus). Somente entre os séculos XV–XVI dC, a divisão em dois livros foi adotada na Bíblia Hebraica. Assim, 1-2 Samuel era 1-2 livros dos Reinos e 1-2 Reis, 3-4 livros dos Reinos. O arco temporal coberto por 1-2 Reis é muito maior que 1-2 Samuel: vai desde a morte de Davi, com a consequente entronização de Salomão, até a anistia dada por Evil Merodak ao rei Yehoākîn (970–562 aC).

1-2 Reis pode ser dividido em três partes: a história de Salomão e seu reinado, que tem início no contexto da morte de Davi (1Rs 1–11); a história da monarquia dividida: Reino do Norte (Israel), até a destruição de Samaria, sua capital, ocorrida em 722/21 aC (1Rs 12–2Rs 17), e Reino do Sul (Judá), até a destruição de Jerusalém, sua capital, ocorrida em 587/6 (2Rs 18–25). De 1Rs 12 a 2Rs 17, a história corre paralela entre os dois reinos. 2Rs 18–25 ocupa-se somente do Reino do Sul. Os reis de Judá são apresentados em três categorias: maus, porque idólatras: Abdias (cf. 1Rs 15,3.6), Acaz (cf. 2Rs 16,2-4), Manassés (cf. 2Rs 21,2-9), Joacaz (2Rs 23,32); bons, porque, não sendo idólatras, permitiram o culto nos lugares altos: Asa (cf. 1Rs 15,11-13), Josafá (cf. 1Rs 22,43-49), Joáz (cf. 2Rs 12,2b-3), Amasias (cf. 2Rs 14,4), Azarias (2Rs 15,3s), Joatam (2Rs 15,34); e ótimos, porque, além de não terem sido idólatras, combateram a idolatria e seus focos: Ezequias (cf. 2Rs 18,3-5) e seu bisneto Josias (cf. 2Rs 22,2;23,25).

A metodologia usada para apresentar cada um dos monarcas segue um esquema: entronização, duração do reinado, idade do rei, um juízo sobre a conduta, descrição da morte, sepultura e seu sucessor. Cada rei que sobe ao trono, seja do norte ou do sul, é descrito em sincronia com o que já está no trono, seja do norte, seja do sul. Os reis de Judá receberam um tratamento diferenciado em relação aos reis de Israel. A redação foi feita em Judá, por autores da corrente deuteronômica-deuteronomista, dado que explica a razão desse tratamento diferenciado. O elemento central é o juízo que recai sobre o comportamento religioso de cada rei no tocante às suas relações com Deus, as outras divindades, o culto e a aliança. No caso dos reis de Israel, o parâmetro tomado foi o idólatra Jeroboão. No caso dos reis de Judá, o parâmetro tomado foi o amado e fiel Davi.

Alguns reis receberam tratamento mais diferenciado, enquanto que de outros foram dadas apenas algumas notícias. O autor desejou mostrar se o rei foi fiel ou infiel a Deus e quais as consequências diretas das suas atitudes. Nesse sentido, 1-2 Reis atesta uma “história da salvação” em andamento, na qual os planos salvíficos de Deus estavam se concretizando: como bênçãos para os fiéis e como maldição para os infiéis, base da teologia da retribuição. O parâmetro é a aliança e, com relação a essa, o reino de Judá, isto é, dos descendentes de Davi, se tornou depositário das promessas messiânicas (cf. 2Sm 7,1-17).

Digno de nota, além da atenção dada aos reis, é a atenção concedida aos profetas: Elias (1Rs 17–19.21; 2Rs 1); Eliseu (2Rs 2–13); Isaías (2Rs 19,5–20,19). Além desses, muitos outros são citados (cf. 1Rs 13,18; 20,13; 22,8). O termo “profeta”, no singular ou plural, ocorre 83 vezes em 1-2 Reis. Pode-se afirmar que estes dois livros servem de contexto sociorreligioso para apresentar a atuação dos profetas pré-exílicos: Oseias, Amós, Isaías, Miqueias, Sofonias, Jeremias. Reside, nesta dinâmica profética, a certeza que Deus atuou na história de modo particular por palavras e ações conexas entre si, realizadas pelos profetas que enviou. Por meio deles, exortando e ameaçando, se revelou a fidelidade e a infidelidade das lideranças e do povo em geral à aliança. Em confronto com a monarquia, a presença e atuação de profetas em 1-2 Reis atestavam que a Palavra de Deus era mais potente que qualquer manobra política.

Algumas “fontes” foram indicadas em 1-2 Reis. Por exemplo: “o livro dos atos de Salomão” (cf. 1Rs 11,41); “o livro dos anais dos reis de Israel” (cf. 1Rs 14,19); “o livro dos anais dos reis de Judá” (cf. 1Rs 14,29). Dentre todos esses livros, existe um em particular, “o livro da Lei”, que fora encontrado no templo de Jerusalém, durante os trabalhos de restauração promovidos pelo piedoso rei Josias (cf. 2Rs 22,8). Por essas indicações, pode-se dizer que 1-2 Reis teve a sua origem no período pré-exílico, continuou sendo ampliado durante o exílio (cf. 2Rs 25,25-30) e alcançou a sua forma final durante o período persa.

7 1-2 Crônicas

A Bíblia Hebraica denomina 1-2 Crônicas de sepēr dibrē hayyamîm: “livro das coisas diárias” ou “livro dos fatos cotidianos”. A LXX os denomina de παραλειπομένον πρῶτον δεύτερον (Paraleipoménôm primeiro e segundo), isto é, Primeiro e Segundo livro das coisas omitidas ou não transmitidas. Já o título de Crônicas deriva de São Jerônimo que os designou Chronicon totius divinae historiae, “Crônica de toda a história divina”. Como 1-2 Samuel e 1-2 Reis, também 1-2 Crônicas era, originalmente, um único rolo. A divisão foi feita na LXX, seguida pela Vulgata e nos séculos XV–XVI dC tal divisão passou para a Bíblia Hebraica.

Os livros de 1-2 Crônicas podem ser divididos em quatro partes: a) de Adão a Davi (1Cr 1–10): listas genealógicas, mostrando que a salvação é universal. Todos os descendentes de Adão esperam a realização das promessas feitas a Abraão. Saul foi um precursor de Davi, mas não foi um rei que agradou a Deus como Davi (cf. 1Cr 10,13); b) Davi, além de rei, é legislador e o fundador do culto celebrado no templo de Jerusalém (1Cr 11–29): o Reino de Davi (1Cr 11–14), a arca na cidade de Davi (1Cr 15–20), a preparação para a construção do templo (1Cr 21–29); c) Salomão foi o sucessor de Davi, a quem tocou a construção do templo (2Cr 1–9); d) os reis de Judá são os legítimos sucessores de Davi (2Cr 10–36).

A grande preocupação ou objetivo que se encontra em 1-2 Crônicas é manter viva no povo a consciência de ser eleito. A experiência do exílio na Babilônia não retirou nem alterou o sentido e o valor da eleição. Deus é fiel, continua amando o seu povo e requer fidelidade e obediência à sua Lei. A figura de Davi é central, pois a ele foi feita, pela boca do profeta Natan, a promessa de que sua dinastia subsistiria (cf. 1 Cr 17,1-15). Os reis de Israel são ilegítimos e ficaram fora do plano de Deus, razão pela qual a sua história não foi narrada.

Visto que durante e depois do exílio na Babilônia a monarquia não continuou, foram acentuadas as realizações religiosas e cultuais de Davi, rei ideal e segundo a vontade de Deus (a arca em Jerusalém, o desejo do templo, a elaboração dos Salmos). O culto tornou-se o forte elemento de união e identificação do povo eleito (cf. 2Cr 2–7). Guardar o culto, instituído por Davi, tornou-se o ato preservador da identidade do povo. Assim, a comunidade pós-exílica, cultuando Deus como no tempo de Davi, poderia esperar um novo Davi: o Messias.

Dos reis julgados bons em 1-2 Reis, tudo que possa depor contra eles não é referido (adultério de Davi, idolatria de Salomão na velhice, crueldade de Manassés etc). A história da monarquia contada em 1-2 Crônicas é um relato ideal da dinastia davídica, razão pela qual não se ocupou com os reis de Israel. Com isso, não foi dado espaço para os ciclos de Elias (cf. 2Rs 17,1–2Rs 1) e Eliseu (cf. 2Rs 2–13). 2 Crônicas concluiu-se com o edito de Ciro, pelo qual não apenas permitiu que os judeus voltassem para o seu país, mas declarou-se encarregado pelo Deus dos judeus para lhe reconstruir o templo em Jerusalém (cf. 2Cr 36,22-23).

Em 1-2 Crônicas transparece a teologia do Reino de Deus centrada no ideal teocrático. A base desse é a aliança de Deus com Davi (cf. 1Cr 17,13-14). Na aliança com Davi, o povo se une a Deus e o Reino de Deus está lançado na terra, destinado a ser universal. Por isso, sob Davi povos estrangeiros e até egípcios estão congregados. O rei, o culto e o santuário são como uma única realidade sagrada. Por isso, o rei é quem determina o funcionamento do templo que será construído pelo seu sucessor. No templo está o trono sobre o qual Deus reina sobre Israel e os povos do mundo inteiro, derramando as suas bênçãos. Tudo gira em torno do templo e o seu culto é celebrado com salmos, acompanhados por diferentes instrumentos musicais (cf. 2Cr 5,11-14; 6,6; 9,25-30; 30,21). Israel é o povo da aliança, uma comunidade cultual e consagrada, um “reino de sacerdotes” (cf. Ex 19,6). Deus é santo, razão pela qual pode manifestar o seu amor e o seu ciúme pelo seu povo. Quando o povo é fiel ao reino davídico, Deus o defende e protege, mas o castiga paternalmente quando despreza o seu amor.

Quando se compara 1-2 Crônicas com 1-2 Sm e 1-2 Rs, percebe-se que a história foi vista sob um forte ponto de vista teológico: universalismo e continuidade da história (1Cr 1–9); Davi é tido desde o início como rei das doze tribos (1Cr 11), enquanto que em 2 Sm 5,1-5 por primeiro reinou sobre Judá e Benjamim, e só depois de sete anos passou a reinar sobre as tribos do norte; 1-2 Crônicas procurou evitar falar das guerras e das etapas políticas do reinado de Davi, para enfatizar a sua figura como legislador, em particular o seu empenho para organizar o culto e a construção do templo de Jerusalém; 2Sm 24 afirma que foi a ira de Deus que incitou Davi a recensear o povo. Já em 1Cr 21, foi Satã quem incitou Davi; 2Sm 24,24-25 afirma que Davi pagou cinquenta ciclos de prata pela eira e pelos bois para construir um altar para Deus. Já em 1Cr 21,25-27, Davi pagou seiscentos ciclos de ouro e apareceu um fogo do céu e um anjo; 1Cr 22 refere-se com ênfase aos preparativos para a construção do templo; 2Cr 29–31; 34–35 enfatizam a reforma religiosa empreendida por Ezequias e Josias.

8 Esdras

O livro recebe o nome do personagem protagonista, apesar de sua entrada em cena não ocorrer antes do capítulo sétimo. Esdras foi filho de Seraías, que pertencia à família do sumo sacerdote Aarão, e foi descrito como sacerdote zeloso e profundo conhecedor da lei de Moisés (cf. Esd 7,1-6.12.21). O livro de Esdras, originalmente, formava uma única obra com o livro de Neemias. A subdivisão em dois livros foi feita pelos tradutores da LXX e somente na Idade Média foi assumida na Bíblia hebraica. Ambos os livros podem ser lidos como continuação de 2 Crônicas. Além do livro canônico, existem outros cinco livros com o título de Esdras, mas são apócrifos. Algumas passagens estão escritas em aramaico (Esd 4,8–6,18; 7,12-26), língua oficial do império persa.

O livro de Esdras foi provavelmente composto em Jerusalém no século IV aC, e narra o regresso de um primeiro grupo de judeus exilados para Jerusalém (Esd 1–2), a fim de reconstruir o templo que fora destruído pelos babilônios em 587 aC (Esd 3–6). Esta primeira fase pode ser situada entre os anos 520-515 aC e aconteceu sob o comando de Zorobabel, que pertencia à estirpe de Davi, e Josué, filho de Josedec, que era de linhagem sacerdotal. O livro de Ageu e a primeira parte do livro de Zacarias, capítulos 1–8, ajudam a compreender e completar esse momento histórico. O comando de Esdras, porém, aconteceu quase um século depois do regresso do primeiro grupo. Com Esdras, um segundo grupo de exilados regressa para Jerusalém (Esd 7–8), a fim de reorganizar a vida social e cultual. Para realizar a sua missão, Esdras enfrentou as questões relativas ao culto e aos matrimônios mistos, exigindo a estrita observância da lei de Moisés (Esd 9–10).

Assim, a renovação religiosa da comunidade judaica, em particular de Jerusalém e do seu templo, foi o principal objetivo da missão de Esdras. Essa renovação teve sua base nas promessas de Deus, segundo as quais uma nova e decisiva etapa teria início: a passagem do castigo à salvação, pois a misericórdia de Deus triunfou como seu principal ato de juízo sobre a infidelidade à aliança mosaica. Com Esdras, como se fosse um novo Moisés, ocorreu a renovação sociorreligiosa que passou a ser chamada de judaísmo.

9 Neemias

Como dito anteriormente, o livro de Neemias formava uma única obra com Esdras e, também, passou a ser denominado pelo seu principal personagem. Neemias, nome que significa “o Senhor consola”, foi filho de Hacalias e, como se depreende do livro, foi um judeu muito piedoso e zeloso pelas tradições. Viveu na cidade de Susa e foi um homem da corte, pois servia o rei Artaxerxes I Longimano (465-423 aC) como seu copeiro-mor, um alto e importante cargo para a época. É no contexto do seu serviço ao rei que tem início a trama do livro. A motivação da sua missão se desenvolveu como uma embaixada do rei em Jerusalém, a fim de que fossem reconstruídos os túmulos dos antepassados e as muralhas da cidade. No fundo, essa ação foi um passo decisivo para se devolver dignidade à cidade e aos seus habitantes.

Neemias teve insígnias de governador e o livro narra a sua missão em Jerusalém em duas etapas. Na primeira, restaurou as muralhas de Jerusalém para salvaguardar a segurança da cidade e, veemente, se opôs à exploração dos mais pobres pelos mais abastados. Na segunda, tomou sérias medidas para combater as desordens sociais, os matrimônios mistos, e os desvios cultuais, com o estabelecimento do dízimo a ser dado aos levitas e a estrita observância do sábado.

O livro trata da restauração de Jerusalém e, em particular, da reconstrução das muralhas (Ne 1–7). Ao lado de Esdras, foi feita a leitura da lei de Moisés, base para a penitência e para a renovação da aliança do povo com Deus (Ne 8–10). Enfim, trata da restauração da ordem social da comunidade judaica e da ulterior ação de Neemias (Ne 11–13).

Nota-se que o livro foi escrito tendo por base o que se poderia chamar “memórias de Neemias”, pois muita coisa aparece escrita em primeira pessoa (cf. Ne 1–7; 10; 12,27-43; 13). Ao lado disso, existem listas dos habitantes de Judá-Jerusalém (Ne 11) e “memórias de Esdras” (Ne 8–9). A forma final do livro deu-se no século IV aC em Jerusalém. Neemias juntamente com Esdras são considerados os fundadores do judaísmo, no qual se encontra a nova modalidade sociorreligiosa que passou a caracterizar o povo repatriado.

10 Tobias

O livro de Tobias, ao que tudo indica, foi originalmente escrito em hebraico ou aramaico. Esta afirmação se fundamenta nos manuscritos encontrados em Qumran, dentre os quais estava um intitulado sēper dibrê tōbit, isto é, “livro das palavras/acontecimentos de Tobit”. Contudo, esse livro foi preservado apenas através das versões gregas: na LXX, numa recensão breve, preservada no Códice Vaticano e no Código Alexandrino, e numa recensão mais longa, preservada no Código Sinaítico. A nova Vulgata segue uma forma intermédia, do Códice Vercellensis (latino). Tobias é um livro deuterocanônico e não pertence ao cânon hebraico nem ao cânon protestante.

No livro, Tobias era filho de Tobit, um judeu piedoso que fora deportado para Nínive e viveu na diáspora. Tobit foi um judeu irrepreensível perante a lei, mesmo diante das várias adversidades e perseguições. O livro, além das vicissitudes e percalços de Tobit, que ficou cego, narra, igualmente, os sofrimentos de Sara, uma parente que vivia em Ecbátana. Então, na narrativa, Tobias passou a ter um importante papel, tanto em relação ao pai, cumprindo fielmente o quarto mandamento, como em relação à Sara, que se tornou sua esposa. A dinâmica interna do livro lembra, fortemente, os relatos patriarcais contidos no livro do Gênesis.

No livro são narrados: os atos de beneficência, a cegueira de Tobit, o sofrimento de Sara, que não consegue finalizar um matrimônio, e as orações que ambos elevam a Deus, suplicando auxílio (Tb 1–3). Narra a viagem de Tobias de Nínive a Ecbátana, a fim de resgatar uma dívida. Ao longo dessa viagem, Tobias passou a ser acompanhado por um “parente” que, na verdade, era o anjo Rafael, nome que significa “cura de Deus”, pelo qual Tobias conseguiu livrar Sara do seu mal e seu pai da cegueira (Tb 4–12). Na última parte, Tobit elevou a Deus uma ação de graças, e Tobias, após a morte de seus pais, mudou-se com Sara para Ecbátana, a fim de cuidar dos sogros até a morte deles. A última informação do livro descreve que Tobias viu o que foi feito aos ninivitas e elevou a Deus uma ação de graças pela sua justiça (Tb 13–14).

O livro de Tobias pode ser classificado como um relato, um conto ou uma novela edificante que foi escrito em forma histórica. Possui um cunho doutrinal e moral muito forte, rico em sentenças de índole sapiencial e que se interessa em demonstrar que Deus não abandona o justo em suas dores e sofrimentos. O ensinamento sobre os anjos e os demônios, presente no livro, evidencia, igualmente, o desenvolvimento do pensamento religioso do judaísmo pós-exílico, muito próximo da literatura apocalíptica. A fidelidade à lei, a constância na oração e a prática das obras de misericórdia (sepultar os mortos, dar de comer ao faminto, dar de beber ao sedento, vestir os nus, acolher os peregrinos, dar esmola aos necessitados) evidenciam a justiça como amor ao próximo e servem para fortalecer a fé diante e durante as duras provações da vida. As dificuldades narradas no livro, enquadrando-o num largo contexto de perseguições, permitem situar a sua forma final entre os séculos III-II aC, no quadro das novas perseguições ocorridas no período helênico.

11 Judite

Este livro, em si, não é uma descrição exata de um período ou de fatos históricos, mas possui um forte enfoque didático, como no caso do livro de Tobias. O mesmo se aplica no que diz respeito ao texto, pois deve ter existido um provável original hebraico que não foi preservado. Existe o texto grego da LXX em três recessões e uma reelaboração hebraica bem posterior ao escrito. Os códices B, S e A são considerados os melhores, enquanto que o códice Vaticano grego Regiense depende da Vetus Latina. O texto da Vulgata é uma tradução que Jerônimo fez, provavelmente, de um texto aramaico hoje perdido. O título do livro advém da sua protagonista, Judite, que significa judia, uma jovem viúva que viveu em Betúlia, e que, por sua coragem e total confiança em Deus, conseguiu salvar o seu povo do extermínio.

O livro narra a vitória dos assírios sobre os povos circunvizinhos que não atenderam ao chamado da coalizão (Jd 1–3). Holofernes é o imponente general encarregado de conduzir uma campanha militar para punir os vassalos infiéis, dentre os quais estão os judeus. No caminho de Israel, porém, estavam os judeus que viviam em Betúlia, que foi assediada. Dali os exércitos seguiriam para Jerusalém (Jd 4–7). Ante a ameaça, Judite surgiu destemida e exortou o povo a manter a sua confiança em Deus (Jd 8–9). Para salvar o seu povo, Judite usou de astúcia e estratégia feminina, conseguindo se infiltrar no acampamento inimigo e degolar Holofernes, salvando, dessa forma, o povo judeu de um grande extermínio (Jd 10–15). Uma ação de graças foi feita pela vitória e um cântico foi elevado em reconhecimento do valor e das virtudes de Judite, que, antes de morrer com uma idade avançada, distribuiu os seus bens entre os parentes de seu falecido marido e entre os seus familiares (Jd 16).

Se, por um lado, existem forças contrárias e hostis ao povo de Deus, por outro lado, a ajuda salvífica surge através dos que a Ele se dirigem e vem como resposta à oração confiante. Nesse sentido, a ajuda divina não dispensa a participação humana e se evidencia a soberania universal de Deus tanto em relação ao  seu povo como em relação aos outros povos. O conteúdo do livro de Judite aproxima-se muito do livro dos Juízes. De fato, os feitos dessa piedosa e imponente judia são narrados como os feitos dos juízes maiores que agiram em prol da libertação e conseguiram devolver a paz para os filhos de Israel (cf. Jd 16,25).

A ausência de fundamentação histórica para os fatos narrados no livro de Judite não diminui o seu valor tanto narrativo como literário. Sobressai a vontade de mostrar como a proteção divina pode acontecer não apenas através de homens fortes e robustos, mas por meio de uma mulher que sabe usar a sua beleza com a devida astúcia. É uma exaltação, inclusive, do papel que uma viúva pode desempenhar a favor de todo o povo. Nesse sentido, Judite, a viúva, e Ester, a órfã, demonstram que Deus intervém utilizando-se dos meios humanos menos aptos. A astúcia de Judite não contradiz a moral, alegando que os fins justificam os meios, pois os efeitos positivos conseguidos estão de acordo com o direito à legítima defesa. Na dinâmica bíblica, Judite encarna a figura da mulher que esmaga a cabeça da serpente (cf. Gn 3,15), vencendo Holofernes, que encarna o antigo inimigo.

12 Ester

Ao lado do livro de Rute e de Judite, o livro de Ester encerra uma perspectiva teológica que marca, profundamente, o proeminente papel de mulheres na construção e condução da história da salvação do povo eleito. A denominação do livro também deriva da sua protagonista, descrita com traços de beleza e ornada de grandes virtudes, em particular a sabedoria. Digno de ressalva é o fato de Ester ser uma órfã que, após a morte de seus pais, fora criada por um primo, um judeu piedoso chamado Mardoqueu. Tanto o nome Ester (Ishtar) como Mardoqueu (Marduk) são de origem babilônica. O nome Ester poderia ser de origem persa stareh que significa “estrela”. Hadassa é o nome hebraico de Ester e significa “murta”. Mardoqueu possui, ao lado de Ester, um papel importante no livro, pois representa o forte vínculo de Ester não apenas com o seu povo, mas com a fé no Deus de seus pais, conforme a oração que ela fez (cf. Est 4,17k-z).

Como dito na introdução, o livro de Ester integra o bloco dos Escritos e está entre os cinco megillôt. O texto hebraico é mais breve que o texto da Septuaginta (seguida pela Vulgata). O texto em grego contém cerca de 107 versículos a mais que o texto hebraico e esses versículos foram inseridos de um modo muito lógico no texto. O livro em hebraico foi escrito por um judeu da diáspora oriental, provavelmente entre os séculos IV–III aC, mas bem informado sobre o que acontecia na corte persa. Já os acréscimos em grego podem ser colocados entre os anos 150-100 aC.

O livro de Ester pode ser subdividido em cinco partes: a) na primeira parte (Est 1–2), encontra-se uma ambientação, em que a rainha Vasti caiu em desgraça pelo descaso feito à ordem do rei e, no seu lugar, após uma seleção, Ester se tornou rainha. Enquanto isso, Mardoqueu descobriu a existência de um complô contra o rei, que na narrativa é denominado de Assuero e muito provavelmente seria Xerxes I (486-465 aC); b) na segunda parte (Est 3), Amã se torna um alto dignitário do rei e, por inveja de Mardoqueu, projeta uma estratégia para exterminar os judeus que vivem em qualquer parte do império, com a acusação de que, como Mardoqueu, rejeitam seguir a religião oficial do império persa; c) na terceira parte (Est 4–7), Mardoqueu pediu a Ester que interviesse junto ao rei para livrar o povo judeu do extermínio. Ester, após certa relutância, decidiu colocar a própria vida em risco e, com grande astúcia, conseguiu deflagrar diante de Assuero os planos de Amã contra o seu povo. Na forca que Amã havia preparado para Mardoqueu, ele mesmo foi enforcado; d) na quarta parte (Est 8–9), devido à impossibilidade de se reverter o decreto do rei emanado por Amã, os judeus receberam o direito de se defender contra os que seguissem tal decreto. É neste contexto que aconteceu a instituição da festa de Purim, que quer dizer “sortes”; e) na quinta parte (Est 10), Mardoqueu recebe grandes elogios e Assuero lhe concede uma alta dignidade, passando a ser o cortesão mais importante, estando-lhe acima somente o próprio rei.

De modo particular, o objetivo central do livro de Ester parece ser o de querer explicar a origem e o significado da festa de Purim. Contudo, sobressaem muitos pontos teológicos de grande relevância: a piedade, a oração, o amor pelas tradições religiosas, a confiança em Deus e, sem dúvida alguma, um forte nacionalismo. Apesar disso, esse nacionalismo acentuado no livro servia como uma forma de garantir a sobrevivência da identidade judaica dos que viviam fora da terra santa.

13 1-2 Macabeus

1-2 Macabeus são dois livros considerados independentes, nota-se que o estilo literário uado em cada um é bem diferente. Contudo, a resistência ao helenismo, chefiada pela família macabaica, é o dado forte e comum entre os dois livros. Antíoco IV Epifanes quis impor o helenismo à força, desencadeando perseguições contra o judaísmo; por outro lado, impôs-se a força religiosa anti-helenística encabeçada pela família macabaica. Em 1 Macabeus, a resistência é acentuadamente bélica, já em 2 Macabeus, além de bélica, a resistência também acontece através da aceitação do martírio, elemento fundamental para se introduzir a fé na ressurreição.

1 Macabeus cobre um arco temporal de aproximadamente quarenta anos: desde a ascensão de Antíoco IV Epifanes (175 aC) até a morte do sumo sacerdote Simão (134 aC). Foi escrito, originalmente, em hebraico entre os anos 100–64 aC, mas foi preservado apenas no grego da LXX que o denomina Μακκαβαίων πρῶτον, seguido pela Vulgata Primus Machabæorum. Foi escrito, provavelmente, em Jerusalém, com forte acentuação histórica e apologética. A combinação desses dois elementos não foi muito feliz. Se, por um lado, o valor histórico é digno de crédito pelos dados cronológicos e topográficos que possui, por outro lado, o seu caráter apologético está marcado por um nacionalismo exagerado.

Sem defender algum ponto doutrinal concreto ou lições morais diretas, o autor se concentrou nos elogios aos piedosos (hassideus, que deram início, provavelmente, ao grupo dos essênios), por terem perseguido e combatido os interesses políticos dos selêucidas, encabeçados por Antíoco IV Epifanes (175-163 aC). A fé ardorosa da família macabaica, porém, elucida a confiança em Deus, sem que seja citado, e na sua providência (cf. 1Mc 2,61; 3,18-20; 4,10-12; 9,46), sem a qual não teria acontecido a libertação. A observância da Lei.

1 Macabeus pode ser dividido em quatro partes: a) descrição da situação religiosa e política durante o governo de Antíoco IV Epifanes, que levou à insurreição dos judeus chefiados por Matatias (1Mc 1–2); b) lutas e vitórias de Judas Macabeu contra os inimigos e relato da sua morte gloriosa (1Mc 3,1–9,22); c) lutas sob o comando de Jônatas e a sua política de conciliação (1Mc 9,23–12,54); d) Simão assume o governo, a Judeia se torna autônoma, trazendo paz e bem-estar para o povo (1Mc 13–16). Os fatos e feitos dos três filhos de Matatias são apresentados segundo uma ordem cronológica.

2 Macabeus cobre apenas quinze anos da história macabaica (175–160 aC). Foi escrito, provavelmente, no Egito, em grego, entre os anos 130–100 aC. A LXX o denominou Μακκαβαίων δεύτερον, seguido pela Vulgata Secundus Machabæorum. Não é uma obra inédita, mas um resumo de uma obra em cinco volumes de Jasão de Cirene (cf. 2Mc 2,19-32), um judeu piedoso da diáspora cirenaica. Uma obra que não foi conservada. Os pontos centrais dessa obra teriam sido: a santidade e inviolabilidade do templo de Jerusalém (cf. 2Mc 3,1-40); intrigas dos ímpios, ira de Deus que pesa sobre Israel e os mártires que expiam o pecado do povo (cf. 2Mc 4–7); a ira deu lugar à misericórdia pela vitória sobre os ímpios, com a consequente dedicação do templo de Jerusalém (cf. 2Mc 8,1–10,9); o templo ficou livre de profanação interna e externa (cf. 2Mc 14,1–15,37). O estilo adotado é exuberante: as lutas, os atos heroicos de Judas Macabeu e o testemunho de fé de alguns mártires foram contados com riqueza de detalhes (cf. 2Mc 6,18-31; 7,1-42); mas, também, oratório, pois procura agradar, mover e persuadir o leitor. As personagens são descritas de forma antitética, ímpios (antipáticos) e justos (simpáticos) estão em oposição. A crueldade dos ímpios sobre os mártires é descrita com grande realismo (cf. 2Mc 6,18–7,42).

2 Macabeus pode ser dividido em quatro partes: a) cartas dos judeus de Jerusalém aos irmãos da diáspora alexandrina no Egito e prólogo (2Mc 1–2); b) fatos ocorridos durante o governo de Seleuco IV Filopatro (2Mc 3,1–4,6); c) pressão do helenismo e perseguição durante o governo de Antíoco IV Epifanes (2Mc 4,7–10,9); d) lutas de Judas Macabeu contra Antíoco V Eupátor e contra Demétrio I Soter, com vitória sobre Nicanor (2Mc 10,10–15,39). Narra-se, com isso, a perseguição dos judeus sob Antíoco IV Epifanes e a luta de libertação comandada por Judas Macabeu até a sua vitória sobre Nicanor (175–161 aC).

Deus interveio na história do seu povo não apenas pela ação dos macabeus, mas com prodígios: um cavalo e seu cavaleiro misteriosos castigam Heliodoro (cf. 2Mc 3,23-29); cavalos e cavaleiros reluzentes aparecem por quarenta dias (cf. 2Mc 5,1-4); cavalos e cavaleiros celestes ajudam Judas a vencer Timóteo (cf. 2Mc 10,29-30); um cavaleiro em vestes brancas surge bramindo sua espada dourada e os judeus vencem os inimigos (cf. 2Mc 11,8-12). Além dessas intervenções divinas, 2 Macabeus possui afirmações teológicas que mostram certa evolução quanto à concepção da ressurreição dos mortos (cf. 2Mc 6,26; 7,11.14.23; 14,46), à fé na vida eterna (cf. 2Mc 7,9-14), à intercessão dos vivos em favor dos mortos (cf. 2Mc 12,38-46) e à eficácia das orações pelos mortos (cf. 2Mc 12,38-46). Afirma-se a criação do mundo ex nihilo (cf. 2Mc 7,28). Disto resulta que 2 Macabeus acentua muito mais o aspecto religioso da resistência ao helenismo, multiplicando as orações antes das lutas, a observância do sábado, a acentuação do martírio pela fé e a crença na ressurreição com a justa retribuição para justos e injustos.

Considerações finais

Os livros de Josué, Juízes, 1-2 Samuel e 1-2 Reis estão repletos de crueldades e grandes massacres. O ouvinte-leitor hodierno tem toda a razão de ficar perplexo, mas, ao se aproximar desses livros, é convidado a perceber a clara diferença que existe no agir dos protagonistas envolvidos nas narrativas: Deus e o antigo Israel em formação.

A história e as vicissitudes deste povo estão narradas na Bíblia à maneira do que se fazia em todo o Antigo Oriente Próximo (AOP), através de relatos de guerras, de conquistas, de duelos, de ocupações e destruições territórios, de deportações etc. O antigo Israel está inserido no seu tempo e na sua cultura, usa a mesma linguagem e as mesmas imagens que os povos circunvizinhos. Existe na sequência narrativa da conquista da terra prometida (Josué), das batalhas contra os filisteus (Juízes), do fim do tempo dos juízes e do evento da monarquia (1-2 Samuel), das guerras de Judá e de Israel contra os povos vizinhos (1-2 Reis) uma marcante dependência cultural do vocabulário militar, que caracterizava a história dos povos antigos: egípcios, assírios, babilônios, persas, gregos, romanos e, sem dúvida alguma, de muitos povos atuais.

O ato de ler e de estudar esses livros exige capacidade de discernimento, pelo qual se aprende a separar o que é contingente e pertencente às vicissitudes da história do antigo Israel (conquista da terra, guerras com os povos vizinhos, campanhas militares dos seus reis), do que tem valor perene, porque pertence à história da salvação: a luta de Deus contra o mal e o pecado, afirmando a sua soberana realeza sobre tudo o que acontece no mundo.

Um estudo histórico-crítico de Josué a Reis demonstra que a conquista da terra foi lenta, difícil e que a sua perda deveu-se à negligência política de seus reis. A versão da conquista e da perda da terra, nesses livros, é muito mais teológica e profética do que histórica. Josué foi o sucessor de Moisés que, pela obediência à Lei de Deus, efetuou a conquista da terra, porque Deus, verdadeiro protagonista, cumpriu a sua palavra e as promessas feitas aos patriarcas. Em contrapartida, com o livro dos Juízes se demonstra que a fidelidade da geração liderada por Josué não se manteve (Jz 2,10 tem a ver com Ex 1,8 e explica a mudança na conduta: a nova geração desconhece os feitos). Com isso, se introduz a necessidade da formação pedagógica que será empreendida pelo conhecimento da Torá. A dialética da aliança é fundamental para se compreender esses livros: quando o povo se volta para Deus e é obediente, é abençoado; quando abandona Deus e é desobediente, é castigado.

Os livros de 1-2 Crônicas, Esdras e Neemias, vistos no seu conjunto literário e no contexto histórico a eles vinculado, supõem e comentam: a dolorosa experiência do exílio, a reconstrução da sociedade hebraica, a partir do retorno dos exilados, e uma longa vivência do judaísmo, isto é, a nova fase da religião de Moisés que tem início após o retorno dos exilados. Alguns elementos atestam a época tardia desses três livros: a forte influência da teologia sacerdotal; a presença do ideal teocrático com Davi e Salomão. Jerusalém e o templo estão no centro desta teocracia; a Lei de Moisés (Torá) é “divinizada”; os fatos e feitos narrados foram adaptados em função da sua ideologia positiva da história.

Todas as instituições que se ligam ao culto foram enfatizadas nos livros de 1-2 Crônicas, Esdras e Neemias: a transladação da arca (cf. 1Cr 15–16); a dedicação do Templo (cf. 2Cr 5–7); a reforma do culto e a celebração da páscoa sob o reinado de Ezequias (cf. 2Cr 29–31); a solenidade da páscoa sob Josias (cf. 2Cr 35); a restauração da liturgia, após o exílio, sob Josué e Zorobabel (cf. Esd 3); a dedicação do novo Templo e a celebração da páscoa (cf. Esd 6,16-22); a celebração da festa dos Tabernáculos (cf. Ne 8,13-18); a dedicação dos muros de Jerusalém (cf. Ne 12,27-43). Sacerdotes e levitas, músicos, cantores, porteiros, personagens envolvidos no culto e que não tiveram destaque nos livros de Josué a Reis, receberam um tratamento diferenciado (cf. 1Cr 9,17-29; 15,16-21; 16,4-42; 2Cr 5,12-14; Esd 3,10-11; 7,7; Ne 7,1-45; 11,17-19). Na história narrada nesses livros, manifesta-se o plano de Deus: tem início com a criação, segue-se com a eleição de Israel, o ideal monárquico com a dinastia de Davi até o exílio babilônico, etapas que acabaram por reconduzir à reforma do antigo Israel e das suas instituições empreendidas pelos reformadores Esdras e Neemias.

Os livros de Rute, Tobias, Judite e Ester contextualizam a Lei de Deus sob diferentes ângulos. São, fundamentalmente, literatura edificante, pela qual a vida e suas vicissitudes são o campo fértil para acontecer a interpretação e a atualização da fé. Nesse tipo de literatura, o ouvinte-leitor não apenas se depara com as situações dos personagens, mas é convidado a se deixar provocar por elas, a fim de tirar lições para a sua própria vida. A providência divina é vivamente evidenciada ao lado das iniciativas humanas. As dificuldades, as dores, as provas e os sofrimentos da vida podem ser superados na fé, acentuando a consolação de Deus, mas não dispensam a participação humana. Os justos podem ser submetidos a muitas e grandes provas, mas não se deixam abater por sua fé e fidelidade a Deus.

Rute, Judite e Ester são heroínas, mulheres extraordinárias e protagonistas da salvação do povo. Estas mulheres exemplificam Gn 3,15 e Pr 31,10-31. Já o sonho de todo pai piedoso é ter um filho igualmente piedoso e virtuoso. Disso trata o livro de Tobias, evidenciando, em particular, o sentido e cumprimento do quarto mandamento “honrar pai e mãe” (cf. Ex 20,12; Dt 5,16). O caráter didático, parenético e sapiencial desse livro não invalida o sentido ou o valor histórico que a ele se quis atribuir, elaborados e enriquecidos testemunhos de vida exemplar, fazendo sobressair a caridade, a pureza legal e os três pilares da piedade judaica: a oração, a esmola e o jejum (cf. Mt 6,1-18).

 Os livros dos Macabeus descrevem uma fase ulterior da luta do povo pela própria sobrevivência. Dessa vez, o perigo não vem tanto das invasões de exércitos estrangeiros ou dos matrimônios mistos, mas da política adotada pelos reinos helenísticos que usavam a cultura como meio para unir diversos componentes dos seus impérios. Estes impérios conheciam, por certo, o valor da cultura e da educação. Basta lembrar da importância, no mundo antigo, da Biblioteca de Alexandria dos reis Ptolomeus, cerca de 305 aC. Mais importante ainda foi a introdução do sistema grego de educação sob a forma de “ginásios” em diversas partes do império (cf. 1Mc 1,14). O impacto da cultura grega era forte e o povo judaico se sentiu imediatamente ameaçado. No mundo antigo, religião, cultura e política eram frequentemente inseparáveis. (SKA, 2015, p.150-1)

O processo de helenização da Palestina teve início muito antes das façanhas atribuídas aos irmãos macabeus. Esse se deu a partir do momento que Alexandre Magno conquistou militarmente o vasto império persa. Com a conquista de Tiro, em 331 aC, toda a Palestina passou para as mãos do novo conquistador. Com Alexandre Magno e seu exército chegaram o intercâmbio comercial, a literatura, as artes, os esportes, isto é, uma nova cultura com um novo estilo de vida. O peso e a imponência da cultura grega constituíram uma ameaça para o judaísmo que, por sua vez, pareceu insensatez às lideranças gregas. No fundo, o helenismo foi pensado como uma metodologia de dominação, ao qual o judaísmo macabaico não quis se submeter. O próprio judaísmo, na época que viu reinar a rivalidade entre selêucidas (Babilônia e Síria) e ptolomeus (Palestina e Egito), já estava dividido em facções ou partidos, e conflitos internos já vinham enfraquecendo as tradições e as práticas religiosas. 1-2 Macabeus representaram, inicialmente, a classe dos resistentes ao helenismo, mas com a ascensão ao poder e implantação de nova política teve início o governo asmoneu. Este nome foi tomado, de acordo com Flávio Josefo (Ant XII, 6,1; XX, 8,11; 20,10), de Simão Asmoneu, da dinastia macabaica que reinou de 134 a 36 aC, ano que levou, por imposição romana, Herodes Magno não apenas ao trono, mas ao extermínio dos descendentes dos macabeus.

Leonardo Agostini, PUC Rio. Texto original português

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