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Diálogo inter-religioso

Sumário

1 Aspectos históricos: diálogo e missão

2 Aspectos teológicos: o que é diálogo inter-religioso

3 Aspectos conceituais: diálogo inter-religioso e diálogo interfé

4 Aspectos críticos: desafios ao diálogo inter-religioso

Referências

1 Aspectos históricos: diálogo e missão  

As experiências de diálogo inter-religioso têm marcado o cenário cultural global e também o do contexto latino-americano, em especial nas últimas décadas do século 20 e nas primeiras do 21. Não é tarefa fácil localizar na história uma referência do início dessas experiências, mesmo porque a própria noção de “religião” parece ser refém das lógicas modernas ocidentais. Nesse sentido, no campo da fé judaico-cristã, por exemplo, é possível se referir a experiências de encontros entre grupos de diferentes contextos culturais ou étnicos ainda no período bíblico; o mesmo se pode falar de outros períodos históricos.

No entanto, tendo como referência os movimentos de diálogo inter-religioso que mais impactaram as experiências atuais, em geral se destacam dois momentos significativos. O primeiro diz respeito às experiências de trabalho missionário no campo protestante desenvolvidas ao longo do século 19. As raízes dessa preocupação teológica ganharam densidade quando os esforços missionários do mundo protestante na Ásia, na África e na América Latina, motivados pelo liberalismo teológico, descortinaram as questões ecumênicas e, mesmo em meio às propostas verticalistas de missão, suscitaram oportunidades de diálogo inter-religioso, processos de aprendizagem e a fermentação de uma teologia ecumênica inter-religiosa. Tais vivências forçosamente geraram ou reforçaram, de um lado, visões sectárias e de imposição cultural e, de outro, ações dialógicas e de cooperação entre grupos de religiões distintas.

Esse segundo conjunto de vivências – boa parte delas protagonizadas por mulheres, embora nem sempre visibilizadas – produziu forte impacto no movimento ecumênico da época. Tais vivências desembocaram, no século 20, na formação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), que possui em suas bases constitutivas uma forte preocupação com o diálogo e a cooperação inter-religiosos. Elas se somam às outras duas bases do movimento ecumênico que são os esforços de unidade cristã e os de natureza secular que ficaram conhecidos na época como diálogo e aproximação de “todas as pessoas de boa vontade”.

Esse quadro realçou a constatação de que não somente as análises científicas sobre o pluralismo religioso, mas igualmente a teologia ecumênica das religiões, vêm ganhando destaque no debate atual desde aquela época. Essas perspectivas, ainda que fragmentariamente, percorreram a primeira metade do século 20 e desaguaram em fontes teológicas riquíssimas, como a do teólogo Paul Tillich, por exemplo. É dele o célebre texto “O significado da história das religiões para um teólogo sistemático”, conferência realizada dias antes de seu falecimento e publicada em The future of religions (1966).

As experiências missionárias do campo protestante que realçaram a dimensão ecumênica inter-religiosa e o espaço de articulação delas no Conselho Mundial de Igrejas, especialmente em suas conferências missionárias, geraram novas ideias e práticas (CUNHA, 2010). Não obstante os aspectos negativos das interfaces das religiões com a cultura e com a política que geraram formas de violência, se procurou um olhar teológico e missionário sobre as religiões que priorizasse a abertura dialogal presente na vida e as possibilidades de cooperação.

A pressuposição do movimento missionário ecumênico era que o diálogo aumenta a capacidade humana de autorrealização e de realização do outro (ARIARAJAH, 2011). Ele é um reconhecimento de que o outro me permite uma transição a uma nova posição. Tal situação estimula e possibilita as práticas do fazer-se humano e ao mesmo tempo cria condições para que os processos teóricos de compreensão da vida sejam mais completos e consistentes. “Quando o diálogo é estabelecido, não só se experimenta uma preocupação teórica (quem dialoga conosco), mas também é manifestado um compromisso prático que, ademais, exige uma compreensão mútua” (SANTA ANA, 2010, p. 112). Trata-se do Eu e Tu, de Martin Buber. É a consciência se descobrindo a si mesma como existência graças ao outro. Essa tem sido e transparece como forte necessidade de ser uma das fontes fundamentais de inspiração do movimento ecumênico.

Tal perspectiva motivou e possibilitou, nas décadas seguintes, uma série de reflexões teológicas sobre os desafios da valorização do pluralismo e dos diálogos e cooperações inter-religiosos. Isso se deu em vários círculos ecumênicos e pastorais, com boa produção coletiva e com destaque para os escritos de John Hick, Christine Lienemann-Perrin, Wesley Ariarajah, Clare Amos, Julio de Santa Ana, Inderjit Bhogal e Jürgen Moltmann, entre outros. Este último, realçando a esperança e a visão teológica protestante, expressa em várias iniciativas de cooperação inter-religiosa, mostra que o

conceito do diálogo apresentou-se como apropriado para definir o encontro e a convivência de diversas comunhões na sociedade moderna […] toda vida multirreligiosa tem de começar com um reconhecimento mútuo, que leva a ouvir uns aos outros e a falar uns com os outros. (MOLTMANN, 2004, p. 28, destaque do original)

Um segundo momento no campo cristão que se seguiu a este foi o da aglutinação das experiências de diálogo, com um consequente reforço dessa noção, feita em torno do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), da Igreja Católica. No campo católico-romano, sob os influxos dos ventos renovadores desse concílio, diversas experiências de diálogo inter-religioso e de reflexão teológica sobre os temas emergentes dessa aproximação se fortaleceram. Teólogos como Karl Rahner, Hans Küng, Yves Congar, Edward Schillebeeckx e Raimon Panikkar, entre outros, forjaram novas perspectivas teológicas que, décadas mais tarde, passaram a ser aprofundadas e revisadas.

No plano eclesiástico, o papa Paulo VI criou, em 1964, o Secretariado para os Não  Cristãos, que, em 1984, publicou o documento Diálogo e missão, no qual se declarava que o diálogo é parte inerente e indispensável à própria missão, e não algo a ser acrescentado a ela. Em 1991, para celebrar os 25 anos da Declaração Nostra Aetate, do Concílio Vaticano II, em cooperação com a Congregação para a Evangelização dos Povos, o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, novo nome do Secretariado para os Não Cristãos, publicou Diálogo e Anúncio, no qual foram aprofundados elementos contidos no primeiro documento, indicando que nenhum anúncio da fé deve ser realizado sem base no diálogo. O documento propõe quatro dimensões que podem ser etapas do diálogo inter-religioso: o diálogo da vida (aproximação de amizade), o diálogo do serviço (trabalho em conjunto no compromisso social), o diálogo propriamente teológico, e, finalmente, o diálogo na oração em comum (BARROS, 1996).

Uma iniciativa marcante, de João Paulo II, foi o Encontro Inter-religioso de Assis, realizado em 1986, que reuniu todos os principais líderes das igrejas cristãs e sessenta representantes de outras religiões, para orar pela paz. Em 2016, em comemoração dos 30 anos do primeiro encontro, 500 representantes de diversas religiões se encontraram na mesma cidade, além de cerca de 12 mil peregrinos. A Comissão Teológica Internacional, organismo ligado ao Vaticano, também tem emitido documentos e declarações sobre a relação entre a fé cristã (entendida a partir da Igreja Católica) e as outras religiões. Além disso, o Vaticano tem criado comissões internacionais de diálogo bilateral. O papa Francisco tem intensificado o diálogo com o judaísmo e com o islã, com visitas e encontros importantes, dentre os quais o encontro com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, do Cairo, que o inspirou na encíclica Fratelli tutti.

Desde as últimas décadas do século 20, há um florescer de novas concepções teológicas oriundas das preocupações com o encontro e o desencontro do cristianismo com as demais religiões. Ressaltam-se no campo católico as contribuições, majoritariamente masculinas, sobretudo de Jacques Dupuis, Michael Amaladoss, Claude Geffré, Roger Haight e Paul Knitter. Tais visões estão intuídas e fundamentadas nas práticas concretas de cooperação e de diálogo inter-religioso, parte delas forjadas nos desafios concretos de práticas missionárias.

No contexto latino-americano, a perspectiva pluralista das religiões e as práticas de diálogo interpelam fortemente a teologia e os esforços pastorais, especialmente por sua vocação libertadora e pelos desafios que advêm da composição cultural do continente, fortemente marcada por diferenças religiosas que se interpenetram nas mais distintas formas. Um dos marcos dessa reflexão e proposição foi o 1º Encontro Continental da Assembleia do Povo de Deus, realizado em 1992, em Quito, Equador, com certo destaque às indicações de D. Pedro Casaldáliga para que, mais do que apenas o diálogo, um caminho de unidade se abrisse nas diversidades religiosas tendo em vista o serviço da transformação do mundo visando a paz e a justiça ecossocial.

Esses processos motivaram a Teologia Latino-Americana, dentre as suas muitas questões, temas e enfrentamentos prático-pastorais, a elaborar uma reflexão sobre os desafios do pluralismo religioso e das possibilidades de diálogo. O marco dessas reflexões foi a publicação da série Pelos muitos caminhos de Deus, sob os auspícios da Associação dos Teólogos e Teólogas do Terceiro Mundo (Asett), com o trabalho de José Maria Vigil, Marcelo Barros, Diego Irarrazaval e Luiza Tomita. Trata-se de cinco volumes cujos títulos oferecem uma ideia do processo progressivo que a temática vivenciou: Pelos muitos caminhos de Deus: desafios do pluralismo religioso à Teologia da Libertação (2003); Pluralismo e libertação: por uma Teologia Latino-Americana Pluralista a partir da fé cristã (2005); Teologia Latino-Americana Pluralista da Libertação (2006); Teologia Pluralista Libertadora Intercontinental (2008); e Por uma Teologia Planetária (2011).

Também se destacam os escritos de Faustino Teixeira, desde a obra que organizou, Diálogo de pássaros: nos caminhos do diálogo inter-religioso (1993), até Teologia e pluralismo religioso (2012a) e Cristianismo e diálogo inter-religioso (2014), quando estabeleceu as bases de sua teologia pluralista. Em seus trabalhos, Teixeira também realça diferentes práticas dialogais, com a recuperação de experiências de grupos e pessoas como Thomas Merton, Henri le Saux, Louis Massignon, o que o autor denominou “buscadores de diálogo” (TEIXEIRA, 2012b). Ao seguirem um “pluralismo de princípio”, mais do que reconhecimento da história, doutrinas, narrativas sagradas e concepções de verdade do outro, essas visões compreendem o pluralismo como algo que pertence ao grande Mistério. “Todas as religiões e espiritualidades são, portanto, assumidas nesta interioridade. Esta concepção gera atitudes de promoção e cuidado das diferenças, pois cada uma contempla, medita, assimila e revela facetas do Mistério” (PANASIEWICZ, 2020, p. 44).

2 Aspectos teológicos: o que é diálogo inter-religioso

Em geral, os diálogos e cooperações inter-religiosas estão relacionados à maior ou menor visibilidade da importância pública das religiões nos processos de promoção da paz, da justiça e da integridade da criação. É fato que há diferentes formas e possibilidades de diálogos inter-religiosos, mas aquelas que se destacaram no cenário ecumênico nas últimas décadas possuem bases teológicas e religiosas firmadas nos referidos processos (SANTA ANA, 2010).

Para isso, devemos pressupor a conhecida tríplice dimensão do ecumenismo, consagrada nos setores teológicos e pastorais sensíveis à amplitude que as experiências de diálogo possuem ou precisam ter: (i) a unidade cristã, a partir do reconhecimento do escândalo histórico das divisões e de uma preocupação em construir perspectivas missionárias ecumênicas; (ii) a promoção da vida, firmada nos ideais utópicos de uma sociedade justa e solidária e na compreensão de que eles podem reger a organização da sociedade integrando todos os de ‘boa vontade’; e (iii) o diálogo inter-religioso, na busca incessante pela superação dos conflitos, pela paz e pela comunhão justa dos povos. Portanto, o diálogo inter-religioso não é “uma” expressão ao lado do ecumenismo, mas o constitui em essência e proposta. Da mesma forma, ocorre o interesse pelo aprofundamento dos processos de humanização, da democracia, da cidadania e da defesa dos direitos humanos e da terra. Eles não são – ou não deveriam ser – uma opção das experiências e movimentos inter-religiosos, mas representam a sua base de ação.

No debate sobre pluralismo religioso e as possibilidades de diálogo e, sobretudo, a relação dessas duas dimensões com a sociedade, seguimos, baseados no princípio pluralista (RIBEIRO, 2020), a compreensão de que toda e qualquer ação ou reflexão sobre humanização, democracia e direitos humanos – base da cooperação e dos diálogos inter-religiosos – requer análises mais consistentes e posicionamentos mais nítidos acerca das questões que lhe são mais diretamente relacionadas. A lista não é pequena, por isso destacamos o combate aos racismos, ao sexismo e à homofobia, e a crítica ao sistema capitalista como produtor de desigualdades sociais, violência e pobreza. Realçamos, como já referido, que não se trata de questões paralelas, uma ao lado da outra, mas, sim, de um amálgama e entrelaçamento sociocultural que necessita de permanente e profunda crítica ao sistema econômico, com foco na reflexão e ação a respeito das causas das divisões que acontecem na sociedade.

Tanto pelas históricas dificuldades das religiões no tratamento de tais questões quanto pela riqueza teológica de vários grupos que reagiram aos processos dominantes e se colocaram francamente a favor do aprofundamento da democracia e dos direitos, esse processo avaliativo, reflexivo e propositivo torna-se cada vez mais imperativo. Se assumido pelas diferentes religiões e espiritualidades ou por setores delas, tornará os esforços de diálogo inter-religioso mais viáveis, fluidos e significativos para a sociedade.

Tal perspectiva realça a importância da visão pluralista. Tanto nas análises do quadro de pluralismo religioso quanto nas possibilidades práticas de aproximações inter-religiosas, em geral se leva em consideração a noção de que a visão pluralista nem anula as identidades religiosas, por um lado, nem as absolutiza, por outro. A perspectiva pluralista olha as religiões em plano dialógico, considerando cada contexto, especialmente os diferenciais de poder presentes neles. Não se trata de igualdade de religiões, mas de relações justas, dialógicas e propositivas entre elas.

A visão preponderante é que cada expressão religiosa tem sua proposta salvífica e de fé, que deve ser aceita, respeitada, valorizada e aprimorada com base em diálogos e aproximações mútuas. Tal perspectiva não anula nem diminui o valor das identidades religiosas – no caso da fé cristã, a importância de Cristo –, mas as leva a um aprofundamento e amadurecimento movidos pelo diálogo e pela confrontação justa, amável e corresponsável. Assim, a fé cristã, por exemplo, seria reinterpretada a partir do confronto dialógico e criativo com as demais formas de fé. O mesmo deve se dar com toda e qualquer tradição religiosa e espiritualidades.

Consideramos que a visão pluralista, como base para os diálogos e cooperação inter-religiosa, supera outros modelos da teologia ecumênica cristã, como aquele que considera Jesus Cristo e a Igreja como caminho exclusivo de salvação; o que considera Jesus Cristo como caminho de salvação para as pessoas, ainda que implicitamente, o que se denominou inclusivismo; e a perspectiva relativista, na qual Jesus é o caminho para os cristãos, ao passo que para os outros o caminho é a própria tradição, sem maiores esforços de autocríticas, revisões e mútua interpelação.

Para a teologia cristã – e as demais perspectivas religiosas estariam de forma similar implicadas –, a concepção pluralista forjaria diferentes e cruciais questões. Uma delas seria em torno do sentido/significado dos aspectos relativos à fé cristã (como Cristo, a Igreja, o Reino de Deus, a salvação, o Espírito Santo, a criação etc.) ao pensarmos em um novo modo de fazer teologia num contexto de pluralismo e de diálogo religioso. Baseada em “uma interface plurirreligiosa, a experiência do sagrado realizada dentro do cristianismo, em outras palavras, a mística cristã hoje é interpelada e chamada a aprender das experiências místicas de outras religiões” (BINGEMER, 2002, p. 319).

Outra questão que surge para todas as expressões de fé gira em torno da pergunta de como o diálogo e a aproximação concreta entre elas contribuem para melhor compreensão da fé (considerando a diversidade das tradições e experiências) e melhor discernimento das consequentes implicações éticas no mundo (LIENEMANN-PERRIN, 2005). As exigências éticas, com todas as variedades que cada contexto e momentos históricos exigem, levaram muitos grupos a defenderem a paz entre as religiões como pressuposto para a paz entre as nações (KÜNG, 1993). Para isso, são necessárias “pontes inter-humanas”, considerando que “o encontro com o outro proporcionará ampliação do conhecimento, da noção de verdade e, de maneira especial, da concepção do cuidado, que, para além da interação interpessoal, atingirá dimensões planetárias” (PANASIEWICZ, 2020, p. 44).

Nessa direção, a cooperação e os diálogos inter-religiosos têm realçado elementos-chave da vivência religiosa e humana, como a alteridade, o respeito à diferença, a hospitalidade, as visões dialógicas e plurais, a cooperação prática e ética em torno da busca da justiça em relação a grupos empobrecidos e subjugados pelas mais diferentes formas de dominação e a busca do bem comum. A aproximação e o diálogo entre grupos de distintas expressões religiosas, em geral, cooperam para que elas possam construir novas compreensões acerca dos seus papéis na sociedade e reconstruir suas identidades e princípios fundantes. Daí a ênfase no diálogo justo como condição imprescindível para se construir uma identidade autêntica, levando em conta os diferenciais de poder entre cada expressão religiosa.

A partir da cooperação e do diálogo, as diferentes perspectivas e expressões religiosas podem reconstruir permanentemente suas contribuições para o mundo dentro dos critérios da justiça, da paz e da integridade da criação. “O diálogo inter-religioso associado ao intra-religioso, diálogo no interior de cada religião e espiritualidade, revela contingências, vulnerabilidades e potencialidades, se tornando fonte de renovação para todas as partes envolvidas” (PANASIEWICZ, 2020, p. 45). Na essência do diálogo, estão o reconhecimento da alteridade e a valorização das diferenças.

As possibilidades de diálogo inter-religioso requerem também abertura das pessoas e grupos envolvidos no tocante à dimensão existencial. “Esta abertura a si e ao outro fundamenta o ideal de hospitalidade, pois acolhida e agonia ante o diferente se articulam, desafiando e estimulando novas construções existenciais e religiosas” (PANASIEWICZ, 2020, p. 46). De forma similar, é possível pensar o encontro com o outro como expressão de espiritualidade. “Compreender o outro religioso é, então, um processo espiritual. É à medida que eu o abrigo no meu espírito que ele passa a ter sentido para mim. O diálogo espiritual é algo vital; compreender uma religião implica um tipo de vivência no espírito dela” (WOLFF, 2016, p. 179).

Tais bases teológicas, associadas ao avanço das investigações científicas sobre temas relativos ao pluralismo religioso, têm realçado a importância das práticas de diálogos inter-religiosos. Em parte, essa ênfase se dá como resposta à realidade sociocultural na qual encontramos, especialmente nas últimas décadas, maior visibilidade da diferença religiosa, no Brasil e no mundo, e maior intensidade no debate sobre religião e democracia, especialmente os temas ligados à laicidade do Estado. No entanto, o que mais tem mobilizado a atenção de vários setores sociais é, sobretudo, a ambiguidade de termos, ao mesmo tempo, situações conflitivas e até mesmo violentas entre grupos religiosos, por um lado, e busca de diálogo e cooperação entre expressões religiosas distintas em diferentes áreas da vida social, por outro.

3 Aspectos conceituais: diálogo inter-religioso e diálogo interfé

Há uma perspectiva conceitual que ressalta a distinção entre diálogo inter-religioso e diálogo interfé. Em certa medida, a primeira já é consagrada na maioria dos meios religiosos e acadêmicos. Na América Latina, ela tem sido trabalhada, sobretudo, por autores como Faustino Teixeira (2014) e José Maria Vigil (2006).

A segunda, mais comum em outros continentes, possui maior densidade, pois aponta para maior dinamismo, espontaneidade e liberdade nas relações entre manifestações religiosas distintas.

O diálogo interfé se constrói com encontros de pessoas e grupos com uma fé viva e dinâmica. A expressão ‘interfé’ se dá, portanto, de maneira mais ampla […]. Quando saímos do ethos institucional e passamos para a complexidade da vida e as interações humanas a dinâmica do diálogo interfé se dá de uma maneira orgânica e entrelaçada. (TOSTES, 2020, p. 42)

Na tentativa de superar os essencialismos ocidentais, que definem o que seja a religião, excluindo outras experiências e alteridades “não oficiais” ou mais espontâneas, vários autores e autoras propõem o uso da expressão diálogo interfé. Ela revela que “as conversações e interações estão acontecendo entre pessoas que pertencem a credos, e não entre religiões em si, entre religiões como sistemas de crenças e práticas” (PUI-LAN, 2015, p. 21). Tal perspectiva colocaria todos os crentes e grupos em plano similar e de horizontalidade e facilitaria diálogos mais autênticos e justos. Além disso, também é bom destacar que os diálogos acontecem em diversos níveis, “entre líderes religiosos em encontros ecumênicos, entre estudiosos em espaços acadêmicos e nas comunidades locais e não hierárquicas” (PUI-LAN, 2015, p. 25).

É fato que os diálogos interfés sempre aconteceram, especialmente nos setores populares, mas nem sempre devidamente visibilizados. Tais experiências estão fundamentadas nas

relações do cotidiano, os entrelaçamentos e negociações de identidade da própria comunidade, as uniões e ajuntamentos para a sobrevivência e resistência. É o diálogo dos leigos, das pessoas de base, que se unem e aprendem umas com as outras a dinâmica da vida e fé. (TOSTES, 2020, p. 42)

Assim, para além das hierarquias religiosas e dos lugares-comuns que circunscrevem o diálogo inter-religioso e que, em boa parte das vezes, mantêm escondidos os diferenciais de poder que ocupam cada sujeito e cada tradição na constelação plural das religiões, “é imperioso para as pessoas de todos os credos trabalharem rumo a um futuro no qual a religião possa ser uma força, não para a destruição, mas para o bem comum” (PUI-LAN, 2015, p. 32).

Uma dimensão teológica de destaque e facilitadora do diálogo interfé é a noção de polidoxia. Ela ganha importância na medida em que, no tocante às aproximações inter-religiosas, evita interpretações e ações bipolares (do tipo ortodoxia versus heterodoxia, ou mesmo verdade versus heresia). A polidoxia é constituída por intermédio da crítica e do desmascaramento do pensamento único e compreendida no contexto de multiplicidade, do “não saber”, típico das experiências apofáticas e da relacionalidade das concepções religiosas de divino ou de sagrado.

A noção de polidoxia visa a ultrapassar as visões dicotômicas que, em geral, inibem a efetivação de um diálogo inter-religioso e cultural autêntico. Por intermédio dela, é possível expor os limites da razão ocidental no que se refere ao respeito ao “outro”. Para se abrirem caminhos à alteridade, seria preciso, então, romper com as pretensões totalitárias ocidentais que, por meio do pensamento ontológico moderno, pensam esgotar o outro no si. Nesse sentido, é necessário superar concepções rígidas acerca das identidades religiosas, que, a partir de prerrogativas exclusivistas de superioridade, inibem o acesso ao reconhecimento de “um outro” que seja diferente do “mesmo” (PUI-LAN, 2015).

Ao demonstrar que a alteridade é uma dimensão e uma realidade constitutiva do ser, compreendido sempre como inter-ser – ou seja, que o eu só é eu por conta de sua inter-ação com o outro –, o diálogo interfé pode contribuir para a superação de todo tipo de violência e para uma cultura ecumênica da solidariedade, da justiça e da paz. O debate sobre a construção de novos imaginários dialógicos ganha força à medida que valorizamos a concepção que “se a religião quiser tornar-se uma força de construção da paz e não causa de intolerância e conflito, nova construção e novas relações com o ‘outro diferente quanto a religião’ devem ser buscadas” (PUI-LAN, 2015, p. 32).

4 Aspectos críticos: desafios ao diálogo inter-religioso

Vários elementos críticos e autocríticos emergem das práticas de diálogo no contexto das avaliações dos movimentos ecumênicos inter-religiosos. Um dos que sobressaem advém das questões de gênero. Ouvir as vozes das mulheres é indispensável, pois “desafortunadamente, em muitos encontros ecumênicos e no Parlamento Mundial de Religiões, a participação das mulheres e suas vozes foram marginalizadas” (PUI-LAN, 2015, p. 33). Assim, uma vez que historicamente o diálogo inter-religioso tem sido predominantemente marcado pela majoritária presença masculina, “o desafio do gênero é o desafio da alteridade, no qual a mulher, no diálogo, pode ser duplamente outra, se ela for mulher de outra crença em uma reunião constituída predominantemente por homens” (PUI-LAN, 2015, p. 35).

Entre as diferentes possibilidades de contribuição das teologias feministas para o debate sobre pluralismo e sobre o diálogo inter-religioso, destaca-se a crítica ao universalismo cristão e às visões cristológicas sexistas, patriarcais, elitistas e racistas. As teólogas feministas têm refletido sobre os problemas sexistas decorrentes da visão religiosa monoteísta e os que emergem das metáforas patriarcais utilizadas na construção da imagem de Deus, incluindo as cristológicas (TOMITA, 2005). Tais perspectivas dogmáticas têm excluído as mulheres das instâncias de decisão e do poder nas esferas religiosas. Além disso, alguns desses dogmas também têm marginalizado homens e mulheres de diferentes raças e culturas, em nome de um Cristo branco, de traços europeus (GEBARA, 2017).

Os esforços das visões teológicas feministas em buscarem imagens femininas de Deus são de muita importância para os diálogos inter-religiosos. Elas estão centradas nas expressões da fé em uma divindade não androcêntrica, que seja fonte de iluminação crítica das formas de patriarcalismos e sexismos. O foco é a vivência espontânea da fé que promova a cura e que valorize o corpo, a sexualidade, o cuidado e a proteção e a responsabilidade ética com a criação e a natureza (DEIFELT, 2006).

Em decorrência da percepção das limitações e insuficiências dos esforços da “boa vontade”, ou seja, ciente de que não basta “dar a voz” à outra pessoa para que o diálogo se estabeleça de forma justa e equitativa, se ressaltam dois conceitos fundamentais: os diferenciais de poder e a noção de apropriação.

No tocante à noção de diferença de poder, “mulheres de credos diferentes não entram no diálogo em pé de igualdade” (PUI-LAN, 2015, p. 38). Não basta nos colocarmos todos em posição de diálogo – a exemplo de mulheres cristãs e muçulmanas em torno de uma mesa – se não levarmos em conta o lugar de onde cada pessoa ou grupo fala e age e as diferenças de poder a que estão circunscritas. O que pode ocorrer é que, em vez de privilegiar a alteridade, se reforcem as subalternidades e a dominação.

Para evitar esse tipo de equívoco, desde a gênese dos processos de diálogo é fundamental que sejam estabelecidas as linhas que os orientarão, explicitando e questionando os diferenciais de poder em questão. Tal prática visa à descentralização e relativização do poder, de tal modo que a outra pessoa ou grupo não seja “constantemente forçada a comparar-se com a norma da maioria ou com a norma dominante” (PUI-LAN, 2015, p. 50). Além disso, “no diálogo interfé, os participantes que pertencem à tradição dominante precisam instruir-se sobre as outras tradições religiosas a fim de conceder a todos as mesmas condições” (PUI-LAN, 2015, p. 51).

A segunda contribuição crítica se refere à noção de apropriação. A esse respeito, “a mera inclusão de algumas vozes simbólicas, sem reconsiderar fundamentalmente as pressuposições e os esquemas epistemológicos atuantes não é verdadeira diversidade” (PUI-LAN, 2015, p. 52-53). Como exemplo, poderíamos citar as apropriações indevidas realizadas pelas várias expressões espirituais da Nova Era e também de grupos cristãos para com as tradições nativas.

Hoje em dia, a apropriação indébita da espiritualidade indígena dá continuidade às mesmas práticas genocidas de seus ancestrais. Os rituais indígenas são tirados do contexto e empacotados novamente para consumo e lucro dos brancos, sem respeitar a integridade deles e seu uso nas comunidades indígenas. (PUI-LAN, 2015, p. 57)

Em atividades e reuniões inter-religiosas, é comum, na ausência de representantes indígenas, a realização de momentos litúrgicos com canções, músicas e apresentações, como uma espécie de lampejos da cultura indígena. Ou seja, apropria-se da cultura indígena mesmo que não se demonstrem comprometimento efetivo e responsabilidade dialógica pelos povos nativos. Isso, em geral, ocorre por três razões básicas: a) a negação: a partir da ideia de que os povos indígenas estão em extinção e que, por isso, seja necessário proteger os elementos culturais do passado para que sejam preservados na memória; b) a síndrome de querer ser índio: comum em culturas brancas que fetichizam as culturas nativas e o nativo por intermédio de imaginações românticas e utópicas – a exemplo do ‘bom selvagem”; e c) a culpa em busca de redenção, que leva pessoas brancas, cientes dos estragos realizados à cultura indígena, a se interessarem pelas culturas nativas a fim de que tenham os seus débitos emocionais sanados.

As realidades das culturas religiosas afro-indígenas que marcam o contexto latino-americano, mas que também estão presentes em outros continentes, possibilitam uma revisão da fé e das teologias em diferentes aspectos se consideradas com uma postura de diálogo crítico e interpelador. Isso trará consequências para as formas de cooperação e práticas de diálogo inter-religioso.

Entre esses aspectos, é importante destacar ao menos dois deles: o primeiro é o alargamento da visão sobre a realidade, sobre o ser humano e sobre o cosmo, baseado na primazia da vivência comunitária em detrimento das lógicas doutrinais e formais, e também na maior ênfase na dimensão do despojamento e da autodoação em contraposição às formas cristológicas sacrificialistas. Estão descartadas dessas visões as muitas idealizações das referidas culturas feitas por diferentes círculos nos campos da antropologia, da teologia e das ciências da religião. No entanto, não se pode negar os traços de inclusão e de respeito ao humano e à natureza presentes na vivência de nações indígenas e de povos de cultura negra (LIMA, 2006). O segundo aspecto é que as dimensões de subjetividade e as experiências lúdicas e rituais dos grupos religiosos afro-indígenas, uma vez vistas como interpelação à teologia cristã, redimensionariam o caráter fortemente racional nelas presente e gerariam novas sínteses entre fé e ações práticas.

No caso de uma teologia cristã do pluralismo religioso, estruturada nas bases do diálogo e da cooperação inter-religiosa, ela será dialogante ou não será teologia do pluralismo religioso; sem diálogo aberto, ela será uma falsa proposta. O diálogo inter-religioso se encontrará prejudicado e até mesmo impossibilitado se for estabelecido com base em um relacionamento assimétrico entre as distintas expressões religiosas envolvidas. Não há possibilidade de diálogo enquanto a teologia cristã for considerada “a teologia” e a teologia das heranças africanas continuar sendo considerada “mera crendice” (SILVA, 2003, p. 99).

Boa parte das iniciativas de diálogo ainda mantém parâmetros de reflexão centrados no universo conceitual cristão e não refletem profunda e radicalmente uma atitude dialógica a partir “de dentro” das referidas culturas. Ou seja, a voz dos sábios e sábias das culturas afro-indígenas ainda não se constitui como expressão nítida de vozes que interpelem e dialoguem com os grupos teológicos cristãos. Essa crítica levaria a se ressaltar a necessidade de mudança de lugar teológico a partir das realidades das culturas religiosas afro-indígenas e suas cosmovisões. Trata-se de se valorizar a contribuição de visões teológicas e de espiritualidades forjadas nas experiências inter-religiosas que, por considerarem as culturas indígenas e negras, desfrutam da tensão criativa entre ritualidade e racionalidade e articulam as subjetividades do mundo afro-indígena e a racionalidade cristã ocidental, com vistas a uma teologia entre fés.

Com essa visão, torna-se possível interpretar mais adequadamente as formas religiosas tradicionais e populares nos diversos países, suas diversidades internas, como uma tentativa de conferir a elas o valor e o peso que possuem. Tal perspectiva abre novas possibilidades para os diálogos inter-religiosos, especialmente porque questionaria e redesenharia os imaginários que o pluralismo religioso cria com a máxima “somos todos iguais”. Nesse sentido, da mesma forma que a reunião de grupos religiosos para diálogo e participação social conjunta pode gerar formas veladas de dominação ao ocultar diferenciais de poder entre eles, a compreensão moderna reducionista de religião, não devidamente aplicável aos grupos tradicionais, pode ser outra forma de artificialidade que afeta os processos de diálogo inter-religioso. Assim, a própria noção de “religioso” precisa ser repensada.

Outro aspecto que tem desafiado o debate teológico sobre o pluralismo e sobre as práticas de diálogo inter-religioso são as noções de universalismo, já referidas, que, em geral, são essencialistas e idealistas. Em geral, elas se constituem sem a devida atenção às diferenças e às expressões do cotidiano e favorecem assim formas veladas de dominação cristã, seja no nível prático, seja no simbólico.

Por fim, outro desafio para o diálogo inter-religioso reside nas reconfigurações do quadro religioso e cultural latino-americano. Nesse quadro, entre tantos outros fatores, se encontra a valorização do sincretismo, outrora visto negativamente e como empecilho para o diálogo. Ele se torna ao mesmo tempo um elemento crítico às expressões formais e institucionalizadas de diálogo e um fator de aproximação entre os grupos. Não se trata necessariamente de uma visão heterodoxa; ao contrário, “as matrizes bíblico-simbólicas do Cristianismo são intrinsecamente abertas a novas releituras e reconceitualizações” (SOARES, 2003, p. 252). Isso deve acontecer em diálogo e em abertura para um processo de reformulação dogmática, que podem muito bem serem feitos entre e em conjunto com diferentes religiões.

Uma teologia do sincretismo – entendida como possibilidade de se pensar a fé dentro de um diálogo inter e intrarreligioso – possui ao menos dois aspectos como pressuposições básicas: (i) expressão religiosa alguma vive em estado puro ou está isenta de ambiguidades, portanto pode e deve estar aberta às outras em um processo de aprendizado; e (ii) o sincretismo, ao contrário do sentido negativo atribuído ao termo na maior parte das vezes, pode ser compreendido como ressemantização das experiências religiosas a partir das relações aprendidas no mundo do outro. É o que dará base para se indicar uma teologia interfé, que aprende das realidades religiosas de sincretismo que “não há etapas rumo a esta ou aquela religião total, pois nenhuma fé ou espiritualidade esgota o Sentido da Vida” (SOARES, 2008, p. 213). As vivências espirituais sincréticas são sadias provocações aos conceitos enrijecidos pela lógica dogmática e devem ser vistas como fonte de novidade na busca de formas novas e mais autênticas de compreensão da fé tradicional.

A despeito dos séculos de abusos engendrados pelo colonialismo – e não obstante a violência dos fundamentalismos religiosos vigentes no passado e nos dias atuais –, as religiões podem contribuir efetivamente para um futuro de paz e de justiça da sociedade global.

É importante considerar o fato de que, historicamente, as religiões estão se abrindo a uma postura dialogal. Esse processo está marcado por forças ambivalentes e ambíguas, haja vista que se, por um lado, podemos visualizar as mais diversas forças fundamentalistas que eclodem no seio da sociedade, por outro, encontramos simultaneamente esforços ecumênicos de diálogo, de cooperação e de construção da paz de tantos organismos, fóruns, associações e grupos ao redor do mundo.

Cláudio Ribeiro. UFJF. Texto original português. Recebido: 20/09/2021. Aprovado: 20/11/2021. Publicado: 30/12/2021.

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Leitura canônica da Bíblia

Sumário

Introdução

1 A expressão leitura canônica

2 O método histórico-crítico

3 Breve panorâmica histórica da leitura canônica

4 Verbum Domini, Bento XVI e a leitura canônica

5 A perspectiva canônica e o diálogo ecumênico

6 Questionamentos e críticas

Conclusão

Introdução

A leitura canônica busca interpretar a Sagrada Escritura qual ponte entre a exegese bíblica e o cânon dos livros inspirados, tendo como pano de fundo não somente o texto em seu contexto imediato, mas no contexto amplo em que está inserido como, por exemplo, profetas ou escritos paulinos ou, ainda, em seu contexto canônico de Aliança, Antigo ou Novo Testamento e, por fim, levando em conta toda a Bíblia, como obra do Espírito Santo. Ela busca interpretar um determinado texto bíblico à luz do Cânon das Escrituras, isto é, da Bíblia recebida como norma de fé pela comunidade de fiéis. A partir disso, procura situar cada texto no interior do único desígnio salvífico de Deus, objetivando chegar a uma atualização da Escritura para os dias atuais (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 1993, p. 1326). Sob esse prisma, está em consonância com o princípio do ensinamento agostiniano, segundo o qual “uma só é a palavra de Deus que se estende por todas as Escrituras; […] um só Verbo, que sendo no princípio Deus junto de Deus, lá não consta de sílabas, porque está fora do tempo” (SANTO AGOSTINHO, 1998, p. 89).

Assim, a leitura canônica surge, de alguma forma, como um retorno às fontes patrísticas de hermenêutica bíblica, atenta à unidade da Sagrada Escritura (ELOY E SILVA, 2010, p. 25), consciente de que o livro das Escrituras é recebido das mãos da Igreja e interpretado no seio da fé eclesial (GARGANO, 2000, p. 191).

Embora alguns autores a ela se refiram como “exegese canônica”, não adotaremos essa expressão aqui. Por se tratar mais especificamente de uma aproximação ou uma abordagem ao texto e, portanto, enquadrar-se no horizonte mais hermenêutico que exegético, preferimos utilizar a expressão “leitura canônica”.

1 A expressão “leitura canônica”

O termo “cânon” pode significar tanto “norma, ideal” quanto “lista, catálogo ou medida fixa”. Aparece como sinônimo de “regra da fé cristã” em Clemente de Alexandria, em sua primeira carta (1Clem 7,2), na obra Stromata (4,15,98; 6,15,124) e em Ireneu de Lion, em sua obra Adversus Haereses (III,2,1; 11,1). Para indicar os livros bíblicos, o termo aparece pela primeira vez em Atanásio, que chama de livros apócrifos os que ele não considera como pertencentes ao “cânon bíblico”.

A expressão “leitura canônica”, adotada no título deste verbete, é uma tentativa de escolher uma palavra neutra, por entender que toda aproximação ao texto é um ato de leitura, pois a primeira dificuldade, quando se trata de aproximação metodológica de tipo canônico ao texto bíblico, é a falta de consenso entre os estudiosos do assunto (ELOY E SILVA, 2014, p. 111).

Enquanto J. Sanders usa a expressão “criticismo canônico” (canonical criticism), B. Childs prefere a expressão “abordagem canônica” (canonical approach). Ambos convergem, no entanto, na convicção de que o método histórico-crítico revelou-se inapropriado para interpretar o texto bíblico no que diz respeito à compreensão de seu horizonte teológico e de sua atualização ao leitor que, em todas as épocas, busca no texto bíblico a inspiração e a compreensão para sua atuação diante de questões da existência. Alguns autores optam por usar “criticismo canônico” quando falam da proposta de Childs, mesmo sabendo que o autor desaprovava tal expressão (PARSONS, 1991, p. 255 et seq.).

A ideia de um cânon bíblico inclui dois ingredientes integrais, conforme a ênfase que se dá:  a forma literária final da Bíblia (norma normata) ou a função religiosa em desenvolvimento (norma normans).

Childs, com sua abordagem canônica, fez uma opção hermenêutica pela Bíblia em sua forma literária final (norma normata), com ênfase na compreensão de que o texto é um testemunho normativo de Jesus Cristo. Nesse sentido, o papel da Sagrada Escritura seria o de “regra de fé” que testemunha Jesus Cristo, em cuja encarnação encontra-se a norma para a regra de fé da comunidade. Segundo ele, a abordagem canônica é pouco interessada na reconstrução histórica ou linguística das intenções dos estágios pré-canônicos da formação de uma determinada composição ou coleção textual e, por isso, não possui interesse de tipo diacrônico. Justamente por tal motivo, mesmo cônscio de que há um processo canônico, i.e., um processo dinâmico de formação das Escrituras Sagradas, Childs dedica-se particularmente à dimensão sincrônica do período em que as Escrituras cristãs chegaram à sua forma literária final. A forma literária final selecionada, moldada e definida pela comunidade cristã como escritura normativa, assim como tornou-se referência para a mesma comunidade no passado, pode exercer o mesmo papel no presente.

2 O método histórico-crítico

Como dissemos acima, a leitura canônica surge como uma tentativa de complementar os resultados obtidos pelo método histórico-crítico. Enquanto perspectiva eminentemente diacrônica, o método histórico-crítico entende o texto bíblico como coleção de textos antigos que, postos em conjunto, mesmo sendo unidades de origem distintas, formam o corpo da Escritura, fruto de um complexo processo. É chamado de histórico porque se baseia nas fontes históricas dos textos, entendendo-os como uma realidade antiga, embora não estagnada, por terem passado por estágios de evolução histórica. É crítico por ser uma reação crítica à interpretação que o antecedeu, particularmente, a de tipo alegórico, predominante em época medieval, e por arvorar uma perspectiva de leitura de cunho unicamente científico.

A partir do que se pode sintetizar como resultado da exegese desenvolvida no século XIX e primeira metade do século XX, o método histórico-crítico leva em conta os seguintes passos ao estudar um texto antigo: a) crítica textual; b) análise linguística (delimitação, fonética, morfologia, sintaxe, semântica); c) crítica das fontes; d) crítica dos gêneros literários; e) crítica das tradições; f) crítica histórica da redação (ZIMMERMANN, 1982, p. 9-15).

A crítica textual parte do pressuposto de que nenhum texto bíblico preservou o texto original. Fundamentada nos vários manuscritos, seguindo critérios científicos, a crítica textual tenta aproximar-se o quanto possível do texto considerado original.

Após estabelecer o texto a ser estudado, em base aos critérios da crítica textual, o exegeta examina o texto partindo de seu elemento unitário que é o léxico, revisitando-o em colóquio com as unidades sintáticas simples e complexas em busca de identificar fragmentos ou junções que possibilitem acesso à origem histórica do elemento constituinte do texto. Realizando tais passos, por exemplo, é que Hermann Gunkel cunhou a expressão Sitz im Leben e Julius Wellhausen reconstruiu as camadas do Pentateuco.

A crítica das fontes busca separar, em um texto, as fontes antigas consideradas originárias daquelas entendidas como redacionais. Um exemplo desse trabalho, no Novo Testamento, é a Questão Sinóptica e a elaboração na hipótese da Fonte dos logia.

A crítica dos gêneros literários, mesclada por alguns autores com a crítica da forma, busca identificar o tipo de texto em análise, associando-o a categorias que possuem uma forma literária semelhante. A essa etapa pertence a identificação de um texto como parábola, oração, milagre, exorcismo etc.

A crítica das tradições situa os textos em correntes, buscando determinar e descrever cada etapa de uma tradição em seu processo de desenvolvimento.

A crítica da redação parte do pressuposto de que um texto não unitário tenha passado por um processo de crescimento. Não somente indica a presença de vários extratos no texto, mas busca identificar a relação entre eles.

Nota-se que o método histórico-crítico configura-se como um

método analítico que se aproxima sistematicamente da Sagrada Escritura como se aproximaria de qualquer outro texto antigo. Trata-se, também, de um método exigente e que requer grande competência filológica e histórica, numa análise em diálogo constante com outras línguas antigas e até mesmo com a arqueologia. (ELOY E SILVA, 2010, p. 18)

Este método recebeu oposição da parte de alguns estudiosos por se ocupar, demasiadamente com o aspecto passado do texto, tornando-se por demais filológico-arqueológico sem relação com o presente da comunidade de fé que se aproxima do texto bíblico para dele nutrir-se no hoje de sua história.

3 Breve Panorâmica histórica da leitura canônica

Em 1958, Childs publica o artigo Jonah: A Study in Old Testament Hermeneutics no qual ele reconhece o valor do método histórico-crítico, mas reconhece que se trata de um método inadequado para a interpretação do testemunho bíblico teológico do livro de Jonas, por não se aproximar ao texto com “os olhos da fé” (XUN, 2010, p. 20). Em 1964, publicou outro artigo com o título Interpretation in Faith: The Theological Responsibility of an OT Commentary no qual se encontram as principais ideias que haveriam de ser aprofundadas posteriormente, tais como as fragilidades do método histórico-crítico para a compreensão do Antigo Testamento e a necessidade de uma leitura do Novo Testamento à luz do Antigo. Entre elas, podemos elencar: a análise teológica de um texto bíblico deve pressupor a fé. Critica, assim, o estudo racional do texto bíblico como ato primeiro para depois aplicar a ele a dimensão da fé (CHILDS, 1964, p. 438); defende que não é objetivo da exegese identificar o autor dos textos ou sua data e local de formação, mas identificar a intenção do autor divino que inspirou os textos (CHILDS, 1964, p. 441-449). A compreensão de que todos os livros da bíblia possuem um autor divino é que lhes dá unidade. Historicamente esses livros formam um todo para a comunidade de fé, pois assim ela os assume. Tal unidade não contradiz o fato de que cada livro possui sua singularidade e sua especificidade.

No entanto, em 1970, com a publicação da obra Biblical Theology in Crisis, Childs propõe unir a Bíblia à teologia como caminho para o futuro da teologia bíblica. Nessa obra, ele cunhou o termo “abordagem canônica” (canonical approach) e pôs o acento na forma final do texto, aceito por ele como autoridade para a comunidade de fé, o que se tornou o elemento mais emblemático de sua pesquisa acerca do cânon. Childs entende que a relação entre o que ele chama de contexto histórico e contexto canônico é semelhante à relação entre a parte (a análise) e o todo (a síntese). Os métodos histórico-críticos são capazes da análise, mas não o são da síntese, tarefa que caberia à “abordagem canônica”.

Childs baseia sua proposta metodológica no conceito de cânon bíblico, elemento considerado fundamental para a compreensão da unidade da bíblia e, portanto, para a elaboração de uma possível teologia bíblica. Diante da autoridade teológica do cânon, cabe ao trabalho exegético encontrar a intenção canônica presente nas páginas da Sagrada Escritura, enquanto “cânon cristão”, incluindo o Antigo e o Novo Testamentos. Nessa perspectiva, ele propõe dispor os dois testamentos em diálogo e como testemunha unificada na interpretação de uma passagem específica em consonância com o todo da revelação expressa na totalidade da Escritura. Em outras palavras, além de o trabalho exegético relacionar um texto bíblico à sua situação histórica, ele deveria, ainda, explorar a relação entre o texto individual e seu contexto canônico completo. Assim, deve-se levar em conta a realidade teológica do cânon, a regula fidei, a exegese pré-crítica (a Tradição) e a interpretação judaica do texto (CHILDS, 1970, p. 99-107).

Childs defende que, diversamente de outras tentativas que buscaram construir uma teologia bíblica baseada em temas transversais supostamente presentes no corpus biblicum como, por exemplo, o conceito “Aliança”, defendido por Walter Eichrodt; o conceito bíblico de “Tempo”, defendido por Oscar Cullman ou, ainda, o conceito “História da Salvação”, defendido por Gerhard von Rad, é preciso basear-se não em “temas”, mas na aceitação do cânon como um princípio hermenêutico formal. Para tal, diversamente dos métodos histórico-críticos que se baseiam na individuação dos estágios precedentes que compuseram o desenvolvimento textual da Escritura, Childs propõe estudar o texto a partir da forma final (ou canônica) em que se encontra (CHILDS, 1979, p. 73). Sob esse aspecto, o professor de Yale considera o termo “canônico”, por um lado, como sinônimo de forma final do texto e, por outro, como sinônimo de “forma normativa para os cristãos”.

Em 1974,  Childs publicou um comentário teológico ao livro do Êxodo (The Book of Exodus: A Critical, Theological Commentary), em cuja obra põe em prática elementos de sua proposta de abordagem canônica a um texto bíblico. Para cada parte do texto, ele baseia o comentário em seis seções: 1. Tradução, notas textuais e filológicas; 2. História das Fontes, das formas e das tradições; 3. Contexto do Antigo Testamento; 4. Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento; 5. História da exegese; 6. Reflexão teológica. Particularmente, a seção “Contexto do Antigo Testamento” é vista por Childs como elemento nuclear da obra (CHILDS, 1974, p. XIV).

Em 1979, Childs publica Introduction to The Old Testament as Scripture e, na década sucessiva, dando prosseguimento à sua pesquisa, em 1984, ele publica The New Testament as Canon: An Introduction. Nessas duas introduções, ele apresenta leituras canônicas dos livros individuais da Bíblia, buscando apontar as questões e os problemas segundo a perspectiva diacrônica dos métodos histórico-críticos para, depois, tratar da forma final de cada livro considerado em seus aspectos literário e teológico como um todo.

Em 1986, ele publica Old Testament in a Canonical Context, obra baseada na leitura intertextual das três partes da Bíblia Hebraica, tendo como pano de fundo o princípio do todo veterotestamentário como norma, revelação.

Foi, no entanto, em 1992, com a publicação de Biblical Theology of the Old and New Testaments: Theological Reflection on the Christian Bible que Childs deu um passo significativo. Nessa obra, indica a problemática de a Bíblia Cristã possuir várias formas canônicas e o fato de a Igreja primitiva, ao usar a Septuaginta, ter uma concepção canônica diversa da Bíblia Hebraica não somente na forma como normatiza a lista dos livros, mas também na forma como os interpreta ao usá-los no Novo Testamento. Propõe que, para evitar que a teologia bíblica seja entendida somente como teologia do Novo Testamento, é preciso entender que também o Antigo Testamento é testemunha de Jesus Cristo, não no sentido de uma indicação explícita, mas no sentido de não poder ser compreendido sem o Novo Testamento, no qual a pessoa de Cristo ocupa o foco central. Significativo, ainda, nessa obra, seu último capítulo, no qual o autor demonstra como é possível partir da exegese bíblica para chegar à teologia.

No início do novo milênio, Childs dedica duas obras ao profeta Isaías: Isaiah, A Commentary (2001) e The Struggle to Understand Isaiah as Christian Scripture (2004). Publica, ainda, Biblical Theology: A Proposal (2002) e deixa como última obra, publicada um ano após sua morte: The Church’s Guide for Reading Paul: The Canonical Shaping of the Pauline Corpus (2008). Childs falece, aos 84 anos, em 23 de junho de 2007.

Entre os pontos positivos da abordagem canônica, os autores reconhecem que se trata de uma contribuição significativa para corrigir as lacunas do método histórico-crítico que fragmenta excessivamente o texto ao analisá-lo, para superar o hiato entre exegese e atualização pastoral da Bíblia na vida da Igreja e para restituir o valor teológico aos estudos do texto bíblico.

Paralelamente a Childs, outro professor norte americano, da escola teológica de Claremont, Califórnia, James A. Sanders, ao estudar manuscritos da gruta 11, em suas obras The Psalms Scroll of Qumrân Cave 11 (11QPsa), de 1965, e Cave 11 Surprises and the Question of Canon, de 1969, nota a diferença entre salmos em Qumran não somente no quesito da ordem, que diverge do texto massorético, mas também identifica vários salmos presentes nos Manuscritos do Mar Morto e não constantes na Bíblia Hebraica. Conclui que o Saltério encontrado em Qumran possui tanto um caráter estável por conter um texto protomassorético, quanto um caráter instável por conter uma versão do Saltério não encontrada na Bíblia Hebraica.

Ele publica, no ano de 1972, sua obra Torah and Canon. Nessa obra, Sanders cunha a expressão canon criticism, expressão alterada por ele em 1984 para canonical criticism na obra Canon and Community: A Guide to Canonical Criticism com o objetivo de ler um texto a partir do cânon, mas não do cânon em sua forma final, como defendia Childs, mas como processo por meio do qual a comunidade chegou à forma considerada por ela como canonicamente significativa. Enquanto Childs parte do “cânon protestante”, levando em consideração ambos os testamentos, tendo como base o texto massorético para o Antigo Testamento, Sanders leva em conta outros “cânones” como, por exemplo, além do texto massorético que representa a Tanak judaica, os vários outros “cânones” presentes no cristianismo, tais como o protestante, o católico, o ortodoxo oriental etc.

Sanders interessa-se, assim, pela dimensão hermenêutica da composição inicial do texto canônico, bem como de seu desenvolvimento. Ele tira a atenção da Bíblia como norma normata, transferindo-a para compreensão de norma normans, ou seja, muda o foco da forma literária para a sua função eclesial. Dessa forma, o criticismo canônico, diversamente da abordagem canônica, concentra-se em como um texto bíblico torna-se canônico no ato de interpretação, isto é, como um texto torna-se meio para ir ao encontro da vida dos fiéis, confortando-os, impulsionando-os a alguma decisão ou até incomodando-os, dependendo da situação vital da comunidade eclesial.

4 Verbum Domini, Bento XVI e a leitura canônica

A temática da leitura canônica da Escritura foi retomada durante um evento significativo da Igreja, quando no dia 14 de outubro de 2008, durante a 14ª congregação geral da XII Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, Bento XVI tomou a palavra, demonstrando sua preocupação quanto ao tema “unidade entre exegese e teologia”. Em sua fala, recorda a necessidade do recurso ao método histórico-crítico, baseado no fato de que o acontecimento histórico é uma dimensão constitutiva da fé cristã, pois ela não é mitologia, mas história verdadeira. Todavia, essa história possui uma dimensão vinculada à ação divina e para tal necessita de uma abordagem metodológica que a compreenda em sua dimensão pneumatológica. Indica, então, como via de interpretação do texto bíblico, levar em conta a unidade de toda a Escritura, o que ele chama de “exegese canônica” sem se esquecer da Tradição viva de toda a Igreja e da analogia fidei. Conclui recordando que somente quando se observam os dois níveis, o histórico-crítico e o teológico, pode-se falar de uma exegese adequada da Sagrada Escritura. Recorda particularmente que, enquanto o primeiro nível recebeu adequada atenção, não se pode dizer o mesmo do segundo (BENTO XVI, 2008).

A inquietação de Bento XVI já havia sido manifestada quando ele era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, durante a elaboração do documento Bíblia e Cristologia, com as menções ao “cânon da Escritura” como base (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 1984, n. 912) e, na mesma linha, e mais explícita ainda, na segunda parte, em referência a “O testemunho global da Sagrada Escritura sobre Cristo” (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 1984, n. 991).

Posteriormente, quando em 1988, em Nova Iorque, proferiu sua Erasmus Lecture na Igreja Luterana de Saint Peter, ele se referiu ao método histórico-crítico como dissecador do sentido do texto bíblico e responsável por realizar uma “autópsia histórica” do texto, expressão antes utilizada por Kästner (RATZINGER, 1996, p. 114).

Pouco foi produzido, nesse campo, após o apelo de Bento XVI. Talvez porque a comunidade acadêmica ainda tenha suas reticências à leitura canônica por tê-la analisado de forma isolada e exclusiva e não em complementaridade com o método-histórico crítico, como proposto pelo pontífice (ELOY E SILVA, 2010, p. 24).

5 A perspectiva canônica e o diálogo ecumênico

Particularmente Childs, com suas publicações, abriu perspectivas significativas para o diálogo ecumênico por meio da abordagem canônica. Sua compreensão da “regra do Cânon” é muito próxima da regula fidei dos Padres da Igreja, como ele próprio reconhece (CHILDS, 1984a, p. 67). Com isso, entende que o cânon possui autoridade teológica para indicar a direção correta para a justa hermenêutica dos textos bíblicos.

Sob a mesma perspectiva, Childs é, ainda, muito próximo do espírito presente no que ensina a Dei Verbum (DV) 21 e 12. DV 21 recorda que a Igreja sempre considerou, junto com a sagrada Tradição, a Sagrada Escritura como regra suprema da própria fé. No entanto, o ponto de contato mais notável na inspiração de Childs em desenvolver uma teologia bíblica a partir do cânon encontra ponto de contato com DV 12.

 O famoso e sempre citado texto do documento conciliar recorda a necessidade de se ler a Sagrada Escritura e interpretá-la com o mesmo espírito com que foi escrita, levando em conta o contexto e a unidade de toda a Escritura, com especial atenção à Tradição viva de toda a Igreja e à analogia da fé.

Os temas da unidade da Sagrada Escritura e da Tradição viva da Igreja descritos na DV são, também, temas desenvolvidos nos escritos de Childs, chamados por ele de unidade da bíblia e contexto da comunidade de fé (CHILDS, 1964, p. 438). Com efeito, ele afirma que Escritura e Tradição devem ser tratadas em conjunto: “Scripture and tradition belong together” (CHILDS, 1978, p. 53). Dirá que, sem a compreensão da Tradição de fé da comunidade, falta o contexto adequado para a realização da exegese que deseja alcançar o sentido teológico do texto. Por isso, defende que o cânon, de um lado, é a base sobre a qual é possível construir a teologia de toda a Escritura e a aceitação da unidade da Bíblia, e por outro, é a chave para a realização da desejada leitura do texto em seu aspecto canônico. Enfim, recorda, ao tratar da unidade da Escritura: ao Antigo Testamento compreende-se em sua relação com o Novo. O Novo, todavia, torna-se incompreensível sem o Antigo (CHILDS, 1992, p. 17).

Embora Childs tenha esses pontos de contato com o pensamento católico expresso na DV, é preciso destacar que sua compreensão de cânon exclui os livros deuterocanônicos e tende a manter o princípio hermenêutico da Sola Scriptura o que é, muitas vezes, visto pelos estudiosos como falta de coerência no interior de sua abordagem metodológica (SANECKI, 2004, p. 368-380). Isso, no entanto, não faz com que aluda, por exemplo, aos deuterocanônicos, como o faz com os livros de Baruc e de Sirácida (CHILDS, 1992, p. 743), ou expresse o ensejo de levar em conta o que chama de larger canon ao se referir à inclusão dos deuterocanônicos (CHILDS, 1979, p. 666).

Ele mesmo dirá que a insistência da Igreja Católica no papel decisivo da Tradição na formação da Bíblia Cristã foi um correto reconhecimento do papel do uso da Escritura pela comunidade tanto na proclamação da Palavra quanto na celebração litúrgica. Dessa forma, por meio da liturgia, a Igreja Católica recebeu a mensagem bíblica, valorizou-a e a transmitiu.

A regra de fé da Igreja, mais tarde expressa em credos, não buscou impor uma tradição eclesiástica estranha sobre as Escrituras, mas buscou preservar a unidade entre Palavra e Tradição como o Espírito continuamente avivou a verdade do evangelho a partir do qual a Igreja viveu. (CHILDS, 1992, p. 66-67. A tradução é  nossa.)

E concluirá que parte da tarefa de uma teologia bíblica, cuja base é o horizonte canônico, é a de buscar conjugar os polos dialéticos, historicamente representados pelo catolicismo e pelo protestantismo (CHILDS, 1992, p. 67).

6 Questionamentos e críticas

Dentre as muitas dificuldades encontradas por aqueles que estudaram a leitura canônica está a de pensar que somente sob a perspectiva suscitada por Childs seja possível ler a Bíblia enquanto Sagrada Escritura em seu aspecto teológico. Entre seus opositores fulgura o posicionamento de que ele buscou uma simplificação e uma harmonização artificial da Escritura, escolheu o texto massorético e a Bíblia Hebraica como o cânon mais adequado para se fazer exegese cristã do Antigo Testamento, não se ateve suficientemente à dimensão histórica da revelação, não foi claro e preciso em apresentar de forma consequente sua proposta metodológica.

Kügler chega a chamar a abordagem canônica de “programa neoconservador” com tendências em incorporar correntes reacionárias à exegese bíblica (KÜGLER, 2008, p. 38), o que pode levar à “desistorização da mensagem bíblica e cristã” (TREBOLLE BARRERA, 1996, p. 687), já que o exegeta não precisa ler o texto em sua dimensão histórica, mas somente na globalidade do cânon.

Por outro lado, há o risco de que a leitura canônica não somente proclame, na linha de Roland Barthes, a morte do autor, mas também a morte do texto. Tal perigo surge quando a leitura canônica toma como modelo a alegoria usada em escritos patrísticos, uma abordagem de atualização do texto, mas que pode pôr em risco a autoridade de seu conteúdo (KÜGLER, 2008, p. 39), particularmente em diálogo com a situação cultural, social, econômica e histórica em que o texto foi produzido.

Além disso, a leitura canônica parece não se diferenciar de uma teologia bíblica sincrônica e temática, cujo escopo seja o de estabelecer grandes temas da Sagrada Escritura e suas relações, por exemplo, com o Novo Testamento (SIMIAN-YOFRE, 2010, p. 276). Consequentemente, tal leitura corre o risco de estar inspirada mais por motivos doutrinais e pastorais que por motivos propriamente exegéticos, ignorando tensões entre perícopes e livros, levando em conta uma tese estabelecida a partir não do texto bíblico, mas de fora dele (SIMIAN-YOFRE, 2010, p. 277), entrando, assim, não mais em uma perspectiva exegética, mas “eisegética” (KÜGLER, 2008, p.40).

Luís Henrique Eloy e Silva. PUC Minas/FAJE. Texto original em português. Enviado: 20/07/2021. Aprovado: 25/09/2021. Publicado: 29/12/2021.

Referências

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Heresias no período pré-niceno

Sumário

1 Definição conceitual

2 Caminhos irreconciliáveis

3 Nós, os nossos e eles, os hereges

4 Desnudar e demonstrar a heresia

5 Heresia como questão de Estado

1 Definição conceitual

Heresia deriva de hairesis [αἵρεσις], vocábulo grego procedente do verbo hairéo [αἱρέω], que tem três principais classes de significado: a primeira indica a ação de tomar, agarrar, segurar; a segunda, de vencer e ganhar; e a terceira, de condenar e receber uma condenação. Hairesis [αἵρεσις] entrou para o léxico latino, como haeresis e, tal como no grego, emprega-se para nomear a operação de “selecionar” e “escolher” alguma coisa, sobretudo no âmbito do conhecimento, e para designar os princípios ou pressupostos teóricos e morais de uma dada escola de pensamento, seita ou partido religioso. Nas Antiguidades Judaicas, de Flávio Josefo (séc. I), podemos ler:

Os judeus contavam desde a mais remota antiguidade com três haireseis [partido, escola ou seita]: a dos essênios, a dos saduceus e, em terceiro lugar, a dos chamados fariseus. […] os fariseus levam uma vida frugal, sem a menor concessão à delicadeza, e seguem fielmente aqueles princípios que a razão lhes sugere e determina como bons, posto que consideram que a observância dos princípios que a razão lhes quer exibir é algo pelo qual vale a pena lutar. (a tradução de Vara, em JOSEFO, 1997, p. 1080, foi cotejada e adaptada a partir da tradução de Whiston, em JOSEPHUS, 1865, p. 58)

No século seguinte, Sexto Empírico, nas Hipotiposes Pirrônicas, vai na mesma direção:

Pois se entendemos que pertencer a uma escola [hairesis] significa aderir a um conjunto de dogmas que dependem uns dos outros bem como do que aparece, e se dizemos que “dogma” é assentimento a algo não evidente, então, consideramos que o cético não pertence a nenhuma escola. Mas, se entendemos por “escola” um procedimento que, de acordo com o que aparece, segue uma certa linha argumentativa mostrando como é possível viver corretamente […], neste caso dizemos que o cético pertence a uma escola, uma vez que seguimos de modo coerente, de acordo com o que aparece, uma linha de raciocínio que nos indica uma forma de vida em conformidade com as leis e os costumes tradicionais e com nossos próprios sentimentos. (EMPÍRICO, 1997, p. 118)

Seja nas Antiguidades ou nas Hipotiposes, seita, partido ou escola apresentam-se como modos de organização comunitária, estilo de vida, conjunto doutrinário, métodos de raciocínio e pressupostos compartilhados por adeptos e/ou discípulos e, dessa forma, nada têm de negativo ou de pejorativo. Todavia, essa compreensão começaria a mudar quando os primeiros cristãos, desafiados a superar todo tipo de diferença social e a construir comunidades missionárias igualitárias, colocaram sob suspeita qualquer atitude ou raciocínio que pudesse gerar divergência ou particularismo, o que foi decisivo para que a heresia assumisse aspectos muito negativos e, como tal, fosse encarada com temor e precaução.

Um primeiro passo nessa direção encontra-se em 1Cor 11,17-19:

Já que estou dando recomendações, não vos posso louvar; pois vos reunis não para o melhor, mas para o pior. Primeiro, ouço dizer que, quando vos reunis como igreja, têm surgido dissensões (σχίσματα/scismata) entre vós. E, em parte, acredito. É necessário que haja até divisões (αἱρέσεις/ haireseis) entre vós, para que se tornem conhecidos os que, dentre vós, são comprovados!

Como tantas outras igrejas daquela época, a assembleia de Corinto congregava ricos e pobres, escravos e livres, homens e mulheres, uma atitude que chamava muito a atenção dos observadores pagãos e, por certo, trazia desafios adicionais para a convivência comunitária, como o trecho citado denuncia. As congregações cristãs, de fato, procuravam relativizar as diferenças sociais e econômicas em vista da concórdia e da fraternidade espiritual, oriunda do batismo, o que não significa que fossem sempre bem-sucedidas. Sem negar que os ricos cristãos pudessem continuar a viver como ricos, Paulo, por outro lado, não admitia que eles aproveitassem a celebração litúrgica para “menosprezar a igreja, envergonhando os pobres” (1Cor 11,22). Uma coisa era a distinção social, tolerada dentro de certos limites, bem outra era a dissensão que a primeira podia causar.

É nesse sentido que o apóstolo concebe a difícil convivência entre ricos e pobres como uma boa oportunidade para a comunidade testar a qualidade de sua congregação: os que soubessem renunciar aos sinais exteriores de superioridade social, em prol de uma assembleia coesa e inclusiva, estes tais seriam considerados comprovados; os que não conseguissem agir assim, reprovados. Apesar dessa concessão, as divisões eclesiais (haireseis), que criavam o contexto para as dissensões e dissidências, estavam longe de serem vistas com aquela naturalidade com que Flávio Josefo falava dos partidos dentro do judaísmo. A unidade seguia como um valor inegociável, expressão concreta da comunhão realizada na “ceia do Senhor”, que celebrava o memorial da entrega de Cristo por todas as pessoas, indistintamente. Portanto, se Paulo parece condescender com a divisão, é em vista de uma maior unidade.

Porém, a unidade tinha um custo. Se as divisões e dissensões eram um teste de qualidade, o que aconteceria com aqueles que viessem a reprovar? Sob a forma do anátema, a comunidade passou a usar o recurso à exclusão como um dispositivo regulador da própria identidade de grupo, transformando a heresia num veredito condenatório pronunciado por aqueles que se sentiam comprovados e autênticos contra aqueles que eram vistos como falsos irmãos. Mais uma vez, isso era o oposto do que ocorria no judaísmo ou mesmo nas escolas filosóficas helênicas, em que a delimitação dos conjuntos doutrinários era feita livremente pelos próprios partidos ou escolas, e era, a partir disso, que os partidários estabeleciam objetivamente as características de sua agremiação. Dentro do movimento cristão, a acepção de heresia como escola é muito rara e, quando aparece, os autores que a utilizam insistem em não reconhecer a legitimidade de quem pensava diferente; disso resulta que a heresia, entre os cristãos, é definida por aqueles que a condenam, não por seus adeptos. Estes, quando indagados, respondem que hereges são os que lhes acusam.

Vejamos alguns exemplos. O autor da Segunda Carta de Pedro desabona e avilta aqueles cristãos a quem chama de “falsos mestres”, uma provável referência aos pregadores gnósticos, “os quais introduzem sorrateiramente heresias perniciosas, chegando até a renegar o Soberano que os resgatou” (2Pd 2,1); já o autor do Apocalipse de Pedro, da biblioteca gnóstica de Nag Hammadi, defende-se das acusações daqueles “que se intitulam bispos e também diáconos” (ROBINSON, 1990, p. 372), isto é, os ministros católicos, afirmando que estes é que estavam “contaminados” e, por isso, “cairão num nome de erro, passando para a mão de um homem mau e astuto, de dogma multiforme, e serão governados hereticamente” (ROBINSON, 1990, p. 375). E os gnósticos também se acusavam mutuamente: no tratado O Testemunho da Verdade, também da biblioteca de Nag Hammadi, o autor, que é declaradamente gnóstico, chama de hereges a outros gnósticos, que não pensavam como ele, por exemplo, Basílides, Valentim e Isidoro, citados nominalmente como grandes embusteiros (ROBINSON, 1990, p. 456).

Quando “hereges” acusam outros “hereges” de heresia, pode-se constatar que os diferentes intérpretes do legado de Jesus de Nazaré não admitiam a possibilidade de que pudesse haver mais do que uma intepretação autêntica para esse legado e que, paradoxalmente, aquilo que eles chamavam de cristianismo – título que cada grupo reservava apenas para si – era, na verdade, um caleidoscópio de movimentos e de partidos, cada qual defendendo a legitimidade de sua própria teologia e a autoridade exclusiva de sua doutrina. Desse ponto de vista, parece pouco producente definir heresia como a negação da ortodoxia, pois, em termos históricos, a ortodoxia resultou justamente dessa longa querela entre partidos (haireseis) cristãos, que já estava presente desde o debate entre Paulo e os cristãos judaizantes de Jerusalém (Gl 2; At 15), atravessou todo o século II, opondo católicos e gnósticos, e chegou ao Concílio de Niceia (325), o qual, longe de pôr termo à disputa, a elevou a um patamar sem precedentes.

2 Caminhos irreconciliáveis

Na segunda metade do século II, Celso, um escritor grego, escreveu uma obra polêmica contra os cristãos, a que deu o nome de O discurso verdadeiro; esse texto não sobreviveu integralmente, e o pouco que dele podemos ler são os excertos que Orígenes (m. 254) copiou e comentou, setenta anos depois, na sua réplica intitulada Contra Celso. Pelas anotações de Orígenes, é possível perceber que Celso possuía um bom conhecimento da diversidade do cristianismo e das intricadas disputas teológicas que dividiam os cristãos em grupos rivais. Eis como ele descreve a situação:

Mal se propagam em grande número, [os cristãos] se dividem e se separam, e cada qual quer ter sua própria facção. Separados novamente por causa de seu grande número, eles se anatematizam uns aos outros; nada mais têm em comum, por assim dizer, a não ser o nome [de cristãos], se é que ainda o têm! Pelo menos é a única coisa que tiveram a vergonha de abandonar; de resto, cada qual abraçou uma seita diferente. (ORÍGENES, 2004, p. 213)

E não para por aí: “[…] estas pessoas descarregam umas nas outras todos os horrores possíveis, rebeldes à menor concessão à concórdia e animadas de ódios implacáveis” (ORÍGENES, 2004, p. 446). Celso, de fato, detestava o cristianismo e o considerava uma ameaça à ordem civil, porém, ele não mentia ao destacar o faccionalismo cristão e as mútuas acusações daí resultantes. Justino de Roma (I Apologia), Ireneu de Lyon (Contra as Heresias), Tertuliano de Cartago (Prescrição contra as Heresias) e Hipólito de Roma (Refutação de todas as Heresias) também evidenciaram esse antagonismo: Hipólito, por exemplo, chegou a listar 33 sistemas cristãos diferentes, tomando-os todos como deturpações da reta fé (ALTANER; STUIBER, 2004, p. 173).

Mesmo que procurasse refutar as críticas de Celso, Orígenes não tinha como negar que o gentio tinha razão, pelo menos quando observava que o movimento cristão era bastante agitado. Daí que Orígenes, ao invés de negar que houvesse divisões doutrinais, preferiu recuperar o sentido antigo de heresia como escola filosófica: cada facção apontada por Celso representaria, na verdade, uma escola cristã diferente. Desse modo, se o pagão desejava criticar o cristianismo por se dividir em tantas escolas, que criticasse também os antigos filósofos. Orígenes não via nada de mal nisso. Até porque, como ele afirma, as “diferentes escolas/seitas” [haireseis diaforoi/αίρέσεις διάφοροι] dos cristãos jamais decorriam “de rivalidades e de espírito de disputa”, mas do fato de que a Igreja acolhia, em suas comunidades, muitos sábios gregos, que trouxeram para dentro delas as suas próprias demandas filosóficas (ORÍGENES, 2004, p. 214).

Que o cristianismo tenha atraído pessoas interessadas em filosofia, até mesmo filósofos profissionais, fica evidente, por exemplo, no célebre caso da conversão do filósofo Justino (m. 165); em seu Diálogo com Trifão, Justino confessa ter procurado a verdade em vários sistemas filosóficos diferentes até que descobriu o cristianismo e o abraçou como verdadeira filosofia. Na Prescrição contra as Heresias, escrita entre 197-200, Tertuliano de Cartago confirma que diversos cristãos eruditos procuravam conciliar os conteúdos da fé revelada com os métodos e pressupostos da filosofia helênica, mas para ele isso era um completo contrassenso. Vejamos a sua descrição:

As próprias heresias, em suma, são equipadas pela filosofia. Dali é que Valentim retirou os éons e não sei quais infinitas formas e a tríade do homem: ele era platônico. Dali é que saiu o deus melhor de Marcião, que repousa em tanta tranquilidade: Marcião era estoico. E quando se afirma que a alma é perecível, é de Epicuro que se fala. Para negar a ressurreição da carne, pode-se tomar lições de todas as escolas dos filósofos. Lá onde a matéria é igualada a Deus, está a doutrina de Zenão. Onde se ensina que Deus é fogo, é Heráclito que se evoca. Hereges e filósofos lidam com a mesma matéria e se envolvem com os mesmos assuntos. (TERTULLIEN, 1957, p. 96-97). 

Certamente Tertuliano não pensava em Justino quando afirmou que Jerusalém não tinha nada a ver com Atenas, nem a Academia com a Igreja (TERTULLIEN, 1957, p. 98), pois Justino, que sustentava que a filosofia era um caminho para Cristo, foi igualmente um opositor dos sistemas heréticos, aos quais também concede o nome de escolas, como a “escola de Menandro, em Antioquia” (JUSTINO DE ROMA, 1995, p. 42). Portanto, Orígenes tinha respaldo histórico para comparar as heresias cristãs às escolas de filosofia helênicas, mas dissimulava ao negar que houvesse “espírito de disputa” entre as várias tendências. Por exemplo, Justino, em sua I Apologia (c. 140), não tem pudor de dizer que Simão Samaritano (cf. At 8, 9-24) e todos os membros de sua escola estavam possuídos pelo demônio, assim como Marcião (JUSTINO DE ROMA, 1995, p. 42). E Ireneu de Lyon não parece mais gentil quando compara os barbelonitas a uma infestação de fungos brotando da terra (IRENEU DE LYON, 1995, p. 112).

Mas, se era possível tratar as facções cristãs como escolas doutrinárias, por que Celso evitou essa aproximação quando criticou as divisões no interior do cristianismo? Parte da resposta decorre da própria noção de escola filosófica, como vimos com Sexto Empírico: os filósofos se agrupavam em escolas para obter que mestres e discípulos tivessem maiores condições de praticar a reflexão de acordo com seus próprios métodos e formas de vida (HADOT, 2004, p. 150). Os participantes de uma escola até podiam eventualmente censurar o modo de vida de outras escolas, mas eles sabiam que o seu jeito de praticar a filosofia não era o único possível. Já os cristãos pensavam justamente o contrário.

O bispo Ireneu de Lyon, que escreveu o Contra as Heresias na mesma época em que Celso publicou seu Discurso, opõe a doutrina apostólica, por ele professada, ao que ele chama de falsa gnose, isto é, as doutrinas de Simão, Menandro, Saturnino, Basílides, Marcião, Valentim, Carpócrates, Cerinto, e tantos outros: a fé ortodoxa, calcada no ensinamento dos apóstolos, transmitida pela sucessão episcopal e condensada na chamada Regra da Fé, constituiria a verdadeira gnose; qualquer outro ensinamento cristão que se desviasse desse padrão não passaria de mentira. Justino teria acrescentado mentira “diabólica”, pois, para ele, os ensinamentos heréticos vieram para ‘dividir’ (diabolus como aquilo que divide) os que invocam Cristo como salvador. Tertuliano vai na mesma direção: as heresias, como vias paralelas, desviam o fiel da fé simples do Evangelho:

em que lugar termina a busca? Onde fica a morada do crer? Onde cessam as descobertas? Junto de Marcião? Mas, também Valentim me fala: buscai e achareis. Então, junto de Valentim? Agora Apeles é quem bate à minha porta. Ebion, Simão e todos os demais, um atrás do outro, usam o mesmo artifício para se insinuarem a mim e atrair-me para eles. Enquanto eu ouvir por todos os lados buscai e achareis, nunca chegarei ao fim; até parece que nunca aprendi o que Cristo ensinou, o que convém procurar, o que é necessário crer. (TERTULLIEN, 1957, p. 103-104)

A relutância de Justino, Ireneu e Tertuliano em admitir que Marcião, Valentim ou qualquer outro pudessem estar certos em relação ao legado de Jesus decorre exatamente da desconfiança que eles alimentavam em relação às escolas filosóficas: se cada uma concebe a verdade de um jeito, como encontrar a Verdade?  Os Padres da Igreja defendiam que Jesus de Nazaré, através de sua vida e evangelho, havia revelado um conhecimento público (exotérico), dirigido a todos os homens e mulheres, independentemente de serem letrados ou iletrados; e diziam que todas as pessoas, através da simplicidade da fé, podiam atingir o conhecimento perfeito do messias. Os mestres gnósticos, por sua vez, sustentavam uma premissa oposta; para eles, era preciso distinguir o conteúdo exotérico do ensinamento de Jesus do seu conteúdo esotérico, isto é, reservado e transmitido apenas dentro de uma casta especial de discípulos (os gnósticos), que eram pessoas letradas e dotadas de uma ciência superior e, por isso mesmo, se sentiam os únicos capazes de obter o conhecimento perfeito (PIÑERO, 2010, p. 197-198).

Frente a esse contraste, parece que Celso tinha mais razão do que Orígenes: os cristãos não formavam escolas, tais como os filósofos, e, de fato, estavam divididos em facções irreconciliáveis. Os Padres até podiam alegar que eram os gnósticos que se separavam da Igreja una, mas tanto uns quanto outros lutavam pelo mesmo troféu. Os ebionitas (judeu-cristãos) consideravam que o apóstolo Paulo era um “apóstata da lei” (IRENEU DE LYON, 1995, p. 108), e o autor do Apocalipse de Pedro estava convencido de que os católicos abandonaram o reto seguimento de Jesus e de Pedro, e se tornaram “propagadores da falsidade” (ROBINSON, 1990, p. 474). Celso, que via tudo de fora, parece ter captado o cerne da questão, apesar de seu desdém.

As igrejas que se filiam à grande tradição dos concílios ecumênicos encaram a heresia como negação das verdades da fé e, comprando o argumento de Tertuliano, afirmam que a ortodoxia é a primeira, enquanto a heresia é a segunda (DUBOIS, 2009, p. 47). No debate teológico e na vivência eclesial dos primeiros dois séculos, essa não era uma evidência segura, pelo menos não para os grupos que então participavam do movimento cristão (CHADWICK, 2001, p. 100).

3 Nós, os nossos e eles, os hereges

Boa parte das desavenças entre os Padres e os mestres gnósticos se deve ao fato de que estes últimos, mesmo afirmando que só eles detinham o perfeito conhecimento do Cristo, permaneciam dentro das comunidades católicas, misturados aos cristãos comuns. Ali, eles se viam como uma elite espiritual, um grupo seleto que se distinguia dos demais cristãos, inclusive dos clérigos, porque ostentava uma refinada instrução filosófica e porque praticava o celibato – os mestres gnósticos abstinham-se do casamento porque viam-no como uma concessão feita à carnalidade, vetada aos perfeitos. Ireneu de Lyon os chama de encratitas, e atribuía a condenação do matrimônio a um certo Taciano, ex-aluno de Justino, em Roma (IRENEU DE LYON, 1995, p. 111). Será que os Padres teriam se agastado menos com os gnósticos, caso eles tivessem deixado as igrejas e fundado suas próprias comunidades? É uma questão para a qual não há resposta segura, mas que parece legítima.

Seja como for, os mestres nem sempre estavam em desacordo com seus bispos; Tertuliano, por exemplo, ressalta que Valentim e Marcião “professavam a doutrina católica dentro da igreja dos romanos, sob o episcopado de Eleutério [174-189]”, e que trabalhavam como professores eclesiásticos; Valentim, que ostentava impressionantes dotes intelectuais e oratórios, quase chegou a ser bispo (TERTULLIEN, 1957, p. 126). Na prática, os mestres gnósticos procediam como o católico Justino: instruíam os fiéis que buscavam um conhecimento filosoficamente mais aprofundado.

Eusébio de Cesareia (m. 339), na História Eclesiástica, nos oferece um bom exemplo de que como esses grupos funcionavam no interior de uma igreja urbana. Em Roma, um punhado de homens interessados em estudar as Escrituras de modo mais intenso congregou-se ao redor de um curtidor chamado Teódoto, durante o pontificado de Vítor (189-199). Ademais de estudarem os textos bíblicos, e eventualmente corrigi-los, o grupo redigia seus próprios comentários e se encarregava de fazer muitas cópias para a distribuição entre os fiéis. Em nenhum momento Eusébio se mostra incomodado com a existência desse tipo de iniciativa. O problema reside, para ele e para os demais Padres, no conteúdo desses escritos e nos métodos desses estudos. Por ora, destacamos a dedicação desses homens que não viviam da igreja, embora buscassem viver para a igreja, ainda que ao modo deles. Um dos membros do grupo era um banqueiro, que custeava as despesas do processo editorial e logístico, que dava emprego a muitos copistas e colaboradores (EUSÉBIO DE CESAREIA, 2000, p. 274-278).

Entre os companheiros de Teódoto, Eusébio acrescenta ainda outros escritores, como Asclepíades, Hermófilo e Apoloníado, aos quais atribui também a autoria de livros sobre exegese bíblica e teologia; por óbvio, não eram cristãos convencionais. Eram letrados, habilidosos na escrita e conhecedores dos textos cristãos e daqueles da Bíblia hebraica. Um bispo teria motivos de alegria por dispor de pessoas como essas em sua igreja, porque toda comunidade eclesial é uma comunidade leitora e consumidora de livros. Estes faziam parte do cotidiano eclesial, e estavam por todos os lados, seja na liturgia, na catequese ou nas comunicações intereclesiais. O fato de haver iletrados entre os fiéis não impedia o alcance dos livros, pois as comunidades, além do bispo, dos presbíteros e diáconos, contavam com o ministério dos leitores, que não faltavam em nenhum ato litúrgico. Os livros eram tão constitutivos da identidade cristã, que os governadores imperiais, durante o século III, ordenaram a destruição dos livros eclesiásticos, pois sabiam que as assembleias litúrgicas deles dependiam. Acabar com o livro seria acelerar o fim da própria igreja.

Todavia, desde a geração de Inácio de Antioquia (m. 107), os bispos entendiam-se como “sentinelas” do rebanho e como “fiscais” da qualidade doutrinal e moral de sua comunidade; era o que o termo epíscopo significava, aquele que observa a comunidade, que a vigia em vista de seu controle. As lutas doutrinais oriundas do século I já haviam ensinado aos primeiros bispos que não se podia cochilar. O erro herético entra sorrateiramente. E desde Paulo de Tarso, heresia é o ensinamento que diverge da opinião do presidente de uma comunidade. Ireneu, por exemplo, considerava hereges aqueles “que falam como nós [os bispos], mas pensam diferentemente de nós” e “ensinam de maneira diferente da nossa” (IRENEU DE LYON, 1995, p. 30); Tertuliano, décadas depois, lembrava que os apóstolos, em suas epístolas, haviam insistido para “que todos falassem a mesma coisa e de modo idêntico, e que não houvesse, na igreja, cismas e dissensões, pois seja Paulo, sejam os demais apóstolos, todos pregaram do mesmo modo” (TERTULLIEN, 1957, p. 123). A unanimidade no ensino e na doutrina constituía um dos pilares da ortodoxia: não deixa de ser um parâmetro que procura assegurar a qualidade da mensagem, mas que implica igualmente uma profunda desconfiança em relação ao pluralismo.

Esse foi o problema do grupo de Teódoto em Roma; produziam muitos livros, porém, cada qual continha uma teologia diferente. Eusébio reporta que, se alguém comparasse os exemplares de Asclepíades com os de Teódoto não acharia nada em comum entre eles, o que também valia para Hermófilo e Apoloníado. Percebe-se que o critério da catolicidade estava bastante ativo, aqui como antes, em Ireneu: se não há unanimidade no ensino, já se está a um passo da heresia. Ademais, esses autores gostavam de interpretar os dados da revelação apoiados no suporte da filosofia e ciência helênicas, especialmente Aristóteles, Euclides, Teofrasto e até Galeno, “que é quase adorado por alguns deles” (EUSÉBIO DE CESAREIA, 2000, p. 277).

A desconfiança cristã pela filosofia era tão antiga como a Carta aos Colossenses (2,8), e mesmo quando homens como Justino abraçaram a fé procuraram ser prudentes: a salvação ocorre pelo ato redentor do messias, não por um ato de razão em busca da verdade. Essa desconfiança tornar-se-ia menor e até se apagaria, de momento, durante o século III, na geração de Clemente de Alexandria e Orígenes. Mas, no século II, a filosofia ainda incomodava, em primeiro lugar, porque os próprios contemporâneos pagãos facilmente tomavam o cristianismo por uma filosofia, e os pastores queriam evitar a confusão. Em segundo lugar porque a filosofia, conforme praticada naquele momento, supunha comunidades de letrados (as escolas), que representavam uma pequena minoria elitizada, e as igrejas queriam estar abertas a todos, letrados e iletrados. O anônimo heresiólogo a quem Eusébio cita para tratar de Teódoto insiste em dizer que aqueles homens preferiam os filósofos à palavra de Deus, isto é, que entre o dado da razão e o da revelação, era sempre a razão que predominava. As comunidades eclesiais se negavam a ser escolas filosóficas: a fé que salva é simples, destituída de raciocínios silogísticos, abstrações conceituais e cálculos lógicos. Tertuliano pode ter sido o mais ardoroso oponente dos filósofos, mas, quanto à simplicidade da fé, não estava sozinho.

Mas até aí, os mestres gnósticos ainda viviam entre os cristãos comuns. O problema ficou insustentável quando Teódoto, seguindo o pensamento de um certo Artemão, negou a divindade de Cristo e o apresentou como simples homem. Acrescentava ainda que a crença na divindade de Jesus era, na verdade, uma invenção recente, fruto de uma adulteração da fé apostólica, realizada pelo papa Vítor, e aceita como verdade a partir de seu sucessor, Zeferino (199-217): não era pouca coisa. Teódoto acusava o papa de ter corrompido os textos neotestamentários para fazer com que eles atestassem que Jesus era Deus. Mas esse tipo de acusação não era feito justamente pelos bispos – como Ireneu – contra os gnósticos? Ireneu afirmava que Marcião, por exemplo, tinha eliminado os capítulos iniciais do Evangelho de Lucas, que tratam do nascimento miraculoso do messias, e que interpolara todas as passagens em que Jesus dá a entender que seu Pai era o Deus criador do mundo (a quem Marcião negava ser o supremo Deus) (IRENEU DE LYON, 1995, p. 109).

Este episódio, mais uma vez, abala as nossas convicções eivadas de essencialismos modernos. A heresia era o lado perdedor de um jogo de forças; Vítor conseguiu vencer porque o argumento de Teódoto era fraco. Afinal, como bem lembrava o heresiólogo, qualquer um poderia consultar os exemplares do Novo Testamento, espalhados pelas igrejas, ou os tratados cristológicos mais antigos para constatar que Vítor não teria como ter alterado nada sem que outros bispos o notassem e sem o acatamento de todos eles. Era justamente esse o sentido da catolicidade: compartilhar uma mesma fé dentro de uma rede muito extensa de igrejas, rede essa que, naquele século, abrangia a extensão do mundo romano, e já dava sinais de transcendê-lo. Um bispo sozinho não fazia a fé nem a destruía. Os gnósticos precisavam se lembrar de que a doutrina católica era o consenso no mínimo para atingir o máximo.

4 Desnudar e demonstrar a heresia

Teódoto era um curtidor, ou seja, um profissional artesanal, e era também um filósofo diletante; ele não era membro da hierarquia da igreja romana, e sua excomunhão não abalou a estabilidade da igreja ou a autoridade de seu bispo, ao contrário, foi uma explícita lição de que não era fácil acusar um bispo, mesmo quando se era bastante popular. Mas e se um bispo, guardião da fé católica e chefe de uma igreja, viesse a desobedecer à regra da fé? Quem o acusaria de herege? Quem o condenaria?

Todo o debate contra os gnósticos reforçou, entre os bispos, a consciência da comunhão intereclesial e do princípio da sinodalidade. Autores como Ireneu, Tertuliano, Hilário e Orígenes não escreveram para as suas comunidades locais, mas para a Grande Igreja, uma rede de igrejas episcopais que, na virada do século III para o IV, não tinha um único centro, mas pelo menos dois, Roma e Alexandria. Esperava-se que essas duas igrejas, ou melhor, que seus bispos, capitaneassem os processos eclesiásticos que deveriam advertir e corrigir os bispos suspeitos e punir os bispos condenados.

Nesse momento, a heresia ganha uma nova conotação, pois se, antes, era mais ou menos fácil apontar o herege como um desviante da regra de fé, era muito complicado enquadrar um bispo nessas condições. Um bispo é mais do que um professor a quem se pode demitir, ele é dirigente de uma comunidade urbana, eleito a partir de uma base eleitoral que podia significar uma pequena multidão de apoiadores, entre os quais, pessoas politicamente importantes.

Em se tratando de membros da hierarquia, a discussão sobre a heresia assume um lugar eminentemente político, seja porque, por contar com apoio político, um bispo pode se livrar de um processo eclesiástico, seja porque, sem apoio político, um bispo pode ser acusado de ser herege simplesmente como desculpa para tirá-lo do comando. Foi o que aconteceu com um clérigo chamado Paulo de Samósata (m. 275), eleito bispo de Antioquia, em 261 (CHADWICK, 2001, p. 166-169), cerca de um ano depois que, naquela mesma cidade, o imperador Valeriano (253-260) fora derrotado e capturado pelo Império persa. Foram anos bastante difíceis.

Com a derrota romana, a Síria passou a fazer parte de um reino independente, sediado em Palmira, cuja rainha, Zenóbia (260-267), tornou-se a ponta de um movimento antirromano que, a princípio mostrava-se bastante forte, com chances reais de varrer o poderio imperial do Oriente Médio, mas que, na prática durou muito pouco. Este foi o primeiro erro de Paulo de Samósata: tão logo foi eleito bispo, decidiu apoiar uma rainha efêmera, mas que, pelos menos por um tempo, o recompensou muito bem, conferiu-lhe o título de ducenário e pagou-lhe um alto salário.

Acontece que os bispos que formavam a catolicidade cristã, até aquele momento, presidiam igrejas sediadas em cidades pertencentes ao Império romano; em termos civis, os bispos eram súditos do Império, e todos eles consideravam que o Império é quem garantia, legitimamente, a ordem social, institucional e jurídica, graças às suas estruturas estatais. Ainda não fazia muito tempo que Nero havia martirizado uma centena ou mais de cristãos (os protomártires romanos), e Clemente (m.c. 100), um presbítero de Roma, estava convencido de que aquele império, uma miniatura do universo, era a grande referência para as igrejas, sobretudo na questão da ordem, da disciplina e da hierarquia.

Antioquia, por exemplo, havia sido a capital da província romana da Síria até que Zenóbia tomou o poder. A cidade onde os fiéis foram chamados de cristãos pela primeira vez (At 11, 26), havia passado para mãos antirromanas e, pior do que isso, tinha um bispo declaradamente antirromano. É difícil compreender a real posição de Paulo, pois, justamente por divergir politicamente de seus colegas, e por receber salário de um Estado inimigo, ele foi duramente criticado; Eusébio de Cesareia, que sempre apoiou o Império romano, gasta muitas páginas de sua História Eclesiástica para relatar o ocorrido, não sem deixar evidente o quanto Paulo de Samósata era, desde o início, um corruptor do episcopado e um perigo para a Igreja.

Em sua opinião, Paulo corrompia o episcopado porque valia-se de sua posição de ducenário para ostentar poder: numa encíclica que os bispos sírios enviaram aos bispos de Roma e Alexandria, conta-se que Paulo se fazia transportar em liteiras, que ele introduziu mulheres na residência episcopal, assentava-se num estrado que mais lembrava o trono de um magistrado do que a cadeira de um bispo, enfim, que trabalhava como usurário. E para piorar, Paulo disparou ataques contra o establishment episcopal grego, acusando-o de condescender com Orígenes que, a seu ver, praticava uma exegese bíblica ruim e explicava erroneamente a natureza do Verbo encarnado. No processo jurídico movido contra Paulo, não dá para saber se o que mais irritava os bispos era seu modo de vida principesco ou as críticas que ele fazia aos gregos: a cidade de Samósata, junto ao Eufrates, tinha população assíria.

Os bispos não deixaram por menos. Fizeram concílios para derrubá-lo e, não conseguindo, recorreram aos bispos superiores de Roma e Alexandria. Não seria fácil derrubar um bispo se este obedecesse fielmente a regra da fé; todavia, os bispos diziam que Paulo negava a divindade do Filho e que ensinava que o Logos divino apenas inspirara Jesus, sem se encarnar verdadeiramente. O que nos traz à questão sobre como agir quando um bispo se torna herege. Como vimos no caso de Marcião e Cerdão, a pena que se podia aplicar era a exclusão da igreja, mas isso era fácil de resolver quando o condenado era um leigo ou diácono ou até mesmo um presbítero. Totalmente diferente era a situação de um bispo, cujo ofício assentava-se num pressuposto teológico, defendido por Inácio de Antioquia, de que o bispo era o vigário de Deus na terra, e sem o qual nada se podia fazer na igreja (INÁCIO DE ANTIOQUIA, 1995, p. 92; 118).

Baseado na indissolubilidade do vínculo entre o bispo e sua igreja, Paulo de Samósata não acatou a decisão que o depunha, muito embora um novo bispo tenha sido ordenado para ocupar o seu lugar. Foi quando ele se recusou a deixar a residência episcopal, de propriedade da igreja. Ele não teria conseguido sustentar sua posição se não contasse com bons (e influentes) apoiadores dentre os membros de seu rebanho. Talvez por causa disso foi que ele recorreu ao imperador romano Aureliano, que há pouco recobrara a autoridade sobre a Síria e pusera termo ao reino de Palmira.

O relato de Eusébio é detalhado, mas não tanto. Não dá para saber se Aureliano estava ou não informado de que Paulo havia sido um aliado de Zenóbia, portanto, um traidor de Roma. É provável que soubesse, muito embora um bispo deposto já não representasse nenhuma ameaça. Seja como for, o imperador acolheu a petição de Paulo, que solicitava o arbítrio imperial no impasse sobre a residência episcopal: porém, ao invés de tomar ele mesmo a decisão, Aureliano encaminhou a demanda para o bispo de Roma, que obviamente apoiava a deposição ocorrida no sínodo de 268. E Eusébio acrescenta: “e foi assim que o supracitado Paulo foi expulso da Igreja da maneira mais vergonhosa pelo poder secular” (EUSÉBIO DE CESAREIA, 2000, p. 387).

O caso de Paulo de Samósata, por mais singular que tenha sido para o século III, demonstra que a heresia se tornara um mecanismo para que o episcopado regulasse a própria instituição episcopal, pressionando os bispos, individualmente ou em grupos, que por alguma razão interpunham as suas vozes às opiniões teológicas hegemônicas, curiosamente sustentadas por cátedras episcopais hegemônicas, como Alexandria ou Roma. Sob o rótulo de consenso eclesial, o que se assiste é um jogo de forças regionais, em que fala mais alto a igreja que manda mais ou que é a mais rica. Heresia tornou-se aquilo que as igrejas queriam (ou precisavam) que ela fosse e, como tal, não podemos perder de vista a complexidade sociopolítica da história quando tomamos a peito o estudo de qualquer grupo condenado por heresia.

5 Heresia como questão de Estado

Como acabamos de perceber, Eusébio de Cesareia mostrou-se bastante satisfeito com o desfecho dado por um imperador pagão a um conflito meramente eclesiástico, afinal, como consta em Rm 13,4, o príncipe – independentemente de sua crença – é um instrumento de Deus para punir aqueles que fazem o mal, e o herege é uma dessas pessoas. Mas foi Paulo de Samósata quem procurou o arbítrio imperial, e o fez por acreditar que a decisão sinodal que o depôs não respeitou completamente os seus direitos. A iniciativa de Paulo estava completamente amparada na lei. De fato, havia dois caminhos possíveis para a resolução de conflitos entre civis, no Império romano: a arbitragem extrajudicial, desde que obedecesse aos procedimentos legais, e o processo judicial propriamente dito, que dependia das cortes e de magistrados públicos.

Na arbitragem extrajudicial, era permitido que o mediador levasse em conta a legislação, a jurisprudência e os costumes locais, enquanto o processo judicial oficial tinha que seguir estritamente os decretos e decisões aplicáveis a todo o império. Se repararmos bem, o sínodo antioqueno de 268 funcionou como uma arbitragem extraoficial, como se deduz dessa passagem de Eusébio:

Quem melhor convenceu [Paulo] de dissimulação, após ter examinado suas teorias, foi Malquião, aliás homem eloquente, sofista e em Antioquia presidente do ensino de retórica nas escolas helênicas, além de honrado com o presbiterado na comunidade desta cidade, por causa da pureza extraordinária de sua fé em Cristo. Ele abriu uma disputa contra Paulo, enquanto estenógrafos a registravam, e sabemos ter chegado até nós as anotações (…). (EUSÉBIO DE CESAREIA, 2000, p. 381-382)

Na qualidade de sofista e orador, Malquião era um profissional habilitado para mediar uma demanda judicial, e ele seguiu os protocolos: acusado e acusadores foram ouvidos, os depoimentos anotados, o processo devidamente montado. Nessas condições, Malquião podia tomar a sua decisão, que seria referendada pelos magistrados e passaria a ter validade jurídica. Para que uma arbitragem extrajudicial fosse recebida oficialmente, era necessário que as partes envolvidas estivessem de acordo com a escolha do árbitro: Malquião era presbítero da igreja em que Paulo era bispo, além disso, gozava de boa fama. Ele cumpria todos os requisitos para a função que desempenhou e, certamente, Paulo confiava em sua capacidade. Porém, o veredito não agradou ao bispo. Era seu direito, como cidadão, recorrer ao tribunal formal para ver se nessa outra instância ele conseguia reverter o resultado. E foi isso o que ele fez.

O caso particular de Paulo de Samósata aponta para uma importante viragem na maneira com que as igrejas passaram a tratar as heresias, isto é, tornando-as um assunto judicial e, portanto, uma questão de Estado. Essa mudança acarretou duas significativas mudanças, pelo menos: a primeira é a crescente participação de profissionais forenses, como Malquião, nos debates sobre heresia e, graças a esses profissionais, a linguagem jurídico-retórica tornou-se recorrente na composição dos textos de acusação e de defesa, influenciando o próprio vocabulário teológico. A segunda mudança se refere à mediação direta do Estado na deliberação doutrinal e na conclusão dos debates. Ora, o poder público não se intrometia em questões particulares a não ser que fosse requisitado, e, desde Paulo de Samósata, os bispos começaram a recorrer a esse expediente, seja para denunciar hereges, seja para defender-se da acusação de heresia (HUMFRESS, 2007, p. 260-268).

O ardor anti-herético que verificamos em Ireneu e Tertuliano apenas mudou de lugar; na sanha de acabar com a heresia, os bispos abriram as portas de suas igrejas para que o Estado fizesse aquilo que eles mesmos não estavam conseguindo resolver. Para os bispos, esse era um preço que valia a pena pagar. Acontece que o Estado não funciona como uma igreja, ainda que a igreja tenha claramente adotado expressões estatais, desde, pelo menos, o século II. Para que o poder público atuasse nas questões eclesiais, os clérigos precisavam adequar as demandas teológicas aos trâmites jurídicos, e permitir que o Estado adequasse a linguagem teológica às categorias legais. Heresia virou um delito judicialmente imputável e, por isso, passível de penalidades coercitivas. Os bispos ficaram contentes; por um momento parecia que eles teriam maiores recursos para reprimir os hereges. Acontece que, antes de um julgamento formal, ninguém pode ser considerado culpado, e assim os supostos hereges também podiam mobilizar os tribunais civis contra os ortodoxos. Iniciava-se uma longa luta judicial em que a heresia ficaria suspensa até que o magistrado a atribuísse a uma das partes em disputa.

No ano de 313, os bispos donatistas do norte da África recorreram ao imperador Constantino, solicitando que ele revisasse a decisão do concílio de Roma, que os havia condenado. Constantino preferiu fazer como Aureliano, e privilegiou a opinião dos bispos católicos, liderados pelo papa Milcíades. Não satisfeitos, os donatistas iniciaram uma série de protestos que obrigou o imperador a convocar um sínodo de bispos ocidentais, celebrado em Arles, em 314. O caso donatista deixou claro, para Constantino, que um cisma coletivo podia significar distúrbios civis dificilmente controláveis e com altos custos para o erário público; era preciso resolver a situação, e foi para isso que o concílio foi reunido. Nele, o donatismo foi formalmente condenado como heresia, e o resultado assumiu força jurídica; com base nisso é que Constantino, em 317, ordenou a supressão da Igreja donatista, a confiscação dos imóveis eclesiais e a prisão de seus bispos (IRVIN; SUNQUIST, 2004, 317).

Todavia, o que parecia ser a vitória da catolicidade mostrou-se muito mais frágil. A lei pode até tipificar a heresia como delito, porém, a interpretação jurisprudencial da lei, a velocidade dos processos e o alcance dos vereditos dependem da situação do sistema judicial, da posição dos magistrados e da capacidade de pressão política exercida pelas partes. Em outras palavras, para fazer o processo funcionar, era preciso que as autoridades públicas tivessem vontade de agir. Agostinho de Hipona (m. 354), que se envolveu ativamente no debate donatista, deixou transparecer, em seus escritos, como a judicialização da heresia podia resultar em medidas pouco efetivas. Os bispos católicos até podiam eventualmente ser favorecidos pela benevolência imperial, mas até quando? Rápido eles perceberam que a benevolência de um governante mudava facilmente de direção. E para mantê-la voltada para si, os bispos tiveram de aprender a negociar com os magistrados e as autoridades públicas como quaisquer outras pessoas influentes.

Se antes era preciso convencer os hereges de sua heresia, agora os bispos tinham de convencer também os magistrados, só que, nesse caso, o puro argumento nem sempre bastava. Acordos e concessões eram inevitáveis e tinham consequências. O concílio de Niceia, por exemplo, definiu a ortodoxia trinitária, mas o que se seguiu ao concílio foi uma série de derrotas dos ortodoxos e a ascensão dos hereges, que convenceram o imperador Constâncio II (337-361) a procurar uma conciliação. Quando o Estado define a ortodoxia, os termos da fé são matéria de negociação política, tanto quanto o texto da lei. A intransigência doutrinal pode até continuar a inflamar certos bispos, mas eles sabem que sem o compromisso político e uma certa dose de adulação, a heresia continuará a ser uma opção para os descontentes e os dissidentes.

Como vimos até aqui, toda a questão da heresia apresenta-se como um jogo de forças entre grupos discordantes movidos pela convicção de que não pode haver mais do que uma fé verdadeira. A judicialização da heresia demonstrou ao Estado que essas diferenças teológicas escondiam fissuras sociais, culturais e étnicas que espelhavam o próprio Império romano, em sua vasta pluralidade cultural. Os cristãos podem defender que sua doutrina é, em tese, universal, porém, suas comunidades são recortes de populações locais, estabelecidas em terrenos particulares, em que o passado, a língua, as condições econômicas se tornam filtros catalisadores para que a fé universal crie ali as suas raízes. A ortodoxia necessariamente implica o diálogo ou o debate com e entre as culturas do mesmo modo que a heresia pode expressar xenofobia e preconceito racial. A invenção dos concílios ecumênicos, como política de Estado, demonstra o quão frágil a ortodoxia pode ser, pois resulta do equilíbrio entre regionalismos, cujo capital político é sempre assimétrico.

Desde o Concílio de Niceia, em 325, a heresia foi apenas uma das muitas armas usadas pelos bispos em suas incessantes “guerras por Jesus” (JENKINS, 2013), guerras travadas por clérigos, mas patrocinadas pelo Estado. Os imperadores podiam, de fato, tentar mediar os conflitos entre as diferentes igrejas, excluindo os hereges e promulgando a ortodoxia. Porém, a busca pela fé correta era, em si mesma, uma atividade de silenciamento das vozes que não interessam ao poder e de amplificação das vozes que interessam. Foi isso que ocorreu, por exemplo, no Concílio de Calcedônia, de 451: os defensores da única natureza do Cristo, chamados de miafisitas ou monofisitas, e que eram egípcios, sírios, armênios, mesopotâmicos, foram simplesmente ignorados pelo mainstream episcopal greco-latino, na ocasião, representado pela cristologia do papa Leão Magno (440-461) e pelos bispos alinhados com a imperatriz Pulquéria (m. 453).

O desacordo de Calcedônia nos apresenta como os debates teológicos, na verdade, resultam de problemas sociais, étnicos e políticos. O mundo romano podia formar um único império, mas nunca foi mais do que um caleidoscópio de diferenças que, em tempos tranquilos, eram facilmente manejadas, mas, em tempos de crise, mostravam-se muito agudas. O século V é famoso por ser o momento derradeiro da unidade romana: em 476 desaparecia o último imperador romano do Ocidente, deixando ali centenas de igrejas católicas e dezenas de igrejas arianas, como em Ravena e Toledo. No Oriente, o império seguiu firme, mas não mais com a mesma coesão. Egito e Síria, as áreas economicamente mais produtivas e, portanto, mais ricas, abrigavam as populações cristãs anticalcedonianas, perseguidas pelo Estado romano, ortodoxo e calcedoniano.

A perseguição aos hereges anticalcedonianos não foi uma boa política de Estado, pois súditos que, por causa de heresia, se veem diminuídos pelo regime não costumam ser muito fiéis a ele. Quando o Império islâmico despontou no Mediterrâneo, trazendo a proposta de proteger aqueles que assinassem tratados de paz, os anticalcedonianos sírios e egípcios não tiveram dúvida de que chegara o momento de se vingarem dos hereges calcedonianos. Aceitaram que o califado islâmico substituísse o basileu herege e começaram a considerar que a ascensão do islã era um merecido castigo divino para a heresia calcedoniana. Voltamos a Celso. Em termos históricos, a heresia é um dispositivo que demarca o campo da autoridade e justifica a violência e a intolerância contra quem não se submete.

André Miatello. UFMG/FAJE ( Brasil). Texto original em português. Enviado: 20/08/2021. Aprovado: 25/10/2021. Publicado: 30/12/2021.

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Iniciação à vida cristã

Sumário

Introdução

1 A renovação catequética na América Latina

2 O processo de iniciação à vida cristã

2.1 O quê da iniciação cristã

2.2 Para quem a iniciação cristã?

2.3 O como da iniciação cristã

2.4 O onde da iniciação cristã

3 A dimensão missionária da iniciação à vida cristã

Referências

Introdução

Desde o Concílio Vaticano II, ressurgiu um verdadeiro processo de educação na fé que implicou, diretamente, a renovação da compreensão de catequese. O Concílio solicita aos bispos o restabelecimento do catecumenato (CD n. 14) compreendido como um tempo para “conveniente instrução” (SC n. 64), precedido pelo anúncio de Cristo que suscita o seguimento à conversão (AG n. 13). Nesse sentido, propõe-se um itinerário catequético que não seja “mera exposição de dogmas e preceitos, mas uma educação de toda a vida cristã” (AG n. 14). Esse caminho supõe uma maior integração com a experiência litúrgica da comunidade cristã e tem como meta “unir os discípulos com Cristo seu Mestre” (AG n. 14). O processo propõe um aprendizado que leve a pessoa “pelo testemunho de vida e pela profissão de fé a cooperar, ativamente, na evangelização e edificação da Igreja” (AG n. 14). Como resultado da indicação de uma nova formação catequética, foi publicado, em 1972, o Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (Rica) que apresenta um resgate da iniciação cristã com inspiração nas origens do cristianismo, e se torna um referencial para a pastoral catequética. Dessa forma, emergiram indicativos para abandonar a ideia de uma catequese compreendida meramente como instrução da fé, para acolher a original concepção da IVC.

A Igreja, na América Latina, na perspectiva da eclesiologia pós-conciliar, enfrentou o desafio de transmitir a fé às novas gerações e desenvolveu um caminho com proposições concretas de renovação catequética. Especialmente com as quatro últimas Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano e as Semanas Latino-americanas de Catequese, ocorreu o resgate da catequese como IVC que não pode ser concebida sem a integração da fé professada à celebrada e à testemunhada.

1 A renovação catequética na América Latina

Em 1968, a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín – Colômbia destacou a necessidade de renovação da catequese. Sugeriu evangelizar e catequizar respondendo às necessidades das pessoas simples e analfabetas, mas também dos intelectuais. Propôs buscar novas modalidades de estar presente nas diversas formas de expressão e comunicação da sociedade. A conferência solicitou que a catequese renovada manifestasse a unidade profunda entre o projeto salvífico do plano de Deus, realizado em Cristo, e as aspirações do ser humano. Insistiu que a catequese tivesse caráter dinâmico e evolutivo e aprofundasse a compreensão da verdade revelada, sem ignorar as mudanças econômicas, sociais e culturais no referido continente.

O Documento de Medellín destacou, também, a importância de uma “evangelização dos batizados”, para levá-los a um compromisso pessoal com Cristo e à obediência da fé. Sugeriu que a pastoral da confirmação e as formas de catecumenato fossem revistas, a fim de melhor prepará-los para os sacramentos. Destacou a urgência de revisar o que possa ser obstáculo à reevangelização dos adultos e solicitou uma catequese que fosse capaz de se estender às comunidades de base, sem se limitar à vida individual. A catequese comunitária, segundo Medellín, deve considerar a família o primeiro ambiente onde o cristão se desenvolve. Insistiu, também, na promoção de catequistas leigos e na formação de diáconos permanentes para o ministério da Palavra. Ademais, salientou a importância da revisão da linguagem, procurando anunciar o Evangelho considerando os diversos ambientes étnicos e culturais. Para isso, propôs multiplicar os institutos catequéticos, nos quais pastores, catequistas, teólogos e especialistas em ciências humanas pudessem dialogar e trabalhar conjuntamente para oferecer novas formas de palavra e ação, elaborar material pedagógico atualizado e avaliar trabalhos realizados.

Em 1979, a III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano de Puebla –México teve como pano de fundo a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi e, na abordagem sobre a catequese, seguiu Medellín. Reforçou a necessidade de integração da vida à fé, à história humana e à história da salvação. Indicou, então, uma pedagogia catequética que partisse da pessoa de Cristo para chegar aos seus preceitos e conselhos. Destacou o embasamento na Sagrada Escritura como fonte principal da catequese. Promoveu uma educação sobre o sentido crítico e construtivo da pessoa e da comunidade numa perspectiva cristã. Acentuou a redescoberta da dimensão comunitária da catequese, compreendida como um processo dinâmico, gradual e permanente de educação na fé.

Em 1982, realizou-se, em Quito – Equador, a “1ª Semana Latino-americana de Catequese”, com a intenção de fazer uma leitura catequética do “Documento de Puebla”. Refletiu-se sobre o valor fundamental da comunidade para a catequese, na centralidade da Palavra de Deus e na opção pelos pobres em toda atividade catequética. Indicou-se aprimorar a formação dos catequistas, assumir a cultura e a religiosidade popular, celebrar a fé integrando catequese e liturgia e formar cristãos comprometidos com a libertação integral.

Em 1983, o Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM) publicou o documento A Catequese na América Latina: linhas comuns, que enfatizou a necessidade de uma metodologia própria na catequese inspirada na pedagogia expressa na relação de Deus com seu povo. Destacou a necessidade de participação ativa da comunidade no processo de evangelização e aconselhou que a catequese fosse organizada no âmbito da pastoral de conjunto, para enfrentar os desafios nos contextos latino-americano e caribenho.

Em 1992, a IV Conferência Geral do Episcopado Latino-americano de Santo Domingo – República Dominicana teve como ideia central a Nova Evangelização e, como meta, a inculturação do Evangelho. No discurso inaugural, São João Paulo II lembrou a importância da catequese, para a qual todos os evangelizadores precisam dar atenção especial. A catequese é mencionada como ministério profético da Igreja que atualiza a revelação amorosa de Deus manifestada em Jesus Cristo. A conferência considerou que a catequese, na América Latina, não chegara a todos ou, muitas vezes, acontecera de forma superficial sem transformar a vida das pessoas, das comunidades e da sociedade.

Santo Domingo propôs que a catequese seja querigmática e missionária, para que haja, realmente, uma Nova Evangelização. Insistiu que os catequistas sejam dotados de sólido conhecimento bíblico na perspectiva da Tradição e do Magistério da Igreja, para iluminar a realidade atual por meio da Palavra de Deus.

Dessa forma, a catequese será eficaz para a inculturação do Evangelho atingindo as pessoas desde a infância à idade adulta. Igualmente, afirmou o valor da produção dos diversos subsídios catequéticos para a relação entre fé e vida. Com o intuito de enfrentar alguns desafios pastorais, o “Documento de Santo Domingo” sugeriu uma ação catequética mais intensa, com ênfase na Pastoral Vocacional, apoiada na catequese da confirmação. Do mesmo modo, acentuou a participação dos leigos no processo de formação catequética. E, diante do avanço das seitas fundamentalistas, no meio dos imigrantes, das populações sem atendimento sacerdotal e com grande ignorância religiosa, indicou uma catequese que instruísse o povo sobre o mistério da Igreja.

Santo Domingo orientou que a catequese seja adaptada aos desafios pastorais da migração, nos quais aparecem o desenraizamento cultural, a insegurança, a discriminação e a degradação moral e religiosa. E, para enfrentar os desafios da família hodierna, sugeriu que a catequese familiar valorize a oração no lar, a eucaristia, a participação no sacramento da reconciliação e o conhecimento da Palavra de Deus.

Em 1994, foi realizada, em Caracas – Venezuela, a 2ª Semana Latino-americana de Catequese, que refletiu sobre os critérios da inculturação na mensagem evangélica na catequese de acordo com o Documento de Santo Domingo.

Em 1997, a Congregação para o Clero publicou o Diretório Geral da catequese, resultado do processo iniciado no final do século XIX pelo movimento catequético. O documento considerou a catequese como serviço à Palavra de Deus e centro da transmissão da fé, valorizando a dimensão da experiência e da vivência comunitárias. O diretório propôs a recuperação do catecumenato como itinerário para alcançar a verdadeira iniciação à vida de fé. Assim, se promoveu a superação do modelo catequético focado na instrução, que acentuava a dimensão meramente intelectual e doutrinal da fé cristã.

Em 1999, o CELAM publicou o documento A Catequese na América Latina: orientações comuns à luz do Diretório Geral da catequese, propondo a recepção do Diretório Geral da catequese para o contexto latino-americano. Diversos encontros foram realizados entre os anos de 2000 e 2005 com as comissões episcopais de catequese em vários países da América Latina, para abordar os temas do querigma e da iniciação cristã à luz do Rito de Iniciação Cristã de Adultos.

Em 2006, em preparação à V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Aparecida – Brasil, realizou-se a 3ª Semana Latino-americana de Catequese, em Bogotá – Colômbia, que refletiu sobre a necessidade de um novo paradigma para a catequese, especialmente para formar o catequista como discípulo missionário. As intuições desse encontro influenciaram a Conferência de Aparecida, especialmente no que se refere à relação entre iniciação cristã e comunidade eclesial e, sobretudo, destacou a necessidade de uma catequese catecumenal.

Em 2007, realizou-se a V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Aparecida, quando se constatou como a catequese renovada produzira bons frutos em todo o continente, devido à animação bíblica da pastoral. Essa proporcionou maior conhecimento da Palavra de Deus e melhor formação dos catequistas. Verificou-se, entretanto, que a linguagem utilizada, na catequese, permanecia pouco significativa para a cultura atual e, em particular, para os jovens.

O tema da iniciação cristã foi tratado no Capítulo VI do documento de Aparecida, e caracterizado como “caminho de formação dos discípulos missionários” (DAp cap. VI).  E caracterizou o itinerário como um caminho crescente que começa pelo querigma, guiado pela Palavra de Deus, conduz a um encontro pessoal, progressivo, com Jesus Cristo, leva à conversão e ao seguimento em uma comunidade eclesial que amadurece na prática dos sacramentos, no serviço e na missão (DAp n. 289).

O Documento de Aparecida, embora reconhecendo o progresso da catequese e da disponibilidade de tantos evangelizadores, chamou a atenção para a falta de formação dos catequistas e a carência de atualização dos materiais e dos métodos pedagógicos na catequese. Sublinhou a importância de a catequese não ser apenas doutrinal, mas uma proposta de cultivo da amizade com Cristo pela oração, a valorização da celebração litúrgica, a experiência comunitária e o serviço no compromisso apostólico. Propôs a elaboração de subsídios, tendo como base o Catecismo da Igreja Católica, a Doutrina Social da Igreja e o Diretório Ecumênico.  Indicou que a catequese precisa valorizar a religiosidade popular e realizar visitas às famílias para comunicar os conteúdos de fé, estimular a oração e a devoção mariana nas casas. Por meio da catequese, Aparecida propõe uma renovação da comunidade eclesial, formando e consolidando igrejas domésticas, ajudando a unidade das famílias.

A V Conferência entendeu que a educação na fé deve ser integral e transversal nas instituições católicas, e, por isso, devem promover o serviço pastoral, em comunhão com a comunidade cristã, incluindo a catequese. Também alertou que os meios de comunicação social não podem se esquecer da catequese, para que a Boa-Nova chegue a milhões de pessoas. Igualmente destacou a via pulchritudinis (caminho da beleza) como meio privilegiado de evangelização e de diálogo, pois é importante, na catequese das crianças, adolescentes e adultos, a utilização da arte.

O Documento de Aparecida, portanto, investe no modelo operacional de iniciação cristã como a maneira ordinária e indispensável para a realização da evangelização. Os bispos latino-americanos reconheceram a necessidade de fortalecer e aprofundar a IVC: “Sentimos a urgência de desenvolver, em nossas comunidades, um processo de Iniciação na Vida Cristã que comece pelo querigma e que, guiado pela Palavra de Deus, conduza a um encontro pessoal, cada vez mais, com Jesus Cristo” (DAp n. 289).

2 O processo de iniciação à vida cristã

A IVC depende de um anúncio explícito da pessoa de Jesus Cristo, pois “conhecer Jesus é o melhor presente que qualquer pessoa pode receber. Tê-lo encontrado foi o melhor que ocorreu em nossa vida. Fazê-lo conhecido com nossa palavra e obras é nossa alegria” (DAp n. 29).  Nesse sentido, a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium afirma que “também na catequese tem um papel fundamental o primeiro anúncio ou querigma, que deve ocupar o centro da atividade evangelizadora e de toda a tentativa de renovação eclesial” (EG n. 164).

A IVC tem a missão de introduzir a pessoa na dinâmica do encontro com Jesus Cristo. Para isso, o Documento de Aparecida, atento aos desafios dos contextos, alerta que “impõem-se a tarefa irrenunciável de oferecer uma modalidade de iniciação cristã, que, além de marcar o quê, dê também elementos para o quem, o como e o onde se realiza” (DAp n. 287).

2.1 O quê da iniciação cristã

Não é possível transmitir a fé às novas gerações ensinando apenas costumes, fórmulas ou práticas religiosas. Em primeiro lugar, está uma relação de proximidade, de encontro e diálogo que suscita uma postura: acolher o chamado de Jesus: “Vinde e vede” (Jo 1,39). Nesse sentido, a IVC é um processo prolongado no tempo pelo qual a pessoa recebe o anúncio de Jesus Cristo e é inserida, gradativamente, na comunidade cristã para favorecer uma experiência que muda a vida da pessoa de acordo com o Evangelho.

A expressão iniciação cristã remete ao Ritual de Iniciação Cristã de Adultos, (Rica) que resgata a metodologia da Igreja dos primeiros séculos para formar discípulos de Jesus Cristo e os inserir na comunidade de fé. Trata-se de um itinerário pedagógico marcado pelo primeiro anúncio de Jesus Cristo (querigma), seguido de um aprofundamento na fé da Igreja (catecumenato), que suscita a conversão para configurar, gradativamente, a vida da pessoa ao estilo do Evangelho (purificação e iluminação); oferece, em seguida, a recepção dos sacramentos do batismo, da confirmação e da eucaristia e se estende com uma educação ao Mistério (mistagogia).

Na Igreja antiga, a iniciação na fé se realizava em comunidade pela integração entre catequese e liturgia. O processo se desenvolvia de forma mistagógica, por meio de orações, celebrações e ritos que caracterizavam uma espiritualidade que visava à configuração do candidato a Cristo, o “Novo Adão”.

O itinerário estava centrado no mistério de Cristo e na sua Igreja. A pessoa era introduzida, gradualmente, numa realidade nova, no mistério de Jesus Cristo, em sua paixão, morte, ressurreição, ascensão e parusia. Esse mistério é atualizado pela missão do Espírito que o Filho e o Pai enviam sobre a comunidade. Assim, pelo mistério da Igreja, como comunidade de fé, e pela ação do Espírito, vive e se revela a presença do Ressuscitado no mundo.

Pela IVC, a pessoa participa do diálogo de salvação oferecido por Deus à humanidade e revelado em Jesus Cristo.  O ser humano é chamado a uma relação filial com o Pai de Jesus por meio de uma proposta divina que espera uma resposta humana. Na incorporação ao Mistério Pascal de Cristo, a pessoa é conduzida por um processo que se revela na dinâmica entre treva-luz, pecado-graça, escravidão-libertação, morte-vida. Esse discernimento se realiza através de vários momentos importantes do processo catecumenal e se estende ao longo de toda a vida do cristão.

2.2 Para quem a iniciação cristã?

Os destinatários prioritários da IVC são aqueles que não conhecem Cristo ou se afastaram da fé, especialmente os adultos. Constata-se que a ausência de um primeiro e fundamental anúncio de Jesus Cristo gerou, na América Latina, um vazio de graves consequências, pois produziu uma massa de batizados afastados da comunidade eclesial. Igualmente desafia a quantidade de pessoas que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre o recusaram (EG n. 14). Essa realidade impele à missão e à pastoral de uma Igreja “em saída” que alcance as periferias geográficas e existenciais para levar o querigma a todos, sem pressupor ou dar por descontado nada em questão de fé.

A catequese, sobretudo na América Latina, precisa também ter um olhar diferenciado para os pobres, seja pela abertura que têm à fé, seja pela necessidade que sentem de Deus, pois “a opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária” (EG n. 200).

Às crianças, aos adolescentes e jovens batizados se propõe uma metodologia de catequese com inspiração catecumenal para completarem sua IVC com a confirmação e a eucaristia. Trata-se de superar uma perspectiva centrada na instrução por meio do paradigma iniciático, o que implica uma melhor integração da catequese à liturgia e ao senso de pertença comunitária. Sem essa perspectiva, a catequese oferece os sacramentos sem iniciar na fé e, não raras vezes, crianças e adolescente desaparecem da comunidade após a crisma ou a primeira eucaristia. É urgente, recordam os bispos, que haja um itinerário que forme discípulos de Jesus Cristo que, ao receberem os sacramentos, se sintam fortalecidos para prosseguir no caminho iniciado.

2.3 O como da iniciação cristã

O processo é marcado por tempos e etapas. Um tempo é como um período pastoral mais ou menos prolongado no qual os candidatos procuram os caminhos da fé e crescem, correspondendo a algumas iniciativas propostas. Pode-se usar a analogia dos degraus, pelos quais o candidato sobe, gradativamente, na medida em que é iniciado na fé. No processo de inspiração catecumenal, são propostos quatro tempos: a) o pré-catecumenato; b) o catecumenato; c) a purificação e a iluminação; e d) a mistagogia.

As etapas, por sua vez, são passos entre um tempo e outro. São como portas que se atravessam para subir os degraus de uma escada pela qual se sobe. Realizam-se com celebrações especiais que lhes dão densidade e vivência. São certos períodos de mudança mais qualitativos, que requerem o apoio da Igreja, para que o candidato se configure cada vez mais a Cristo, o “Novo Adão”. Podem-se denominar também as etapas como “passagens” assinaladas pelas celebrações na comunidade eclesial. As etapas são três: a) Celebração de entrada no catecumenato; b) Celebração de eleição; e c) Celebração dos sacramentos do batismo, da confirmação e da eucaristia. Todo o processo precisa ser adaptado às diferentes idades, ambientes e realidades socioculturais para ser capaz de formar discípulos missionários. Cada tempo e cada etapa têm características próprias que definem o itinerário iniciático.

Primeiro tempo: querigma ou pré-catecumenato. É a oportunidade de receber a primeira evangelização, durante o qual, segundo diversas modalidades, anuncia-se Cristo. Esse tempo permitirá uma abertura à fé que levará à conversão de vida.  Esse é o tempo mais difícil e também o mais importante, já que condiciona toda a iniciação. Nesse tempo, há o papel primordial da comunidade cristã que deve evangelizar, acolher e sustentar os que acolhem o querigma. Se o ouvinte converte-se a Cristo e deseja, livremente, conhecer mais Jesus Cristo e entrar em sua Igreja, passará, então, à primeira etapa.

Primeira etapa: celebração de entrada no catecumenato. Ela marca o primeiro encontro oficial entre a Igreja e aquele que acolheu o querigma. O ouvinte manifesta sua firme intenção de seguir Cristo e de conformar sua vida à Igreja. Essa, então, o acolhe liturgicamente. Somente os convertidos podem ser admitidos a atravessar essa porta. A liturgia de entrada no catecumenato é a mais eloquente de todas as etapas. Trata-se da assinalação dos sentidos com a cruz. No entanto, ela somente será verdadeira e frutífera se o candidato estiver convertido a Cristo, com a firme vontade de segui-lo em sua Igreja.

Segundo tempo: catecumenato. Somente quando a fé emerge é que pode ser educada e alimentada. A atividade de formação recebe o nome de catecumenato (RICA n. 19-20 e 98-105). É um tempo prolongado de aprendizado da vida cristã. Ocorre, então, a catequese propriamente dita, quando se aprofundam os enunciados da fé e da vida cristã, especialmente de cada um dos artigos do Credo (Símbolo Apostólico). Esse tempo é acompanhado por ritos de diversos tipos. Os quatro ritos principais são as celebrações da Palavra de Deus; os exorcismos menores; as bênçãos; e, eventualmente, alguns ritos de passagem previstos no Rica. Essas celebrações, entretanto, não constituem etapas no sentido estrito do termo. A experiência da oração assume lugar primordial nessa formação. Ela se realiza tanto na oração pessoal pelo reencontro com Cristo e com o Espírito Santo, quanto na oração comunitária pela celebração do Mistério da Salvação na Igreja.

Segunda etapa: celebração de eleição ou inscrição do nome. Essa expressa que Deus, por meio de sua Igreja, elege os catecúmenos que serão iniciados sacramentalmente durante as próximas festas pascais. Acontece normalmente no início da Quaresma. Para isso, é preciso que a conversão inicial do tempo do querigma tenha alcançado maior desenvolvimento e amadurecimento. Essa celebração precede o início do terceiro tempo.

Terceiro tempo: purificação/iluminação. Esse coincide, normalmente, com o tempo litúrgico da Quaresma e se denomina “retiro batismal” ou “purificação e iluminação” (RICA n. 21, 25-26 e 152). É o tempo da preparação imediata aos sacramentos da iniciação. Aprofundam-se respectivamente os evangelhos previstos na liturgia do terceiro, quarto e quinto domingos da Quaresma do ano A. É uma catequese essencialmente batismal, porque reflete especialmente o Evangelho da samaritana que busca a “Água Viva” que sacia toda sede humana; do cego de nascença que deseja ser iluminado com a verdadeira Luz para enxergar; e da ressurreição de Lázaro que revela quem é a Ressurreição e a Vida.  Com a comunidade dos fiéis, os eleitos se dispõem a viver o Mistério Pascal. O Rica também prevê, nesse tempo, ou no catecumenato, duas celebrações de entrega: do Símbolo (Creio) e da Oração do Senhor (Pai-Nosso). No Símbolo se recordam as maravilhas que o Senhor realizou na História da Salvação. A Oração do Senhor educa para o sentido da filiação divina e da reunião fraterna dos cristãos (RICA n. 25). Nessas entregas, a Igreja transmite o tesouro da fé (traditio) que, uma vez recebido, vivido e crescido no coração do catecúmeno, enriquece a própria Igreja na medida em que a pessoa acolhe e vive o que lhe foi transmitido, como uma resposta ao que recebeu (redditio).

Terceira etapa: celebração dos sacramentos da iniciação. Ocorre normalmente durante a Vigília Pascal. O batismo constitui o primeiro ato dessa celebração cujo caráter trinitário-pascal é sublinhado. É desejável que, segundo costume muito antigo, a confirmação aconteça imediatamente depois do batismo (RICA n. 34). A eucaristia completará a iniciação da qual ela é o cume. Os três sacramentos são conferidos na mesma celebração.

Quarto tempo: mistagogia. Esse é o tempo em que a comunidade deve auxiliar o cristão a aprofundar a riqueza do evento sacramental da iniciação e o significado da celebração da fé para a vida do discípulo de Jesus Cristo. Durante o tempo pascal, os que foram iniciados são convidados a participar das celebrações dominicais da Quinquagésima Pascal. As celebrações eucarísticas, depois da Páscoa, são designadas “missas pelos neófitos”, nas quais os padrinhos, os catequistas e os colaboradores do catecumenato são chamados a participar juntamente com os iniciados (RICA 40, 57). Trata-se de um aprofundamento espiritual por meio da vida litúrgica da comunidade e, também, pelas catequeses que orientam para o sentido da vivência litúrgica.

2.4 O onde da iniciação cristã

O ponto de partida para a IVC é o querigma que se realiza, sobretudo, em lugares onde se desenvolve a vida, em lugares de lazer, de trabalho, de cultura, de formação, também por meio dos meios de comunicação, nos momentos de dor e angústia, nas situações em que as pessoas procuram um sentido para viver. Igualmente os espaços internos da comunidade cristã – as celebrações da comunidade, suas atividades pastorais, caritativas, formativas, culturais – são chamados a ser lugares de primeiro anúncio.

O encontro pessoal com Jesus não pode separar-se do encontro comunitário com aqueles que percorrem o mesmo caminho. A fé cristã não propõe somente uma relação entre o eu e o tu, ela também se relaciona ao nós. Não há fé que não seja vivida na Igreja, em comunidade. A IVC encontra, na comunidade eclesial, o seu ambiente próprio: o lugar onde o discípulo missionário nasce, é nutrido, cresce, se fortalece e vive como membro da família de Deus. Igualmente, toda a meta da IVC é a inserção do cristão na Igreja, na comunidade dos seguidores de Cristo. Sendo assim, a comunidade-Igreja é tanto mãe que gera sempre novos filhos para a fé quanto a mãe que sustenta e fortalece seus filhos no caminho para o Reino de Deus.

3 A dimensão missionária da iniciação à vida cristã

A partir da 3ª Semana Latino-americana de Catequese, fomentaram-se iniciativas no intuito de formar discípulos-missionários. Esse percurso catecumenal implica também educar cristãos comprometidos com sua realidade social, política e cultural, abertos ao diálogo com o mundo e a serem defensores da vida, dos direitos humanos e da natureza, conforme a Doutrina Social da Igreja (CELAM, 2008b, n.136).

Relacionando fé e vida, o discípulo missionário “faz a experiência do encontro com Jesus Cristo vivo, amadurece sua vocação cristã, descobre a riqueza e a graça de ser um missionário que anuncia a Palavra com alegria” (CELAM, 2007, n.167).

O anúncio da fé e sua dimensão missionária se relacionam à convicção cristã de que somente em Jesus os seres humanos podem alcançar a salvação. Essa boa-nova deve ser levada a toda humanidade. É por isso que o anúncio de Jesus Cristo deve ser sempre repensado, reformulado, anunciado e revivido no seio de cada cultura.

A IVC supõe uma renovação das comunidades eclesiais pela conversão que supere um modelo de pastoral de manutenção por meio de uma pastoral essencialmente missionária, que promova a cultura do encontro, da proximidade, do diálogo. Somente assim, a IVC será promotora de uma eclesiologia com senso de pertença e comunhão dos batizados.

Pretende-se uma catequese “em saída”, isto é, essencialmente missionária, capaz de romper as barreiras que impedem a comunicação da fé às diversas periferias geográfico-existenciais e propor uma autêntica IVC que forme discípulos missionários. Ir ao encontro do outro é a urgência da catequese querigmática e mistagógica em contexto latino-americano.

Dom Leomar Antônio Brustolin. PUC RS e Arcebispo de Santa Maria, RS. Enviado: 16/08/2021. Aprovado: 31/08/2021. Publicado: 24/12.2021.

Referências

CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM. In: KLOPPENBURG, Frei Boaventura (org.). Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos, declarações. Petrópolis: Vozes, 1968.

CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório Geral para a Catequese. São Paulo: Paulinas, 2002.

CONGREÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Ritual da Iniciação Cristã de Adultos. Trad. portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulinas, 2003.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO.  Documentos do CELAM: conclusões das Conferências do Rio de Janeiro, Medellín, Puebla e Santo Domingo. São Paulo: Paulus, 2004.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulinas, 2007.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Manual de catequética. São Paulo: Paulus, 2008a.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. A caminho de um novo paradigma para a catequese: III Semana Latino-americana de catequese. Brasília: Edições CNBB, 2008b.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. A alegria de iniciar discípulos missionários na mudança de época. Brasília: Edições CNBB, 2017.

FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013.

JOÃO PAULO II. A catequese hoje: Exortação Apostólica Catechesi Tradendae. São Paulo: Paulinas, 1982.

JOÃO PAULO II.   Ecclesia in America: exortação apostólica pós-sinodal. São Paulo: Paulinas, 2002.

PAULO VI. Evangelii Nuntiandi: Exortação Apostólica do Sumo Pontífice sobre a Evangelização no mundo contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 1976.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO.  Diretório Geral para a Catequese. São Paulo: Paulus, 2020.

O livro do Profeta Jonas

Sumário

Introdução

1 A pessoa do profeta

2 Posição no cânon bíblico

3 Dinâmica narrativa, estrutura e gênero literário

4 Pontos de teologia

5 Atualização da mensagem

Referências

Introdução

Quem se propõe a ler e a estudar o livro do profeta Jonas se depara, de imediato, com uma personagem emblemática e que, por suas ações e reações, encarna pessoalmente dois movimentos determinantes na história sociorreligiosa do antigo Israel em suas relações com YHWH e com as nações estrangeiras: a desobediência e a obediência à ordem de YHWH e as consequências que derivam dessas duas posturas tanto ad intra como ad extra dessa história.

A figura do profeta será apresentada a partir dos dados internos ao livro, dos elementos da tradição judaica e, em particular, dos traços da sua personalidade. Estes são depreendidos das ações assumidas e dos diálogos com os diversos personagens que interagem com Jonas.

A partir das ações de desobediência e obediência de Jonas, com base na ordem recebida, pode-se perceber o fluxo e a dinâmica da narrativa e assim propor uma possível estrutura do livro. Como uma novela dramática de cunho edificante, visto que o livro de Jonas está em prosa, com exceção do Salmo em Jn 2,3b-10, a trama se desenrola e envolve o ouvinte-leitor, encaminhando-o para as consequências e desfechos que resultam das ações assumidas pelo profeta Jonas diante de YHWH, dos marinheiros e dos ninivitas.

Graças a esse percurso, é possível evidenciar diferentes pontos de teologia, pelos quais as duas fases do posicionamento do profeta, em relação à ordem recebida, permitem dizer que o conhecimento de YHWH, e a expressão da sua vontade (teologia), se tornam determinantes para a compreensão do comportamento de Jonas (antropologia). Com base na percepção desse percurso e dos pontos de teologia, será oferecida uma possível atualização da mensagem.

1 A pessoa do profeta

No título do livro, encontra-se a seguinte informação: “E veio a palavra de YHWH a Jonas, filho de Amitai. O verbo hāyâ introduz uma narrativa e poderia ser entendido como “e aconteceu”, “e foi uma vez” (Js 1,1; Jz 1,1; 1Sm 1,1; 2Sm 1,1; Rt 1,1). Nessa narrativa, entra em cena Jonas e se oferece um parâmetro familiar de identificação: “filho de Amitai”. O nome do pai parece provir de ’emet que significa “fidelidade”, “verdade”, “firmeza” etc.

O nome Jonas (yônâ), além de ser usado como nome próprio, também é um substantivo comum, muito recorrente no Antigo Testamento, e significa “pomba” (Gn 8,8-12), um dos dois voláteis que, junto à rolinha, eram aceitos como oferta dos menos favorecidos para o sacrifício a YHWH (Lv 5,7.11; 12,6.8; 14,22; 15,14.29; Nm 6,10; Sl 68,14). Por detrás do uso patronímico aramaico baryônâ (“filho de Jonas”), como Jesus designou a Simão Pedro (Mt 16,17), parece ocultar-se uma forma abreviada para o nome João (Jo 21,15.16.17).

2Rs 14,23-29 apresenta um resumo da vida e do reinado de Jeroboão II, que reinou no Israel norte (783-743 aC), enquanto Amasias reinava em Judá (796-781 aC). No v. 25 há uma referência ao profeta Jonas, filho de Amitai, e também se diz que era de Gat-Ofer. Esse local fazia fronteira com o território de Zabulon e Neftali (Js 19,13), pouco distante, inclusive, de Nazaré. São Jerônimo, no comentário ao livro do profeta Jonas, disse que Gat-Ofer estava a 3km de Séforis, pela estrada que conduzia a Tiberíades. Nesse local (atual Meshhed), encontra-se um túmulo atribuído ao profeta Jonas.

A tradição judaica, que dá uma grande importância ao livro do profeta Jonas, durante os dias que precedem o yôm hakippurîm, afirma algo muito interessante. Associa o profeta Jonas ao filho da mulher sunamita, que foi concebido e ressuscitado pela intervenção direta do profeta Eliseu (2Rs 4,8-37; 8,1-6). Esse menino, mais tarde, veio a se tornar um dos “irmãos profetas”, seguidores de Eliseu, e por este foi encarregado de ungir Jeú (841-814 aC) como rei do Israel norte (2Rs 9,1-10).

Pelo relato de 2Rs 14,25 e de acordo com essa tradição judaica, o profeta Jonas teria vivido e atuado durante os séculos IX-VIII aC. Sabe-se que Nínive foi a capital do Império Assírio (745-612 aC), destruída por uma coalisão de povos babilônicos em 612 aC. O profeta Jonas, segundo essa disposição, teria proclamado a palavra de destruição sobre Nínive entre o início da ascensão do Império Assírio e antes da destruição de Samaria em 722/721 aC.

Nesse sentido, a tradição judaica buscou dar uma explicação para a tolerância que foi aplicada pelo exército assírio por ocasião da destruição do reino do norte (2Rs 17,5-6). Era de se esperar uma enorme e cruel matança, atitudes típicas e bárbaras dos soldados assírios. Em contrapartida, houve deportação e um enorme abrandamento da violência, inclusive com atenção à solicitação dos povos que foram deportados para Samaria, mantendo-se o culto a YHWH (2Rs 17,24-41). Buscou-se, assim, explicar a medida que o rei de Nínive determinou para todos os ninivitas, em particular a conversão do caminho perverso e da violência (Jn 3,8).

Da leitura atenta do livro, percebe-se que Jonas possuía traços bem peculiares e uma personalidade rebelde, indiferente, audaciosa, perspicaz e até colérica.

No primeiro capítulo, Jonas foi capaz de se rebelar ante a ordem recebida de YHWH, de se fechar à missão e de empreender uma grande aventura, entrando em uma embarcação rumo a Társis, a fim de se distanciar de Nínive, tomando o sentido oposto. Em meio à tempestade, mostrou-se indiferente (Jn 1,5-6), mas, uma vez descoberto como a causa dela, assumiu a sua origem em primeira pessoa: “Eu sou hebreu e a YHWH, que fez o mar e a terra seca, eu sou temente” (Jn 1,11 – referência à descendência abraâmica em Gn 14,13 que deriva de Eber, considerado o antepassado primevo dos hebreus – Gn 10,24-25; 11,14-17). Sabedor de que, enquanto não saísse da embarcação, a tempestade não cessaria a sua fúria, não hesitou em indicar a solução: “erguei-me, lançai-me ao mar e se acalmará sobre vós” (Jn 1,12). Diante de tamanha resolução, os marinheiros tudo fizeram para não incorrer em um assassinato e, ainda, tiveram a coragem de declarar que Jonas poderia ser sangue inocente (Jn 1,14).

No segundo capítulo, Jonas, mantido com vida dentro do ventre do grande peixe, elevou a YHWH a sua prece, demonstrando-se capaz de reconhecer os motivos que o levaram a tão grande adversidade. Usou, contudo, a “conversão” dos marinheiros como motivo de apelação, dando a entender que até a sua atrevida desobediência fora causadora de um benefício que, em última instância, acarretou o louvor a YHWH. Em sua expertise, que retrata o conhecimento de seu Deus, fez um voto, a fim de obter salvação ou uma segunda chance. Nota-se que esse ponto encontra relação com a morte e ressurreição do filho da sunamita por Eliseu.

No terceiro capítulo, Jonas resolveu obedecer à ordem divina já que recebeu a segunda chance. Mesmo assim, porém, não deixou de lado o seu temperamento e a sua antipatia pelos pagãos. Em seus lábios brotou uma palavra de ameaça que bem retratava o seu íntimo desejo: “ainda quarenta dias e Nínive será destruída” (Jn 3,5). Ao invés de percorrer toda a cidade, caminhou apenas um terço dela, assumindo uma nova postura de indiferença.

No quarto capítulo, Jonas revelou o seu lado colérico e insatisfeito por dois motivos. Em primeiro lugar, porque intuiu que YHWH usaria de misericórdia para com os ninivitas que fizeram penitência e resolveram se converter. Em segundo lugar, por causa do forte calor que se abateu sobre a sua cabeça. Apesar de todas as medidas tomadas por YHWH em seu favor, Jonas manteve-se irredutível no seu modo de pensar a justiça divina. Demonstrou-se mais condescendente com uma planta do que com os seres humanos incapazes de discernir entre o bem e o mal de suas ações. Resulta, enfim, uma questão em aberto: teria Jonas compreendido a vontade salvífica universal de YHWH pelo uso que fez da sua misericórdia?

Assim, é perceptível que o livro não contém a mensagem de um profeta, propriamente dito, mas pretende descrever, através da sua aventura pessoal no confronto com a vontade de YHWH, como a história não caminha sem um rumo ou desprovida de divinos objetivos. A última palavra não tem o ser humano, ainda que profeta, mas o próprio YHWH.

2 Posição no cânon bíblico

Na Bíblia hebraica, o livro de Jonas encontra-se entre Abdias e Miqueias. Já no cânon da Septuaginta, encontra-se entre Abdias e Naum, dentro de uma ordem dos livros que difere bastante da hebraica. São Jerônimo, na Vulgata, adotou a ordem do cânon hebraico.

Parece que a opção da Septuaginta buscou assegurar uma continuidade temática entre Jn 4,11 em Na 1,1 pela citação de Nínive. Contudo, tanto no cânon hebraico como no grego, o livro de Jonas aparece depois do livro de Abdias, assegurando uma palavra dirigida a outros povos. No caso de Abdias contra Edom e no caso de Jonas contra os ninivitas.

3 Dinâmica narrativa, estrutura e gênero literário

O livro possui quatro grandes cenas. Cada uma corresponde a um capítulo. Graças a isso, fica relativamente fácil identificar as seções do escrito e as suas respectivas cenas, que podem ser individuadas do seguinte modo:

Jn 1,1-3: os personagens são YHWH e Jonas. Os lugares são Jerusalém (suposto) e o porto de Jope. As cidades de Nínive e Társis são objetivos a serem alcançados. O primeiro, na ordem de YHWH, e o segundo, na intenção isolada e fugitiva de Jonas.

Jn 1,4-16: os personagens são YHWH, Jonas, os marinheiros e o capitão. Os lugares são a nau e o mar. Todavia, Jonas, ao apresentar o Deus ao qual serve, evoca “os céus” e “a terra seca”. Jerusalém continua figurada e subentendida no v. 16.

Jn 2,1-11: os personagens são YHWH, Jonas e o grande peixe. Os lugares são o mar (as profundidades e bases das montanhas eternas) e o ventre do grande peixe. Jerusalém continua subentendida na oração que Jonas elevou a YHWH (Jn 2,3b-10). Ante a decisão libertadora de YHWH, do mar se passa para a terra seca (Jn 2,11).

Jn 3,1-10: os personagens são YHWH, Jonas, os ninivitas, o rei e os animais. O lugar é Nínive, mas deve-se dar destaque ao palácio e aos pastos dos animais.

Jn 4,1-11: os personagens são YHWH, Jonas, o rícino e o verme. Já os ninivitas e os animais ficam em segundo plano. O lugar citado é “o oriente da cidade”. Jerusalém fica subentendida em Jn 4,2, que evoca as qualidades de YHWH.

Tendo individuado as cenas e o seu conteúdo, nota-se que, de fato, a estrutura corresponde aos quatro capítulos do escrito em dois blocos que poderiam ser colocados a partir dos dois movimentos: antes da “obediência” e depois da “obediência” de Jonas à ordem de YHWH.

Primeira parte: antes da obediência à primeira instrução e suas consequências (Jn 1,1–2,11).

Segunda parte: depois da obediência à segunda instrução e suas consequências (Jn 3,1–4,10).

Esses dois blocos estão assegurados pela fórmula: “e veio a palavra de YHWH” (Jn 1,1; 3,1); e pelo respectivo objetivo: “levanta-te, vá a Nínive, a grande cidade e clama…” (Jn 1,2; 3,2). As cenas, com os seus respectivos personagens e locais, são admitidos como os limites para as duas grandes seções individuadas. Mandirola faz um esquema sugestivo (MANDIROLA, 1999, p. 16):

1,1-3

Deus e Jonas:

Deus chama,

Jonas foge

3,1-3

Deus e Jonas:

Deus chama,

Jonas obedece

1,4-16

Deus e os pagãos:

a tempestade sobre a naus

3,4-10

Deus e os pagãos:

a pregação de Jonas em Nínive

2,1-11

Deus e Jonas:

salvação e oração

4,1-11

Deus e Jonas:

lição sobre o amor de Deus

Portanto, dependendo de como os exegetas se posicionam diante do livro do profeta Jonas, é possível encontrar diversos gêneros literários propostos que variam entre “mito e história”, entre “legenda e midrash”, entre “novela e narrativa profético-teológica”. Contudo, independentemente da posição assumida pelo exegeta, pode-se afirmar que o autor tinha uma sólida formação e estava atento às posturas teológicas da sua época em relação aos pagãos.

A favor dessa afirmação está o uso apropriado de certas tradições e escritos proféticos já existentes, como é o caso de Jeremias que foi chamado para levar uma mensagem às nações (Jr 1,10 – Jn 1,2; 3,1-2), pautada na necessidade da conversão (Jr 18,11. 23,22; 25,5; 26,3; 35,15; 36,3.7 – Jn 3,8). Nesse sentido, a posição do rei de Nínive, que se empenha para afastar a ira divina (Jn 3,9), é algo relevante na profecia de Jeremias (Jr 4,8; 23,20; 30,24).

Ao lado de Jeremias, também é possível citar Ezequiel e seus oráculos contra Tiro e Sidônia (Ez 26,1–28,26), pois revelam o sentido de uma nação que, apesar de se julgar forte por suas habilidades marítimas, pela beleza perfeita de seus navios, os teve, porém, engolidos pelas águas (Ez 27,3.26-27 – cf. Jn 1,4-16).

A possibilidade de YHWH voltar atrás no seu plano punitivo (teshuvá), base para a conversão humana, é também comum a Jeremias e a Jonas (Jr 18,8; 26,3.13.19; 42,10 – Jn 3,10; 4,10). Até mesmo o desejo de morrer de Jonas (Jn 4,3.8) aparece subentendido em Jr 15,10; 20,14-18. Tudo isso favorece a partilha da sensibilidade pelo tema da misericórdia como sinal da identidade de YHWH, como em Jl 2,14 e Jn 4,2 com base em Ex 34,6-7, justificando e enfatizando, como em Jl 2,13 e Jn 3,10, a mudança de atitude em YHWH.

Enfim, o uso que Mt 12,38-41 e Lc 11,29-32 fizeram do livro de Jonas está centrado no olhar e na compreensão cristã do episódio do grande peixe para atestar a possibilidade da ressurreição de Jesus, após três dias no sepulcro, bem como no fato de que a geração dos ninivitas se demonstrou mais aberta para a conversão do que os interlocutores de Jesus.

Todavia, para além desse uso limitado no NT, é possível afirmar que o livro do profeta Jonas, ao lado dos cantos do Servo Sofredor, presentes em Isaías, encerra uma eficaz doutrina sobre o amor de YHWH por todos os seres humanos que, se não encontra explícita expressão no Antigo Testamento, é o principal elemento da pregação e das ações salvífico-libertadoras operadas por Jesus de Nazaré no confronto de judeus e de pagãos. É o olhar aberto e assumido pessoalmente pelo apóstolo Paulo no tocante à evangelização dos gentios.

4 Pontos de teologia

Quem é Deus no livro de Jonas?

Essa pergunta básica permite definir e delinear alguns traços e elementos característicos de YHWH que dirige a palavra a Jonas, se faz próximo e está por detrás dos acontecimentos. Nesse sentido, o uso do Tetragrama Sagrado ficou reservado para as falas que relacionam o Deus de Israel com o seu profeta. Em contrapartida, nos lábios dos marinheiros e dos ninivitas foi usado o nome comum: ’Elohîm (Deus).

O ponto central de toda a narrativa recai sobre o conhecimento e a relação entre a justiça e a misericórdia divinas. Sobre essa relação pode-se aproximar o livro de Jonas a Ex 34,6-7, como se verifica em Jn 3,9. Como Moisés, o profeta mais íntimo de YHWH (Dt 34,10-12), o profeta Jonas também teve a oportunidade de conhecer YHWH, experimentando o modo como conduz e determina não apenas os rumos da história do seu povo, mas toda a história universal. A última fala do livro pertence a YHWH e traz em questão o tema da misericórdia relacionada à ignorância ou à incapacidade humana para discernir entre o bem e o mal.

Nada escapa a YHWH, que faz surgir a tempestade, bem como a faz cessar, porque é o Deus que fez o mar e a terra firme. A sua onipotência se verifica tanto no agir visível como no invisível, representado no fato de um grande peixe engolir, preservar Jonas com vida e de cuspi-lo novamente em terra firme. Ao lado do grande peixe (Jn 2,1-2.11), em todo o Antigo Testamento, somente a serpente do Éden (Gn 3,1-19) e a jumenta de Balaão (Nm 22,22-35) atuam como protagonistas animados ao lado do ser humano e servem aos desígnios divinos.

YHWH, por ser o Criador, fez surgir e desaparecer o pé de rícino, através de um verme, a fim de testar a sensibilidade de Jonas em relação ao ser humano, ainda que visto como inimigo. Ao lado do reino animal, Jn 4,6-10 mostra a atuação do reino vegetal na vida do profeta. Sobre isso, ainda, o decreto do rei em Jn 3,7 é digno de nota, pois os animais, ao invés de serem sacrificados, para aplacar a ira divina, foram associados à penitência dos ninivitas.

Quem é o ser humano?

Para responder a esta pergunta bastaria colocar em confronto a pessoa de Jonas e os pagãos. Salta aos olhos, por um lado, o fechamento do profeta aos pagãos e, por outro lado, a abertura dos pagãos a YHWH diante da fala e das ações que envolvem Jonas. Enquanto o ouvinte-leitor esperaria do profeta um comportamento mais condizente com o conhecimento que tem de YHWH, desponta que os pagãos são os que mais facilmente se deixam influenciar pelos acontecimentos pontuais e anunciados pelo profeta. Nota-se, então, pela dinâmica do livro, que YHWH é mais bem acolhido, ou melhor, temido e respeitado pelos de fora do que por aquele que representa seu enviado a pronunciar uma palavra de juízo diante dos acontecimentos.

Subjaz ao livro de Jonas uma profunda teologia da salvação que coloca em xeque o fechamento aos não judeus. Graças à desobediência de Jonas, que decidiu sair da presença de YHWH, aconteceu a conversão dos marinheiros diante da possibilidade da morte causada pela forte tempestade. Graças à obediência de Jonas, que anunciou a destruição de Nínive, isto é, por uma breve palavra causou uma tempestade dentro da cidade, aconteceu a conversão dos ninivitas. Em ambos os casos está latente o interesse de YHWH pela salvação dos pagãos.

Em contrapartida, a salvação de Jonas da morte por afogamento, através de um grande peixe (elemento marcadamente mitológico), e a aflição do profeta, que pediu a sua morte por ver a misericórdia de YHWH sendo dada aos ninivitas, se contrapõem ao que sentiu pela morte do rícino que lhe proporcionou um pouco de sombra e frescor sobre a cabeça. Tal fato acentua a contradição do profeta, que representa uma concepção salvífica de matriz nacionalista.

Portanto, para uma abertura e sensível compreensão do livro do profeta Jonas, é preciso levar em conta a pluralidade dos temas teológicos subjacentes ao escrito. O interesse pelas celebrações cultuais de tipo penitencial e pelas tradições proféticas em circulação enfatiza que o valor da revelação, pautada em uma profecia de castigo, permite compreender que a salvação do povo eleito não significa a condenação dos demais povos. A teologia da graça, presente no livro, aponta para o fato de que a conversão dos marinheiros e dos ninivitas não foi um mero capricho divino, mas passou pelo comprometimento e atuação do profeta, ainda que este necessite ser convencido de que a vontade de YHWH está pautada na sua onisciência.

O profeta Jonas não é um egocêntrico, mas representa a postura dos que compreendem a realidade salvífica de forma estreita e ainda muito voltada para si mesma. Por isso, a última fala do livro está em aberto, desejosa de encontrar a resposta favorável em cada ouvinte-leitor.

5 Atualização da mensagem

Pensar a fé e seus desdobramentos, a partir das próprias convicções religiosas, continua sendo um desafio a ser superado não apenas pelas diversas expressões religiosas presentes no mundo, mas por cada pessoa que se considera fiel à fé que professa e à doutrina que segue.

Nesse sentido, pode-se dizer que a aflição de Jonas foi menor em relação à misericórdia de YHWH do que em relação à capacidade de conversão que encontrou nos marinheiros e nos ninivitas, apesar desses serem vistos como malvados, violentos e cruéis. A aflição de Jonas atesta, também, o ímpeto da sua personalidade no confronto do seu povo, que deixa de crescer porque se fecha aos pagãos e não lhes concede compaixão a exemplo do seu Deus.

Ler e estudar o livro do profeta Jonas são apelos para a capacidade que cada fiel deve ter para olhar dentro de si mesmo, a fim de reconhecer que as próprias limitações e desilusões religiosas podem ser um excelente caminho de conversão pessoal e eclesial.

Quando se assume uma postura totalitária, pior ainda se essa é de matriz religiosa, a gravidade dos erros é aumentada e extremamente potencializada. Basta pensar no rei Davi, que foi dura e sabiamente reprovado pelo profeta Natã através de uma simples parábola (2Sm 12,1-15), ou no ensinamento sobre o amor ao próximo na parábola do bom samaritano, contada por Jesus (Lc 10,30-35), para se perceber que o ser humano é capaz de demonstrar o pior de si quando a religião se torna mais importante que as obras da fé pela caridade.

Então, há no livro de Jonas um apelo didático à conversão pela aceitação do amor de YHWH por cada ser humano. Por isso, o livro termina sem uma resposta para a questão deixada por YHWH a Jonas. O auspício é que cada ouvinte-leitor se deixe conduzir pela provocação do autor que protesta contra uma religiosidade augusta, mas exclusivista. Além disso, deixa claro que é preciso abandonar a comodidade religiosa e assumir uma postura mais aberta e missionária, sem pensar ou taxar quem é diferente como inimigo, ainda que considerado cruel. Se fosse assim, o pobre Ananias teria razão e Saulo não teria sido batizado (At 9,10-19).

Que a onipotente misericórdia de Deus, sobre indivíduos, povos e nações, do Oriente ao Ocidente, encontre, em cada um de nós, o espaço livre para o amor construir as razões que mostram o real sentido da obediência a Deus e à sua vontade: a vida que supera a morte. Esta é a grande lição do livro do profeta Jonas.

Leonardo Agostini Fernandes. PUC-Rio). Texto original em português. Enviado: 02/02/2021. Aprovado: 11/02/2021. Publicado: 24/12/2021.

Referências

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WOLFF, H. W. Studi sul libro di Giona. Brescia: Paideia, 1982.

Teologia da criação

Sumário

Introdução

1 A história da relação entre fé na criação e ciências: questões epistemológicas

2 O testemunho bíblico da fé na criação

2.1 A Palavra com Espírito, origem da criação

2.2 A ordem ecológica e maternal da criação

2.3 A curvatura ética do humano, imagem e semelhança do Criador

2.4 O crescimento do humano, sua polivalência e a pedagogia divina

2.5 O Primogênito da Criação: o Novo Adão e o Novo Caim

3 A criação como paradigma universal: a doutrina cristã

3.1 Um Criador antes da criação: o Pai e Poeta da criação e suas duas mãos na creatio ex nihilo

3.2 O mistério do mal, o sofrimento, a providência divina e as dores de parto da criação

3.3 Estética, ética e espiritualidade da criação: a beleza, o cuidado, o louvor

Referências

Introdução

A Teologia da Criação (TC) ganhou novos insights e tornou-se mais complexa ao longo do século XX e começo do século XXI, e estas são as razões principais: 1. Uma nova compreensão que a ciência obteve a respeito de si mesma nesse tempo, de tal forma que se trata de uma nova revolução científica, da qual se reconfigurou uma nova cosmologia em toda a sua extensão, desde a astrofísica até a física subatômica e quântica, e sua contribuição crítica e inspiradora para a TC; 2. Uma nova hermenêutica bíblica e das narrativas religiosas em geral, possibilitando a distinção e o respeito às diferentes linguagens, especialmente a científica e a religiosa; 3. A urgência sinalizada pela crise ecológica de forma generalizada, obrigando a pensar uma ecoteologia como parte de uma nova alfabetização ecológica para uma nova espiritualidade e uma urgente ética ecológica e planetária correspondente. A TC deve dar suporte para uma “conversão ecológica” (Laudato Si’ n. 216-221).

Os autores que aprofundaram e publicaram textos em torno da TC nesse período têm em comum, como uma exigência metodológica, a criação de uma nova epistemologia compondo as três razões acima, de forma interdisciplinar, arriscando inclusive, para assuntos fundamentais, uma linguagem transdisciplinar. Pode-se afirmar que nem é mais possível elaborar uma TC sem um complexo exercício interdisciplinar na forma de diálogo com diferentes ciências da natureza e diferentes ciências humanas (POLKINGHORNE, 2000, p. 123-135). Tratando-se de teologia, a TC tem, em última instância, o desafio da recolocação da natureza no horizonte metafísico religioso sem se esquivar da palavra das ciências e de regras de hermenêutica. A TC não é rival ou concorrente das ciências, mas tem a vocação para a totalidade e, para além da totalidade como “criação”, a sua relação com a transcendência de uma alteridade criadora. Assim, por exemplo, “que o ser humano possa conceber a natureza como um ‘todo’ é já um fato metafísico e uma afirmação de sua transcendência” (LENOBLE, 1969, p. 384). O “Todo” é, no entanto, mais do que um universo físico ou um mundo pesquisado e jamais exaustivamente conhecido pelas ciências, mas uma “totalidade aberta”. “A concepção de mundo depende somente em pequena parte das ideias científicas. Ela reflete muito mais as necessidades morais e sociais, e mais ainda, desejos inconscientes (…) é neste nível que se opera a junção da ciência e da vida” (LENOBLE, 1969, p. 31). Assim, “a história da ciência (…) é uma lenta reforma da consciência por ela mesma, para ganhar enfim o direito de ver a natureza tal qual é” (LENOBLE, 1969, p. 32). Em sua plenitude, o nome da natureza, do mundo, do universo, é “criação”.

Uma TC pode, portanto, se organizar em três estágios: 1. A história da relação entre fé na criação, ciências e contextos: o contexto histórico permite compreender a história da doutrina sobre a criação em diálogo e eventualmente confronto com as ciências de cada tempo histórico, e a exigência de reformulação continuada da epistemologia para uma adequada TC (KÜNG, 2007, p. 13 et seq.); 2. O sentido criacional das narrativas canônicas da fé, a Escritura e seu percurso – da primeira página do Gênesis à última página do Apocalipse e vice-versa. A teologia cristã da criação tem seu ápice privilegiado, do qual se compreende a totalidade da criação, em Cristo (MALDAMÉ, 2005, p. 29-36). No atual estágio de pluralismo e de diálogo de religiões, também esse percurso bíblico e cristão deve se dar em diálogo com outras narrativas religiosas; 3. As consequências práticas são compreendidas à luz dos pontos precedentes: são consequências ecológicas, litúrgicas e éticas, incluindo o mistério do mal e o sofrimento na criação, a providência e a graça presentes na criação, a redenção e o cuidado da criação.

1 A história da relação entre fé na criação e ciências: questões epistemológicas

A historicidade de todo conhecimento, inclusive teológico, é parte da nova epistemologia no sentido mais amplo, assim como, mais especificamente, a historicidade da ideia de natureza e de criação. Na história da relação entre fé na criação e ciências, o Ocidente conheceu diferentes posturas, e que em certa medida permanecem, ainda que só residualmente ou então reinterpretadas com novo vigor desde uma nova epistemologia:

1. O conhecimento mítico e a relação mágica do ser humano com a natureza, percebida de forma anímica, habitada pela divindade ou mesmo confusa com a divindade: panta plere theon – tudo está cheio do divino, conforme referência crítica de Aristóteles ao pré-socrático Thales de Mileto em De Anima, 411a. Trata-se de uma cosmologia simbiótica, em que a natureza é vista como um grande seio, algo como um panteísmo ou “panenteísmo” maternal e nutritivo, percepção típica de coletores e caçadores. Pode ser chamada de relação “animista”, cuja experiência e verdade permanece na relação com a “mãe Terra”, a Pachamama ameríndia ou grega ou indiana, mesmo quando a terra seja considerada também uma criatura, nossa “irmã e mãe Terra” (São Francisco – Cântico das Criaturas).

2. A ruptura sedentária com a simbiose cósmica, na criação de um espaço próprio, possibilitou uma percepção de alteridade criadora. Produziu geralmente uma relação expiatória e sacrificial, uma dívida original, a ser saldada num círculo de dons: aos dons divinos através da natureza, a devolução de dons humanos através dos sacrifícios. Pode ser chamada de relação “pagã”, conforme a etimologia da palavra paganus – o que está conectado com o campo, com a natureza e suas manifestações divinizadas. Ganha múltiplas formas culturais e religiosas, desde simples oferendas até grandiosos e trágicos sacrifícios humanos. O círculo de dons da criação, com reconhecimento e retribuição, permanece de diferentes formas nas práticas religiosas, inclusive com mutações semânticas, sendo a eucaristia uma delas, pois a eucaristia cristã tem no seu ápice a presença viva de Cristo em seu memorial de pão e vinho.

3. Já na história do cristianismo, tal como na relação entre fé e razão, há tensão e situações de conflito entre a fé na criação e o caminho das ciências, com duas situações extremas: a redução do conhecimento científico ao conhecimento teológico, como em São Boaventura (De reductione artium ad theologiam), embora a conceito medieval de ciência esteja mais próximo de Aristóteles do que das ciências modernas; e, vice-versa, a redução do conhecimento teológico ao conhecimento científico, o que marca profundamente os séculos de modernidade, desde as pesquisas e experimentos de Leonardo da Vinci e Galileu até o começo do século XX. O conflito, na modernidade, conduziu também à mútua exclusão, mútuo desconhecimento e indiferença. A teologia interessou-se preferencialmente pela dimensão antropológica e histórica como sendo o mundo privilegiado de um drama humano que se desenrola sobre o palco de uma natureza estática como suporte e moldura, abandonando assim o estudo da natureza, do cosmos e da vida biológica, às ciências. Houve, tal como em filosofia, um “superaquecimento da História – com H maiúsculo, como um sujeito – em detrimento da Geografia emudecida e coisificada, com perda das conexões humanas com a terra e o cosmos. Em termos pastorais, a teologia, a moral e a espiritualidade se reduziram com frequência ainda mais à preocupação da redenção da alma. O resto – até mesmo o corpo – seria um acréscimo formal na ressurreição do Último Dia, mas sem significado próprio e consequente. A TC perdia aqui todo o seu peso, e toda a escatologia coube num simples ponto abstrato: “Salva tua alma!” (cf. MOLTMANN, 1993, p. 42 et seq.).

4. A aceitação e acomodação de um paralelismo de verdades: na Idade Média, as verdades paralelas – o que seria verdade na ciência não necessariamente seria verdade na palavra da revelação divina e vice-versa – eram um problema de lógica, mas também uma evasão diante da perseguição religiosa, no caso de Avicena e Averróis. O paralelismo não foi aceito pelos escolásticos cristãos. Uma relativa autonomia metodológica e mútua referencialidade foram as soluções encontradas, de tal forma que, em linguagem escolástica, em primeiro lugar há o Liber Naturae, e, quando este se tornou difícil de compreender teologicamente, o Criador ofereceu o Liber Scripturae para ler melhor o primeiro. A relação entre natureza e graça sobrenatural, entre razão e fé, como entre terra e céus, visível e invisível etc. são duais que seguem a mesma dinâmica de relativa autonomia, mas de mútua referencialidade. O essencial desta postura, antes ainda dos escolásticos, está posto desde os concílios da Igreja da Antiguidade no primeiro artigo do Credo. Diante das tensões do século XIX, com o sucesso crescente da teoria darwinista da evolução, é reafirmado pelo Concílio Vaticano I em seu documento Dei Filius. E no final do século XX, é novamente exposto pela encíclica Fides et Ratio, de João Paulo II.

5. O concordismo moderno, um modo especial de acomodação em favor da religião, busca nas pesquisas científicas as provas de que “a Bíblia tinha razão”. Este esforço paga o alto preço do fundamentalismo literário, sem levar em conta a exegese científica e a hermenêutica. Pretende, por exemplo, encontrar e identificar sobre o monte Ararat algum resto da mítica arca de Noé.

6. O positivismo, em contraposição, é o reducionismo científico que chegou ao paroxismo no final do século XIX e começo do século XX, de tal forma que a ciência ocupou o lugar da religião e se tornou religião. Reduziu toda capacidade de verdade às ciências, excluindo a arte, a literatura, e, claro, a teologia, de modo especial uma possível TC. Em reação, até nossos dias, a “cientologia” e, de alguma forma, o espiritismo, como diversas teosofias e novos gnosticismos, lutam por manter certa fusão e concordismo de fé e ciência.

7. Um caso emblemático plantado no século XIX, depois da afirmação da teoria da evolução, que retorna como um avatar das tensões na relação entre fé na criação e ciência, é o embate entre evolucionismo e criacionismo. Trata-se de uma confusão de linguagens e de modos de relação com o universo, especialmente os seres vivos. Enquanto objeto de observação e de pesquisa, o universo e a vida são adequadamente conhecidos e explicados através da evolução. A teoria da evolução, não só dos seres vivos, mas inclusive de um universo em expansão, é atualmente a melhor teoria científica. No entanto, enquanto objeto da profissão de fé, ou seja, de uma alteridade criadora, o mesmo universo é confessado como criação divina. São duas linguagens e duas formas de conhecimento e, inclusive, de experiência da realidade (MOLTMANN, 1993, p. 68 et seq.; p. 90 et seq.). A afirmação de um designer inteligente na origem do universo é da ordem da fé, que a ciência não pode nem afirmar e nem negar, não faz parte da aula de ciência, faz parte da aula de religião e sua hermenêutica. Para quem crê segundo o sentido da narrativa bíblica, desde o Gênesis até o Apocalipse, o evolucionismo – e não a teoria de um universo fixo e estático ou de cada elemento criado desde um começo cronológico segundo seu estado atual – é a teoria que mais se adequa à profissão de fé na dinâmica da criação através de uma história ainda em aberto. Não há necessariamente, portanto, conflito e exclusão, mas relativa autonomia e mútua referencialidade entre evolução e criação para quem crê: tanto a ciência como a fé são saberes diferentes e abertos, instigantes e, portanto, ainda compreensões em crescimento.

Convém notar que o criacionismo se configurou como reação ao positivismo das ciências no começo do século XX nos Estados Unidos, e foi um dos postulados da afirmação dos fundamentos da fé cristã segundo o catecismo de algumas denominações cristãs, o que ficou conhecido como fundamentalism. Com a entrada das ciências hermenêuticas, sobretudo a partir da historicidade, da fenomenologia e da psicanálise, o fundamentalism passou a significar a incapacidade de interpretação, o literalismo, o biblicismo, a religião sem mediação hermenêutica, o que leva a absurdos tanto na área do conhecimento como nas consequências práticas, morais e sociais. Assim, fundamentalismo acabou ganhando um sentido muito amplo e afetou profundamente não só a interpretação da criação, mas da própria condição humana, da sexualidade e dos estudos de gênero, do que se entende como milagres e graça, da oração, e até da sociedade e da política. A TC teria sido apenas um horizonte justificador desta visão se a emergência ecológica não tivesse vindo para o centro das atenções em nossos dias. Hoje o fundamentalismo é uma grave patologia da fé.

8. Uma dificuldade de fundo a ser bem compreendida para a elaboração de uma adequada epistemologia em TC é o que observa o medievalista Jacques Le Goff (1999) em relação aos dois mil anos de cristianismo. Segundo Le Goff, o primeiro milênio se caracterizou mais por um afastamento do que por uma integração da natureza à espiritualidade cristã, e por uma concentração antropológica afastada do resto da natureza. Agostinho representa bem tal postura. Por um lado, a natureza poderia sugerir uma relação “pagã” diante da sedução fascinante e tremenda dos elementos da natureza divinizados, permanecendo nos elementos do mundo o sagrado que é próprio de Deus. Para os judeus, herdeiros primários do profetismo, a distinção já estava bem estabelecida ao insistirem na transcendência divina da qual não se diz o nome e nem se faz nenhuma figura, e as narrativas da criação no Gênesis e nos livros de sabedoria amparam tanto a absoluta distinção como a relação entre a soberania divina e a sua criação. Mas cada vez mais os cristãos provinham do paganismo, e diante da tentação de resíduos pagãos com relação a elementos da natureza virtualmente divinizados, a melhor solução foi inspirada na hierarquia platônica das realidades, de tal forma que, comentando a Escritura, o ser humano é posto no topo da hierarquia das criaturas, numa relação de domínio à imagem da soberania divina. A esse antropocentrismo soberano, hierárquico, positivo e otimista, se junta o seu contrário para dar conta da realidade: o ser humano pecou, se perdeu e decaiu de tal forma que a redenção se torna o grande drama do ser humano sobre a terra, redundando assim num “antropocentrismo negativo” e pessimista, e para tanto se utilizou exaustivamente o terceiro capítulo do Gênesis. Com a doutrina do pecado original, além do capítulo quinto da carta aos romanos, este antropocentrismo negativo ganhou força absorvente, e a redenção do mundo acabou sendo reduzida à abstrata redenção da alma, ainda que formalmente se professasse a ressurreição dos corpos. Todo interesse se reduziu a “Deus e alma” – e nada mais (Deum et animam scire cupio, nihil aliud – Sto Agostinho).

Ainda segundo Le Goff, o começo do segundo milênio conheceu certo apaziguamento e equilíbrio com a natureza, o que permitiu São Francisco de Assis cantar com as demais criaturas “irmãs”, e Santo Tomás podia pensar mais tranquilo sua TC com categorias ontológicas (LE GOFF, 1999, p. 7). A categoria aristotélica de “causa”, distinguindo uma causa “primeira”, o Criador, e causas “segundas” no interior da criação participando do ato criador divino – participação como recebimento e colaboração –, permitiu Santo Tomás utilizar junto com o conceito de creatio, como um sinônimo, o de emanatio, tomado de Plotino pela teologia cristã, sem que emanação tivesse algum sabor de panteísmo (Summa Theologica I-I, q.XLIV-XLV). Mas a TC continuou impenitente na hierarquia e submissão das criaturas, inclusive com o detalhe de que as superiores estão mais próximas do Uno – Deus e Criador – que está acima da hierarquia. Ora, quanto mais se desce na hierarquia mais se degradam as criaturas na multiplicidade e se afastam da perfeição divina. Além disso, o acento na “causa eficiente” em detrimento da causa exemplar e, sobretudo, da causa final, empobreceu a TC.

Na religiosidade cristã medieval, porém, para além da teologia erudita, teve mais impacto a relação existencial de caráter fraternal de São Francisco com as demais criaturas, inclusive com o sol e a terra, que impregnou a espiritualidade de empatia criatural e deixou uma herança sempre possível de ser resgatada e experimentada até nossos dias.   

No entanto, esse tempo medieval de certo apaziguamento e equilíbrio não durou muito, pois desde os porões da Idade Média, com forte emergência no otimismo renascentista e nos tempos da modernidade, já na forma de sequestro da hermenêutica bíblica, sobretudo sequestro reducionista de Gênesis 1,26.28 – o domínio do homem sobre as demais criaturas – firmou-se uma relação hierárquica de poder, submissão e manipulação por parte do ser humano sobre a natureza. Costuma-se citar a visão de Francis Bacon, um dos epistemólogos das ciências modernas, de que saber é poder. Tal modo de saber ou intenção no saber deixa para trás a teoria como contemplação para utilizá-la como fonte de técnica, de tecnologia, apropriação e produção. Por isso é necessário, no método da ciência, segundo Bacon, “torturar” a natureza para que ela entregue seus segredos. Há o sequestro da própria ciência, primogênita da modernidade, na aplicabilidade do conhecimento não simplesmente para melhorar as condições de vida, mas para se apropriar e capitalizar, colonizar e acumular. Desde o século XVI, seja de forma extrativista e mercantilista, genocida e escravagista, seja de forma industrial e financeira, estrutura-se e globaliza-se o sistema capitalista, que é mais do que um sistema econômico: é um modo de estar no mundo, de compreender o mundo, de se relacionar e se apropriar do mundo, inclusive abusando do mundo. Pode-se constatar que o capitalismo é a secularização da cartesiana “ideia de infinito”: Deus me abençoa na missão de produção e reprodução de capital, como uma capitalização sem limites! Uma TC realmente cristã, nessas circunstâncias, só é relevante se for profética, contracultural e eficaz para experimentar o mundo de outra forma, aquela que se inspira na tradição bíblica e nos melhores momentos da tradição cristã segundo uma hermenêutica mais justa para com os textos e seus contextos. Ela pode ganhar novo frescor teórico ao dialogar com tradições não ocidentais, indígenas e autóctones, que mantêm uma postura mais respeitosa para com a alteridade das criaturas e de um mundo que existe muito além de um conjunto de recursos, como uma comunidade de vida inclusive anterior ao ser humano.

9. Para uma epistemologia adequada em termos de TC será sempre necessário, como um a priori, que se mantenha a reserva de alteridade e de mistério da criação – mysterium creationis – mesmo estendida no espaço e no tempo de forma histórica. Esse mesmo mistério permanece na compreensão do mal e do sofrimento desproporcional – o mysterium iniquitatis. Mas permanece também, por um lado, na compreensão ou aceitação da infinitude e da potência do amor, e, por outro lado, na compreensão da finitude e contingência de toda a realidade criatural, inclusive humana. Por isso a própria TC confessa a priori sua limitação e necessidade de permanecer – assumindo rigorosamente a tautologia – na abertura de todo sistema aberto e de um saber incompleto. Enfim, será necessário, com a temporalidade e a evolução, com a historicidade e a abertura ao futuro, com os riscos de regressão e de caos, manter o caráter processual: uma TC deve considerar, sob o caráter relacional de criação e alteridade de um Criador, três dimensões abrangentes na articulação de tempos e espaços: o princípio ou origem, a história ou drama de criação e originalidade contínua, e a esperança de uma finalização boa. Ou seja, uma origem como singularidade intransponível, um processo complexo e aberto em todos os estágios do macro e dos microcosmos, e o vislumbre da finalização ou plenitude do processo para além de todo relógio ou calendário. É o que Moltmann organiza como criação originária, criação continuada e nova criação – utilizando a categoria de novum a partir da promessa bíblica de futuro absoluto, escatológico, a participação da criação no Reino da Glória divina. Ou, escolasticamente falando: a causa final e razão última, que é também causa eficaz, é o sentido e compreensão última de todo o processo e da sua origem (MOLTMANN,1993, p. 263 et seq.). Esta tese fundamental da TC encontra um paralelo na nascividade originária, continuada e escatológica da condição humana, tendo a ressurreição dos mortos, ou a transfiguração gloriosa de nossos corpos mortais na comunhão divina, a mesma predestinação boa que o universo tem nos Novos Céus e Nova Terra. Estas duas afirmações da fé cristã têm uma conexão intrínseca.

10. É produtiva também, em termos de TC, a utilização da categoria de Wolfhart Pannenberg, tomada do grego: prolepsis – antecipação – que ele aplica à antecipação, na ressurreição de Jesus, da ressurreição dos mortos e começo da plenitude escatológica. Isso permitiu a Moltmann colocar vigorosamente o futuro absoluto da criação – o Reino da Glória divina, trinitária – como o ponto inicial de compreensão de todo o processo criacional, desde o seu primeiro instante originado na decisão divina de “predestinação” de toda a criação à comunhão da glória divina.

11. A categoria teológica de passivo divino, tomada da teologia bíblica de Gerhard Von Rad, também se aplica eficazmente em TC. Em sua Teologia do Antigo Testamento, Von Rad localiza no relato do Êxodo o acontecimento unificador que interpreta não só a história da fé de Israel e a razão dos textos bíblicos mais diversos e dispersos, mas também o sentido dos relatos da criação do universo e do ser humano sobre a terra nos primeiros capítulos do Gênesis. E, no entanto, não está em foco uma autorrevelação direta do Criador ou do Libertador de Israel, pois Deus não necessita de revelação de si mesmo, e só se dá a conhecer indiretamente, nos acontecimentos que ele cria e pelos quais ele salva. Sua revelação é para nós, para a criação, e por isso acontece no interior dos acontecimentos criadores e salvíficos. Através do Êxodo e do acompanhamento de seu povo, sabemos que é um Deus compassivo, libertador e criador de futuro desde a criação. Por um lado, a estrutura do passivo divino é própria do radical não narcisismo de Deus e de sua kénosis e shekináh amorosa desde a criação e desde seu acompanhamento histórico, e por outro lado é a abertura à corresponsabilidade humana, à seriedade da liberdade, da decisão e da ação humana no mundo, na esperança de uma plena interlocução e comunhão da criação com o Criador nos Novos céus e Nova Terra, o Reino da Glória.

2 O testemunho bíblico da fé na criação

Na variedade de gêneros literários das Escrituras está explícita ou implicitamente presente a confissão de fé em um Deus Criador. Assim, encontramos os textos narrativos dos dois primeiros capítulos do Gênesis – ou dos onze primeiros capítulos, segundo uma visão do drama da humanidade sobre a terra mais integrada à criação. Nos textos de contemplação e louvor dos salmos há reconhecimento da alteridade do Criador, como também no texto enigmático e quase cético do Eclesiastes, na alusão da sabedoria aliada à criação no livro da Sabedoria, no texto dramático de Jó, com a afirmação da obra divina de criação como resposta à tragédia absurda da vida pessoal de Jó sofredor. Os textos proféticos recorrem ao Criador e à sua fidelidade para afirmar a esperança e as possibilidades de nova criação. Assim, a Escritura testemunha, de forma disseminada, variada e constante, uma postura de relação com uma alteridade criadora. Não é originalidade absoluta, pois tal postura se encontra em muitas tradições religiosas desde as mais arcaicas. Mas é original o modo como se dá sua interpretação na Escritura. As imagens, analogias, metáforas, verbos de ação criadora, são eventualmente tomadas da cultura semítica mais ampla e do entorno cultural, herdadas de culturas mais antigas da Mesopotâmia, do Egito, depois da Pérsia e do helenismo. Há, no entanto, um filtro da fé eloísta e javista, com uma releitura que utiliza coerentemente os diversos elementos tomados das culturas, e que dão originalidade à Bíblia assim como a conhecemos. A estrutura mítica das narrativas de criação na Escritura toma mitologemas existentes, figuras e categorias míticas – por exemplo, a árvore e a fruta proibida, a serpente etc. – como tijolos de uma antiga casa para a construção de uma nova casa com nova arquitetura, um novo texto, com novo sentido e consequências originais.

O Novo Testamento, por sua vez, elabora a partir de Cristo e do Espírito Santo uma nova interpretação, uma releitura, das Escrituras judaicas. É o método de recapitulação ou recirculação. O Novo Testamento nos apresenta assim uma TC especificamente cristã, centrada em Cristo e integrante essencial da identidade cristã.

2.1 A Palavra com Espírito, origem da criação

No princípio estão DABAR e RUAH. “Disse Deus, no princípio, quando criou céus e terra: faça-se…” (Gn 1,1.3). Esta origem da criação a partir da Palavra divina inaugura as Escrituras, e o primeiro versículo de toda a Bíblia atravessa-a inteira até seu último versículo, no final do Apocalipse, em que o Espírito e a Esposa clamam: “Vem, Senhor!” (Ap 22,20b), ou seja, torna a Bíblia inteira uma “obra aberta” testemunhando uma criação que ainda não chegou a seu termo. O primeiro versículo da Bíblia não pode ser separado do seguinte, condição eficaz da palavra: O Espírito divino – a Ruah – na imagem de um imenso pássaro movendo suas asas dá movimento e temperatura “às águas”, infusão de vida juntamente com a ordem da Palavra sobre a criação ainda em caos. A Palavra manda que se faça, separa e abençoa, infunde consistência e bondade própria em cada ser, e, conforme interpretação de Agostinho, cria o mundo e o tempo conjuntamente: “o mundo com o tempo e o tempo com o mundo”.

Estamos diante de uma narrativa de sentido, e a pergunta, portanto, não é científica, mas de sentido teológico: o que isso significa teologicamente e quais as suas consequências? Por um lado, o respeito à absoluta transcendência divina do Criador. E por outro lado, a afirmação da fé de que a criação acontece a partir de uma decisão criadora, pois a palavra provém de uma manifestação pessoal, de uma vontade livre e incondicionada, que se manifesta naquilo que decide criar, e que captamos nas próprias criaturas como bondade criacional, intencionalidade que provém de sua bondade, de sua eudokía (Ef 1,5). Por isso podemos conhecer algo do Criador em cada criatura, e conhecer bem a criatura nos leva a uma boa ideia do Criador, uma afirmação agostiniana avalizada por Tomás e mais tarde pelo Concílio Vaticano I, na constituição dogmática Dei Filius, contra o exagero dos que tendiam a separar de tal forma a transcendência divina que afirmavam não se conhecer nada de Deus a partir das criaturas ou da razão.

O Criador age com Espírito – Ruah Yaweh – tal como move a palavra dos profetas e as posturas libertadoras e ordenadoras suscitadas em Moisés, em Samuel e em todos os que falam e agem com a potência do Espírito. Portanto, o que o Criador profere também faz acontecer. E sua potência coincide com sua bondade, por isso o que cria é bom, ganha bondade como consistência e autonomia, bondade criatural. É o que se pode entender da bênção que se inscreve em cada criatura – tudo o que ele faz é bom. Não se trata, segundo a narrativa, simplesmente de um impulso inicial, de uma criação geral ainda indefinida para que a própria criação evolua autonomamente, mas se trata de uma criação discriminada, cada criatura ganhando seu estatuto de criatura pela palavra criadora, que será acompanhada de espírito. Assim, segundo a dimensão ecológica da criação, não há criatura inútil e sem sentido, sem bondade e graça própria, e nada, ainda que frágil e mortal, é desprezível, pois o Criador, como confessa o sábio, criou por amor e ama o que criou: “Tu amas tudo o que criaste […] se alguma coisa tivesses odiado, não a terias feito. E como poderia subsistir alguma coisa, se não a tivesses querido?” (Sb 11, 24-25a).

A TC bíblica tem no primeiro capítulo da Escritura uma Ouverture reunindo os principais eventos da história e, sobretudo, da Promessa de futuro feliz da criação. Pois, segundo o final da narrativa, Deus tem seu eterno gozo sabático na criação, como o amado repousa com gozo os olhos na sua amada. O sábado é o tempo sem uma ação criadora que dê substância ao tempo, assim como os tempos anteriores. O sábado é a criação de um tempo através da bênção ao tempo. O Criador abençoa e assim cria um tempo especial, indicador do sentido, da direção, da promessa de gozo de toda criação e de toda a história da criação: a feliz convivência no gozo sabático da criação reunida em comunhão com o Criador – comunidade de vida e não hierarquia de seres. Assim, ao trabalho e à expansão da criação, com perseverança e paciência, correspondem a promessa e a convergência na direção da reunião e do gozo da comunidade sabática. Em termos simples: a beatitude, a felicidade da comunhão sabática, de estar face a face com Deus, é a razão teológica, causa final da criação, segredo de sua bondade, pelo que valem a pena também os sofrimentos do percurso histórico.

2.2 A ordem ecológica e maternal da criação

É próprio de narrativas clássicas terem uma ordem lógica de sentido. Pode-se encontrar na primeira página da Escritura uma ordem de fecundidade ecológica: cada criatura, a partir do seio primordial da luz, se torna também seio, um espaço e condição de fecundidade para as criaturas seguintes. Espaços ecológicos de fecundidade, que têm no seio materno o primeiro espaço humano e que servem analogicamente de parâmetro. Assim, depois do seio inaugural da luz como condição básica de toda criatura, há as “grandes águas”, a hidrosfera que também analogicamente é experiência humana originária no líquido amniótico, hidrosfera oceânica de nutrição. Da hidrosfera passamos à atmosfera, ao seio da respiração. E com a separação da “terra seca” se criam novos seios, de plantas e animais terrestres que respiram, e se estabelecem assim os três espaços ou seios de seres vivos: na água, na terra e no ar. Sobre a terra, animais não humanos e humanos têm em comum a nutrição de plantas, sementes e frutos. Curiosamente, a alimentação com carne animal não tem, segundo o relato bíblico, uma origem criacional, é mais tarde uma licença em momento crítico da decadência humana, dada a Noé após a devastação da terra pelo dilúvio, e isso lhe custará a inimizade e o pavor animal (cf. Gn 9,2-5).

Os céus são parte essencial da criação em conjunto com a terra, segundo o primeiro versículo bíblico, que se repete no final do relato e abre o capítulo seguinte, mas como um elemento inicial sem informações de detalhes em nenhuma das menções. Os céus, no conjunto de textos espalhados pela Bíblia, são o espaço imenso da habitação do Criador com a sua criação, e só são conhecidos de forma tão indireta quanto o próprio Criador, somente a partir de seus enviados quando descerem à terra: luz, calor, nuvens e sombra, dia e noite, chuvas, e finalmente anjos, enviados como parceiros dos seres humanos e de seu trabalho sobre a terra. Pode-se interpretar tal discrição como “não narcisismo divino”, um “passivo divino”, só conhecido através das ações benfazejas, orientadoras ou ordenadoras sobre a terra. Como em uma aliança esponsal, a terra, que ao contrário dos céus é a realidade visível e limitada, recebe a potência e a providência divina através do “exército” celeste, desde as chuvas até anjos – estes só conhecidos nos eventos de parceria, desde Abraão, Jó, Tobias, até a abertura do NT, na visita a Maria e nos sonhos de José, depois com Jesus no Getsêmani, e Pedro na prisão.

Mas os céus não ficam, segundo a narrativa global das Escrituras, apenas como uma retaguarda e uma condição de possibilidade de fecundidade para a terra. É também para onde se dirige o olhar das criaturas, face a face mais amplo, entre céus-e-terra. É o sentido e a meta para onde a criação continuada, histórica, terrestre, se dirige e volta seu olhar: para a comunhão de novos céus e nova terra. Sem os céus, a terra dá somente voltas sobre si mesma e perde orientação e sentido, perde a promessa e a esperança. Pode-se assim interpretar cada criatura como seio maternal para as criaturas seguintes na criação originária, mas também como seio de comunhão sabática para onde se dirige escatologicamente o desejo de toda criatura na nova criação.

2.3 A curvatura ética do humano, imagem e semelhança do Criador

Ao ser humano, tanto no final da primeira narrativa como na segunda narrativa dos dois primeiros capítulos do Gênesis, está reservada uma criação diferenciada. Não é nem melhor e nem o topo de uma hierarquia, é a sua condição de corresponsabilidade pelo conjunto da criação na terra. E para tanto, um aliado do Criador e das criaturas celestes. Assim se pode compreender a “imagem e semelhança” do ser humano com Deus: uma vocação e uma responsabilidade, o cuidado dos outros seres vivos – começando por nomear os animais, trazê-los à convivência na linguagem – e a vocação ao cultivo da terra, do jardim-pomar, em parceria com as chuvas celestes. Criado pela Palavra na condição de ser que tem palavra, capaz de resposta, torna-se também interlocutor e capaz de aliança e corresponsabilidade.

A primeira aliança e ao mesmo tempo relação de alteridade criatural se dá entre o homem e a mulher, da mesma carne e essência, mas também, pela palavra e pela saudação, se dá no reconhecimento de alteridade e transcendência. No segundo relato, o ser humano, tomado da terra – Adão – habitado pelo sopro divino, a Ruáh, ganha como sua alteridade o outro ser humano, e cuja relação tornará o humano um “seio”: Eva, mãe. A raiz hebraica indica um “vazio”, um espaço de renúncia de si para que outro possa vir a ser. É o nascimento do ser ético, do humanismo, espaço em kénosis para se tornar seio e fonte de vida para outros. Pode-se assim concluir a criação com coerência: toda criatura se torna seio maternal para novas criaturas, desde o seio da luz, depois das águas, do ar. O ser humano, no entanto, é a curvatura ética da criação, pois é vocacionado a ser o seio de responsabilidade pela história da criação inteira na terra.

Enquanto todos os seres vivos são vocacionados à convivência sabática, o ser humano é convocado à responsabilidade pela condução a essa convivência. Na primeira narrativa, a distinção entre a relação com animais e a relação entre seres humanos é que os primeiros participam da convivência enquanto os segundos são seres de correspondência, corresponsáveis pela convivência. Já na segunda narrativa, a ajuda terrestre representada pela mãe dos filhos de Adão corresponde perfeitamente à ajuda celeste, representada não só pelas chuvas e depois pelos anjos, mas eminentemente pela Ruáh, reconhecida também na Shekináh, a nuvem que envolve misericordiosa o povo no deserto e no templo, enfim o Paráclito, o Espírito consolador e confortador que acompanha e incrementa a história da criação.

De certa forma, o ser humano é somente e inteiramente representado pela sua condição de “seio” de responsabilidade, e, por isso, pela Mãe, o que sugere a doutrina cristã quando interpreta a antecipação da glória humana na figura de uma mulher e mãe terrena assunta aos céus. Se todo ser humano, segundo Agostinho, é Adão até ser assumido pela glória do Novo Adão, também todo ser humano tem a vocação de ser seio, de ser Eva, até a glorificação de todos na Nova Eva. Assim, Adão e Eva são categorias bíblicas que ultrapassam completamente sexo e gênero, são dois modos da vocação e da essência humana, de cada ser humano.

Apesar dos sequestros hermenêuticos do verbo “dominar”, “submeter” ou “reinar” que descontextualizaram no passado o primeiro relato de criação do ser humano e o salmo 8, a exegese contemporânea traduz com segurança tais verbos por “governar”, segundo a raiz hebraica desses verbos e sobretudo o contexto do reinado em Israel cuja vocação era cuidar, defender e cumprir a vontade de Deus a respeito do povo de Israel por parte do rei. Da mesma forma, os seres humanos são colocados em uma aliança de corresponsabilidade e de governo em vista da convivência sabática de toda a criação, como indica a encíclica Laudato Si’ (cf. LS n. 65-69). Não há no texto hierarquia de valor, e nem mesmo preocupação de ordem ontológica, mas vocação e responsabilidade, criação ética. O ser humano inaugura, segundo esta hermenêutica bíblica, a dimensão ética da criação.

2.4 O crescimento do humano, sua polivalência e a pedagogia divina

O mandato de crescer e se multiplicar acompanha a criação inteira como sua exuberância e expansão. À multiplicação humana, no entanto, se pode acrescentar um dado contextual delicado, a difícil sobrevivência humana, sobretudo tribal, complicada inclusive por guerra e destruição, que torna o dever de se multiplicar uma questão de sobrevivência.

O terceiro capítulo do Gênesis, embora celebrizado pelo imaginário que ilustra a doutrina do pecado original, introduz na narrativa a iniciação humana através da prova, assim como Abraão, Moisés, Elias, e o próprio Jesus têm suas provas iniciáticas. A prova é fonte de discernimento, de autotranscendência, mas também de integração do limite criatural, da fadiga, da dor e trabalho de viver, enfim da mortalidade, mas sobretudo da consciência e da livre escolha e suas consequências. Assim, segundo o terceiro capítulo do Gênesis, a criatura humana, vinda do pó da terra, graças à Ruáh, à mediação da ajuda do outro humano – a mãe-eva – e ao mais sagaz dos animais, a serpente, chega à sua maturidade, devendo então assumir o risco de sua existência e de sua responsabilidade, a polivalência implícita em suas possibilidades.

A falta, o pecado, é uma possibilidade adâmica que se concretiza tragicamente no fratricídio cometido pelo primogênito, Caim, que tem a “força divina”, segundo a etimologia do nome que a mãe lhe deu, mas que ao invés de cuidar de seu irmão frágil – Abel, que, como Eva, tem a mesma raiz hebraica sugerindo o vazio, agora da inconsistência – Caim decide matar. Com Caim e sua herança, ao longo de sua descendência – da qual também todo ser humano provém – a desumanidade e a destruição ética atingem o governo, a construção de cidades cainescas – a primeira foi construída por Caim para sua descendência – que se caracterizam por muralha e torre militar, a crescente violência de humanos entre si e de humanos em relação aos outros seres vivos até atingir a terra inteira com a imagem do dilúvio. A cultura, o ambiente, tudo se contamina com a falta de ética humana.

O Criador não permanece indiferente, porém, ao crescimento da violência e à destruição em sua criação, mas assume para si essa violência, e assim também coloca novos limites e novas provas, abre continuamente um espaço, uma oportunidade e um caminho novo para a criatura humana, desde a promessa adâmica, a marca de proteção a Caim, o arco-íris e a permissão de comer animais a Noé, como, na Lei, a permissão do divórcio (BARBAGLIO, 1991, p. 27-56) Finalmente, a menção ao surgimento de diferentes povos e línguas que mantêm a ambivalência de riqueza cultural da criação, por um lado, e confusão, fragmentação e dispersão, condição de estranheza e hostilidade, por outro lado. O Criador, assumindo para si a violência da criatura, arrisca a “bifrontalidade” ou a ambiguidade de uma figura benévola e violenta, ainda que de forma assimétrica, sempre com um passo a mais de benevolência sobre a própria violência, e que só a pedagogia no tempo irá separar como o joio e o trigo e superar toda violência.

Em nossa cultura científica, estas narrativas não coincidem com a evolução da realidade, são narrativas míticas etiológicas, que dão sentido, ou seja, a direção para onde somos convocados a continuar a criação superando provas e limites. Além disso, elas indicam o modo de providência divina junto à sua criação. Por isso as narrativas míticas escatológicas são centrais para a TC. As Escrituras hebraicas oferecem essas narrativas etiológicas como um grande contexto de fundo para começar, no capítulo doze, com a promessa a Abraão, a história do povo de Israel. A categoria de promessa, que conduz a vocação abraâmica de Israel, central também no êxodo e no profetismo, deságua no anúncio e aproximação do Reino de Deus em Jesus, enfim no texto apocalíptico da promessa de Novos Céus e Nova Terra. A TC bíblica é uma hermenêutica dessas narrativas e suas categorias.

2.5 O Primogênito da Criação: o Novo Adão e o Novo Caim

O NT centra a TC na figura do Messias. De forma litúrgica, com os cânticos de Colossenses 1,15-20 e de Efésios 1,3-14, completado por Efésios 1,20-23; 2,14-18, a teologia das cartas paulinas recapitula a criação, a história e a sua plenitude em Cristo. As imagens e afirmações extremamente compactas têm a função de colocar tudo sob um ponto único, que a tudo une e dá consistência, sentido e comunhão, não como o “uno” abstrato e impessoal do pré-socrático Parmênides, mas como a criatura por excelência, que é o próprio filho de Deus feito carne – ele “é antes de tudo e tudo nele subsiste […] é o Princípio, o Primogênito […] a Plenitude” (Cl 1, 17-19). Assim, ele é também o reconciliador, o pacificador, a unidade do que está disperso. Paulo, que batalhou pela unidade de um só cristianismo de judeus e gentios, combateu a tendência grega ao gnosticismo insistindo na carne e na condição “escandalosamente” humana do Filho de Deus, cabeça de toda a criação, mas combateu ainda mais a tendência judaizante de redução da religião às práticas legais da tradição, que reduziriam a experiência de criação e salvação a um gueto de méritos sem a graça e a bondade que caracterizam a criação. Tanto por sua experiência como por seu aprendizado, Paulo tem a Páscoa de Jesus, a sua cruz e ressurreição, como chave de leitura não só para sua antropologia – na tipologia Adão-Novo Adão – mas também para sua eclesiologia e sua TC. Há uma ação trinitária no evento centralizador da Páscoa, a origem no Pai, a potência no Espírito, a forma e a realização na figura de Cristo (GIL ARBIOL, 2018, p. 67-78).

Os textos evangélicos, narrativos, tomam títulos e categorias messiânicas presentes nas Escrituras para afirmarem a mesma centralidade e plena realização da criação, como da história, desde o cotidiano de Jesus na Galileia até Jerusalém. A figura do Eleito, chamado a ser Luz das nações, do Dêutero-Isaias, ainda que pela obediência e pela paciência no sofrimento, reverbera na narração do batismo junto à água e na confirmação junto à montanha. O título de “Filho do Homem” como juiz das nações do livro de Daniel se realiza a partir do perdão dos pecados e da antecipação do Sábado nas ações de Jesus, “Senhor do Sábado”. O sonho de Isaías 11, a reconciliação do cordeiro e do leão, acontece em torno do Messias no deserto, começo de sua missão, segundo Marcos (Mc 1,13). E no momento mais trágico da cruz, o executor gentio confessa o Filho de Deus, o inocente Cordeiro sobre o qual converge toda a violência do mundo (Mc 15,39b). Sua ressurreição é vitória sem violência, sem vencidos, não na forma de poder de espetáculo, mas de novo anúncio, vitória do Novo Caim, capaz de cuidar e de participar sua força até aos seus matadores, redimindo até o velho Caim. Realiza assim, de forma plena, a condição de criatura e seio das demais criaturas, de Novo Adão e Nova Eva, além de Novo Caim. A criação está assegurada, reconciliada, unificada, plenificada.

O evangelista João, como Paulo, enfrentando a gnose ao sublinhar a carne e o sangue do Filho de Deus, também unifica a criação em Cristo de forma compacta no prólogo e depois ao longo das narrativas, com seu “trabalho” para introduzir o sábado real através da cura. Justifica o seu trabalho de cura em dia judaico de sábado para poder, justamente ao sanar a criatura, introduzir no real e não só no ritual o Sábado: “Meu Pai trabalha até agora e eu também trabalho” (Jo 5,17). Assim, a fé no Filho de Deus encontrado na carne humana é também a fé e a esperança na criação até sua plenitude antecipada nele. A iconografia cristã representou esta centralidade luminosa de Cristo na criação.

Na abertura do livro do Apocalipse, o Filho do Homem, “Primeiro e Último” é descrito de forma sempre solene (cf. Ap 1,12-20). No meio do texto está a criança com a mãe, protegidos contra o Dragão (cf. Ap 12). Terminando a Bíblia cristã, depois da alusão a um juízo de ordem universal e à visão da Cidade Nova, não mais cainesca, agora no centro de Novos Céus e Nova Terra, de portas abertas e muros brilhantes, praça no lugar de templo etc., há a proclamação que torna toda a narrativa bíblica uma obra aberta pela promessa e pela esperança: “Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22,20b).

3 A criação como paradigma universal: a doutrina cristã

Ao longo da história da teologia cristã, desde dentro do NT, os contextos provocaram a pensar o mundo ou toda a realidade, como criação divina e, sobretudo, a compreender teologicamente o que significa um modo realmente bíblico e cristão de ser criação e não outros modos que disputavam a adesão da fé.

3.1 Um Criador antes da criação: o Pai e Poeta da criação e suas duas mãos na creatio ex nihilo

A dificuldade já enfrentada pelo livro de Jó se põe aos apologetas do cristianismo de forma filosófica: como combinar um único Deus Criador e o mal presente em tudo? O dualismo e a theomaquia, batalha entre um princípio divino do bem e um princípio divino do mal, ainda que seja entre um deus bom e o diabo, pareceriam mais coerentes com a experiência da realidade. Ao dualismo moral corresponderia um dualismo ontológico: matéria versus espírito, céus versus terra, visível versus invisível etc. A resposta cristã, por um lado, começa a elaborar uma teologia trinitária, com o bispo Santo Irineu (130-202) em seu texto Contra as heresias, IV, 7,4: O Criador, que detém em suas mãos todo o poder divino sem concorrência, tem “duas mãos”: o Filho e o Espírito Santo, uma reinterpretação própria de Irineu à teologia judaica da criação por intervenção da palavra divina (Dabar) na Lei, e do Espírito de Javé (Ruáh) na Sabedoria. Toda carne, seguindo a lógica da encarnação do Filho, é assim criação divina tanto quanto o espírito, o visível como o invisível. Não há conflito de poderes. O único Deus é Pai, e cria a partir de sua paternidade. Por isso se proclama primeiro que ele é Pai, depois que tem todo poder e cria todas as coisas. O mal não é eterno e nem criador, por isso será abatido no devir do mundo, segundo a promessa de uma escatologia para toda a criação. Dessa primeira reflexão amadurece o primeiro artigo do Credo cristão: Um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador (poetés) de céus e terra, de todas as coisas, visíveis e invisíveis. Ao primeiro artigo sobre o Pai Criador seguem o segundo sobre a encarnação e a história do Filho desde antes da criação, na criação e em sua escatologia, e o terceiro artigo sobre o Espírito Santo na condução da criação à vida eterna.

A outra contribuição marcante da patrística, a partir do mesmo Santo Irineu de Lyon e de Teófilo de Antioquia (MAY, 1994), foi a afirmação da creatio ex nihilo. Esta afirmação, que se estende até a escolástica – creatio ex nihilo est productio rei ex nihilo sui et subjecti – se contrapõe à crença de que a criação provenha da substância do próprio Criador (sui) ou de alguma substância tipo protoplasma pré-existente e coeterna (subjecti). Afirmar que antes da origem havia o nada é intrigante, e faz levantar sempre de novo a pergunta: “Porque há o ser e não o nada?”, pois o nada pareceria mais lógico do que o ser. Mas, por outro lado, o nada é inacessível à experiência humana. Bate-se assim numa singularidade, intransponível para a ciência e seu método. Em TC a afirmação da creatio ex nihilo continua sendo importante diante de especulações que sempre retornam, ao estilo do panteísmo de Spinoza no começo da modernidade, mas deve ser combinada com a creatio de Verbo, que tem o sentido de uma livre e incondicionada decisão transcendente e de um estabelecimento de relação por parte do Criador. Uma criação segundo a palavra, conformada ao Filho, indica também uma liberdade e uma decisão não arbitrárias, mas orientadas a partir das relações trinitárias. E com a creatio de Spiritu, cuja espaço é o panenteísmo – tudo está em Deus, em seu seio divino, como a alteridade da criança no seio da mãe, e Deus está em tudo, como o envolvimento do seio e a nutrição que vitaliza o corpo da criança no seio da mãe. Essa compreensão panenteísta da criação ganha verdade na potência, nutrição e atualização da criação. É a teologia trinitária da criação. Em que o Filho é a face visível do Pai, e o Espírito Criador é Uterum Patris – uma analogia patrística para além da sexualidade – o seio divino originário no qual tudo se cria e cresce.

Em conclusão, se a TC repousa sobre a confissão da creatio ex nihilo, é porque com ela se confessa também a creatio ex plenitudo Christi, segundo a primogenitura do Verbo encarnado, “por quem todas as coisas foram criadas”, e sua primazia histórica e escatológica em toda a criação. E creatio de Spiritu Sancto, como se confessa a respeito da encarnação do Verbo no seio da Virgem Maria no Credo. O Espírito Santo é mais especificamente a fonte da vida (Dominum et vivificantem), e nisso consiste seu poder e sua soberania incondicionada, assim como sua alteridade em relação às criaturas, mesmo estando em tudo o que vive. Deus Trindade criadora é, assim, ao mesmo tempo, o Deus mais íntimo do que o íntimo de cada criatura e, no entanto, o Deus que transcende incondicionadamente toda a criação. Entre a narrativa bíblica, com a recapitulação do NT, e a doutrina cristã há, assim, um nexo intrínseco que, na era das ciências modernas, tem consequências hermenêuticas renovadas. Em última análise, porque há o ser e não o nada, se compreende na gratuidade e na exuberância do amor que decide convidar outros, as criaturas, à felicidade da contemplação ou, melhor, à relação face a face como conteúdo e promessa de bem-aventurança ad extra Dei.

3.2 O mistério do mal, o sofrimento, a providência divina e as dores de parto da criação

A TC inclui, como assuntos intrinsecamente conexos, o problema do mal e a providência divina. A narrativa mítica e a filosofia abstrata já enfrentavam essas questões. As Escrituras também, de forma narrativa ou em salmos e textos de sabedoria, são fontes tradicionais. Nos primeiros momentos do cristianismo foi necessário pensar frente ao antagonismo entre estoicos e epicuristas. A doutrina cristã, dialogando com seus contextos, buscou equilíbrio entre dois extremos, mas manteve duas tendências, bem representadas por Agostinho na passagem à Idade Média, e Leibniz na passagem à modernidade.

a) Segundo a visão agostiniana, o mal é pecado e/ou consequência do pecado. Deus, no comentário de Agostinho, criou um mundo necessariamente bom, abençoado. Ele é teologicamente otimista. Mas antropologicamente pessimista: o mal foi introduzido na criação pelo pecado humano. É uma possibilidade do livre arbítrio e sua desgraça, pois só o bem conserva a liberdade saudável. Para Agostinho, até mesmo as desgraças de ordem cósmica são alguma consequência ou punição pelo mal cometido. A pergunta Unde malum? – de onde provém o mal? – deve ser corrigida pela pergunta Unde malum faciamus? – donde provém que façamos o mal? A doutrina do pecado original é a explicação agostiniana que entrou na espinha dorsal da tradição cristã ocidental para todo o mal. No entanto, a liberdade ferida não é inteiramente cancelada em favor de uma fatalidade sem saída. Mas precisa ser redimida e há um esforço para vencer o mal, pois, segundo o mesmo Agostinho, “Aquele que te criou sem ti não te salvará sem ti”, e de alguma forma, explica o decreto sobre a justificação do Concílio de Trento, resta a colaboração para com a graça da redenção. Na criação permanece inscrita a “lei eterna” posta por Deus, e a redenção é o ajustamento a essa lei eterna por obra da graça. Há, no entanto, uma hierarquia no ser como também na bondade, de tal forma que, para alcançar o que é superior, é necessário desprender-se do que é inferior, e o múltiplo, que está em baixo numa hierarquia que se degrada, chega ao esvaziamento de ser e, por isso inteiramente mal, malum privativum. Em Agostinho, o mal moral engloba o mal ontológico. O rigorismo moral, ascético, estético, litúrgico e político, que reaparece repetidamente na história do cristianismo como um agostinianismo extremado e unilateral, tendo o movimento jansenista na modernidade como um exemplo que deixou rastros até recentemente, se apoia normalmente nesta visão do mal.

b) A visão de Leibniz, no começo da modernidade, em sua Teodiceia, é praticamente o inverso, embebida do novo humanismo. Segundo Leibniz, estamos em uma criação necessariamente finita, e da finitude da natureza surgem os diversos males – a morte, a ignorância, o sofrimento etc. A perfeição, segundo uma lição escolástica já estabelecida, cabe somente à infinitude metafísica, própria de Deus. O mal é, sobretudo, imperfeição, limitação. Mas estamos “no melhor dos mundos possíveis”, a melhor possibilidade criadora de Deus. O que agora não é perfeito e causa sofrimentos tem esperança no desenrolar do tempo, pois o futuro tem garantia de superação. É o começo da ideia de progresso que vence limites e males, o grande mito da modernidade.

Paul Ricoeur, em O mal: desafio à filosofia e à teologia, resume a linguagem sobre o mal mostrando primeiro que se deve distinguir entre o mal que se comete, e que é imputável a um sujeito, e o mal que se sofre, que se recebe sem ser sujeito do mal que acomete e se abate sobre a vítima. Mas, num segundo momento, diante do excesso de mal que acomete, que submete ao sofrimento, a distinção não se mantém, e tudo se confunde no obscuro mistério que jaz no fundo de todo mal, até o menor – pois pode sempre deslizar para o excesso que mergulha no mistério, pois a lógica do mal que se comete, que pode ser imputado a um sujeito culpado pelo mal e reparado pela punição e castigo (que causa sofrimento reparatório ao sujeito que cometeu o mal), e o mal que simplesmente se sofre se junta no sofrimento excessivo e inocente enquanto excesso, mesmo em quem comete o mal. Assim, quando o mal que se sofre se torna incompreensível por não se ter consciência de alguma causa que o justifique, a pergunta não é de caráter ontológico ou cósmico e filosófico – Unde malum? – mas é de caráter pessoal e existencial: O que cometi de mal para merecer este sofrimento, para ser assim tão castigado? Assim, o mal excessivo, sem medida, sem merecimento à vista, que foi o caso de Jó, conduz ao Mysterium iniquitatis. Pode ser experimentado individualmente ou coletivamente, em todas as formas de tragédia, e não é novidade contemporânea experimentar o mal excessivo também ecologicamente, como acontece em nossos dias. Estaria em jogo aqui a própria criação divina?

A reflexão sobre o mal na criação nos conduz assim a outro tema conexo da doutrina cristã que tem os mesmos precedentes, tanto em termos bíblicos como nas tradições religiosas e filosóficas: a providência divina. Trata-se de uma questão também lógica: um Criador deve ter um propósito e cuidar que sua criação chegue a termo. Em última análise o Catecismo da Igreja Católica resume assim: “A Divina Providência consiste nas disposições pelas quais Deus conduz com sabedoria e ama todas as criaturas até o seu fim último” (CEC § 321). Essa curta conceituação inclui na providência o bom governo, a conservação e o incremento da criação para que atinja seu fim. Coloca-se também, como o problema do mal, entre dois extremos: o mero acaso sem propósito que testemunha o caos, e a fatalidade, que é também uma forma de entender o destino e a necessidade.

A provocação mais próxima ao cristianismo em seus primórdios proveio do estoicismo e sua doutrina da providência divina – prónoia – que se pode constatar na ordem cósmica, modelo e disposição para a ordem moral, uma ordem divina inscrita de tal forma no universo que se torna um destino – fatum stoicum. Abraçar a ordem, ainda que trágica, é virtude e amor fati. Contra tal postura estoica, o epicurismo, no outro extremo, assentiu a uma boa ou má Fortuna completamente aleatória e casual.

Aqui também os grandes nomes da tradição cristã se posicionam. Suas reflexões negam um mero acaso e afirmam uma “destinação” divina que, no entanto, não dispensa a livre adesão. Mas, como o mistério do mal, também os desígnios divinos não são inteiramente compreensíveis no presente da história, somente a partir do seu final haverá compreensão completa. Ou, na metáfora agostiniana do Criador como um Deus modulator, a criação é a sua modulação e sinfonia, que tem acordes dissonantes, mas só no último acorde, final, a sinfonia inteira se aclara, inclusive as suas dissonâncias. Tomás recorre novamente à relação de causa primeira e causas segundas, e surpreende quando se trata da criatura humana, que tem como sua natureza e lei natural a racionalidade e a liberdade graças à participação na lei eterna: Deus criou o ser humano de tal forma que seja capaz, mediante a racionalidade e a liberdade, de ser providência para si e para outros (Suma Teológica, I-II, q. XCI, a. II).

A TC oferece recurso tanto para o enfrentamento do mistério do mal e do sofrimento como para a compreensão do mistério da providência divina, não propriamente um misterioso Designer Inteligente, que seria um excesso de privilégio da racionalidade teológica e um otimismo pouco realista, mas algo aparentemente mais simples e pessoal: as relações trinitárias nas quais se inserem a criação e a providência. A narrativa trinitária – a disposição do Pai que nos abre caminho de vida em seu Filho, com o convite ao seu seguimento de forma livre e responsável, como também a unção do Espírito com seus carismas para que tenhamos a capacidade de seguimento – é a forma cristã mais adequada de desenvolver a compreensão da divina providência em sua criação. Nas relações trinitárias, desde a Páscoa de Jesus, se vislumbra a Nova Criação sem mais lágrimas ou luto, e tecida de louvor sabático antecipado, portanto dominical, já inaugurada pela Páscoa do Filho, ainda em meio a um mundo frequentemente obscuro e doloroso.

3.3 Estética, ética e espiritualidade da criação: a beleza, o cuidado, o louvor

A TC tem inspiração e consequências. Não é suficiente, portanto, buscar o significado das narrativas, é necessário perguntar pelas práticas que o significado produz e que dão a pensar. Para tanto, podemos nos servir dos tradicionais conceitos “universais” da ontologia medieval com um olhar escatológico sobre a criação, universais concretizados e antecipados historicamente na singularidade irredutível de cada acontecimento: a beleza, a bondade e a verdade.

Há, de fato, uma estética que envolve e ajuda a compreender a TC. Como constatou o físico brasileiro Marcelo Gleiser (1997, p. 315 et seq.), a terra não é tão formosamente redonda como geralmente se representa, mas sua representação esférica perfeita é mais efeito de nossa projeção estética, pois antes mesmo da ciência, o cosmos significou e guiou nosso olhar estético sobre o mundo como algo belo, que é o significado mesmo de cosmos. A beleza, a boa forma, pode ser considerada como algo inscrito na criação em vista de sua vocação, a de tornar-se um espaço de beleza, de chegar irrenunciavelmente à boa forma. Desde o mito mais arcaico até a ciência moderna, no entanto, o abismo e o caos acompanham o cosmos. Em termos bíblicos, como na teoria científica do caos, há inclusive certa dialética: a estrutura, a ordem e a beleza cósmica são precedidas e acompanhadas por uma condição caótica da realidade na sua base ou no seu entorno, mas o caos, em primeira instância, pode ser criativo e não apenas ameaçador e destrutivo. Assim também na Páscoa de Cristo, o sofrimento inocente, a cruz e a representação de caos apocalíptico narrado sobriamente por Marcos e Mateus, são uma estética do horror, do feio, do trágico, mas não são a palavra final a respeito da criação, pois há a manhã radiosa da Páscoa a partir de onde se dá o universal risus paschalis evocado por Dante Alighieri ao entrar no Paraíso. Dante, contemplando a doçura inebriante da luz e dos louvores, se extasia: “Parecia-me um sorriso do universo” (Cântico XXVII).

Da mesma forma, a bondade da criação – o bem que é buscado em tudo o que se busca – está garantida desde o princípio pela bênção, pelo olhar da criação que vê toda criatura como boa. É, desde o princípio, uma visão profética sobre a maldade, especificamente sobre os maus que parecem ganhar a melhor parte no mundo, algo meditado pelo salmista e pelo sábio com muita fadiga: há uma ética irrenunciável inscrita na vocação de toda criatura à bondade. Em tempos de exacerbação da globalização econômica, política e social, e de consequente crise ecológica, é mesmo urgente uma TC que porte uma ética planetária, o desejo e o clamor do bem.

Da mesma forma, a verdade – que em termos bíblicos não é em primeiro lugar algo cognitivo, é antes ser sinônimo de reconhecimento ético e de justiça. Não pode ser reduzida às ciências, embora tenha nelas aliadas privilegiadas – coincide com a bondade do mundo. A verdade histórica que revela o ser humano em sua ambiguidade de Caim, decidindo alterar o amor e o cuidado pelo ódio e pela destruição, necessita do socorro de sinais de um mundo finalmente verdadeiro, ou seja, autêntico e justo, reconhecido e respeitado em todas as suas criaturas, enfim redimido para chegar à plena verdade. A TC pode ajudar a ciência da alfabetização ecológica (Fritjof Capra) e, consequentemente, pode facilitar uma verdadeira “conversão ecológica” (Laudato Si’ n.216-221), não mais aversio et abstentio mundi, segundo antigo conceito de mundanidade, que era sinônimo de vaidade e extravio pelo mundo, mas conversio ad mundum, amor à criação.

Todas as criaturas, segundo esta TC bíblica e cristã, estão destinadas à comunhão sabática com o Criador, onde beleza, bondade e verdade poderão resplandecer na criação em sua plenitude. No tempo da criação a presença compassiva da Shekináh – a presença divina junto à criação, simbolizada na história de Israel através da coluna de nuvem e de fogo (cf. Ex 13,21-22; 40,34-38; Nm 9,15-23), uma forma criadora de o Espírito conduzir a história da criação – convoca à aliança a criatura ex nihilo por excelência, criada assim à imagem e semelhança do Criador (LEVINAS, 1961, p. 29). Ao ser humano, a criatura que se experimenta ex nihilo, cabe a livre decisão de ser o anjo ou o satã da terra, pois sua liberdade pode ser criativa ou destrutiva, ela integra sua dignidade e seu estatuto, ser verdadeiramente homo sapiens ou usar a sabedoria para destruir, como as armas nucleares que revelam o quanto se é homo demens. O ser humano não está fatalmente conectado com nenhum cordão umbilical ao Criador, não o encontra atrás ou no fundo de sua essência. Provém “do nada”, mas não é atirado ao mero acaso, pois até o acaso pode ser possibilidade e espaço criativo de aliança e de organização da criação. O ser humano é, de certa forma, o Designer inteligente no mundo, mas, como mostrou Agostinho, não basta a razão: é necessário que fé e razão sejam conduzidas pelo amor e culminem no amor, pois o Criador, antes de ser Razão, é Amor, e esta é a razão de existência da criação: encontrar-se no amor. O cuidado amoroso e inteligente da criação é a forma angélica e missionária da imagem e semelhança do Criador sobre a terra. Esta é a mais central consequência antropológica da narrativa teológica da criação.

Frei Luis Carlos Susin, Ocap. PUC RS. Texto original português. Recebido: 20/03/2020. Aprovado: 15/09/2021. Publicado: 24/12/2021.

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Religião e religiões na Bíblia

Sumário

Introdução

1 A religião de Israel em seu contexto religioso e cultural

1.1 A religião dos patriarcas e matriarcas

1.2 Religião na monarquia

1.3 Religião no exílio

1.4 Religião no período persa

1.5 Religião no período helenista

2 A religião cristã do Novo Testamento em seu contexto religioso e cultural

2.1 Jesus de Nazaré, encarnado, crucificado e ressuscitado

2.2 O movimento de Jesus e as primeiras comunidades cristãs

2.3 Comunidades na Ásia Menor, Grécia e Roma

2.4 Igrejas cristãs

Referências

Introdução

O assunto é amplo e complexo, porque abrange Judaísmo e Cristianismo, com suas mútuas relações, em interação com inúmeros sistemas religiosos diferentes. Ao mesmo tempo, a unidade da religião bíblica é assegurada por um fio condutor que perpassa o cânon estabelecido e aceito, conhecido como Antigo e Novo Testamento, que compreende a Bíblia Hebraica e as Escrituras Cristãs. Para compreender a interação com outras religiões, servem as contribuições da arqueologia e de outros documentos, correspondentes às épocas da historiografia bíblica. A análise se pauta por uma leitura crítica e abrangente.

O assunto é amplo e complexo, também, porque envolve Teologia e História. Do ponto de vista teológico, a religião bíblica parte do dado revelado, a fé em Deus que se manifesta à humanidade. Do ponto de vista histórico, essa religião se encarna em determinado contexto cultural, sofre adaptações e evolui, num processo de assimilação e de depuração. A análise propõe estabelecer a ponte entre Teologia e História, sem prejuízo de uma ou de outra.

O assunto é amplo e complexo, ainda mais, porque o texto bíblico à nossa disposição, em sua redação final, é fruto de longo período de tradição vivida, narrada e escrita, com abrangência de mais de um milênio. Como resultado, o Antigo Testamento apresenta uma religião revelada, monoteísta, javista. Essa religião prepara aquela do Novo Testamento, a revelação plena em Jesus Cristo, o messias encarnado como salvador da humanidade, com a proposta do Reino de Deus, realizado por meio da sua Igreja. A análise propõe a leitura diacrônica que explica a elaboração desse processo histórico.

1 A religião de Israel em seu contexto religioso e cultural

A religião dominante, que podemos chamar a religião de Israel (Judaísmo), é evolutiva e interiormente plural, em confronto com o mundo religioso interno (tradições cananeias e israelitas antigas) e externo (desde as religiões egípcias e mesopotâmicas até as persas – iranianas – e helênico-romanas).

Essa dinâmica da religião de Israel passa por diversas etapas, de acordo com o processo evolutivo do povo bíblico. Essas etapas são condicionadas por acontecimentos históricos marcantes e por contatos com civilizações diferentes. Os estudos que apresentam a “História da religião de Israel” estabelecem periodização mais ou menos similar, como seguida nesta apresentação: pré-estado, estado, exílio, período persa e período helenista (ALBERTZ, 1999; FOHRER, 1982; GUNNEWEG, 2005; RENCKENS, 1969).

1.1 A religião dos patriarcas e matriarcas

As origens de Israel e de sua religião devem ser buscadas na terra de Canaã, a partir do sistema tribal familiar. Foi dentro do território cananeu e em seu contexto cultural que se desenvolveu a religião dos hebreus, com a participação de diversos grupos tribais oriundos de fora, além da influência das religiões dos povos vizinhos (SCHWANTES, 2008, p. 31-33).

A pré-história de Israel é caracterizada pelo tribalismo, sistema este que continuou resistindo mesmo sob os regimes posteriores. A tribo representa a família ampliada, isto é, cada tribo se compõe de clãs que, por sua vez, reúnem diversas famílias. A liga tribal se baseia na consanguinidade, embora possa integrar clãs diferentes. Esses grupamentos resistem há milênios, como seminômades ou sedentários, vivendo nas estepes, à margem das cidades. Sua subsistência básica é o pastoreio. São conhecidos também como grupos abraâmicos, por ter no personagem Abraão o seu principal representante (GERSTENBERGER, 2007, p. 32-33).

Nesse sistema, os eventos mais valorizados são os relacionados à vida familiar, tais como nascimento, circuncisão, matrimônio e sepultamento. O culto normalmente é exercido por um membro da família, que pode ser o pai, como Abraão (Gn 17,23), ou as mulheres ou mães, como Séfora (Ex 4,24-26), visto que não existe ainda sacerdócio organizado. O altar é edificado como local de culto, sagrado, mas provisório, como próprio de povos migrantes, a exemplo de Abraão que constrói altares comemorativos (Gn 12,7.8). Enquanto o altar é o local de rito, as colunas de pedra são memoriais de eventos importantes na vida da pessoa ou da tribo, como fez Jacó (Gn 35,14). O culto se liga a elementos da natureza, como aos carvalhos de Mambré, nas histórias de Abraão (Gn 13,18) e aos altares de pedra, como na prescrição do código da aliança (Ex 20,25). Não faltava o culto às divindades caseiras, chamadas terafim, como os que Raquel tomou de seu pai (Gn 31,19.30) (SCHWANTES, 2008, p. 81-83).

Com o movimento de sedentarização, foram se estabelecendo lugares sagrados, santuários em torno aos quais se confederaram as tribos, numa organização conhecida como anfictionia, termo grego que significa etimologicamente morada ao redor. Assim são conhecidos os santuários de Siquém, Betel, Hebron e Bersabeia, entre outros. Em Siquém, Abraão construíra um altar como memorial de sua experiência com Deus (Gn 12,6-7). Betel recorda especialmente Jacó, porque aí Deus, chamado El-de-Betel, lhe apareceu (Gn 31,13; 35,7). Hebron está associada a Abraão, a Isaac e a Jacó (Gn 35,27). Bersabeia era antigo local de culto cananeu e passou pela recordação dos patriarcas e matriarcas (Gn 21,1-34) (RENCKENS, 1969, p. 69-76).

Qual Deus ou deuses veneravam as famílias e tribos no período da pré-história de Israel? Não há evidências da invocação ou presença do Deus Yhwh[1] nessas origens. Os textos bíblicos que o mencionam são redigidos posteriormente, e refletem o monoteísmo javista que predominou mais tarde. Tampouco há evidências de um monoteísmo ou henoteísmo nos tempos patriarcais. Dois textos mencionam claramente que os antepassados adoraram outros deuses. A Moisés, Deus diz que apareceu a Abraão, a Isaac e a Jacó como El Shaddai, e confirma: “Mas, pelo meu nome, Yhwh, não lhes fui conhecido” (Ex 6,3).[2] Nas palavras de Josué: “Além do rio habitavam outrora os vossos pais, Taré, pai de Abraão e de Nacor, e serviram a outros deuses” (Js 24,2). Há textos que se referem a uma ruptura com divindades diferentes. Jacó propõe a sua família: “Lançai fora os deuses estrangeiros que estão no meio de vós, purificai-vos e mudai vossas roupas” (Gn 35,2). Na chamada assembleia de Siquém, Josué propõe ao povo: “Lançai fora os deuses aos quais serviram os vossos pais do outro lado do rio e no Egito, e servi a Yhwh” (Js 24,14). Há testemunho de cultos privados, “sacrificando nos jardins, queimando incenso sobre lajes” (Is 65,3); com menção a deuses arameus, “preparais uma mesa para Gad, ofereceis mistura em taças cheias a Meni” (v. 11). Há detalhes do culto a Ishtar, a rainha dos céus, provável deusa familiar, pelas mulheres que declaram: “Porque continuaremos a fazer tudo o que prometemos; oferecer incenso à rainha do Céu e fazer-lhe libações, como fazíamos, nós e nossos pais, nossos reis e nossos príncipes, nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém” (Jr 44,17) (GERSTENBERGER, 2007, p. 66-80).

A presença de divindades femininas é constatada em outros textos. As palavras de Yhwh a Gedeão ordenam: “Toma o touro de teu pai, o touro de sete anos, destrói o altar de Baal que pertence a teu pai e quebra a Ashera que está ao lado” (Jz 6,25). A presença de Ashera, que algumas Bíblias traduzem como “poste sagrado”, se refere, na verdade, a uma deusa conhecida também como Astarte, em outros textos bíblicos (Jz 2,13), identificada como deusa do amor e da fecundidade, consorte de Baal e, segundo hipóteses arqueológicas, do próprio Yhwh (CORDEIRO, 2007, p. 1-22).

As diversas famílias ou clãs tinham cada qual as suas divindades, como atestam alguns textos. Na moldura literária da autoapresentação divina, Yhwh aparece como: “o Deus dos vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó” (Ex 3,16). Essa referência ao Deus (elohim) de quatro pessoas parece referir-se a quatro experiências diferentes de Deus, ou possivelmente a quatro entidades religiosas diversas. Essas experiências são resumidas na expressão “Deus dos pais” (Ex 3,13). Além de se associarem a pessoas diferentes, essas divindades possuem epítetos próprios. O Deus de Isaac é conhecido como o “Temor de Isaac” (Gn 31,43.53); o Deus de Jacó é o “Poderoso/Forte de Jacó” (Gn 49,24; Is 49,26; 60,16; Sl 132,2.5). O Deus de Abraão será associado com “Deus Todo-Poderoso” (Gn 17,1). Teríamos, assim, três experiências religiosas ou três teologias diferentes, cuja memória foi conservada nos textos bíblicos (SCHWANTES, 2008, p. 75-83).

Essa religião da pré-história, assim como nas demais etapas da história de Israel, é marcada por influências de inúmeros povos vizinhos. Há menção aos arameus, como nas histórias de Jacó (Dt 26,5; Gn 24-36); de midianitas, como na família do sogro de Moisés, Ragüel ou Jetro (Ex 2,16-22), também nomeado Hobab, o quenita (Jz 1,16; 4,11) e talvez com outras regiões como o Norte da Arábia (SCHMIDT, 2004, p. 19).

O monoteísmo javista, que configura a redação final do Antigo Testamento, inicia-se com o evento do êxodo, associado à teofania do Sinai. Anteriormente, os pais e mães de Israel veneraram El, que era o deus principal do panteão cananeu, e que foi posteriormente identificado com Yhwh. Muitos hebreus cultuaram o deus cananeu Baal, posterior arquirrival de Yhwh. A própria descrição de Yhwh representa um deus da tempestade, mais conforme ao imaginário cananeu. O Deus Yhwh, por sinal, está associado ao contexto do sogro de Moisés, Jetro, sacerdote de Madiã (Ex 18,1-12). O culto ao Deus do êxodo poderia ter chegado a Israel, portanto, pelo grupo de escravos libertos do Egito, ou mesmo pelos mercadores madianitas (RÖMER, 2016, p. 72-73).

Pode-se concluir, pois, que o culto a Yhwh é anterior a Israel, e vem de fora de Canaã. “Yhwh veio do Sinai, alvoreceu para eles de Seir, resplandeceu no monte Farã. Dos grupos de Cades veio a eles, desde o sul até as encostas” (Dt 33,2). Essa região sul corresponde ao território ocupado pelos madianitas, quenitas, beduínos de Shasu. Em torno a esse Deus da montanha, os hebreus teriam desenvolvido o culto do Sinai. A esse culto é associada a lei divina, no Código da Aliança. Essa tradição do Sinai, posteriormente, foi associada à tradição do Êxodo. O Deus da montanha, manifestado nos fenômenos da natureza, passou a ser cultuado como o Deus da história, libertador da escravidão do Egito (SILVA, 2004, p. 75-80).

1.2 Religião na monarquia

A confederação das tribos em direção a uma unidade ideal vai se consolidando em torno a um regime específico, conhecido como período dos juízes, com duração histórica de dois séculos, mais ou menos entre 1220 e 1040 aC e com persistência pelos séculos futuros. Esse movimento de unificação tribal corresponde a um processo de sedentarização e, conjuntamente, de identificação cultural e religiosa. Os relatos bíblicos, principalmente dos livros de Josué e Juízes, apresentam esse processo como luta pela conquista da terra, com ajuda da ação divina.

Seja como for, estabelecido na terra, este Israel sente necessidade de um regime monárquico, com um rei que exerça a justiça, “como acontece em todas as nações” (1Sm 8,5). A monarquia surgiu, portanto, como imitação dos reinos circunvizinhos, com tentativas diversas, que culminaram na unção de Saul, seguido de Davi e Salomão. Após esse tempo de monarquia unida, que teria durado cerca de um século, mais ou menos de 1040 a 930 aC, divide-se o reino entre Israel Norte e Judá Sul.

A monarquia introduz mudanças em todos os sentidos na vida de Israel. Do ponto de vista político, o clã é suplantado pelo Estado. O Estado, por sua vez, se consolida como única instância política e jurídica. No aspecto econômico, aparece a prática do tributarismo, com a concentração de bens e produtos e, especialmente, com a cobrança de impostos. Desenvolve-se o comércio, centralizado pelo Estado.

A religião se conforma ao novo modelo político por um lado e, por outro, a monarquia se adapta ao Deus Yhwh. O governo monárquico adquire caráter sagrado, a exemplo dos reinos vizinhos. O rei se apresenta como representante da divindade. Deus é o protetor do rei, e o povo passa a ser propriedade de Deus. O santuário e o templo são do rei. O sacerdócio é articulado como poder e como instância de apoio ao governante (SCARDELAI, 2008, p. 23-25).

A prática religiosa desse período é marcada pelo sincretismo. A população originária de Canaã possuía uma religião tipicamente camponesa, com variações do casal divino Baal e Astarte, que se adaptavam às diversas necessidades da vida. As manifestações religiosas se ligavam aos fenômenos da natureza e aos ciclos da vida humana e das atividades agrícolas. Não faltavam práticas degeneradas, como prostituição e sacrifício de crianças. Nesse cenário camponês, era difícil o Deus dos nômades concorrer com as divindades sedentárias (RENCKENS, 1969, p. 162-163).

A realeza de Israel, entretanto, tenta se adequar ao javismo. Yhwh era Deus do deserto e da tempestade, nas origens, tendo assumido a função de libertador da escravidão, no Egito, depois de guerreiro valente, na conquista, e assume, agora, a função de camponês, no sedentarismo. Enquanto a monarquia de Israel imita a das nações vizinhas, inclusive com apoio de sacerdotes e de profetas palacianos, o culto a Yhwh lhe confere um diferencial. Como respondeu Gedeão ao povo, numa tentativa de instituir a realeza: “Não serei eu quem reinará sobre vós, nem tampouco meu filho, porque é Yhwh quem reinará sobre vós” (Jz 8,23). Essa convicção de que só o Senhor é rei vai garantir o diferencial na orientação dos diversos governantes da nação. Em vista disso, o rei é representante de Deus, porém está submisso à lei divina. Ele tem o poder executivo e judiciário, mas não o legislativo, visto que a Lei estava dada e cabia ao rei executá-la (RENCKENS, 1969, p. 172).

Quem assegura o javismo como religião de Israel, durante a sequência dos vários monarcas, é a profecia. Profetas havia também em outras monarquias da época, mas com a função de prestar apoio à própria realeza. Em Israel, os profetas assumem função crítica, para anunciar a proposta divina e denunciar os desmandos dos reis.[3]

A profecia de Israel deixou uma contribuição única para a história, com a mensagem centrada na justiça. Em vista disso, os profetas tornaram-se guardiães do javismo, consciência crítica da monarquia, desde a primeira hora. O profeta Samuel reprova a desobediência do rei Saul (1Sm 15,24); assim como Natã denuncia Davi (2Sm 12,1-10); e Aías de Silo apoia a revolta contra Salomão (1Rs 11,29-31). Essa tradição profética permanece durante toda a monarquia, com picos crescentes nos momentos de maior crise.

Elias representa um momento particular do embate entre javismo e baalismo, em meados do século IX aC. Naquele momento, as divindades Baal e Ashera tiveram seu culto incrementado em Israel, graças ao casamento do rei Acab com a rainha Jezabel, filha do rei de Tiro. O profeta Elias investe contra o rei Acab e a casa real: “Não sou eu o flagelo de Israel, mas és tu e tua família, porque abandonastes Yhwh e seguistes os baals” (1Rs 18,18). Desafia os profetas de Baal no monte Carmelo (1Rs 18,20-40). Condena a rainha pelo suborno, assassinato e roubo contra o vinhateiro Nabot (1Rs 21,17-24). As ações de Elias, em vista de uma reforma javista, prosseguem com Eliseu, a quem ele transfere seu manto profético, e com grupos conhecidos como “filhos de profetas” ou “irmãos profetas” (2Rs 2,7-18).

Esse incremento do javismo será reforçado, no Norte, pelas profecias de Amós e Oseias, um século mais tarde, em meados do século VIII aC. Amós investe como leão a rugir (Am 3,8), contra o santuário do rei, em Betel, e contra o seu sacerdote, Amasias (Am 7,10-17). Denuncia os crimes das nações vizinhas (Am 1-2) e do próprio Israel, seja a corrupção, o suborno e a exploração dos fracos. Anuncia o dia de Yhwh como um dia de trevas (Am 5,18-20). Propõe uma ética diferente, baseada na justiça, o que será um diferencial constante na tradição religiosa de Israel, e pode ser sintetizado na formulação de Amós: “Que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso” (Am 5,24). Oseias levanta a voz no mesmo tom e no mesmo contexto histórico, através da metáfora da prostituição, “porque a terra se prostituiu constantemente, afastando-se de Yhwh” (Os 1,2). Daí as críticas aos cultos cananeus (Os 4,12-14); aos pedidos de ajuda ao Egito e à Assíria (Os 7,8-12); à prática religiosa exterior, sem coerência com a vida (Os 8,11-14). Toda essa situação leva o profeta a concluir, em nome do Senhor: “Porque é o amor que eu quero e não sacrifício, conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6,6).

Enquanto isso, o profeta Isaías atua no Sul, por longo período, entre 740 e 700 aC, e assiste à ascensão da Assíria sobre Israel e sobre Judá. Suas críticas focam inicialmente contra a corrupção geral de Judá (Is 3,1-15); em seguida, contra as alianças com Israel e Síria (Is 7,1-9); depois contra a submissão de Judá à Assíria (Is 20,1-6); e, por fim, sobre a invasão fracassada da Assíria sobre Jerusalém (Is 14,24-27). Com a queda da Samaria, o império assírio destruiu o reino do Norte e com as sucessivas incursões militares, reduziu o Sul à vassalagem. Com isso, introduziram-se os cultos estrangeiros, sobretudo assírios, nos santuários do Norte, mas também em Jerusalém. A tentativa de reforma político-religiosa de Ezequias não impediu que continuassem as divindades cananeias, como Baal e Astarte, nem que se introduzissem outras estrangeiras como Ishtar, Shamash, Tamuz, com práticas como prostituição sagrada e sacrifício de crianças, levando à consequente degradação moral.

Como se conclui pelas denúncias proféticas, durante a monarquia, o culto a Yhwh estava longe de ser unanimidade. O que torna oficial o javismo é a reforma de Josias, por volta de 622 aC. O rei se aproveita de um período de recrudescimento do imperialismo assírio para empreender uma reforma político-religiosa no reino de Judá. Essa reforma se baseia no livro da Lei ou livro da aliança (2Rs 22-23), identificado com o Deuteronômio, e está expressa na teologia deuteronomista, que se resume em três pilares: um único Deus, Yhwh; um Templo central, Jerusalém; e um rei imperante, da dinastia de Davi. Essa teologia reafirma as tradições javistas, como as promessas aos patriarcas, a libertação do Egito, a posse da terra e a aliança com Davi, como se expressa na profissão de fé (Dt 26,5-10). O Templo de Jerusalém centraliza o culto a Yhwh com exclusividade (Dt 12,5). Essa estabilidade reporta à aliança do Senhor com o rei Davi, modelo ideal, segundo a tradição bíblica dominante (2Sm 7,1-17). As consequências da reforma de Josias para os cultos populares estão descritas em 2Rs 23, e se resumem na demolição dos santuários, destruição dos objetos de culto, destituição dos sacerdotes, proibição dos cultos a Baal e a Ashera, aos astros e a outras divindades (NAKANOSE, 2000).

Num balanço geral da vida religiosa de Israel, durante a monarquia, constatam-se influências diversas. Do Egito, Israel herdou o modelo de monarquia, com todo o seu aparato institucional e com a ideologia que lhe deu sustentação, e que se reflete na história dos reinos, na literatura sapiencial e em inúmeras tradições relativas aos reis. Da Mesopotâmia, herdou narrativas das origens, estruturas de alguns Salmos, poesias como Jó e tradições legais. De Canaã, a representação de Deus como rei e as tradições de luta contra o caos (SCHMIDT, 2004, p. 20).

1.3 Religião no exílio

O exílio babilônico marca o século VI aC, com a deportação de levas da população de Judá, principalmente ligadas à elite. O drama histórico deixa a nação sem território, sem governo e sem Templo. Mas não sem a fé. É no exílio que se faz sentir o efeito da reforma de Josias. Se não há território, é a chance para criar outros laços de união. Se não há rei, é hora de reforçar o senhorio de Yhwh. Se não há templo, é a oportunidade para se valorizar o livro da Lei. Se não há sacerdócio, valoriza-se a profecia. A Babilônia é o ambiente em que se fortalece a religião de Israel, com renovadas práticas de fé. “É um fato bem notável que a ruína de Israel não constitui ao mesmo tempo o fim de sua religião. Não apenas não terminou ainda a história da religião de Israel, mas é agora que ela começa em definitivo” (RENCKENS, 1969, p. 181).

A queda de Jerusalém está descrita em 2 Rs 25,8-30, com incêndio do Templo, do palácio real e dos principais edifícios, com saque dos objetos sagrados e com prisão de sacerdotes e dos chefes. A descrição da queda se conclui com a afirmação: “Assim, Judá foi exilado para longe de sua terra” (2Rs 25,21). Na sequência, escreve uma palavra sobre os remanescentes, os camponeses de Judá, denominados “o povo da terra” (2Rs 25,22-24), e outra sobre o grupo que foi deportado para o Egito (2Rs 25,25-26).[4]

A situação dos remanescentes em Judá pode ser compreendida a partir do livro de Lamentações, espécie de coletânea de cantos fúnebres, lamentações individuais e coletivas. Refletem o sofrimento do povo, velhos abandonados, viúvas desamparadas, crianças famintas. Referem-se à destruição de Jerusalém, e têm o seu ambiente vital nos escombros do Templo. Constituem “uma espécie de ‘cancioneiro’ das celebrações litúrgicas junto às ruínas do templo de Jerusalém” (SCHWANTES, 2009, p. 57).

A situação dos refugiados no Egito se encontra em Jr 42-45. O próprio profeta acompanhou o grupo e lá proferiu palavras de ânimo e de esperança, além de denunciar as práticas sacrificiais à rainha dos céus e outras abominações (Jr 44).

A situação dos deportados para a Babilônia é a que revela mais dados sobre a vivência religiosa naquela época. Pode ser constatada nas palavras do salmista: “À beira dos canais da Babilônia nos sentamos, e choramos com saudades de Sião” (Sl 137,1). A vivência religiosa dos tempos exílicos está registrada pelas palavras e atuação de dois grandes profetas, Ezequiel e um discípulo de Isaías, conhecido como Segundo Isaías ou Dêutero Isaías (Is 40-55).

Ezequiel era sacerdote da elite de Jerusalém e foi vocacionado para a profecia em terras de exílio, fato inédito, torna-se o primeiro profeta a atuar fora da terra de Israel (Ez 1,3). O sacerdote transforma-se em profeta, outro fato extraordinário e, nessa condição, passa a animar as comunidades exiladas (3,15; 8,1; 14,1…). A glória do Senhor, que antes se manifestava no Templo de Jerusalém, transfere-se agora para aquele vale (3,23), para junto do rio Cobar (Ez 1,3; 3,15.23). Com isso, a visão profética se amplia, e reconhece a presença de Deus em meio a um grupo de pessoas escravizadas. A salvação, nessa perspectiva, está no exílio, não em Judá, que foi um povo rebelde (2,5; 12,2-3) e praticou a abominação (6,9; 8,6). Ezequiel denuncia o rei (17), os profetas (13), o Templo (8) e a elite (22,23-31). Sua proposta inclui um novo Davi, justo e dedicado aos pobres (34,23-24; 37,24); um novo templo, controlado por sacerdotes, não por políticos (40-48); um novo êxodo, com recondução dos dispersos à terra de Israel (20,42; 36,24; 37,12). Nessa visão de esperança, os reingressados serão purificados (36,25; 37,23). Os fracassos de outrora serão suplantados, em vista de uma recriação radical, “por causa do meu santo nome”, diz o Senhor (36,22). A nação será reconstruída, com o efeito do Espírito, capaz de vivificar um vale de ossos secos (37). O profeta quebra a teologia da retribuição, que justificava os males e, especificamente a destruição de Judá, como castigo de Deus. Nesse sentido, desaprova o provérbio que dizia “Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados” (18,2); e completa: “Sim, a pessoa que peca é a que morre! O filho não sofre o castigo da iniquidade do pai, como o pai não sofre o castigo da iniquidade do filho: a justiça do justo será imputada a ele, exatamente como a impiedade do ímpio será imputada a ele” (18,20). (SCHWANTES, 2009, p. 75-92).

O Dêutero Isaías (Is 40-55) dá um passo a mais. Representa um profeta ou uma profecia comunitária, porta-voz de grupos exilados. Começa proclamando: “Consolai, consolai o meu povo… dizei que o seu serviço está cumprido, que a sua iniquidade está expiada” (Is 40,1-2). O desterro foi um período de purificação, mas os pecados estão apagados (43,25-28). O que se vislumbra agora é uma recriação (43,1), um novo êxodo (43,16), com o retorno à terra de Israel (48,20; 52,11-12). Nessa libertação, manifesta-se a glória de Javé (40,5), pela ação de Ciro, o ungido (45,1) (SCHWANTES, 2009, p. 92-108).

Na realidade do exílio, a Babilônia tornou-se o ponto de referência para a renovação religiosa. Numa carta enviada por Jeremias, de Jerusalém, para as lideranças dos exilados, ele propõe que reconstruam a vida naquela nova realidade, com edificação de casas, cultivo de plantações, realização de casamentos e vida social normal: “Procurai a paz da cidade, para onde eu vos deportei; rogai por ela a Yhwh, porque a sua paz será a vossa paz” (Jr 29,7). Nesse contexto, as pessoas deportadas podem organizar-se em colônias, manter o direito de ir e vir, trabalhar nos campos. Podem manter sua língua, seus costumes e, sobretudo, suas práticas religiosas, o que assegura a sua identidade como um povo.

No contexto religioso do exílio, o javismo se afirma como domínio de um único Deus, portanto como monoteísmo, a ser reafirmado no pós-exílio, de maneira absoluta e excludente, com o retorno da elite sacerdotal. Na boca do Dêutero Isaías, é colocada esta profissão de fé: “Eu sou Yhwh, e não há outro, fora de mim não há Deus” (Is 45,5). O Deus de Israel ganha força, justamente no confronto com o Deus babilônico Marduc, ao mesmo tempo em que assume atributos daquela divindade (REIMER, 2009, p. 48-50).

A ausência do lugar sagrado para realizar os cultos dá lugar às reuniões em torno à palavra, que adquire maior importância naquele contexto. Independentemente da localização geográfica, o javismo pode ser praticado em qualquer contexto em que as pessoas se reúnem. Ezequiel reporta diversas dessas reuniões (Ez 8,1; 14,1; 20,1). Estavam lançadas aí, possivelmente, as raízes da sinagoga, instituição que surgirá mais tarde, com edifícios apropriados.

A guarda do sábado, de antiga tradição dos hebreus, passa a ser um rito de destaque para os grupos exilados. Com efeito, o sábado torna-se um distintivo da identidade daquele povo, visto que não era conhecido dos babilônios. Com razão, Ezequiel recomenda: “Deveis santificar os meus sábados, de modo que sejam um sinal entre mim e vós, para que se saiba que eu sou Yhwh, vosso Deus” (Ez 20,20).

A circuncisão tornou-se outra prática fundamental para distinguir o povo do Senhor. Tendo sido prática comum em Canaã, a circuncisão não se impunha na Mesopotâmia, de sorte que, para o povo do exílio, passou a ser, juntamente com o sábado, “sinal da aliança” (RENCKENS, 1969, p. 231).

A religião babilônica, entretanto, constituiu uma forte ameaça para o javismo. O deus Marduc era celebrado com procissões pomposas e se apresentava como vitorioso, a tal ponto que havia derrotado o povo de Israel. Não faltou quem, em suas casas, erigisse imagens dos deuses babilônicos (Ez 14,1-11), nem consultas a feiticeiras da magia daquelas divindades (Ez 13,18) (FOHRER, 1982, p. 285-286).

Apesar disso, o javismo resistiu, se fortaleceu e se recriou no ambiente exílico. Ali foi cultivado e ampliado o livro, que mais tarde veio a chamar-se Bíblia. A palavra de Deus alimentou a vida espiritual, com reinterpretação das antigas tradições, com aplicação de leis e mandamentos e com novos conceitos sobre Deus e sobre o povo. No exílio, foi ampliado o livro da Lei, que constitui basicamente o Deuteronômio; foi revista a Obra Histórica Deuteronomista (Josué-Reis); e foi concluído o Código de Santidade (Lv 17-26) (FOHRER, 1982, p. 388-390).

No exílio babilônico, a religião de Israel se refez totalmente. Essa renovação constituiu nova criação: “Assim diz Yhwh, o teu redentor, aquele que te modelou desde o ventre materno: eu, Yhwh, é que tudo fiz” (Is 44,24); nova história: “Não fiqueis a lembrar coisas passadas” (Is 43,18); novo êxodo: “Eis que vou fazer uma coisa nova” (Is 43,19); nova aliança: “Concluirei com eles uma aliança de paz, a qual será uma aliança eterna” (Ez 37,26). A esperança no futuro começa a ganhar contornos escatológicos, com visões de uma era futura de redenção e libertação. A ideia de povo de Deus sofre mudanças radicais. A salvação é para um “resto”: “Então o resto de Sião e o remanescente de Jerusalém serão chamados santos” (Is 4,3; Sf 3,13); Deus resgata a nação a partir das cinzas: “Não temas, vermezinho de Jacó, e tu, bichinho de Israel” (Is 41,14); o Messias é um servo sofredor, solidário com os escravos da Babilônia: “Yhwh quis feri-lo, submetê-lo à enfermidade. Mas, se ele oferece a sua vida como sacrifício pelo pecado, certamente verá uma descendência, prolongará os seus dias, e por meio dele o desígnio de Deus há de triunfar” (Is 53,10).

1.4 Religião no período persa

A entrada do exército de Ciro na Babilônia, em 539 aC inaugura o império persa e introduz tática política e religiosa diferente. Essa política de tolerância permite o repatriamento dos povos exilados e a prática de sua religião. A administração política e jurídica persa fica por conta das províncias, denominadas satrapias, tendo um sátrapa à frente de cada uma. O sistema econômico tributário é aperfeiçoado, com incentivo à circulação da moeda. Isso acentua a exploração, os débitos e o escravismo. A sociedade mista, resultado da política de repatriação, aumenta as diferenças sociais, herança dos babilônios. A religião oficial do império persa se baseia na tolerância, possibilitando a cada povo praticar a sua fé e seguir os seus costumes. No próprio império persa, persiste a prática religiosa com ênfase escatológica, com desdobramentos de Zoroastro, messianismo, dualismo, juízo e ressurreição.

Esse novo contexto permite o retorno dos exilados e favorece a reconstrução de Judá. Por isso, o novo imperador será saudado como “pastor” (Is 44,28) e como “messias” (Is 45,1). Com efeito, o edito de Ciro, de 538, reportado no final de 2 Crônicas e no início de Esdras, corresponde à ideologia da política persa. Liberada a possibilidade de reconstrução, vários projetos se apresentam, não sem conflitos e oposições.[5]

“No primeiro ano do rei Ciro, o rei Ciro ordenou: Templo de Deus em Jerusalém. O Templo será reconstruído para ser um lugar onde se ofereçam sacrifícios, e seus alicerces devem ser restaurados” (Esd 6,3). Com efeito, o Templo de Jerusalém foi reconstruído em cinco anos, de 520 a 515 aC. Diversas forças convergiram para a proposta de recuperação do sacerdócio, culto e sacrifícios. Com apoio do imperialismo persa, colaboram Zorobabel, descendente do rei de Judá; Josué, descendente do sumo sacerdote de Jerusalém; Esdras, escriba e representante do rei da Pérsia; Neemias, governador de Judá, nomeado pelo rei da Pérsia; os profetas Ageu e Zacarias. O projeto de reconstrução, claramente, reunia as elites colaboracionistas, para juntar trono e altar, política e religião, numa espécie de sistema teocrático. Na concorrência para identificar quem era o verdadeiro Israel, o grupo dominante conseguiu apoio de grande parte do povo, para construir o chamado segundo Templo. A teologia da retribuição foi recuperada, para justificar que o sofrimento do povo era castigo de Deus, por ter abandonado o Templo em ruínas (Ag 1,3-11); ou que era devido aos casamentos com mulheres estrangeiras (Esd 9,1-2; 10,2.10). A ideologia que dá sustentação a esse projeto exclusivista está expressa na teologia deuteronomista, agora intensificada (VASCONCELLOS; SILVA, 2009, p. 161-170).

Em síntese, a proposta religiosa oficial propõe o cumprimento estrito da Lei, explicada por Esdras e pelos levitas (Ne 8,1-8); a recuperação da pureza da raça, com a consequente expulsão das mulheres estrangeiras e dos filhos nascidos dessas uniões (Esd 10,3.11); a construção do Templo, como lugar exclusivo de culto ao único Deus Yhwh; o restabelecimento da teologia davídica, com a proposta de um novo messias.

Essa religião baseada na Lei, no Templo e na raça pura foi a que se impôs como oficial e constituiu as bases do Judaísmo. Mas não sem oposição. Já na construção do Templo, confrontaram explicitamente os samaritanos (Esd 4,1-23), que passaram a formar uma corrente religiosa diferente. Outros grupos ou movimentos de contestação podem ser identificados nas entrelinhas da literatura que se seguiu. Cinco rolos, devidamente nomeados Meguillot em hebraico, constituem uma espécie de Pentateuco popular. Reúnem histórias como a de Rute, mulher, viúva, estrangeira, pobre, que se integra ao povo e ao Deus de Israel: “Teu povo será o meu povo e teu Deus será o meu Deus” (Rt 1,16); e dá origem à linhagem de Davi, um messias bem diferente daquele rei ideal: “Nasceu um filho a Noemi e chamaram-no Obed. Foi ele o pai de Jessé, pai de Davi” (Rt 4,17). O Cântico dos Cânticos é outro livro do mesmo teor, protagonizado pela fala de uma mulher, camponesa e pastora, decantando o amor e a paixão, na liberdade dos corpos e na transgressão das regras legais de pureza. A única menção ao nome divino, em todo o livro, seria uma abreviatura de Yhwh, quando declara: “Pois o amor é forte, é como a morte! Cruel como abismo é a paixão; suas chamas são chamas de fogo uma faísca de Yah” (Ct 8,6). Mais adiante, nessa mesma coleção dos cinco rolos, encontra-se Eclesiastes, questionando o próprio sentido da existência sob os governos opressores, e no qual não há uma menção sequer ao nome de Deus. Completam a lista dos cinco rolos os livros de Lamentações, sobre as ruínas de Jerusalém e de Ester, sobre o heroísmo de uma mulher (MENA LÓPEZ, 2010, p. 9-158).

Nessa linha de oposição ao Judaísmo oficial, poderiam ser mencionados Jó, que contesta a teologia da retribuição; e Jonas, inconformado com a conversão de Nínive. E ainda, as propostas escatológicas de novo céu e nova terra, com inclusão de estrangeiros, do Trito Isaías (Is 56-66); o derramamento do Espírito sobre crianças e idosos e sobre escravos e escravas, do profeta Joel (Jl 3,1-5); o Messias pobre, montado num jumento, conforme o Dêutero Zacarias (Zc 9,9-10); o Templo como centro de justiça, do profeta Malaquias (Ml 3,1-5).

1.5 Religião no período helenista

Alexandre, denominado o grande, ao vencer os persas, funda novo império, e dá início ao projeto helenista, a partir de 333 aC. A sua breve e vitoriosa trajetória, sintetizada no início do primeiro livro de Macabeus, bem como o reinado de seus sucessores e de seus filhos, recebem um juízo lapidar: “E multiplicaram os males sobre a terra” (1Mc 1,9). Na visão de Daniel, Alexandre é comparado a um bode chifrudo, de cujos chifres nascem quatro outros, que o sucederam (Dn 8,1-22). O chifre mais terrível será um de seus descendentes, Antíoco Epífanes (Dn 7,8). A informação do primeiro livro de Macabeus é confirmada pela história: “Alexandre… depois de tudo isso, caiu doente e percebeu que ia morrer… convocou então os seus oficiais… e, estando ainda em vida, repartiu entre eles o reino” (1Mc 1,5.6). Com efeito, o reino foi dividido entre os quatro generais de confiança de Alexandre, chamados diádocos. Os que mantiveram controle sobre a Judeia foram os Ptolomeus, a partir do Egito, por um século (301 a 198 aC), em seguida os Selêucidas, a partir da Síria, por quase mais um século. E impuseram, cada império ao seu modo, o pensamento helenista.[6]

A partir de Alexandre, efetivamente, o mundo de então passa a ser helenizado, com consequências que perduram até os dias atuais. A unidade política autônoma, nos domínios helênicos, é a polis, a cidade livre. A economia, baseada no livre mercado, aumenta a circulação de riquezas e facilita a sociedade latifundiária e escravista. A filosofia que dá sustentação ao novo projeto é racionalista, com desdobramentos para o universalismo, o humanismo, o materialismo e o dualismo. A religião segue os moldes filosóficos, tendo Zeus como deus supremo de um panteão variado. A prática religiosa incluía sacrifícios às divindades, prostituição sagrada e êxtases místicos. A mitologia explicava os grandes mistérios do ser humano e do mundo. As preocupações com a vida após a morte não eram tão acentuadas como em outras religiões (REINKE, 2019, p. 232-247).

O Judaísmo oficial, nos inícios da época helenista, deve estar bem constituído, tendo o Templo de Jerusalém em funcionamento, com todo o seu aparato litúrgico e com a hierarquia sacerdotal em exercício, como se constata pelos livros do Levítico e de Ezequiel. A Lei, dita Torah, deve ser seguida fielmente, como forma de ser e de comportar-se, conforme o Pentateuco, que já tem sua forma definitiva. Para interpretar a Lei, surge uma nova classe, ao lado dos sacerdotes, os escribas ou doutores da Lei. Enquanto os sacerdotes cuidam do Templo, ligados ao culto, os escribas orientam a sinagoga, focados no livro. São chamados de rabbi, e manterão o Judaísmo ativo, após a destruição do Templo. Historicamente, o Templo de Jerusalém, reconstruído após o retorno do exílio, não chegou a ocupar a centralidade do culto, como ocorrera com o primeiro Templo, da época da monarquia. A novidade do culto fica por conta da sinagoga, não mais centrada nos sacrifícios sangrentos oficiados por sacerdotes, como os do Templo, mas sim na participação de toda a comunidade, mulheres, crianças e homens judeus, como atestado desde a época persa, conforme a assembleia liderada pelo escriba Esdras, com leitura da escritura e oração (Ne 8). Na sinagoga, “leitura e aprendizado da Torá são as atividades principais, às quais se agregam oração e meditação” (GERSTENBERGER, 2007, p. 306).

Da Bíblia Hebraica, duas coleções estavam formadas, a Lei (Torah) e os Profetas (Nebiîm). A terceira coleção, dos Escritos (Ketubîm), é objeto de forte atividade literária nesse período helenista, com acento na sabedoria (RENCKENS, 1969, p. 241-243).

A literatura sapiencial, expressão forte do pensamento judaico, recebe sua forma definitiva nesse período próximo à era cristã, embora suas raízes sejam muito antigas. O livro de Provérbios expressa essa contribuição, através de ditos populares, passados de boca em boca, a partir de experiências do cotidiano. Por isso mesmo, os provérbios refletem as contradições da vida, seja de riqueza e pobreza, palácio e campo, reis e escravos, justiça e impiedade, mulheres e homens, crianças e anciãos, sábios e estultos. A sabedoria em geral, e os provérbios em particular, sofreram influências estrangeiras, principalmente do Egito (Pr 22,17-24,22). Nesses momentos de crise, o livro de Eclesiastes elabora o pensamento judaico crítico na diáspora do Egito, sob o domínio de Ptolomeu. O livro de Jó, questionando o sentido do sofrimento do inocente, aprofunda a crítica à teologia da retribuição (CRB, 1993, p. 13-33).

A literatura apocalítica também ganha impulso, nesse período helenista, com influência persa e com acento na escatologia. Desde a crise do exílio, a profecia começa a ganhar traços apocalípticos, já com Ezequiel (Ez 38-39) e com Isaías (Is 24 e 27; 34 e 35; 65 e 66). Porém ganha traços mais escatológicos com Joel, Malaquias, Dêutero Zacarias (Zc 9-14) e, principalmente, com Daniel. Esse gênero se desenvolve amplamente no período do intertestamento, em diversos livros apócrifos. No Novo Testamento, o Apocalipse de João é a expressão máxima dessa teologia. Caracteriza-se como expressão religiosa de resistência de quem não tem força política; traduz-se em linguagem fortemente simbólica, para expressar os anseios religiosos; possui, em geral, visão dualista do mundo e da história; não raro apela para o pseudônimo e para nomes cifrados; busca, sobretudo, decifrar os mistérios divinos em meio à crise (CRB, 1996, p. 32-59).

O hassidismo foi outro movimento religioso de resistência judaica, contra o helenismo, no período de dominação selêucida e, especialmente, frente à dominação de Antíoco IV Epífanes. Os hassideus (piedosos) tinham raízes antigas como grupo dos observantes da Lei judaica (1Mc 2,29-42). Mas se manifestaram com veemência no confronto com a helenização dos selêucidas, batalhando ao lado de Judas Macabeu (2Mc 14,6). Uniram-se posteriormente ao sumo sacerdote Alcimo (morto em 159), porém este os desiludiu em suas esperanças religiosas, ofendendo-os com a destruição dos muros externos do Templo, o que facilitava o acesso dos pagãos ao lugar sagrado. Há quem atribua aos hassideus, Dn 7-12 e 2Mc 6-7, textos sobre o martírio de Eleazar e a mãe com os sete filhos. O movimento hassideu, posteriormente, deu origem aos fariseus e aos essênios, estes ligados a Qumran. O nome fariseu foi dado pelos gregos, para significar “separados” ou “separatistas”. Fariseus e saduceus nasceram no período de João Hircano I (134-104 aC), o sacerdote comandante. Ambos preocupados com a lei, sendo os saduceus mais liberais e inclinados à política helenista (KONINGS, 2011, p. 102-103).

As influências do helenismo se farão sentir, sobre a religião de Israel, bem como sobre o Cristianismo, de maneiras diversas. Enquanto os judeus se identificavam com práticas éticas e religiosas específicas, fundamentadas na Lei, os gregos propunham uma religião universal, desvinculada do contexto existencial. Enquanto alguns judeus aderiram a essas ideias helenistas, outros reagiram radicalmente. Dentre as influências helênicas sobre o Judaísmo, destaca-se a tradução da Bíblia Hebraica para o grego, chamada Septuaginta ou LXX. Essa Bíblia será o elo de ligação com o Cristianismo, principalmente pela atuação dos missionários junto às comunidades gentílicas. A Septuaginta reflete o ambiente dos judeus da diáspora, vivendo numa comunidade helenizada do Egito, chamada Alexandria (SCARDELAI, 2008, p. 86-88).

A cultura helenista incidiu de tal maneira sobre os inícios do Cristianismo que fez Jesus e os apóstolos galileus falarem grego; impôs a escrita dos Evangelhos e de todo o Novo Testamento na mesma língua grega; e obrigou os hagiógrafos cristãos a citarem a Bíblia Hebraica a partir da tradução grega dos LXX. Outras influências do helenismo se estendem sobre o Cristianismo e sobre a própria cultura ocidental, e incluem aspectos que envolvem o conceito político de democracia, a filosofia racionalista, o movimento renascentista, a visão dualista do ser humano como corpo e alma, e a teologia cristã aristotélico-tomista.

2 A religião cristã do Novo Testamento em seu contexto religioso e cultural

A religião do Novo Testamento é constituída por “uma comunidade que nasceu do Judaísmo antigo, mas que, ultrapassando-lhe a delimitação étnica e cultural, compreendeu-se a si mesma como a verdadeira renovação da Aliança e como caminho para a realização universal do ‘povo de Deus’: a comunidade cristã” (KONINGS, 2011, p. 115).

A comunidade cristã, com efeito, surge como uma renovação interna do próprio Judaísmo, de cuja tradição herdou as Escrituras Sagradas, os costumes e as práticas que constituem a sua matriz religiosa. Afirmou-se também no diálogo, ora amistoso, ora conflitivo, com o helenismo, tanto em suas ideias filosóficas quanto em suas práticas populares. E se consolidou no Império Romano, com forte caráter de resistência e de superação.

Diante da vastidão e complexidade do assunto, segue-se, igualmente, elaboração sintética, com intenção didática, na abrangência histórica do primeiro século da era cristã. Para a periodização desses cem anos, utilizam-se alguns eventos marcantes, com datas arredondadas: nascimento de Jesus (ano 1), morte de Jesus (ano 30), início das grandes missões e da redação do Novo Testamento (ano 50), queda de Jerusalém e incêndio do Templo (ano 70), final do primeiro século (ano 100).[7]

2.1 Jesus de Nazaré, encarnado, crucificado e ressuscitado

As primeiras três décadas do Cristianismo, idealmente do ano 1 ao ano 30 da nossa era, situam-se nos confins do Império Romano, entre o vilarejo da Galileia dos gentios, chamado Nazaré, e a capital da fé judaica, a cidade de Jerusalém. A trajetória histórica de Jesus se desenvolve entre dois acontecimentos extraordinários para a fé, a encarnação e a ressurreição. A encarnação é descrita, por Lucas, com o anúncio de um anjo: “Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor, na cidade de Davi” (Lc 2,11). E a ressurreição é apresentada por Marcos igualmente com as palavras de um jovem mensageiro: “Estais procurando Jesus de Nazaré, o Crucificado. Ressuscitou, não está aqui” (Mc 16,6). Os Evangelhos reconhecem, nesse homem, a realização das esperanças messiânicas judaicas. Identificam o Messias servo sofredor com a pessoa do judeu galileu dos inícios do século I. Jesus pode ser situado “no mundo judaico no qual ele nasceu, cresceu, foi educado, e pelo qual ele foi barbaramente crucificado na cruz romana” (SCARDELAI, 1998, p. 230).

Os seus conterrâneos o reconhecem como um profeta, e mais, como “o” profeta, aquele prometido nos tempos antigos (Dt 18,15.18), como declara a multidão após a multiplicação dos pães: “Este é verdadeiramente o profeta, aquele que deve vir ao mundo” (Jo 6,14). Pelas palavras e ações de Jesus, relatadas nos Evangelhos, emerge a figura de um profeta popular, com traços messiânicos, atento prioritariamente ao pão e à saúde do povo pobre e marginalizado. Nas curas das doenças se revela a ação de Deus, e na partilha da mesa com os pobres se constrói a comunidade. Com linguajar simples e envolvente, através de ditos e parábolas, chama a atenção para um estilo de vida diferente. Essa proposta desafiadora exige radicalidade total, a ponto de renunciar à própria vida. E leva a uma relação diferente com o próprio Deus, como uma criança que se dirige ao seu papai (Abbá). Essa proposta radical da Galileia se apresenta como uma boa notícia, preferencialmente para os pobres, como expressa o chamado Sermão da Montanha (Mt 5,1-12). Propõe um Israel renovado, com perdão das dívidas, recuperação de famílias e comunidades, além da superação da doença e da fome. A esse projeto de vida radical, o próprio Jesus chama de Reino de Deus (PIXLEY, 1986, p. 85-96).

O projeto de Jesus, como era de se esperar, encontra resistências, por parte das autoridades da religião judaica por um lado e, por outro, por parte das autoridades da política romana. A conjugação dessas forças é que vai condená-lo à morte. A sentença sobre a sua cabeça traz como acusação: “rei dos judeus”.

Jesus viveu, efetivamente, a realidade de um camponês da Galileia, região sufocada pela presença militar e pela cobrança de impostos por parte do Império Romano. Assimilou, plenamente, as tradições religiosas de seu povo, com as orações em família e com os cultos na sinagoga. Na Galileia, praticou a Torah e respeitou a religião popular do seu povo. Mas superou os limites legais, pela proposta da justiça com misericórdia. Rompeu, nesse sentido, com as amarras do legalismo e da religião formal (FREYNE, 1996).

2.2 O movimento de Jesus e as primeiras comunidades cristãs

As próximas duas décadas, esquematicamente, do ano 30 ao ano 50, situam-se no contexto da religião judaica, com incursões no mundo helenístico, entre Jerusalém e Antioquia da Síria. É o período de discipulado e missão, em que muitas comunidades judaicas aderem ao modo de vida proposto por Jesus. A sua memória torna-se uma presença constante e intensifica o cultivo de suas palavras e ações. Começam a ser coletados os seus ditos e parábolas, elaborados relatos de paixão e reunidas narrativas de milagres.

Jesus chama discípulos, segundo Marcos (Mc 3,14-15), com três finalidades específicas: ficar com ele, sair a pregar e expulsar demônios. Esse tríplice chamado se realiza plenamente após a morte e ressurreição do Mestre. O “permanecer com Jesus” se efetua na memória viva, através do cultivo das suas palavras e das celebrações de sua ceia. O “sair a pregar” desencadeia um movimento missionário para além dos limites geográficos e culturais. O “expulsar demônios” se concretiza no combate a todas as formas de mal que grassavam nos diversos contextos.

O que chamamos de movimento de Jesus era uma proposta de vida radical, que implicava desapego de pátria, de família e de posses. O fundamento para essa proposta está no chamado discurso missionário (Mt 10). Indica um estilo de vida itinerante, dois a dois, de casa em casa, sem levar nada consigo, para expulsar os males e levar a paz (HOORNAERT, 1994, p. 85-91).

Esse movimento missionário afirma-se nas sinagogas e nas casas, constituindo grupos locais, comunidades de fé com novo formato. Em torno à pessoa de Jesus, de seus familiares e vizinhos, possivelmente formam-se as primeiras reuniões. Eram comunidades de fala aramaica. Sua vivência marca os Evangelhos, com características camponesas, ligadas à pesca, vítimas da exploração, acometidas por muitas doenças, mas firmes na fé e na esperança. Os Evangelhos apresentam vários indícios da importância da Galileia para os inícios da fé cristã. Segundo Marcos, logo que soube da prisão do Batista, Jesus começou a proclamar o Evangelho de Deus na Galileia (Mc 1,14). De acordo com Lucas, na sinagoga de Nazaré, aldeia natal de Jesus, ele proclama a sua missão profética para evangelizar os pobres (Lc 4,16-22). Os diversos relatos de aparições de Jesus remetem para o encontro com o ressuscitado na Galileia (Mc 14,28; 16,7; Mt 28,7.10.16; Jo 21). Os Atos dos Apóstolos também confirmam a existência de comunidades na Galileia (At 9,31). E a apresentação daquilo que poderia ser um primeiro plano missionário, na força do Espírito Santo, é dito pelo ressuscitado: “E sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e a Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8) (FREYNE, 1996, p. 229-231).

Logo, em Jerusalém, formam-se comunidades em torno à ressurreição de Jesus e à luz do Pentecostes. Ao reunir judeus e helenistas, essas comunidades enfrentam conflitos internos (At 6). A concorrência se dá entre a prática de um Judaísmo radical e legalista, representado pelo grupo de Tiago (At 12,17; 15), e a proposta de outro grupo mais liberal e aberto aos gentios, representado posteriormente pelo apóstolo Paulo.

Entre a Galileia e a Judeia, na Samaria, formam-se comunidades cristãs, reunindo judeus e samaritanos. Atos dos Apóstolos registra a missão de Filipe, com o batismo do eunuco (At 8). O Evangelho de João também testemunha essa presença cristã, pela evangelização da mulher samaritana (Jo 4).

Em Antioquia, capital da Síria, já fora dos limites de Israel, os seguidores de Jesus são chamados cristãos pela primeira vez (At 11,26). Nessa comunidade, de tradição judaica e com forte presença de helenistas, acentua-se o conflito entre duas formas de viver a fé, segundo a Lei judaica ou aberta para a inserção de gentios. A discussão entre Pedro e Paulo ilustra bem essa diferença (Gl 2,11-14). As divergências concentravam-se sobre a necessidade ou não de circuncidar os não judeus, mas envolviam questões de pureza, de comer carnes imoladas aos ídolos e de uniões ilegítimas, como consta no chamado Concílio de Jerusalém (At 15,1-35).

2.3 Comunidades na Ásia Menor, Grécia e Roma

Em mais duas décadas, entre os anos 50 e 70 dC, o Cristianismo se expande da capital do Judaísmo, Jerusalém, até Roma, a capital do Império. É o período de abertura para o helenismo, passando pela Ásia Menor, Grécia e Roma. Os conflitos com o Judaísmo se acentuam, à medida que a novidade cristã se difunde. A revolta do Judaísmo contra o Império Romano termina com a queda de Jerusalém no ano 70 e a consequente diáspora judaica. O movimento missionário cristão é impulsionado, com destaque para a atuação do apóstolo Paulo. A pregação da Boa Nova se concentra nas grandes cidades do Império, mas também inclui comunidades rurais, como testemunham as cartas aos Gálatas e a primeira carta de Pedro. Ganha impulso, nesse período, a tradição escrita, que formará as escrituras cristãs, o chamado Novo Testamento. Começa com as cartas de Paulo e prossegue com a redação dos Evangelhos, e com os demais escritos, até terminar, com o Apocalipse.

Paulo é o protótipo do judeu helenista que adere ao Cristianismo. Ele consegue conciliar, em sua rica personalidade, características diferentes e até contraditórias: judeu radical de tradição farisaica, grego helenista da diáspora, romano com cidadania imperial, cristão apóstolo e missionário. A sua atuação envolve a colaboração de pessoas diversas: o casal Priscila e Áquila, o pregador egípcio Apolo (At 18,24), as líderes Cloé (1Cor 1,11) e Lídia (At 16,14), a diácona e patrona Febe (Rm 16,1.2), os missionários Silvano e Timóteo, o médico e escritor Lucas, o escritor Tércio (Rm 16,22) e muitas outras pessoas (Rm 16). Esse movimento missionário se expande por todo o Império e desencadeia uma inovação radical: o Cristianismo ultrapassa a Ásia e se difunde para a Europa; alarga os conceitos da religião judaica com a inclusão do Helenismo; amplia as práticas camponesas para o mundo urbano; supera a família patriarcal pela comunidade eclesial; substitui o regime da Lei pelo dom da graça; e suplanta o sistema escravagista pela liberdade em Cristo (MESTERS, 1991, p. 130-131).

Nessa expansão missionária, o Cristianismo recupera a importância da casa, conceito judaico que envolve o sentido de clã ou família ampliada. O casal Priscila e Áquila disponibilizou sua casa para fundar igrejas em Corinto, Éfeso e Roma (Rm 16,3-5; 1Cor 16,19). A Filêmon, Paulo escreve saudando a “igreja da tua casa” (Fm 2). Outro exemplo significativo é a “igreja da casa” da mulher Ninfas (Cl 4,15). Outra “igreja da casa” liderada por uma mulher é a de Lídia, em Filipos, que acolheu Paulo (At 16,15.31.34) (COMBLIN, 1987, p. 320-355).

Para além da realidade das casas, essenciais para o apoio missionário, o Cristianismo integrou a prática das associações da época. No âmbito do Império Romano, diversas categorias culturais ou religiosas reuniam-se em associações, conhecidas como collegia. Podia ser de artesãos, esportistas, teatrólogos, fiéis de uma mesma crença e outros. A associação dos ourives em Éfeso é recordada pelo confronto com Paulo (At 19,23-24). A comunidade de Qumran é um exemplo radical de associação religiosa. A mais importante, para o Cristianismo, era a própria sinagoga judaica, assembleia religiosa que serviu de matriz para as comunidades cristãs. Essas diversas assembleias criavam um ambiente favorável à expansão religiosa. As primeiras missões cristãs estavam inseridas nesse ambiente religioso, em movimentos de aproximação e de oposição, em vista de uma proposta original (COMBY; LÉMONON, 1988).

Essas primeiras comunidades cristãs, em geral de tradição paulina, cultivavam laços de fraternidade e partilha, mas eram heterogêneas. Reuniam mais gentios (helenistas) que judeus. Gentios incluíam “prosélitos”, pagãos que aderiram integralmente ao Judaísmo, até mesmo com a prática da circuncisão e “tementes a Deus”, pagãos que haviam aderido a algumas práticas do Judaísmo. Na sua diversidade, as comunidades apostólicas incluíam pobres e ricos, mais pobres das periferias das grandes cidades, com grande número de escravos. Na mesma comunhão com escravos, participavam também libertos e livres. Mulheres e homens tinham igualdade de participação. Havia pessoas rudes e outras cultas. As lideranças eram espontâneas, segundo os diversos carismas, como apóstolos, profetas, mestres e muitos outros (MESTERS, 1991, p. 63-106).

A prática de partilha incluía coletas solidárias, como as das comunidades gentias da Macedônia e Acaia para as comunidades judaicas de Jerusalém (Rm 15,26-28). O mesmo exemplo é recomendado à Igreja de Corinto (1Cor 16,1-4), com motivação, elogio e proposta de organização da coleta (2Cor 8,7-15). Paulo se refere à partilha no contexto de sua autodefesa: “Depois de muitos anos, vim trazer esmolas para o meu povo e também apresentar ofertas” (At 24,17). Essa opção é formulada expressamente, como uma prioridade absoluta, após a assembleia de Jerusalém: “Nós só nos devíamos lembrar dos pobres, o que, aliás, tenho procurado fazer com solicitude” (Gl 2,10).

Ao interno das comunidades, as celebrações avivavam a memória de Jesus Cristo presente. As menções principais referem-se à Palavra, à ceia e ao batismo. A liturgia da Palavra era feita com leitura e partilha pelas pessoas da assembleia. A celebração da ceia ganhava importância central, a ponto de ter sido identificada com a religião dos mistérios, em que se comia a carne e se bebia o sangue de um Deus. O batismo era o rito de adesão de novos fieis às comunidades cristãs. A expectativa da parusia iminente, isto é, da próxima segunda vinda de Jesus, animou a esperança das comunidades perseguidas, sobretudo nos inícios de sua vivência cristã.

2.4 Igrejas cristãs

O ano 70 dC representa um trauma para as comunidades cristãs e judaicas. Após quatro anos de resistência, a revolta judaica é abafada por Roma, com a queda de Jerusalém e o incêndio do Templo. As três décadas finais do primeiro século são marcadas por perseguições por parte dos romanos e por conflitos entre judeus e cristãos, que evoluem para o rompimento, com consequências históricas duradouras. Enquanto alguns partidos político-religiosos, como os saduceus, herodianos, zelotes e essênios perdiam força, devido à destruição do Templo, os cristãos e os fariseus ganharam novo impulso, mas tomaram caminhos diferentes. O farisaísmo se concentra em Jâmnia, onde se separa do Cristianismo, e evolui para o rabinismo judaico (SCARDELAI, 2008, p.142-146).

Enquanto isso, no período pós-destruição de Jerusalém, os cristãos se afirmam e se expandem em suas comunidades, com diferentes acentos teológicos.

Mais conhecidas são as comunidades pós-paulinas, pelas informações dos escritos atribuídos a Paulo, e conhecidos como cartas deuteropaulinas (2Ts; Cl; Ef; 1 e 2Tm; Tt; Hb). Essas cartas retratam o ambiente da Ásia Menor e refletem visão teológica distinta das anteriores. Demonstram um Cristianismo mais voltado para a institucionalização hierárquica, organizacional e doutrinal. Enquanto as cartas anteriores eram endereçadas a assembleias comunitárias, agora tendem a ser dirigidas a líderes de comunidades, como Timóteo e Tito. Timóteo está em Éfeso (1Tm 1,3) e Tito é responsável por organizar e constituir presbíteros na Igreja de Creta (Tt 1,5). Jesus Cristo era o mestre das comunidades locais, agora é apresentado como cabeça da Igreja, centro do cosmo, acima de tronos, dominações e potestades (Cl 1,15-20). As Igrejas, antes grupos de vivência e de partilha, tendem agora para comunidades organizadas em hierarquia, com epíscopos, presbíteros e diáconos (1Tm 3,1-13). As relações interpessoais eram solidárias na igualdade, agora são assimétricas, com poder de senhores sobre escravos e de homens sobre mulheres (Col 3,18-4,1). A prática eclesial, antes voltada para orientações comunitárias, visa agora mais a ética e a piedade individuais (Tt 2,2-10). A insistência na prática do amor fraterno é suplantada pela recomendação com a sã doutrina (1Tm 1,10) e a prevenção contra falsos doutores (1Tm 4,1-11) (STRÖHER, 2006, p. 5-134).

As comunidades joaninas situam-se no final do século I, e podem ser conhecidas por uma literatura própria, constituída por um Evangelho (Jo), aparentado com três cartas (1, 2 e 3Jo) e um Apocalipse (Ap). Retratam o ambiente da Ásia Menor, em torno a Éfeso, e se ressentem de influências filosóficas externas, de ruptura com a sinagoga judaica e de conflitos doutrinais internos. Por isso mesmo, insistem no testemunho, no amor e na fidelidade. Confirmam a perseguição e a perseverança, com verdadeiro martírio de sangue e com renovada esperança de novo céu e nova terra (KONINGS, 2011, p. 145-147).

Outras comunidades de fé cristã, do final do século I, são retratadas nas ditas cartas católicas ou universais (Tg; 1 e 2Pd; 1, 2, 3Jo; Jd), porque se dirigem a comunidades diversas, de maneira mais abrangente. Essa literatura ilustra a inserção do Cristianismo em contextos diferentes, de maneira fiel e criativa.

Sirva como conclusão de toda essa caminhada histórica, a afirmação da carta de Tiago, que sintetiza a dimensão ética da religião da Bíblia: “A religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1,27).

Valmor da Silva . PUC Goiás. Texto original em português. Recebido: 05/01/2020. Aprovado: 09/11/2021. Publicado: 24/12/2021.

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[1] Yhwh será utilizado normalmente, como transcrição do tetragrama para o nome divino, dito Adonay, Javé, Jeová ou Senhor.

[2] Para a citação dos textos bíblicos, segue-se normalmente a Bíblia de Jerusalém (2002).

[3] Sobre a importância da profecia na religião de Israel há inúmeras obras. As notas que seguem podem ser aprofundadas em Renckens (1969, p. 184-221); Fohrer (1982, p. 273-358); Gunneweg (2005, p. 235-283).

[4] Sobre a religião no exílio, segue-se aqui, fundamentalmente, Schwantes (2009), Renckens (1969, p. 222-233); Fohrer (1982, p. 381-407); Gunneweg (2005, p. 285-295).

[5] Sobre a religião no período persa, pode-se consultar Renckens (1969, p. 233-238); Fohrer (1982, p. 411-440); Gunneweg (2005, p. 297-306).

[6] Sobre a religião no período helenista, veja Renckens (1969, p. 238-251); Fohrer (1982, p. 441-485); Gunneweg (2005, p. 307-341).

[7] Para a visão panorâmica da história e literatura pode-se conferir: Vasconcellos e Silva (2009, p. 223-370).

Graça

Sumário

Introdução

1 Experiência antropológica da graça

2 O termo graça em perspectiva bíblica

2.1 No Antigo Testamento

2.2 No Novo Testamento

3 Outros termos bíblicos para a realidade da graça

4 A graça como acontecimento: o Reino de Deus em Jesus Cristo

4.1 Um acontecimento

4.2 O acontecer do Reino na pessoa e ministério de Jesus, inseparáveis do seu Espírito

4.3 Uma nova situação gerada por novas relações

4.4 Gratuidade, liberdade, perdão

4.5 Oração

4.6 Presente e futuro

4.7 Cruz

4.8 Atração e plenificação do Reino pelo Espírito

5 A graça como vida nova

5.1 O testemunho paulino

5.2 A entrada no dinamismo do Reino

5.3 Uma narrativa paradigmática: “a tua fé te salvou”

5.4 Justificação – dom e resposta na vida nova

5.5 Universalidade e integralidade da vida nova

5.6 Libertação e liberdade na vida nova

5.7 A oração na vida nova

5.8 Regeneração das relações fundamentais – o conteúdo da vida nova

6 A graça como segredo de salvação

6.1 Um segredo de salvação presente no humano

6.2 Um segredo de salvação presente na história e nas culturas

6.3 Um segredo de salvação presente no cosmo

7 Dinamismos da graça: encarnatório-kenótico, trinitário e sacramental

7.1 Dinamismo encarnatório e kenótico

7.2 Dinamismo trinitário

7.3 Dinamismo sacramental

Conclusão

Referências

Introdução

A palavra graça, tal como é utilizada na linguagem cristã, designa os múltiplos aspectos – diferentes, mas entrelaçados – da realidade nova e salvífica, vinda de Deus, por e em Jesus Cristo, no Espírito, que permeia a humanidade, a história e toda a criação, atuando e transformando-as por dentro e oferecendo-lhes um futuro novo. Esta realidade de Deus, simultaneamente, possibilita à humanidade acolhê-la, experimentá-la, vivê-la e compartilhá-la; a toda a criação, possibilita ser recebida e comunicada.

A realidade da graça pretende aqui ser tratada em sentido bíblico, dinâmico, libertador, integrado e relacional. O seguinte esquema, em sete pontos, norteia a abordagem:

  1. Experiência antropológica da graça
  2. O termo graça em perspectiva bíblica
  3. Outros termos bíblicos para a realidade da graça
  4. A graça como acontecimento: o Reino de Deus em Jesus Cristo
  5. A graça como vida nova
  6. A graça como segredo de salvação no humano, na história, nas culturas e no cosmo
  7. Dinamismos da graça: encarnatório, kenótico, trinitário e sacramental
1 Experiência antropológica da graça

Na raiz da reflexão teológica sobre a graça há uma experiência antropológica simples, corporal e poética de gratuidade, graciosidade e gratidão que possibilita a formação dos sentidos da linguagem da graça (SEGUNDO, 1977, p. 6-9). Tal experiência se dá mediante atitudes marcadas por jovialidade, flexibilidade, abertura, reconhecimento do dom e dom gratuito de si. É percebida no contato com o que é desmedido, criativo, surpreendente e encantador. Nas relações humanas e sociais, faz-se sentir quando se ultrapassa a troca justa, predeterminada, necessária e dedutível. No Evangelho de Lucas, Jesus ressalta este sentido, ao perguntar: “se amais os que vos amam, que gratidão mereceis?” e “se fazeis o bem aos que vo-lo fazem, que gratidão mereceis?” (Lc 6,32-33).

A percepção antropológica e universal da realidade gratuita, que ultrapassa medidas, surpreende e encanta, possibilita compreender melhor por que a palavra graça é utilizada teologicamente, para expressar a benevolência e misericórdia de Deus e os bens que dele brotam. Especialmente, designa o maior bem: a realidade nova trazida gratuitamente por Cristo, graça em pessoa. Para a fé cristã, o caráter do gratuito, gracioso, abundante e encantador presente na existência profunda do humano e do mundo é conferido pelo próprio Deus (SEGUNDO, 1977, p. 13). É ele quem possibilita esta experiência, capacita a crítica à vida negada, convida à acolhida concreta e prática da novidade de vida, porque ele, Deus, é sua fonte.

2 O termo graça em perspectiva bíblica

A reflexão cristã sobre a graça de Deus em Jesus Cristo é preparada por um húmus bíblico abrangente, composto por termos que ressaltam o caráter gratuito, misericordioso e benevolente de Deus em sua relação com a humanidade, com seu povo e com o mundo criado.

2.1 No Antigo Testamento

No Antigo Testamento, os principais termos hebraicos equivalentes à graça são ḥen e ḥesed. O termo ḥen indica a benevolência e favor de Deus que, em sentido literal, inclina-se em direção ao miserável (da raiz ḥanan, que significa inclinar o olhar), gerando expressões como “encontrar ‘graça’ aos olhos do Senhor” (Gn 6,8; Ex 33,12-17); gozar do favor (Ex 3,21; 11,3). O vocábulo ḥesed designa a misericórdia, o amor, a amizade, a bondade e a fidelidade generosa de Deus à sua aliança. Este termo é associado a emet, que ressalta a firmeza, fidelidade, veracidade e lealdade de Deus à promessa realizada; e a raḥamim, compaixão e ternura divinas, adesão cordial e mesmo visceral aos que são por ele amados. São vocábulos encontrados tanto em conjunto, como em Ex 34,6-7 (BAUMGARTNER, 1982, p. 36) e no Salmo 77(76), 9-10 (FLICK; ALSZEGHY, 1964, p.19), quanto em numerosas composições entre eles, como termos equivalentes. Esta constelação semântica expressa o próprio Deus em sua fidelidade a si mesmo, à aliança por ele estabelecida com o seu povo e ao seu desígnio de vida e libertação em relação a esse povo, apesar da recusa e ruptura humanas em relação a Deus. Qualifica o amor divino, gratuito e misericordioso.

Associada a esses termos, encontra-se a expressão todah, ou celebrar, agradecer e louvar o Senhor por suas misericórdias (SESBOÜÉ, 2010, p. 230). A aliança de Deus com o seu povo comporta um encontro da misericórdia de Deus com o acolhimento agradecido e ativo desta misericórdia, resposta ao amor divino (Dt 5,10; 7,9.12). Neste sentido, a graça implica “atitude de aliança” (KONINGS, 2000, p.91) entre Deus e o povo.

Na Septuaginta, os vocábulos principais que significam a graça como dom gratuito, benevolente e misericordioso de Deus foram traduzidos pelos termos charis, tradução grega de ḥen, e eleos, tradução grega de ḥesed (SESBOÜÉ, 2010, p. 230).

A literatura sapiencial tardia agregou outros sentidos ao termo charis. De particular importância para o significado cristão é a associação da graça com a sabedoria criadora de Deus (Sb 8,21). Deus cria pela sabedoria e justiça (Pr 3,19; 8,20-31) e estas são identificadas com a Lei e a Torah (Sr 24,23) (SESBOÜÉ, 2010, p. 231). O termo é também associado ao encanto e graciosidade da virtude (Pr 1,9; 3,22), indica benefício divino concedido ao justo (Sb 3,14) e a própria justiça, vista como recompensa concedida aos eleitos (Sb 3,9), também na vida futura (Sb 4,14-15) (BAUMGARTNER, 1982, p. 36).

A constelação semântica, vista acima, constitui o húmus para o uso da expressão no Novo Testamento.

2.2 No Novo Testamento

No NT, a palavra charis traz o sentido veterotestamentário mais abrangente visto acima e encontra o seu centro na salvação em Jesus Cristo (SESBOÜÉ, 2010, p. 230). A palavra latina gratia (graça) traduz o grego charis.

É de notar que o termo não aparece nenhuma vez nos Evangelhos de Marcos e Mateus, poucas vezes em João (três vezes no Prólogo), sendo mais frequente em Lucas (oito vezes) e Atos dos Apóstolos (dezessete vezes). Nas epístolas de São Paulo, torna-se expressão central e é citada mais de uma centena de vezes (BAUMGARTNER, 1982, p. 32).

Na teologia paulina, a benevolência e o amor de Deus estão associados ao dom de Cristo e à vida nova instaurada por ele (LADARIA, 1997, p. 145-147). A graça significa:

* o próprio Jesus Cristo; as fórmulas de saudação: “que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja convosco!” (Rm 16,20 cf. 1Cor 16,23; 2Cor 13,13 e outras), podem significar “a graça que é Jesus Cristo”, a demonstrar que “o amor e o favor de Deus aos homens adquirem, em Jesus, um rosto concreto” (LADARIA, 1997, p. 146);

* o novo âmbito em que se encontra e vive a pessoa incorporada a Cristo (estar na graça é estar em Cristo, cf. Rm 5,2), âmbito em que é possibilitada uma vida nova (Rm 6,1.4), vivida na gratuidade do amor de Deus e na verdadeira liberdade (“não estais debaixo da Lei, mas sob a graça”, Rm 6,14; cf. Gl 1,6; 5,4), no Espírito (Gl 5,18; 2Cor 3,17);

* o poder paradoxal de Deus em Cristo, que inverte a ótica comum e torna a pessoa forte em sua fraqueza (“Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder”, 2Cor 12,9);

* o evento instaurador de redenção e transformação; a graça concedida em Jesus é radical e mais forte que o mal; em Cristo se obtém a redenção dos pecados (Ef 1,6s); graças a ela o cristão se incorpora ao próprio Cristo, pela fé (Ef 2,5-8);

* a obra de Cristo em perspectiva cósmica e universal (Ef 1,3ss);

* o próprio Cristo enquanto revelação e a epifania do amor de Deus aos homens e mulheres (nas cartas pastorais, em Tt 2,11s; 3,4-7);

* o dom particular da missão e do apostolado, recebido por Paulo, de que ele não é pessoalmente digno (Rm 1,5 – “por quem recebemos a graça e a missão de pregar”; cf. Rm 12,3; Gl 1,15).

3 Outros termos bíblicos para a realidade da graça

Os Evangelhos encontram outras formas de expressar o dom de Deus em Jesus Cristo, a transformação que ele suscita no ser humano e no mundo e os caminhos concretos da sua acolhida, a julgar pela escassez do termo graça na redação desses livros. Na teologia joanina, por exemplo, a noção de amor-ágape acentua a gratuidade e a misericórdia de Deus e seus efeitos no amor entre irmãos (BAUMGARTNER, 1982, p. 32). A ideia de vida e de luz traduzem a novidade e missão de Jesus e a participação nelas: “Eu vim para que tenham a vida” (Jo 10,10); “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6) (LADARIA, 2007, p. 104; BAUMGARTEN, 1982, p. 57). Nos Evangelhos sinópticos, o termo que corresponde à ideia joanina de “vida eterna” é a realidade do Reino de Deus (KONINGS, 2000, p. 131).

A teologia latino-americana privilegia a noção de Reino de Deus como central para a aproximação ao sentido da graça de Deus. O termo não apenas desenvolve aspectos paulinos importantes do tema da graça, como poderiam ser o dom do Espírito ou a transformação interior da pessoa. A noção de Reino de Deus vai além disso. Ela é princípio hermenêutico para se compreender a realidade da graça divina que se autocomunica em Jesus Cristo, faz-se história concreta, manifesta o sentido profundo da vida comum e no mundo, instaura um juízo das situações que matam a vida, marginalizam irmãos e manipulam a religião, convoca a uma vida nova baseada em novas relações com Deus, com os demais, consigo mesmo e com a natureza, forma a comunidade cristã e conduz, pelo Espírito, a um futuro novo. A partir do acontecimento do Reino de Deus instaurado por Jesus se conhece em que consiste o evento salvífico de Cristo e a participação nele.

4 A graça como acontecimento: o Reino de Deus em Jesus Cristo

O Reinado de Deus em Jesus Cristo é acontecimento da graça de Deus, narrado nos Evangelhos sinópticos. Alguns aspectos o caracterizam e manifestam a lógica da ação salvífica de Deus, seus efeitos no humano, nas relações e na história.

4.1 Um acontecimento

A graça de Deus revelou-se, com a irrupção do Reino de Deus em Jesus Cristo, um acontecimento novo, sensível, libertador, desenvolvido na história e aberto ao futuro escatológico. O Reino de Deus refaz a própria noção de Deus, do mundo criado e da vida humana, pois traduz o envolvimento radical de Deus com estas realidades, através de Jesus Cristo, Filho de Deus (Mc 1,2). Ao mesmo tempo, instaura esperanças escatológicas de plenitude, em continuidade aos acontecimentos “daqueles dias” (Mc 1,9; 16,7). Ao acontecer, a graça de Deus em Jesus Cristo suscita e exige acolhida e resposta humanas – também históricas e marcadas pela concretude. Dom de Deus e resposta humana, que pela liberdade pode ser de abertura, indiferença ou rejeição, não se separam. Na diversidade de respostas se encontram a vida nova – acolhida da graça – ou o afastamento dela.

O Reino de Deus acontece quando Deus reina em Jesus Cristo – por isso é reinado de Deus, domínio de Deus. Evento marcado por dinamismo. Deus, em Jesus Cristo, é aquele que age, presença atuante que modifica a história, altera uma ordem de coisas. Não é movimento ascendente, cúltico ou confessional. É movimento descendente que se faz história. Também não é conceito a ser apreendido intelectualmente, mas sim realidade histórica e concreta segundo a vontade de Deus (SOBRINO, 1982, p. 131-155).

4.2 O acontecer do Reino na pessoa e ministério de Jesus, inseparáveis do seu Espírito

A pessoa de Jesus, “o salvador” (Lc 2,11) e a globalidade do seu ministério, centrado no Reino de Deus, narram o acontecer da graça. Desde o início a graça de Deus está com ele (Lc 2,40.52); seu testemunho é uma “mensagem da graça” (Lc 4,22). E ainda, a bondade e benignidade de Deus se fazem bondade e benignidade em Jesus Cristo, salvação presente de Deus, encarnada e feita história (BOFF, 1985, p. 21).

O “Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” é o “Evangelho de Deus” (Mc 1,1.14.15), a novidade benfazeja vinda de Deus, por Cristo, que não se separa do seu Espírito. A pessoa de Jesus pressupõe o agir do Espírito de Deus, como se vê desde a anunciação (Lc 1,35) até a promessa do Espírito pelo Ressuscitado (Lc 24,49), passando pelo início de sua vida pública (Mt 3,16-17; 4,1; Lc 4,1.14) e atuação como Messias servidor (Lc 4,18-19; 7,22; Mt 12,28; Lc 10,21). Na partida de Jesus, há a efusão, transmissão e comunicação do Espírito (Jo 19,30; 20,22), princípio vital do Cristo ressuscitado (At 2,32-33) que possibilita a fé (At 2,22; 5,30-32) e o amor concreto (1Cor 13), em seguimento daquele que passou a vida fazendo o bem (At 10,38).

4.3 Uma nova situação gerada por novas relações

O Reino inaugura uma nova situação, em que a relação com Deus e entre as pessoas é restaurada pela mensagem, atuação e pela própria pessoa de Jesus. Deus é chamado de Pai-Abbá, próximo e cheio de misericórdia, e Jesus o apresenta como Pai de todos, “nosso”. A relação de Jesus com o Pai é de entrega e confiança, acolhida de sua vontade. Amor concreto, justiça e paz caracterizam as relações humanas no Reino (Mt 5,3-12; Mt 6,9-15). O dom do Reino se estende a todos, que são chamados a regenerar suas relações e seu agir segundo as relações e o agir de Jesus. A atuação de Jesus suscita a resposta de conversão e fé, convida à vida segundo a vontade do Pai (Mt 12,50), anima a ouvir e colocar em prática sua palavra (Lc 11,28). Todos são chamados a se incorporar a esta nova família escatológica que tem Deus como Pai de todos, e Jesus como irmão.

As novas relações do Reino são chamadas a acontecer em todas as dimensões da vida, como a pessoal (Mt 6,21-23), familiar (Mt 19,13-15; 21,28-30), comunitária (Mt 7,5; 18,21), profissional (Lc 19,8), sociopolítica (Mt 6,24; 25,35s; Mc 10,42-45), ecológica (Mt 6,26.28), religiosa (Mt 7,21) etc. Acontecem em todos os espaços físicos – assim, Jesus atuava nas barcas, às margens do lago, nas casas, nas cidades, nos caminhos e não apenas nas sinagogas. Em todas as circunstâncias, quer no silêncio dos lugares desertos, quer nos eventos festivos, Jesus convoca à nova forma de ser, relacionar-se e atuar. Jesus relacionou-se com todo tipo de pessoas, abriu-se aos que não o seguiam, mas faziam o bem (Mc 9,38-41), amou os inimigos.

4.4 Gratuidade, liberdade, perdão

O Reino é dom do amor do Pai (Lc 12,32; 22,29; Mt 25,34; Mc 4,26-29), um acontecimento da graça de Deus e não do esforço humano ou de suas realizações históricas. Trata-se de um amor incondicionado, que atinge todos, iniciando pelos que nada possuem, nada têm a oferecer, enchendo suas vidas de amor e perspectivas, ao mesmo tempo em que interpela os que colocam o coração em seus bens ou no mero cumprimento das leis religiosas. Os destinatários principais evidenciam a gratuidade do Reino (GARCIA RUBIO, 2010, p. 39-45): pobres (Lc 6,20; 4,18; Mt 11,5); crianças, grupo marginalizado (Mt 10, 14-16); pequeninos (Mt 11,25-26); doentes, vistos como castigados por suas faltas (Jo 9,2); inimigos (Lc 7,36; 23,34); pecadores (Mt 9,13).

O Reino é acontecimento de liberdade que implica opções e decisões (GARCIA RUBIO, 2010, p. 54-74). Jesus age de maneira surpreendente diante da Lei, do sábado e das normas religiosas (Mc 2,1-27; 7,1-23), e convida os discípulos à mesma atitude livre (Mc 2,19). A liberdade de Jesus se estende ao uso das riquezas (Mt 6,24) e ao tratamento sem preconceitos de grupos marginalizados, como as mulheres e samaritanos. No Reino de Deus, as realidades da Lei, do sábado, das normas religiosas, da riqueza e outras estruturas humanas estão a serviço da vida e da comunhão, do humano e da humanização.  A própria liberdade é sinal do Reino. A liberdade para o amor e o serviço é, em Jesus, radical e vai “até o extremo” (Jo 13,1).

O perdão dos pecados é um acontecimento de graça que marca o ministério de Jesus (TOLENTINO, 2018, p. 143-155). Os atos de Jesus (Lc 15,1-2) representam a mesma atitude que, nas parábolas da misericórdia, são próprias do Pai (Lc 15,7.10.24.32). Numa inflexão inesperada, Jesus supera a ideia do pecador aplicada a determinados grupos (publicanos e prostitutas). Para ele, toda confiança na autossuficiência arrogante, mesmo sob o manto protetor da religião ou da Lei, torna a pessoa pecadora e carente da graça de Deus. Neste sentido, reconhecer-se carente (Lc 18,9-14), abrir-se à ação transformadora de Deus mediante o encontro com Jesus e buscá-lo torna-se o paradigma da pessoa de fé (Lc 7,36-50).

4.5 Oração

A oração de Jesus é central no acontecimento do Reino e, para os seus seguidores, é paradigmática (Mt 6,9-15) (GARCIA RUBIO, 2010, p. 81-88). Trata-se de uma relação dialógica com aquele que ele chama de Abbá-Pai, e manifesta uma atitude fundamental de confiança e entrega ao Pai, que os discípulos são igualmente chamados a cultivar. A oração constante de Jesus (Lc 5,16) é vivida em conexão com os acontecimentos de sua vida, fato que os Evangelhos narram abundantemente, e revela o dinamismo da relação entre Jesus e o Pai (Lc 3,21; 4,1; Mc 1,35; Lc 5,16; Mt 14,23; Lc 6,12; Lc 9,18; Lc 9,28-29; Lc 11,1; Mt 26,36-44 e par; Mc 15,34; Mt 27,46; Lc 23,34.46; Jo 11,41; Jo 17,1-26).

4.6 Presente e futuro

O Reino de Deus acontece no dinamismo do tempo presente com o futuro. No “já e ainda não”. Já está acontecendo (Lc 17,21; Mt 12,28; Lc 4,18-21). E é também futuro escatológico (Mc 9,1; Lc 13,28). Neste dinamismo, o presente, mesmo em sua ambiguidade e incompletude, inaugura a plenitude futura; o futuro penetra e esclarece o presente como tempo de decisão para alcançar o Reino (GARCIA RUBIO, 2010, p. 48-49).

4.7 Cruz

O acontecimento da graça passa pela cruz. A morte de Jesus na cruz constitui a culminância de uma vida de entrega ao Pai e aos irmãos, não isenta de conflitos de todos os tipos, inclusive políticos e religiosos. Está em conexão com a orientação de toda a sua vida de amor, caracterizado pelo serviço, não sujeição e não dominação dos irmãos e respeito pelas decisões da liberdade humana. É o resumo de uma vida em “amor extremado” (Jo 13,1), a indicar que o Reino de Deus não acontece apesar da morte de Jesus, mas, precisamente por ela, enquanto radicalização de seu amor fiel. A cruz de Jesus demonstra o caminho da vitória sobre o pecado e o mal: o amor até o fim, que leva à plenitude da ressurreição.

4.8 Atração e plenificação do Reino pelo Espírito

Pela atuação do Espírito de Jesus Cristo, o Reino é levado à plenitude escatológica. A vocação humana, em sentido universal, pode ser qualificada, pela reflexão cristã, como chamado à felicidade do Reino de Deus; e chega a todos os que se deixam atrair pelo seu dinamismo relacional e concreto (MIRANDA, 2016, p. 49).

O Reino, acontecimento divino que irrompe com Jesus Cristo, é história favorável aos homens e mulheres concretos, graça libertadora. É dom universal pela encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, manifestação radical da bondade e benevolência divinas reveladas na criação e na primeira Aliança. Instaura uma nova ordem de relações com Deus e entre as pessoas, associada à forma como Jesus viveu e relacionou-se, às opções por ele realizadas e às ações que historicamente realizou. Os seguidores de Jesus são os primeiros responsáveis pelo testemunho deste acontecimento maravilhoso. Pelo Espírito, o Ressuscitado atrai às relações do Reino, em família de irmãos e irmãos (Paulo chama Jesus de “primogênito” de uma multidão de irmãos, Rm 8,29), numa vida nova em seguimento a Jesus Cristo (Mt 16,24).

5 A graça como vida nova

A graça libertadora de Deus atua e é acolhida na integralidade da vida humana e cristã, trazendo como efeito a vida nova.

5.1 O testemunho paulino

As cartas paulinas nos afirmam, de várias maneiras, que a graça é uma participação na morte e ressurreição de Cristo, pela fé e pelo sacramento da fé, o batismo (Gal 3,26; Rm 6). Se alguém está em Cristo, é nova criatura. O que era antigo desapareceu e nasce nele uma nova criação, um novo ser (2Cor 5,17). Neste sentido, estar na graça é estar no âmbito de Cristo, em sua atmosfera, sob o seu dinamismo. Ao mesmo tempo, Paulo complementa com a afirmação inversa, a graça de Cristo vive no cristão, está nele (Gal 2,19-21; cf. 4,19; 2Cor 13,5; Ef 3,17; Rm 8,9-11). Desta união com Cristo e em Cristo nasce a vida nova. Não se trata de uma simples conversão moral, mas de uma realidade nova, possibilitada pelo amor de Deus, que atinge a profundidade da existência, interior e exterior. Atua no sentido de configurar o cristão a Cristo (2Cor 3,18), libertar a liberdade para amar (Gl 5,1). Este amor de Deus é o dom do próprio Deus, por Cristo, pelo Espírito de Cristo.

A vida nova é atualizada, no viver diário, como passagem do primeiro ao verdadeiro Adão (1Cor 15,49), do “homem velho” ao “homem novo” (GARCIA RUBIO, 2014, p. 205-209). O “homem novo” conhece existencialmente o Cristo, experimenta-o, deixa-se renovar por ele (Cl 3,10). A renovação impulsiona e exige uma resposta ética (Cl 3,5-17), numa vida revestida de amor (Cl 3,14). Trata-se, simultaneamente, de uma realidade já presente e de um dinamismo de transformação, em tensão e conflito com o “homem velho”. A passagem que se realiza no tempo presente exige atenção, no sentido de reduzir a negatividade do “homem velho” e desenvolver o crescimento do “homem novo”.

5.2 A entrada no dinamismo do Reino

Em outras categorias, a vida nova consiste na entrada no dinamismo do Reino de Deus. Os Evangelhos nos falam do dinamismo do dom de Deus e resposta humana pela fé, conversão e amor concreto. A fonte da resposta é a ação amorosa primeira de Deus, mediante Jesus Cristo. Há transformação da vida, um novo movimento, interior e exterior, cujo ponto de partida é a gratuidade de um amor experimentado, que possibilita a abertura à novidade de Jesus, pelo Espírito (Mt 12,31 e par.). Em termos joaninos, a vida em abundância que Jesus oferece (Jo 10,10) só é possível no contato com a fonte de água viva (Jo 4,10.14), no renascer da água e do Espírito (Jo 3,5). E esta vida se traduz na vivência do amor-caridade-ágape, caminho aberto por Jesus (Jo 14,6; 15,10.17).

O encontro com Jesus Cristo vivo exige abandonar a segurança em si mesmo ou nas estruturas de riqueza, religião ou privilégios de grupos – “procurai primeiro o Reino de Deus” (Mt 6,33). A segurança nos próprios atos ou estruturas impede a abertura ao Reino que é, antes de tudo, um dom. A atitude fundamental de entrega e confiança no amor de Deus está, por isso, na base da entrada no dinamismo do Reino. As parábolas do fariseu e do publicano (Lc 18, 9-14) e da oferta da viúva (Lc 21,1-4) mostram a importância da entrega de si mesmo e da confiança em Deus, em contraste com a atitude dos fariseus que, em sua autojustificação orgulhosa, entregam obras, mas não a si, e deixam de lado a justiça e o amor de Deus (Lc 11,41) (GARCIA RUBIO, 2019, p. 112-115).

A afirmação da autossuficiência para a salvação, com consequente fechamento ao amor de Deus, é a grande tentação a ser superada para que a graça do Reino triunfe. Na história da teologia, a compreensão da inter-relação entre o dom divino e as respostas humanas foi objeto das disputas acirradas entre Santo Agostinho e Pelágio. A graça é necessária para fazer o bem, diz Agostinho, o próprio Espírito de Deus (Rm 8,14) conduz os filhos de Deus. Mas, sem substituir a resposta humana. Ao contrário, o Espírito dá forças e move a ação, de forma a que cada um saiba o que fazer e, de fato, faça a sua parte (SANTO AGOSTINHO, 2010, II,3.4, p. 86). Por sua vez o pelagianismo, que vê nas ações e estruturas humanas o princípio da vida nova, leva a atitudes de omissão, de ação sem amor, de sujeição, dominação e injustiça. É tentação indicada nos Evangelhos e sempre presente na história e na Igreja, em formas renovadas (neopelagianismos), que impedem a entrada da pessoa no dinamismo do Reino de Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado (EG n. 93-97).

5.3 Uma narrativa paradigmática: “a tua fé te salvou”

Narrativa paradigmática de entrada no dinamismo do Reino pela fé (adesão e entrega) é a da mulher “pecadora”, de Lucas (Lc 7,36-50). Sem nome e marginalizada pelo grupo dos fariseus, esta mulher não teme mudar de lugar e entrar em uma casa hostil para se encontrar com Jesus (TOLENTINO, 2018, p. 147). Não se trata apenas de um arrependimento de algo realizado (como anunciava João Batista), mas de um novo movimento, interior e exterior. Entra-se em novo dinamismo. A mulher reconhece a própria carência diante de Deus, dá hospitalidade a Jesus (que o representa), desloca-se para se encontrar com ele e acede a uma nova situação espiritual e existencial, marcada por liberdade e amor – a graça chegou a ela. Jesus lhe diz: “A tua fé te salvou. Vai em paz” (Lc 7,50). Também no Evangelho de João, vemos o convite de uma vida nova concebida como “novo nascimento” para ver o Reino de Deus, na narrativa de Nicodemos (Jo 3,3). É no desvelar da dependência da graça que nasce uma nova relação com Deus, através de Jesus Cristo, em quem Deus se revela na gratuidade de seu amor e misericórdia.

5.4 Justificação – dom e resposta na vida nova

O tema paulino da justificação ajuda a entender o processo da vida nova em sua complexidade. A justiça de Deus parte dele, Deus, de sua fidelidade a si mesmo e ao seu projeto de amor e salvação (cf. Rm 3,21-26). Suscita no ser humano um novo modo de ser e de agir, possibilita ao ser humano ser guiado pelo Espírito (cf. Rm 8,2ss) e viver a novidade de vida em conformidade com a vontade de Deus (cf. Rm 6,13-23). Ao ser humano cabe reconhecer e acolher o dom, numa atitude de fé ativa, adesão à vontade amorosa de Deus. Assim sendo, dom e resposta, graça e acolhida da graça não podem ser vistos de maneira excludentes, mas em inter-relação que tem, na iniciativa do amor divino, o seu princípio (GARCIA RUBIO, 2004, p. 93-94).

A teologia clássica sobre a justificação reafirma, com as categorias da época, a complexidade da ação de Deus que é, simultaneamente, dom, perdão, transformação interior e possibilitação da vida nova. O Concílio de Trento afirma que o impulso primeiro vem da “graça preveniente de Deus, por Jesus Cristo”, que estimula, ajuda e convida à vida nova sem merecimento algum, de modo que o pecador “se disponha” à conversão, “livremente consentindo a graça” (porque pode rejeitá-la) e “cooperando com ela” (DENZINGER-HÜNERMANN, 2006, n. 1525). Há uma “renovação do homem interior” e, pelo Espírito, o amor de Deus é difundido nos corações (Rm 5,5) (DENZINGER-HÜNERMANN, 2006, n. 1528 e 1529). Ação de Deus e resposta humana são reafirmadas em sua inter-relação, pois a ação divina, sempre primeira, não opera a partir de fora, ela é interna e transformante, pelo Espírito. Tudo é graça na vida nova.

Historicamente, a querela entre graça e obras na época da Reforma aprofundou uma compreensão dualista entre a ação de Deus e a resposta na fé, afastada da acepção paulina. A afirmação de Lutero, de que a justificação acontece somente pela graça (sola gratia), que equivale a “somente por Cristo” (solo Christo) e “somente pela fé” (sola fide), foi compreendida unilateralmente, como uma ação divina externa, uma declaração extrínseca, separada da renovação interior do cristão e das obras (MIRANDA, 2016, p. 113-122). No nível teológico, coube à Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação (1997-1999), no interior do movimento ecumênico, esclarecer a intencionalidade de Lutero, em não separar a renovação da conduta de vida da realidade interna da fé, mas sim enfatizar a gratuidade divina (DECLARAÇÃO CONJUNTA, 1997-1999, n. 26). Igualmente, esse Documento explicitou que a ênfase do Concílio de Trento na renovação de vida deve ser sempre compreendida enquanto dependente da graça de Deus e não como contribuição para a justificação (DECLARAÇÃO CONJUNTA, 1997-1999, n. 27). A Declaração afirma, de maneira contundente, a unidade da ação divina, no interior da qual a iniciativa livre de Deus em justificar e salvar não se separa da resposta na fé: “somente por graça, na fé na obra salvífica de Cristo, e não por causa de nosso mérito, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo, que nos renova os corações e nos capacita e chama para as boas obras” (DECLARAÇÃO CONJUNTA, 1997-1999, n.15).

Em nossa contemporaneidade, marcada pela meritocracia, mentalidade contratual e preconceitos, pelos quais a valorização das pessoas se dá de acordo com o sucesso, função ou capacidade de devolver algo em troca do recebido, a justificação gratuita de Deus será sempre denúncia de ideologias escravizadoras e fonte de liberdade para o amor, especialmente os pobres e abandonados.

5.5 Universalidade e integralidade da vida nova

O dinamismo da vida nova é um chamado universal (1Tm 2,4) e integrador. Todos os seres humanos, em todas as suas dimensões e atividades, estão sob o dinamismo da graça, chamados a entrar no dinamismo do Reino que, como foi visto, é universal e integrador. Esta vocação precede toda ação livre e independe da cultura ou religião, embora delas necessite para expressar-se como linguagem e como concretização histórica. Isto traz como consequência que a vida nova não é para “alguns”. Também não é circunscrita a “alguns” âmbitos da vida. Aqui, ganham força os temas do “existencial sobrenatural”, enquanto dom da orientação da vida humana para Deus (K. Rahner), e da noção unitária de ser humano, com a necessária superação da teologia dos dois planos (justaposição entre as ordens “natural” e a “sobrenatural”, H. de Lubac) (MIRANDA, 2016, p. 57). A irradiação da vida nova a todos os âmbitos humanos, afetivo, familiar, profissional, cultural, político etc. foi claramente assumida pelo Concílio Vaticano II (GS n. 34). De fato, o contexto vital “amplia o horizonte da graça e do pecado” (SEGUNDO, 1977, p. 44) e exige pensá-la em sentido universal e integrado, uma vez que a resposta pessoal à graça não pode ser substituída pelos contextos cúltico e religioso.

5.6 Libertação e liberdade na vida nova

A vida nova é dinamismo libertador e gerador de liberdade. Paulo fala da ação libertadora da graça como libertação do pecado (Rm 6, 22), da Lei (Rm 7,6) e da morte (Rm 8,2). Em tudo isto, há a afirmação de que, pela ação do Espírito de Cristo, é possível uma existência nova, na fé, na liberdade e na abertura aos demais. É possível ser livre para amar (Gl 5,1). A santificação pelo batismo em nada se parece à santificação ritual vazia, trata-se de uma transformação existencial operada pela fé, da qual o batismo é sacramento (MIRANDA, 2016, p. 19-20).

A obra libertadora da graça exige caminhos da concretização desta novidade de vida na prática do amor-serviço concreto, superação de atitudes de omissão e rejeição do poder dominador. A conversão e constituição de uma orientação fundamental ao amor é um processo que dura toda a vida, dinamizado por escolhas concretas e atos de estruturação do mundo que fortalecem a liberdade profunda para o amor e a justiça. Assim, a atuação da graça exige a articulação entre escolhas concretas e formação da liberdade profunda para Deus (MIRANDA, 2016, p. 103). Biblicamente, podemos falar de uma articulação entre a prática (Lc 8,21) e a formação do coração (Mt 6,21).

A orientação profunda para Deus, exercida no nível macrossocial, que envolve também a economia e a política, não se dá sem a ocorrência de conflitos, como mostram os conflitos de Jesus na sua forma de tratar a Lei, o judaísmo do seu tempo, a riqueza, o contexto sociopolítico. O conflito demonstra as dimensões testemunhal e martirial da resposta à graça, num mundo marcado pelo pecado, das quais não se pode eximir. Como Igreja, a exigência de ouvir o clamor dos pobres pela justiça “deriva da própria obra libertadora da graça em cada um de nós, pelo que não se trata de uma missão reservada apenas a alguns” (EG n. 188), mas à comunidade cristã como um todo e a todos os homens e mulheres de boa vontade. Há toda uma realidade social a exigir e esperar a “reviravolta” da graça através da mediação das escolhas humanas.

5.7 A oração na vida nova

A oração é parte essencial do processo de acolhida e atuação no novo dinamismo do Reino. É dom do Espírito (Rm 8,26; 1Cor 12,3), fonte que suscita, fortalece e integra a vida na graça. Reveste-se das características básicas da oração de Jesus: abertura à vontade de Deus – o Reino; relação dialógica com Deus; inter-relação da oração com os acontecimentos da vida (Mt 6,9-13).

5.8 Regeneração das relações fundamentais – o conteúdo da vida nova

Viver é com-viver. A vida nova é revestida de um caráter dinâmico, processual e relacional integral. A salvação de Jesus Cristo insere numa nova ordem de relações com os outros, com o mundo criado e com Deus: “a salvação consiste na nossa união com Cristo, que, com a sua encarnação, vida, morte e ressurreição, gerou uma nova ordem de relações com o Pai e entre os homens, e nos introduziu nesta ordem graças ao dom do seu Espírito” (CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, 2018, n. 4). Reveste-se também de um caráter concreto: “a graça que Cristo nos oferece (…) nos introduz nas relações concretas que Ele mesmo viveu (…)” (n. 12).

No mundo atual, com as crises socioambientais que comprometem a própria vida no planeta, a vida nova pode ser explicitada em termos de “novas relações”, intimamente ligadas: interior consigo mesmo, com os outros, com Deus e com a terra (LS n. 66, 70, 237).

A teologia latino-americana, em diálogo com as ciências, explicita os caminhos relacionais na vida nova. A relação com Deus, baseada nos desafios da gratuidade; as relações inter-humanas que abrangem a solidariedade e o amor-serviço no domínio sociopolítico local e global, tendo a opção preferencial pelos pobres como orientação para o discernimento do bem-comum; a vivência do encontro inter-humano mediatizado pela sexualidade; os desafios ecológicos; a relação com a comunidade de fé e com a religião; a verdadeira relação consigo próprio (GARCIA RUBIO, 2014 e 2019). Soma-se a tantos desafios a relação intercultural, pois é “a partir das nossas raízes que nos sentamos à mesa comum, lugar de diálogo e de esperanças compartilhadas” (QA n. 36).

6 A graça como segredo de salvação  

A graça se apresenta como profundidade, excesso, mistério ou segredo de salvação presentes no humano, na história e no cosmo através da presença do próprio Deus, por seu Espírito, nessas realidades, sem confundir-se com elas, mas imprimindo nelas o seu selo libertador. Está aí para ser discernida e acolhida, ou rejeitada.

6.1 Um segredo de salvação presente no humano

A teologia da inabitação trinitária aponta para a presença salvífica de Deus no interior humano, por Cristo, no Espírito. Ele faz “morada” (Jo 14,23), “permanece”, como a videira nos ramos (Jo 15,4 e outros), está nos seus (Jo 17,23). São Paulo refere-se ao Espírito que habita os cristãos (1Cor 3,16; 6,19; Rm 8,9-11).

Santo Agostinho encontrou Deus no mais íntimo de si – interior intimo meo. E lamenta tê-lo buscado fora: “[…] eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora!” (SANTO AGOSTINHO, 1984, p. 277). Testemunhas privilegiadas, os místicos atestam a experiência deste mistério. Santa Teresa de Ávila (século XVI) experimentou a presença de Deus trino e uno na profundidade de si mesma; deixou-se conduzir por ele e o percebeu como presença dinâmica, transformante, comunicante e irradiante (PEDROSA-PÁDUA, 2015, p. 127 et seq.). Relacionou a presença trinitária em si à dignidade da criação à imagem de Cristo – ou seja, presença universal. Intuiu como o dinamismo da vida trinitária é comunicado ao humano e a todas as coisas criadas e como há intercomunicação entre eles. Afirmou que a presença de Deus, como um sol, permanece em quem está em pecado mortal, fazendo com que a pessoa continue sendo capaz de fruir dele sem, contudo, fazer do amor a fonte de suas decisões e ações, que se tornam estéreis; é a pessoa (não Deus) que se retira do âmbito do amor (SANTA TERESA, 1995, R 54; R 18; 1M2,1). Tudo isso leva a afirmar que a graça de Deus no interior humano é dinâmica, transformante, comunicante e, em níveis distintos, experimentável. Trata-se da presença do próprio Deus, em seu dinamismo trinitário, na pessoa humana.

A graça é abundante e desproporcional à opacidade da maioria das experiências e respostas humanas. Trata-se de um segredo de salvação operado pelo Espírito. Por ela, afirma-se que “um pouco de amor passa pelas nossas vidas” (SEGUNDO, p. 157) apesar de todo o peso dos determinismos e do egoísmo que perpassam grande parte dos projetos humanos e comprometem o contexto em que a liberdade atua. Os escritos do Novo Testamento exortam à transformação do coração e à mudança de vida (Mt 5,20; Mt 19,17; cf. Rm 13,8-10; 1Cor 6,9-10; 1 Jo 2,1; 1Jo 3,13-15); a teologia clássica, embora de maneira fixista, sempre defendeu a liberdade para amar e a transformação interior (DENZINGER-HÜNERMANN, 2006, n. 1525 e 1528). Concomitantemente, e isso as ciências modernas confirmam na afirmação dos condicionamentos das ações humanas, as Escrituras e a teologia afirmam que há enorme desproporção entre o amor e os pecados (Tg 5,20; Pr 10,12; 1 Pd 4,8: “o amor cobre multidão de pecados”). A experiência da superabundância da graça diante da pobreza das respostas levou Santa Teresa a exclamar:  “O Senhor doura as culpas, faz com que resplandeça uma virtude que Ele mesmo põe em mim, quase me maltratando para que eu a tenha” (SANTA TERESA, 1995, Vida 4,10).

Embora os atos de fechamento e egoísmo sejam mais frequentes, o amor e o egoísmo não possuem a mesma eficácia, o que significa que a vitória da graça superabundante não consiste na melhoria da proporção numérica entre atos de amor e de egoísmo – que também pode se dar –, mas num “princípio de excesso” (GESCHÉ, 2005, p. 8) do amor de Deus, que age no interior das situações marcadas pelo pecado. Joio e trigo permanecem juntos na existência humana, a revelar, como diz a teologia clássica, que mesmo no justificado permanece a concupiscência (DENZINGER-HÜNERMANN, 2006, n.1515) e que, mesmo no maior pecador, permanece o Espírito (como o sol, na alegoria teresiana citada acima) a suscitar e orientar à vida nova, como novidade desmedida e imerecida. A graça transforma e atua, promete um futuro de plenitude (Ef 3,19). Ao mesmo tempo em que permanece a experiência de que as contas da vida não fecham (RAHNER, 1977, p. 47-53) e de que “nem toda obra dos justos são justas” (BOFF, 1985, p. 169), a fé cristã vive da promessa fiel de que “Deus é maior que nosso coração” (1Jo 3,20) e que para ele nada é impossível (Lc 1,37) porque ele mesmo atua no humano, por seu Espírito, suscitando e abrindo caminhos de resposta em liberdade.

6.2 Um segredo de salvação presente na história e nas culturas

A graça permeia a história, atua em seu interior, mediada por relações, decisões e estruturas macrossociais: sociopolíticas, econômicas, ambientais e culturais. É um segredo de salvação que não pode ser detido e é mais forte que a força do pecado, também nelas presente.

O magistério latino-americano clarificou como o pecado parte do coração humano e imprime uma marca destruidora nas estruturas sociais, econômicas e políticas (DPb n. 281). O Papa Francisco assinalou “o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas” (EG n. 59). Mas, por sua vez, a graça suscita a fé crítica, capaz de discernir como a pobreza, a violência, a humilhação, a violação dos direitos humanos, as múltiplas formas de exploração do trabalho, o descarte das pessoas humanas e a destruição do meio ambiente não coadunam com o projeto de salvação de Deus revelado no acontecimento de graça, Jesus Cristo.

Se, por um lado, a fé faz ver a permanência do mal na pessoa humana e na sociedade, ao mesmo tempo, ela faz experimentar os desejos de libertação e criação de uma sociedade mais fraterna e justa, como graça que impulsiona a ação transformadora. E que faz brotar a atitude humana de combate ao mal, mesmo que vivida no silêncio e na resistência, ao longo de séculos, numa reconversão contínua do mal e da situação de “des-graça” em bem e graça. Do interior das situações de sofrimento e injustiça, brotam caminhos de engrandecimento, um novo momento histórico e uma humanidade nova. A superabundância da graça sobre o pecado possibilita esta transformação, vivida a partir de dentro das relações sociais, comunitárias, culturais, embora as mediações estruturais socioeconômicas, possibilitadoras da fraternidade e da justiça, nem sempre sejam encontradas. A realidade latino-americana, marcada por séculos de exploração e opressão, especialmente das populações originárias e dos africanos escravizados, torna clara a simultaneidade da “graça com a des-graça” (BOFF, 1985, p. 107), numa dinâmica em que libertação e opressão, salvação e perdição, joio e trigo se interpenetram. Porém, o anseio de liberdade e o processo de libertação mantêm a direção da esperança na história, a graça a suscitar práticas de solidariedade e comunhão, reconciliação e justiça, nova consciência socioambiental e profetas de um mundo novo. Nos diversos povos e culturas, “o Espírito suscita […] diferentes formas de sabedoria prática que ajudam a suportar as carências da vida e a viver com mais paz e harmonia” (EG n. 254). A graça permeia a história dos povos, com suas culturas e religiões, em seus diferentes itinerários. Assim, apesar de toda ambiguidade presente nas expressões culturais e nas religiões, carentes de reforma constante, elas celebram e comunicam a graça divina.

6.3 Um segredo de salvação presente no cosmo

A profundidade salvadora da graça encontra-se também no cosmo. A fé cristã afirma que Deus é criador e que tudo é criado por, em e para Cristo, “tudo foi criado por ele e para ele […] ele existe antes de tudo; tudo nele se mantém” (Cl 1,16-17), por ele tudo existe (1Cor 8,6) e nele tudo é reconciliado (Cl 1,20). Esta criação apresenta características importantes: é aberta ao desenvolvimento por si mesma, segundo autonomia e autoinvenção próprias (Gn 1,12.18); é instaurada segundo um princípio de sabedoria e bondade, não destruído ou corrompido pelo pecado humano; implica o envolvimento do próprio Deus no ato criador, a partir de dentro, pois a mediação trinitária vem do interior mesmo de Deus – a mediação é do Filho, Jesus Cristo, e esta não se separa da presença e atuação do Espírito (GARCIA RUBIO, 2012, p. 38; 2014, p. 193, 269). Como consequência, há a afirmação de que o cosmo, sem ser Deus, não deixa de estar nele – tudo nele se mantém (Cl 1,17) – e de ser morada do Logos (Jo 1,10) que o marca com o selo trinitário da diversidade e do dinamismo criador vivo. A Laudato Si’ (n. 88) nos diz que a natureza não apenas manifesta Deus, mas é lugar de sua presença, em cada criatura habita o Espírito Santo, que chama a um relacionamento com ele; ao mesmo tempo, Deus se distancia infinitamente da criatura, que não possui a plenitude de Deus e não pode doar essa plenitude.

Esta profundidade e dinâmica próprias do cosmo fazem dele (e, com ele, a natureza, o planeta, a matéria, a terra, o corpo) o espaço de todas as criaturas, casa, lugar teologalmente enraizado, a dizer que todos têm direito a um lugar no mundo. Constitui um dom aberto a uma “racionalidade de vida” (GESCHÉ, 2004a, p. 167), ou seja, à experiência de recepção, passividade, acolhimento, sensação, contemplação, ternura, sentimento, compaixão e perdão – que o próprio Verbo encarnado experimentou – a demonstrar como o estatuto do logos divino não é apenas a da ratio, é logos de vida, “Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1,4). O cosmo é também lugar das potencialidades a serem defendidas e desenvolvidas, pois é cosmo destinado à comunhão divina e à espera da ressurreição (cf. Rm 8,22). Assim, a graça divina conta com a natureza (na teologia clássica, “aperfeiçoa a natureza”) para levar adiante seu projeto libertador. A natureza é capaz da ação divina em suas estruturas fundamentais. A estrutura corpórea e material é capaz de ressurreição; a temporal (chronos), capaz de receber o tempo da salvação (kairós) e desenvolver-se em eternidade (aion).

É num pedaço de matéria que, sacramentalmente, Deus chega aos homens e mulheres – na eucaristia. Para que o possamos encontrar “no nosso próprio mundo” (LS n. 236).  Trata-se de um ato de amor cósmico, a inspirar e suscitar o cuidado com toda a criação.

A resposta humana na relação com o cosmo, marcada atualmente pela crise socioambiental e destruição das condições de vida na terra, conta com a graça, que, por amor, não se separa do cosmo, mas o permeia. É amor desproporcional de Deus, que “se uniu definitivamente à nossa terra” e que “sempre nos leva a encontrar novos caminhos” (LS n. 245), para exercer a administração responsável da terra e, ao mesmo tempo, recebê-la e celebrá-la como graça.

7 Dinamismos da graça: encarnatório-kenótico, trinitário e sacramental

Pela abordagem realizada, é possível nomear alguns dinamismos da graça: encarnatório, kenótico, trinitário e sacramental.  

7.1 Dinamismo encarnatório e kenótico

O primeiro é o dinamismo encarnatório da graça, pelo qual dizemos que Deus age no interior do cosmo, do humano e suas realidades históricas e culturais, e não a partir de fora e de longe. Já presente na criação, atinge seu auge na “plenitude dos tempos” (Gl 4,4) com a encarnação do Verbo de Deus em Jesus, nascido de Maria, anunciador e realizador do Reino de Deus. De dentro da realidade, no coração do mundo, o acontecimento da graça que é Jesus Cristo, com sua vida, morte e ressurreição, manifesta o seu dinamismo irreversível de vida e amor. Pelo Espírito de Cristo, atua no interior das realidades concretas, mesmo marcadas pelo pecado e pela morte. É ação criadora, recriadora, redentora, reconciliadora, libertadora, reconstrutora de relações e instauradora de um mundo novo. Revela Deus em seu amor dinâmico e criativo, livre e transformante, comunicante e irradiador. Ao mesmo tempo, essa ação interpela os seguidores de Jesus ao mesmo dinamismo.

Com seu dinamismo encarnatório, a graça chega a cada um pelo mesmo movimento: a partir de dentro da acolhida na fé que age pelo amor (Gl 5,6), de uma orientação profunda para Deus, para a dinâmica do Reino, para o amor concreto, que inclui a prática da justiça. Como consequência, encontra-se a necessária mediação humana na ação da graça de Deus que chega a cada um, de tal forma que “a ação divina passa necessariamente pelo ser humano para nos atingir como salvação” (MIRANDA, 2016, p. 138). Passa pela orientação da vida pessoal e comunitário-eclesial e por imprimir uma direção de amor, justiça e paz nas mediações estruturais econômicas, políticas e socioambientais. Passa pelas objetivações simbólicas e culturais. E remete sempre para dentro da história, o que implica, também, consciência da inserção no cosmo criado pelo amor de Deus e compromisso com a “casa comum” (Laudato Si’).

Relacionado ao dinamismo de encarnação, encontramos o movimento kenótico manifestado na vida, morte e ressurreição de Cristo (Fl 2,6-8), que qualifica o sentido e a direção da encarnação: esvaziamento da glória pessoal, despojamento, rebaixamento, amor efetivo e servidor. Gerador de respostas humanas que agraciam o mundo pela mesma resposta kenótica de não dominação, identificação com os últimos, amor e justiça.

7.2 Dinamismo trinitário

O dinamismo trinitário nos mostra que a graça de Deus não se separa de Deus mesmo! Na ordem da criação, unida à salvação, Deus, pelo Espírito de Cristo, não se confunde com a criatura nem dela se separa, pois a mediação da criação vem do interior de Deus, do próprio Filho (Cl 1,16-17). Ele mesmo se faz presente na criação e na história, ambos acontecimentos do amor de Deus. Ontem como hoje, a graça significa aproximação, envolvimento interno, compromisso, comunhão e comunicação divinos com os seres humanos e com tudo o que é criado. A própria vida é graça, traz a presença do logos divino de vida, luz dos homens e mulheres (Jo 1,4), que conduz à vida (Jo 10,10) e se faz carne no acontecimento da encarnação.

Ao mesmo tempo, a resposta humana à graça é possibilitada pelo próprio Deus que, em Cristo e pelo Espírito, habita o coração humano, suscita abertura e resposta na fé e em amor concreto na história, em todas as suas relações.

Isto significa que o humano conta, em suas vidas tão exigidas e ambíguas, com o próprio Deus em si mesmo, que deseja e designa libertação e liberdade, acompanha os processos da resposta – sempre desproporcional ao dom recebido – e consiste, ele mesmo, Deus, na plenitude feliz simbolizada na Jerusalém celeste, em que “o templo é o Senhor”, “não haverá mais noite” e não será mais necessário o sol, porque Deus “infundirá sobre eles a sua luz” (Ap 21,22.25; 22,5).

7.3 Dinamismo sacramental

Os dinamismos trinitário e encarnatório-kenótico da graça se unem ao dinamismo sacramental, que tende a formar comunhão e comunidade concreta. Tende a fazer-se carne nas culturas e nas religiões, em diversidade de itinerários e estruturas. As religiões são convocadas, pelo dinamismo interno a elas, dado pelo próprio Espírito, a tornarem sensível e concreto o dom maior do amor (Rm 5,5), nos diferentes contextos culturais, em “diversidade de experiências salvíficas” (MIRANDA, 2016, p. 211). Nas religiões, está e atua o Espírito de Deus a orientar à plenitude da salvação, que a fé cristã vê realizada, de forma definitiva, em Jesus Cristo (LG n. 16; GS n. 22).

Pelo dinamismo sacramental, a graça “tende a produzir sinais, ritos, expressões sagradas que, por sua vez, envolvem outros na experiência comunitária do caminho para Deus” (EG n. 254). Faz das religiões espaços de superação da existência individualista e de rompimento do círculo asfixiante da imanência, orientando à esperança.

 Assim sendo, é possível dizer que a religião é lugar de celebração e comunicação da graça, não de forma automática ou exterior, mas comunitária e interior, em fidelidade à própria presença comunicativa e irradiadora de Deus, que convoca a comunidade a se abrir à novidade do Espírito, responder aos seus apelos na fé, na esperança e no amor e celebrá-lo de forma sensível.

De forma explícita e temática, a Igreja, comunidade de fé em Jesus Cristo, vê-se enraizada nas fontes trinitárias, habitada pelo Espírito, chamada a ser sacramento ou sinal e instrumento da graça (LG n. 1), germe ou princípio do Reino de Deus na terra (LG n. 4). Ela encontra-se a serviço da encarnação do amor de Deus na humanidade e no mundo. Na eucaristia, o mistério da encarnação se radicaliza. O próprio Deus, feito homem, “chega ao ponto de fazer-se comer pela sua criatura” (LS n. 236). O Senhor quer chegar ao íntimo do cristão, sacramentalmente – pois ele lá já está –, conformá-lo em si, para reenviá-lo às suas realidades como mediador do amor de Deus em suas opções, sensibilidade histórica e social, enfim em sua vida para os demais.

Conclusão

A graça exprime todos os aspectos da salvação divina, revelada na encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Aqui, partindo da experiência antropológica (ponto 1) e da reflexão bíblica (pontos 2 e 3), foram privilegiados os seguintes aspectos: o caráter de acontecimento histórico da graça oferecida (ponto 4); o dinamismo integral e relacional da acolhida da graça na vida nova (ponto 5); a presença da graça na estruturação central de tudo que existe e acontece e na esperança de plenitude (ponto 6); os dinamismos internos da graça: encarnatório, kenótico, trinitário e sacramental (ponto 7).

Lúcia Pedrosa-Pádua . PUC-Rio. Texto original em português. Recebido: 29/08/2020. Aprovado:  24/05/2021. Publicado: 23/12/2021.

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Mística do cotidiano

Sumário

Introdução

1 O cotidiano

2 O que é (e o que não é) mística? Alguns mal-entendidos

3 Características específicas da experiência mística

4 Para uma definição mística do cotidiano

5 Francisco: da mística popular aos santos “ao pé da porta”

6 Uma mística cotidiana da América Latina

Introdução

Tendemos a definir nosso tempo como um tempo sedento pela espiritualidade. Afirma-se também, com algum consenso, que nosso tempo rejeita as religiões com sua carga de dogmas e compromissos éticos, mas valoriza a espiritualidade.

A mística fica em um campo impreciso e indeterminado, mas sempre atrai, especialmente a experiência das pessoas que chamamos de “místicas”. Embora não compreendamos completamente sua experiência, sabemos que elas viveram algo especial, algo diferente e mais profundo que as conectou com o mistério de Deus.

Para evitar mal-entendidos desde o início, deve-se dizer que, na minha opinião, a mística é uma dimensão humana universal, que pode ou não ocorrer em um contexto religioso, embora aqui nos refiramos especificamente à experiência mística cristã. Espero poder explicitar essa ideia no texto.

A vocação universal para a santidade, proclamada pelo Concílio Vaticano II (LG 39), nos leva a pensar que, se todos os batizados são chamados à santidade, (entendida como a plenitude da caridade), é lógico pensar que também somos universalmente chamados a experimentar essa caridade de alguma forma, para ter alguma experiência dessa comunhão. Há autores que fazem apontamentos ainda mais precisos e ousados: “Todo batizado e batizada é uma mística ou místico, mesmo que tenha apenas uma experiência latente e não reflita o mistério” (OLIVERA, 2002, p. 297; RUIZ SALVADOR, 1978, p. 514-536).

Assim como proclamamos a universalidade da vocação para a santidade, estamos diante de uma “democratização” da mística, com uma experiência que poderia ser tão ampla quanto o número de batizados e batizadas.

Por outro lado, se tem insistido, não sem razão, que o fenômeno místico não consiste principalmente em eventos extraordinários, que poderiam ocorrer, mas que não necessariamente definem uma experiência como mística, nem são os mais importantes dessa experiência, como afirmaram os próprios protagonistas (VELASCO, 2007, p. 46).

Se não são pessoas extraordinárias, nem fatos extraordinários, que definem a mística, essa experiência pode fazer parte do cotidiano das pessoas comuns.

Organizaremos este verbete da seguinte forma: em primeiro lugar, após uma breve definição do cotidiano, vamos descrever o fato místico, apontando suas características e desenvolvendo o que se entende pela mística do cotidiano, para terminar com a contribuição do papa Francisco para esta questão.

1 O cotidiano

Segundo a definição dos dicionários, o cotidiano nada mais é do que o diário, o que acontece todos os dias. O cotidiano é o que é de todos os dias, o que se repete, o previsível.

O conceito do cotidiano foi parcialmente expresso pelos Padres do Deserto através de sua noção de “célula”. A célula é aquele esquema de repetição diária do mesmo, a partir do qual aprendemos a ser fiéis à nossa vocação e que é fundamental na autenticidade da nossa relação com Deus (MAZZINI, 2001, p. 423-436).

Na cultura moderna e pós-moderna, o cotidiano geralmente tem uma conotação negativa, de repetição e desgaste. No entanto, há autores que promovem o resgate do cotidiano (GERA, 1968, p. 153-167), propondo esse espaço como o aqui e agora do nosso encontro com nós mesmos, com nossos irmãos e irmãs e com o Senhor. Eles também postulam que o cotidiano, para cada ser humano, expressa o contexto vital a partir do qual se pronuncia e interpreta a realidade, daí a importância de conhecer o universo cotidiano das pessoas, para compreender sua abordagem ao mundo e sua compreensão das encruzilhadas vitais (ISASI-DÍAZ, 2003, p. 365-384).

2 O que é (e o que não é) a mística? Alguns mal-entendidos

A experiência da Vida poderia ser a definição mais breve de mística. Se trata de uma experiência e não de sua interpretação, embora nossa consciência dela seja concomitante. Não as podemos separar, mas as podemos e devemos distinguir […] Se trata de uma experiência completa e não fragmentária. O que muitas vezes ocorre é que não vivemos em plenitude porque nossa experiência não é completa e vivemos distraídos ou apenas na superfície. Portanto a mística não é privilégio de alguns poucos escolhidos, mas a característica humana por excelência (PANIKKAR, 2005. p. 19).

A definição de mística de Panikkar, em sua simplicidade e força, é extremamente profunda e reveladora. Observe que é uma experiência plena da Vida, completa, holística. Uma experiência de Vida com letra maiúscula, como um fenômeno integral e integrador. Tal experiência denota outro nível de percepção e a possibilidade de ter essa percepção. Quando se fala de plenitude da Vida, é uma experiência de Deus ou do Sagrado, que é o cerne da experiência mística.

Outra definição que pode nos ajudar em nossa abordagem é esta:

Assim, com a palavra mística nos referimos, em termos muito gerais e imprecisos, a experiências interiores, imediatas, fruitivas que ocorrem em um nível de consciência que supera aquele que rege a experiência ordinária e objetiva, da união – seja qual for a forma como se a vive – substancialmente do sujeito com o todo, o universo, o absoluto, o divino, Deus ou o Espírito. (MARTÍN VELASCO, 2003, p. 23)

Vamos por partes:

O termo “experiência” (WAAIJMAN, 2011, p. 571-573) pode ser usado em diferentes sentidos; o que geralmente se chama experiência é um conhecimento imediato de coisas concretas, em oposição a um conhecimento mais abstrato e discursivo. O tema da experiência começa a se desenvolver na modernidade, com o interesse das ciências positivas (experimentais) por conhecimentos que podem ser corroborados pelo contato concreto e direto, do singular e presente. Com o tempo, especialmente no século XX, a experiência designará um conhecimento mais integral, não apenas oposto ao abstrato, mas envolvendo-o.

A experiência designa não apenas estados psicológicos internos, mas também o mundo externo; também descreve não só o imanente, mas também o transcendente. Nomeia uma situação global, total, ao mesmo tempo vivida e refletida de um ser humano imerso no tempo, mas aberto à eternidade. Também designa modalidades específicas e orienta cada uma para um objeto próprio, de forma que possamos falar de experiência estética, moral, religiosa etc.

A experiência não é então algo puramente subjetivo, afetivo ou imanente, mas uma realidade que nos abre ao mundo, aos outros e a Deus.

Quando falamos sobre o espiritual, transcendente ou sagrado, pode haver diferentes tipos de experiências. A seguir, distinguiremos pelo menos três níveis para focar melhor nosso tema.

A experiência espiritual é uma realidade humana que tem a ver com a percepção e busca de significado, conexão e transcendência. “É um universal humano que caracteriza todas as pessoas e que pode ser vivida e/ou expressa, ou não, através da religião” (MELLONI RIBAS, 2015, p. 39-43).

A experiência religiosa, por outro lado, é entendida como mediadora de uma presença, é a consciência da relação com Deus por meio de pensamentos, sentimentos e atitudes em que a relação com a transcendência é percebida. Se a religião é definida como a relação com o ser sagrado como tal, é precisamente a consciência dessa relação, em todos os seus aspectos, que constitui experiência religiosa. Essa experiência envolve um corpo de verdades, normas éticas e uma comunidade que vive e celebra essa experiência (MELLONI RIBAS, 2018, p. 27-30).

O cerne da experiência mística tem uma nota distintiva: o imediatismo e a percepção da bondade divina como algo em que a pessoa se sente imersa, sem intervenção de sua vontade, pelo menos no início dessa experiência (MARTIN VELASCO, 1999, p. 289-293). Vamos agora olhar para suas notas diferenciais.

3 Características específicas da experiência mística

É importante notar que a experiência mística está presente em todas as tradições religiosas. Vamos listar algumas notas que parecem ser as mais importantes (MARTIN VELASCO, 1999, p. 319-356):

  • Experiência de gratuidade, na qual a bondade de Deus age e a pessoa tem uma experiência de fusão com o transcendente ou com Deus, de forma passiva;
  • Experiência íntima de realidades profundas e sobrenaturais, da realidade como um todo, com ordem radical e definitiva. Caráter holístico, totalizador e abrangente, em que o sujeito e o mundo inteiro são percebidos como parte dessa ordem geral, plena de significado;
  • A experiência tem conotações afetivas e fruitivas. Há um impacto emocional, que é vivenciado muitas vezes simultaneamente com um profundo sentimento de paz, de alegria, de gozo inexplicável e que não são assimiláveis a outras experiências. É uma experiência de simplicidade e singeleza;
  • Certeza e escuridão. Certeza da experiência com tudo o que ela implica para o místico. Escuridão, que ocorre quando excede os limites da capacidade humana de compreensão;
  • É uma experiência que, em geral, introduz uma novidade no conhecimento do transcendente ou divino. Muitas vezes se refere à necessidade de ordenar a experiência através do relato autobiográfico e da simbologia expressiva;
  • Inefabilidade. A experiência mística é, em sua essência, indescritível, incomunicável. É uma experiência não mediada pelo raciocínio discursivo, pelo pensamento ordinário, não pode ser tematizada ou pensada e, portanto, não se sabe como dizer.

Vamos nos debruçar sobre esta última característica por sua relevância para a mística do cotidiano: a impossibilidade de descrever ou definir com palavras o que foi vivido. No cristianismo, a experiência mística depende da fé e seu denominador comum é a inefabilidade, é “nuvem”, é “escuridão” como o pseudo-Dionísio gosta de dizer, seguido de tradição posterior. Tomás de Aquino dirá que a alma entra, então, nessa “escuridão da ignorância… em que nos unimos o máximo possível a Deus, como diz Dionísio, e que é uma nuvem na qual dizemos que Deus habita” (TOMÁS DE AQUINO, I Sent.d.8q1 a.1 ad4).

Evidentemente, o apofatismo é um elemento central da experiência mística. Quem tem alguma experiência nesse sentido não sabe dizer, porque também não sabe explicar como é essa comunicação divina. Ao mesmo tempo, eles não podem negar a experiência, que é lembrada em termos muito reais.

Isso ocorre quando os místicos experimentais (chamamos de místicos experimentais aqueles que, tendo eles mesmos uma experiência mística, a descrevem) têm ou querem narrar sua experiência de Deus – sempre há um momento que poderíamos chamar de “apofatismo de base”: não podemos falar sobre Deus, porque na realidade não sabemos quem Ele é e muito menos podemos descrevê-lo. O místico sempre nos dirá que, acima de tudo, Deus não é o que ele percebeu e entendeu, embora também seja, de maneira suprema. Admiravelmente, Tomás de Aquino enuncia-o, mais uma vez, deixando-nos perceber de alguma forma sua própria experiência mística: “In finem nostrae cognitionis Deum tamquam ignotum cognoscimus” (TOMÁS DE AQUINO, In Boetium de Trinitate q1 a2 ad1). Nosso conhecimento máximo de Deus é reconhecê-lo como incógnito, como desconhecido, por ser infinitamente luminoso e conhecedor, inconcebível para nossa apreensão tanto sensível, como inteligível e volitiva.

De forma bela e pedagógica, João da Cruz expressa-a na introdução do Cântico Espiritual:

…Porque quem poderá escrever o que as almas amorosas, onde mora, fazem entender? E quem será capaz de expressar com palavras o que os faz sentir? E quem, finalmente, as faz querer? Verdade, ninguém pode; verdade, nem eles mesmos que passam por isso podem. Porque esta é a causa, porque com figuras, comparações e semelhanças antes trasbordam algo do que sentem e da abundância do espírito derramam mistérios secretos, que com razões declaram. Essas semelhanças, não lidas com a simplicidade do espírito de amor e inteligência que carregam, mais parecem absurdas do que ditas com razão, como é visto nas divinas Canções de Salomão e em outros livros da Escritura divina, onde não sendo capaz o Espírito Santo explicar a abundancia de seu significado por termos vulgares e corriqueiros, ele fala mistérios em figuras estranhas e semelhanças. De onde se segue que os santos doutores, embora muito digam – e digam ainda mais, nunca podem terminar de declará-lo por palavras, assim como não se pode descrevê-lo por palavras; e, portanto, o que dele se declara, normalmente é o mínimo que contém em si mesmo. (JOÃO DA CRUZ, 1992, p. 571-572 Cântico Espiritual B, Prol 1)

Evidentemente, as almas “amorosas” as quem o santo se refere aqui são aquelas que tiveram alguma experiência mística. Ninguém, nem eles mesmos, podem dizer o que Deus os fez entender (este é um entendimento que excede a inteligência), ou sentir (excede os sentidos) ou desejar (excede a capacidade da vontade). Aqui João vai um passo adiante: uma vez que não podem dizer ou explicar “esta é a causa porque com figuras, comparações e semelhanças, antes de transbordarem algo do que sentem e da abundância do espírito, derramam mistérios secretos…”

Ou seja, místicos e místicas recorrem à linguagem simbólica que deve ser entendida e lida no contexto e na linha de afinidade espiritual em que foram ditas, que o santo aqui chama de “simplicidade de espírito de amor e inteligência”. Caso contrário, tudo vai parecer uma “loucura”, um absurdo. É por isso que eles usam “figuras estranhas e semelhanças”, e nós diríamos: símbolos e metáforas.

Com essas palavras simples, o santo nos apresenta a questão crucial da linguagem para falar de Deus. Qual é o mais adequado? R. Ferrara nos lembra que:

“Deus” é declinado e conjugado em múltiplas línguas: no oráculo do profeta, na doxología e oração do salmista e na frase do sábio, que se expande na linguagem articulada do teólogo em seu discurso “narrativo e argumentativo” que, para essa articulação, recorre tanto às analogias, com suas afinidades e correspondências, quanto aos paradoxos e contrastes. (FERRARA, 2005, p. 27)

Nesta vida Deus é conhecido e nomeado por meio de analogia e paradoxo, embora seja inefável. Alguns nomes o designam adequadamente, embora de modo deficiente (FERRARA, 2005, p. 28-31, 93-94, 252-265).

Nossas palavras são ineficientes para falar de Deus e da experiência de Deus, mesmo as mais comuns e universais (MERTON, 2008, p. 81-96). É por isso que a linguagem sobre essa experiência está carregada de metáforas e símbolos. Isso certamente pode ser um limite, mas também é uma possibilidade, porque o místico, muitas vezes com suas metáforas, está abrindo sua experiência para a nossa, da mesma forma que um símbolo abre o significado de uma realidade para novas percepções. Suas experiências, chamam, convidam, evocam as do leitor.

A imagem simbólica é revelada na literatura religiosa particularmente apta a expressar realidades espirituais. Jesus, por exemplo, é apresentado como o Pão da Vida (Jo 6,34) ou a Luz do mundo (Jo 8,12). Como imagem, o símbolo se desenvolve através do contato do homem com o meio ambiente. Nesse sentido, o símbolo pode se referir ao mundo mais primitivo da natureza, ou ao mundo mais social, familiar ou técnico. É típico da linguagem simbólica começar da imagem para passar para outro nível significativo: a montanha, por exemplo, torna-se um símbolo de esforço moral ou espiritual.

O verdadeiro símbolo parte do concreto sensível para alcançar o nível espiritual, é um sinal capaz de evocar outra realidade pertencente a um nível ontológico mais elevado: a água como símbolo de vida, a luz como símbolo de sabedoria, o céu como a morada de Deus etc. O símbolo pertence à ordem da percepção sensível e não pode ser separado de tal atividade perceptiva.

Ao contrário do conceito, o símbolo, por sua inadequação “sugestiva” e por sua carga vital transmitida pela imagem, contém em si mesmo sua própria superação. Pensemos na sarça ardente, ou na rocha, para mostrar ou sugerir características da realidade divina.

O símbolo não é a “fotografia” da realidade objetiva, mas tenta revelar algo mais profundo e fundamental. Sugere, indica, aponta. O objetivo é nos fazer acessar outros níveis de realidade que, de outra forma, permaneceriam fechados para nós. É uma expressão sempre aberta, que sempre tenta nos dizer algo mais.

Como conclusão e atentos/as à mística do cotidiano, na narração de experiências místicas, temos que prestar atenção à dificuldade de narrar a experiência e os símbolos e as metáforas utilizados pelas pessoas que passam por essas experiências (MARTIN VELASCO, 1999, p. 49-58). Somente aqueles que entendem seu silêncio e os símbolos e metáforas utilizadas entenderão a mensagem do místico. Quem os considera meros ornamentos de seu discurso ou entende mal esses símbolos e metáforas, não entenderá o cerne de sua experiência, pois esses símbolos são chaves hermenêuticas para desvendar o que a mística ou o místico querem nos dizer. Tais expressões podem ser comuns a narrativas místicas universais (por exemplo, Deus é como luz, mar etc.) ou muito próprias e pessoais, como nomes próprios que só essa pessoa usa.

Essas chaves são importantes, seja um grande místico ou mística canonizado/a, cujas obras são universalmente conhecidas, seja uma pessoa desconhecida que em algum lugar do mundo diz a outro ser humano o que viveu, em relação a uma experiência de Deus que manifestou sua bondade de uma forma avassaladora.

4 Para uma definição mística do cotidiano

Tudo o que temos visto e analisado sobre a experiência mística nos ajuda a alcançar o tema que é o foco deste texto: a mística do cotidiano. A reflexão do Vaticano II, que abre a possibilidade de ser santo a todos os batizados (a que já aludimos), nos faz deixar o esquema de “perfeição” para nos abrirmos à esfera da “plenitude da caridade” (LG 39). Essa mesma perspectiva tira a experiência mística do contexto de algumas pessoas muito especiais que têm experiências de Deus que chamamos de “extraordinárias”, para nos abrir à possibilidade da universalidade dessa experiência e que os espaços da mística não precisam ser apenas templos ou locais de retiro, mas também o trabalho, a rua, a casa, a escola. Trata-se, em suma, de “encontrar Deus em todas as coisas” (GARCÍA, 2013, p. 62).

A reflexão teológica e pastoral dos anos pós-conciliares seguiu essa linha, mas, sobretudo, essas ideias passaram a se refletir em experiências concretas. A vida religiosa, por exemplo, desenvolveu modelos de inserção nos bairros, realizando ali o apostolado e a oração , mesmo com experiências de vida contemplativa como a dos irmãos e das irmãs de Carlos de Jesus. Os movimentos leigos ajudaram a crescer a consciência da importância de encontrar Deus na vida familiar, no trabalho, no compromisso social e político e amadureceram a percepção da contemplação e da vida mística dos leigos e leigas (GOFFI, 1987, p. 158-163).

Bernardo Olivera, monge trapista e escritor de temas sobre espiritualidade, define os sujeitos da experiência desta forma: “[místicos e místicas] são, simplesmente, todos aqueles e aquelas que, entrando no Mistério, vão sendo transformados por ele” (OLIVERA, 2002, p. 80).

Se a mística é o “imediatismo mediado pelo contato amoroso” com Deus, tal como concebido (MARTÍN VELASCO, 2007, p. 62) ou a experiência plena da Vida, de acordo com a definição de Panikkar, com a qual este texto inicia, essa experiência é perfeitamente acessível a todas as pessoas que se abrem ao mistério divino, em todos os lugares e em qualquer momento de existência.

No tema da mística do cotidiano, há duas questões que, sendo temas clássicos da espiritualidade cristã, emergem no pós-Concílio de uma nova forma: a possibilidade de amar a Deus mais do que se conhece e o tema do conhecimento por conaturalidade. Vejamos brevemente esses dois pontos, a seguir.

Em relação ao primeiro ponto, já no final do século XIII, um cartuxo chamado Hugo de Balma (DE BALMA, 1992, p. 117-118) diz que a mais profunda união da alma com Deus pode ser dada pelo amor sem conhecimento intelectual prévio, considerado uma advertência geral de fé. Esta foi uma questão que foi muito debatida na Era de Ouro espanhola. São João da Cruz, levando em conta essa discussão, vai esclarecê-la unindo a tendência dos intelectuais que diziam que não há nada na inteligência que não passe pelos sentidos (por isso não se poderia amar a Deus sem conhecê-lo) e a corrente dos místicos afetivos que afirmaram que, a respeito de Deus, era possível amá-lo mais do que podemos realmente conhecê-lo. Diz isso no Cântico Espiritual da seguinte forma:

Como se sabe, sobre o que alguns dizem que a vontade não pode amar senão o que é primeiro compreendido pelo entendimento, é para ser compreendido naturalmente, porque por via natural é impossível amar se não se compreende primeiro o que se ama; mais por meios sobrenaturais Deus pode infundir o amor e aumentá-lo sem infundir nem aumentar distinta inteligência […].

E essa experiência está em muitos espirituais, que muitas vezes se encontram em chamas com o amor de Deus sem terem uma inteligencia diferente da anterior; porque eles podem compreender pouco e amar muito, e podem compreender muito e amar pouco… (CB 26,8). (JOÀO DA CRRUZ, 1992, p. 694)

A explicação do santo de Fontiveros, continua a relacionar esse fenômeno com a fé teológica, que ilumina os crentes que se abrem para a ação da graça.

Em relação ao segundo tema, sobre o tipo de conhecimento proporcionado pela mística em geral e a do cotidiano em particular, podemos dizer que é análogo ao conhecimento por conaturalidade, do qual Aquino também fala (JOHNSTON, 1997, p. 63-68), uma vez que no conhecimento por conaturalidade aprende-se por certa afinidade ou inclinação ao objeto conhecido. Essa inclinação vem do amor e da união e possui uma especial importância quando falamos de Deus e do seu conhecimento, pois como a primeira carta de João nos lembra, “aquele que ama, conhece a Deus, e aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é Amor” (1Jo 4,7-8).

O amor de Deus se derrama em nós, nos atrai e nos unimos a Ele, propiciando-nos a mais alta sabedoria, da qual também Tomás de Aquino fala no início da Summa, aquela que vem do Espírito Santo e pela qual nos unimos a Deus (TOMÁS DE AQUINO, STh q1 a6 ad3).

No contexto conciliar e pós-conciliar, destaca-se o pensamento de Karl Rahner, um dos que usaram e espalharam a expressão “mística do cotidiano”. Rahner argumenta que todos os que vivem com autenticidade, colocando amor e responsabilidade no que fazem, a partir de um desejo sincero de servir o próximo, vivem o “misticismo da vida cotidiana” (RAHNER, 2010, p. 172-188). Destaca não só a unidade intrínseca entre o amor de Deus e o amor ao próximo (RAHNER, 1966, p. 271-291), mas também o ensinamento de Jesus que diz que amar o menor de seus irmãos significa amá-lo. Segundo Rahner, a forma mais profunda do misticismo da vida cotidiana é o amor sem reservas ao próximo e a humilde aceitação da própria existência, com seus limites e possibilidades, mas em abertura às profundezas da própria vida e, portanto, ao próprio mistério, ao mistério dos irmãos e da existência em geral.

Essa visão da vida tem um profundo significado teológico e pastoral. Trata-se de ter a certeza (muitas vezes obscura) de que aceitar a vida cotidiana com todos os seus desafios é o verdadeiro seguimento de Jesus.

O cotidiano de Jesus é o que serve a Rahner como base para apreciar a vida cotidiana como um lugar de encontro com o mistério: o que é realmente surpreendente e até desconcertante na vida de Jesus é que ele permanece completamente dentro do quadro da existência cotidiana, uma existência semelhante a de tantas pessoas de seu tempo e seu povo. A primeira coisa que devemos aprender com o Senhor é sua humanidade assumida, integrada e aceita até o fim.

Em Cristo, Deus assumiu a vida cotidiana. O misticismo da vida cotidiana é a alegria sombria e paradoxal de existir no mundo, uma fé pascal que ama a existência como ela é. A participação na morte de Cristo possibilita que uma pessoa se entregue ao mistério que permeia a vida cotidiana: este é o fundamento cristológico para um misticismo do cotidiano. Obviamente, não estamos falando apenas da morte como o passo final para a vida eterna, mas também das micromortes que nos atravessam todos os dias e que fazem parte dos acontecimentos diários. Aceitar a solidão quando ela surgir em nossa existência, abrir mão de um critério importante na vida familiar, ouvir uma crítica injusta, aceitar uma tarefa exaustiva pelo amor a Deus, à comunidade ou para apoiar a própria família, perdoar incondicionalmente, fazer bem e completamente a tarefa diária sem esperar o reconhecimento, entregar-se generosamente à oração, ser fiel à própria consciência mesmo que não sejamos compreendidos/as, aceitar a decepção entre o projeto dos sonhos e o que foi alcançado… Perseverar nessas atitudes são eventos de graça, presentes na vida cotidiana. Perseverar nessas atitudes são eventos de graça, presentes na vida cotidiana. São transparências do mistério que aparece e se deixa vislumbrar, fazendo-nos suspeitar da presença de Deus ao nosso lado, em nós, entre nós (EGAN, 2013, p. 45-49).

O que a tradição chama de perseverança final, a entrega total da vida no último momento, será muito difícil se essa fidelidade diária, sombria e alegre ao mesmo tempo, não tiver sido verificada.

Michel de Certeau expressou esta experiência da seguinte forma:

É místico aquele ou aquela que não pode parar de caminhar e que, com a certeza do que lhe falta, sabe de cada lugar e cada objeto que não é isso; que não é possível se estabelecer lá, que não é possível se contentar com isso. (DE CERTEAU, 1987, p. 14)

A mística da vida cotidiana é a suspeita bem fundamentada do Reino de Deus presente todos os dias.

5 Francisco: da mística popular à santidade “ao pé da porta”

Do ponto de vista do Magistério da Igreja, quem mais tem falado, não diretamente sobre a mística do cotidiano, mas de temas muito próximos, é o papa Francisco. Desde a Evangelii Gaudium, sua Exortação apostólica programática, tem abordado a questão da presença de Deus no cotidiano (EG n. 73). Essa profunda sensação de transcendência que descobrimos no transcorrer dos dias e atividades em que nossa vida passa, da qual a EG nos fala, a profundidade sem estridência que é percebida como uma presença fiel que nos acompanha mesmo quando não a sentimos, essa, precisamente, é a mística do cotidiano.

No número 174 da EG, o papa diz que, na leitura da Palavra de Deus e na eucaristia, o espírito da profecia é recebido para dar testemunho na vida cotidiana. Santidade e profecia aparecem associadas na e com a vida cotidiana. Porque a comunhão com a dimensão sagrada da existência é o que nos transforma em profetas e testemunhas no meio do mundo.

Há um núcleo tematicamente importante na EG, próprio da teologia e da pastoral de Francisco, no qual ele trata de alguma forma do tema da mística cotidiana, ao falar do poder evangelizador da piedade popular (122-126). Particularmente no número 124, ele cita o documento de Aparecida, que ao tratar do tema da piedade/espiritualidade/mística popular aborda-o como uma “verdadeira espiritualidade encarnada na cultura dos simples” (EG n. 124, citando DAp n. 263). Dentro dessa piedade/espiritualidade/mística popular, uma nota distintiva é a condição da encarnação como a capacidade de ver Deus na vida, de perceber sua presença em realidades cotidianas – alegres, difíceis ou mesmo não transcendentes. Uma parte do texto de Aparecida, no qual vemos a indubitável influência do cardeal Bergoglio:

A piedade popular contém e expressa um intenso sentido da transcendência, uma capacidade espontânea de se apoiar em Deus e uma verdadeira experiência de amor teologal. É também uma expressão de sabedoria sobrenatural, porque a sabedoria do amor não depende diretamente da ilustração da mente, mas da ação interna da graça. Por isso, a chamamos de espiritualidade popular. Ou seja, uma espiritualidade cristã que, sendo um encontro pessoal com o Senhor, integra muito o corpóreo, o sensível, o simbólico e as necessidades mais concretas das pessoas. É uma espiritualidade encarnada na cultura dos simples, que nem por isso é menos espiritual, mas que o é de outra maneira. (DAp 263)

Embora o documento fale aqui de piedade/espiritualidade/mística popular, podemos ver algumas das características que nos aproximam da mística ou espiritualidade da vida cotidiano: encontro pessoal e concreto com Deus, senso de transcendência, capacidade espontânea de se apoiar no Senhor, experiência do amor teologal, sabedoria do amor como demonstração da graça. Tudo isso vivido de forma concreta, sensível e simbólica, de forma “encarnada”.

Tanto o texto de EG n. 124, quanto o de Aparecida n. 263 apontam que o cerne dessa piedade/espiritualidade ou mística popular, que tem muitos elementos da experiência mística cotidiana, é uma experiência teológica/batismal, um instinto de fé permeado pela caridade que nos leva a descobrir o Senhor e sua obra em todas as circunstâncias, ainda mais em lugares onde parece que Deus não se encontra. Essa experiência proporciona um conhecimento, uma “sabedoria do amor de Deus” acessível a todos os crentes, que confere uma afinidade espiritual ao Mistério de Deus e uma capacidade de discernimento, contraintuitiva em relação à formação em assuntos religiosos que essas pessoas puderam ou não ter tido.

Na Exortação Apostólica Pós-Sínodal Amoris Laetitia, o tema da oração familiar aparece intimamente ligado à vida cotidiana (AL n. 29, 86, 216, 223, 227, 255, 287-288, 316-318).  Particularmente nos números 316 a 318, se fala da vida de oração na família e de cada um dos cônjuges, mostrando que a mística não é exclusiva de algumas pessoas na Igreja: “aqueles que têm profundos desejos espirituais não devem sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é um caminho que o Senhor utiliza para os levar às alturas da união mística. (AL n. 316).

Outro documento chave para encontrar elementos sobre a mística popular e cotidiana é a Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate. Abordando plenamente a questão da santidade no mundo de hoje, o papa, nos primeiros parágrafos, fala de “os santos ao pé da porta”, uma expressão ou imagem que, possivelmente querendo ilustrar uma ideia, tornou-se um ponto central de sua mensagem graças à força da imagem. É sobre as pessoas comuns com quem todos podemos nos identificar. Nesse parágrafo, o papa associa a santidade à virtude da paciência: “gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus… esta é muitas vezes a santidade “ao pé da porta”, daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus” (GE n. 7).

Deus se faz silenciosamente presente na paciência da vida cotidiana, e naqueles que a exercem: trabalhadores, pais e mães de família etc. Pessoas que “seguem cada um o seu próprio caminho” (GE n. 11, citando LG n. 11), ou seja, nas condições habituais do dia a dia. Nos números seguintes à definição de santidade ao pé da porta (n. 8 e 9), o papa associa a santidade cotidiana às trevas e à profecia, que poderiam ser outros termos para falar de paciência e testemunho. A descrição de Francisco evoca o efeito de uma espécie de fermento, apenas conhecido por Deus, mas que poderia ser o verdadeiro fermento e motor da história.

Trata-se, segundo o Papa, de ouvir o próprio chamado e deixar que frutifique a graça do batismo em um caminho de santidade (GE n. 15), tendo o cuidado de esclarecer que, se a santidade não é um patrimônio exclusivo de pessoas consagradas, tampouco é a vida de oração e comunhão com o Senhor (GE n. 14), como havia afirmado na AL n. 316.

No capítulo 3 ele aborda dois “eixos” da santidade cristã: as bem-aventuranças representadas como a identidade do seguidor de Jesus e o grande protocolo sobre o qual seremos julgados (Mt 25). A misericórdia se destaca, em ambos os textos, como aquele “fio comum” que sustenta nossa relação com Deus e com nossos irmãos e irmãs e o arcabouço da mística cotidiana (MAZZINI, 2015, p. 29-48).

Descobrir Deus em nossas vidas tem a ver com a experiência da misericórdia, quem reconhece e serve o Senhor concretamente, descobre sua presença em todos os aspectos da vida cotidiana e está em posição de se unir a Ele pela fé e pelo amor, mesmo que a experiência seja sombria.

Francisco retomou o tema em sua catequese sobre a oração, em fevereiro de 2021, do seguinte modo:

A oração é sempre viva na existência, como o fogo das brasas, até quando os lábios não falam, mas o coração fala. Cada pensamento, embora aparentemente “profano”, pode ser permeado de oração. Até na inteligência humana há um aspecto orante; com efeito, ela é uma janela aberta para o mistério: ilumina os poucos passos que se nos apresentam e depois abre-se para toda a realidade, esta realidade que a precede e a supera. Este mistério não tem um rosto perturbador nem angustiante, não: o conhecimento de Cristo faz-nos confiar que onde o nosso olhar e os olhos da nossa mente não podem ver, não há o nada, mas há alguém que nos espera, há uma graça infinita. (FRANCISCO, Catequese de quarta-feira 10 de fevereiro de 2021)

“Uma janela para o mistério”, diz o papa, poderia ser uma boa definição da mística cotidiana, viver atentos à presença amorosa e misteriosa de Deus, sempre presente e concomitante aos limites de nossas pequenas, precárias, limitadas, mas habitadas existências.

6 Uma mística cotidiana a partir da América Latina

O padre Jorge Seibold SJ tem vários textos sobre mística popular, que são escritos a partir e na América Latina. Em um deles (SEIBOLD, 2016, p. 157-162), fala dos sinais da experiência mística no catolicismo popular latino-americano, entre os quais está a mística do cotidiano, com um profundo sentimento que nosso povo tem da presença de Deus em suas vidas, do irmão necessitado como um lugar de encontro com Jesus, do contato corporal e do abraço como epifania da fraternidade, da hospitalidade e da solidariedade às vezes além das próprias possibilidades.

Há uma espiritualidade da vida cotidiana que as pessoas mais simples e crentes do nosso povo vivem na prática de um tipo ininterrupto de oração, muito simples, mas com um profundo senso de união com Deus. Alguns expressam isso encomendando ao Senhor ou à Maria suas necessidades, agradecimentos e desejos no decorrer do dia. Outros intercederem por necessidades de pessoas específicas da família ou da comunidade, ou por aqueles no mundo que sofrem por causa de vários males (a violência, a doença, o desemprego etc.). Portanto, não é incomum visitar um vizinho doente em um bairro humilde e esse espontaneamente dizer que oferece a Deus suas dores ou desconfortos por outras pessoas que percebe que sofrem mais do que ele ou ela e que, quando assim o faz, se sente particularmente unido ou unida a Jesus em sua Paixão. Deve-se notar que, em geral, não são pessoas com grande formação religiosa, mas com um profundo senso de fé.

O altar doméstico, com alguma imagem de Jesus, de Maria, de algum santo padroeiro da cidade de origem da família, é um espaço sagrado no qual geralmente também há água benta e, em ocasiões especiais ou de necessidade, uma vela acesa.

A solidariedade dos mais pobres é uma manifestação da presença de Deus na vida cotidiana. Podemos dizer que é uma mística cotidiana da ação, na qual as pessoas experimentam a presença de Deus e a autenticidade de sua fé, porque vivem de acordo com o que creem e isso é uma epifania, uma certeza da presença de Deus. Essa mística dos povos latino-americanos, em geral, não é vivida isoladamente, nem como minoria, mas sim na experiência de acreditar em Deus, fazer parte de um povo (GUTIÉRREZ, 1989, p. 20-26). Daí as percepções do Documento de Aparecida, que discutimos anteriormente e que nos mostram a experiência espiritual como uma experiência popular.

Temos muito a aprender com as pessoas mais simples de nossos povos latino-americanos – elas, com sua intuição de fé em contextos hostis e muitas vezes violentos, podem apontar o caminho para o encontro diário com o mistério. Elas nos mostram que a experiência mística se revela como uma ciência do amor: uma sabedoria que busca, sofre e desfruta no meio da vida (NAVARRO SÁNCHEZ, 2012, p. 28) e que, acima de tudo, encontra Deus em todas as circunstâncias.

Marcela Mazzini. Universidad Católica de Argentina. Texto original castellano. Recebido: 30/03/2021. Aprovado: 30/05/2021. Publicado: 24/12/2021.

 Referências

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Interculturalidade / Inculturação

Sumário

Nota introdutória

1 Esclarecimento mínimo do termo interculturalidade

2 Interculturalidade na interação dialética com a inculturação

3 Observações finais

Referências bibliográficas

Nota introdutória

O pano de fundo histórico e teórico deste artigo é a história de luz e sombra que o cristianismo escreveu com a real trajetória de um desenvolvimento que o fez presente em todos os continentes do mundo. Aqui não podemos nos debruçar sobre esta história milenar, mas sua menção torna-se necessária no início deste artigo. Pois bem, esta complexa história do cristianismo é precisamente aquela que desenha o pano de fundo das luzes e sombras que supomos como um marco geral explicativo da posição a favor da qual queremos argumentar com as reflexões que se seguem.

E nos permitiremos antecipar que a proposta de tal posição pode ser resumida nestes termos: supondo que a “inculturação” seja um dos momentos que delineiam a face luminosa da história do cristianismo, pensamos que com o estabelecimento da interculturalidade, vista acima de tudo – como é o caso deste artigo – em sua possível relação com esse processo teológico e religioso constitutivo da história do cristianismo que é a “inculturação”, floresce um movimento denso de crescimento espiritual que pode contribuir para tornar ainda mais luminosa a face luminosa da “inculturação” do cristianismo nos espaços e tempos da história da humanidade no futuro.

1 Esclarecimento mínimo do termo interculturalidade

A interculturalidade representa uma formulação crítica e inovadora que anima hoje áreas de reflexão e ação tão diversas quanto, por exemplo, a antropologia, a educação, o direito, a filosofia, a pedagogia, a linguística, a política, a psicologia, a psiquiatria ou a teologia; com a consequência de que, com seu desenvolvimento nesses campos – e sem esquecer, por outro lado, que esse desenvolvimento multidisciplinar ocorre em contextos culturais diversos –, a perspectiva intercultural recebe evidentemente ênfases específicas que dificultam uma definição geral, e além disso, que não aconselham a elaboração de “um” conceito definidor de interculturalidade. (FORNET-BETANCOURT, 2002; KIRLOSKAR-STEINBACH, DHARAMPAL-FRICK, FRIELE, 2012).

A partir desta amplitude de referências disciplinares e contextuais em que a interculturalidade se move, queremos começar este ponto indicando precisamente que se intitula “esclarecimento mínimo” não por um recurso retórico, mas para com isto dar conta de que, nesta aproximação com o termo interculturalidade, vamos olhar apenas para um dos acentos possíveis, ou seja, o filosófico; e, além disso, que “minimiza” ainda mais nosso esclarecimento, prestando especial atenção aos “tons” da ênfase filosófica que, em nossa opinião, melhor se prestam à interação com o processo teológico ou religioso da inculturação.

Assim, no contexto dessa delimitação, enfatizaremos que a filosofia intercultural (FORNET-BETANCOURT, 1994; MALL, 1995; PANIKKAR, 1990; WIMMER, 2002) carrega a abordagem da interculturalidade com um acento específico que tem a ver, primeiro, com a concepção de cultura e, mais concretamente, com a relação do ser humano com sua cultura de origem ou a cultura em que nasceu e cresceu. Resumimos essa concepção dizendo que se trata de uma concepção histórica, não essencialista, que sublinha o valor das diferentes culturas da humanidade como formas de vida e convivência pelas quais o ser humano “entra” e é “direcionado” para o que chamamos de “mundo humano”. Assim, essa concepção também defende o reconhecimento respeitoso do pluralismo cultural, pois revela os múltiplos caminhos que podem ser seguidos para humanizar o homem. Ao mesmo tempo, porém, essa concepção considera que as culturas em si não são “as últimas”, mas devem sim ser vistas como formas históricas em que os caminhos são abertos, sempre dentro da ambivalência constitutiva que tudo o que é humano implica “o último”, entendendo aqui por “o último” o sentido da plenitude da vida humana.

Em segundo lugar, e em relação ao aspecto anterior, a ênfase filosófica da interculturalidade tem a ver com uma concepção do ser humano. Uma palavra sobre isso. Esta concepção supõe, entre muitos outros momentos que não podemos citar agora (FORNET-BETANCOURT, 2008), que em razão de sua condição de finitude e, principalmente, de sua fragilidade afetiva, é um ser que precisa de identidade pessoal e de sentimento de pertença familiar, cultural, religiosa etc. Ou seja, é um ser que precisa de um “ambiente” no qual possa se sentir “em casa”, um espaço que o reconhece como “seu” e o vivencie como “familiar”. Mas essa concepção afirma, por outro lado, que na condição finita do ser humano também mora um anseio por plenitude que transborda o “familiar” e que o move, se a metáfora é permitida, a habitar sua casa, sua cultura e identidade, como uma casa que mantém as portas e janelas abertas; em outras palavras, como um espaço de acolhimento e hospitalidade.

E, em terceiro lugar, a ênfase colocada na filosofia intercultural sublinha que a dinâmica da interação dialógica e do encontro com a alteridade que distingue a abordagem da interculturalidade, assim como um esforço para superar a parcialidade ou unilateralidade das visões que separam culturas e seus membros (sejam elas cosmológicas,  éticas, epistemológicas, religiosas, filosóficas, etc.), é uma dinâmica de crescimento em direção à plenitude que requer, como condição de seu verdadeiro significado, a postulação da abertura do humano finito a um horizonte infinito. Pois apenas o infinito, que não é simplesmente o que não tem limites, mas sim o ilimitado, não é unilateral e permite, portanto, a jornada em direção à plenitude.

Como por razões óbvias de espaço não podemos continuar a aprofundar na explicação da ênfase filosófica, os três destaques devem ser suficientes aqui para fazer um ponto em nossa argumentação que é importante para o que se segue, a saber, que a filosofia intercultural entende e desenvolve a interculturalidade no sentido de uma perspectiva crítica que deve cumprir, na compreensão e na prática do encontro com as culturas, uma função reguladora, normativa e, portanto, também corretiva, tanto na teoria como na prática.

Com isso, também queremos afirmar que, pelo menos a partir dessa compreensão filosófica, a interculturalidade é mal compreendida quando está associada a um relativismo cultural que não conhece freio e que leva, por isso, no final, a uma falsa “tolerância” ou indiferença. O contrário segue-se a concepção que apresentamos aqui, pois trata-se de uma interculturalidade que, justamente porque visa a ultimidade da plenitude humana, quer ser o caminho para a experiência que nenhuma cultura em particular dá a medida completa do significado final que o ser humano busca; e é por isso que introduz no diálogo das culturas um critério de julgamento e discernimento, ou seja, um critério de correção mútua. Mas passemos agora ao terceiro ponto deste artigo para tratar de apresentar alguns momentos de interculturalidade em sua relação explícita com o processo teológico e/ou religioso de inculturação.

3 Interculturalidade na interação dialética com a inculturação

Nesta seção é, portanto, trata-se de apresentar algumas pistas que ilustram que a relação entre interculturalidade e inculturação, dentro da qual se torna possível justamente a contribuição mencionada na nota introdutória, deve ser compreendida no sentido de uma articulação orgânica entre ambas as abordagens.

Para compreender esta proposta de uma relação mutuamente enriquecedora de interação entre interculturalidade e inculturação, deve-se deixar claro, no entanto, que aqui se supõe que a inculturação não é uma estratégia mais ou menos sutil de expansão ou ocupação da casa do outro, mas um verdadeiro processo de “encarnação” e, portanto, de aprendizagem, de diálogo sincero e comunicação franca (IRARRÁZAVAL, 1994, 1998; SUESS, 1996).

É por isso que foi dito na nota introdutória que, para nós, a inculturação faz parte do perfil da face luminosa da história do cristianismo. Com isso, não negamos, evidentemente, que na inculturação tenham sido seguidos às vezes caminhos errados, ao confundir a encarnação da Boa Notícia de Jesus com a adaptação ou simples transplante de uma forma de inculturação ou um modelo de cristianismo já inculturado. E por isso Ignacio Ellacuría apontou, com um claro senso crítico e com toda a razão, que:

… a fé cristã foi padronizada a partir as exigências e as facilidades do mundo ocidental e da atual civilização cristã ocidental – que é como a chamam. Isso, para nós, supõe uma redução séria, em si mesma e em sua capacidade de inculturação. Quer dizer, a for­ma que o Cristia­nismo tomou na Europa, ao longo de todos esses séculos, os antigos e os modernos, na melhor das hipóteses é uma das for­mas possíveis de viver o Cristianismo. No melhor dos casos, se o tivesse feito certo. Mas de nenhuma maneira é a melhor forma possível de viver o Cristia­nismo. (ELLACURÍA, 1990)

Mas se, como assumimos neste artigo, compartilha-se a visão de que a inculturação busca caminhos de “comunhão” dentro e com as alteridades culturais e religiosas da humanidade, então parece legítimo e bem fundamentado propor que a relação entre interculturalidade e inculturação não precisa necessariamente ser uma relação entre “paradigmas” opostos, muito pelo contrário: uma relação entre horizontes de compreensão e de vida que se potencializam reciprocamente. Em seguida, tentaremos ilustrar essa relação orgânica listando sinteticamente alguns momentos que, em nossa opinião, falam não só a favor da possibilidade, mas também da necessidade de cultivar essa relação como recurso metodológico para aprofundar o significado e a finalidade de ambos os “paradigmas”. Assim:

Primeiro: como um processo integral de capacitação para abrir de dentro da própria identidade (a casa com portas e janelas abertas) espaços para encontros em relações de transformação mútua e crescimento, a interculturalidade pode, de fato, apoiar o aprofundamento da exigência da inculturação para entrar em diálogo com a diversidade cultural e religiosa da humanidade.

Segundo: a interculturalidade, e como consequência do momento anterior, poderia intensificar, nos esforços de inculturação, a atitude de respeito em relação à santidade e, em geral, em direção ao mistério da graça divina que se manifesta na riqueza do pluralismo cultural e religioso; uma atitude de respeito que seria mais do que tolerância, pois é o respeito que nasce do amor e da gratidão ao outro por também ser o portador do que santifica e salva.

Terceiro: a interculturalidade promoveria, assim, pedagogias e catequese na inculturação orientadas pelo que Raimon Panikkar descreveu como a prática da “mística do diálogo” (PANIKKAR, 1993).

Quarto: a interculturalidade, em consequência, seria também uma força que ajudaria a evitar na tarefa de inculturação qualquer tentativa ou qualquer tentação de instrumentalizar a alteridade do outro, ou dito positivamente, promoveria na inculturação a dinâmica do crescimento espiritual integral a partir da diversidade das culturas e, principalmente, a partir deseus  núcleos religiosos. E como consequência disso.

Quinto: a interculturalidade ajudaria a compreender o horizonte da inculturação, ao fazer sua teoria e prática mais sensíveis frente aos possíveis resíduos eurocêntricos que, devido ao impacto da inculturação hegemônica da qual Ellacuría fala na passagem supracitada, ainda sobrevivem, dito metaforicamente, no porão de certas práticas e doutrinas. Ou seja, a interculturalidade poderia contribuir para a percepção de que uma inculturação que não rompa decisivamente e radicalmente, isto é, com todas as suas consequências e em todos os níveis, com o eurocentrismo continuará a reduzir a capacidade de diálogo e a comunhão universal do cristianismo.

Sexto: reforçando a superação radical das sequelas da herança eurocêntrica no desenvolvimento do cristianismo, a interculturalidade também seria um ponto de apoio para que a inculturação seja verdadeiramente um horizonte de caminhos que apontam a um cristianismo universal culturalmente policêntrico (METZ, 1986) e que, desta forma, abrem a uma nova consciência da universalidade da mensagem de Cristo.

Mas vamos parar com essa enumeração aqui.

Deve-se notar que nos seis momentos mencionados falamos a partir do ponto de vista da abordagem da interculturalidade, quer dizer, destacamos a contribuição que a interculturalidade poderia fazer a um aprofundamento da inculturação como processo de diálogo e comunicação com o outro na transmissão da mensagem cristã. E isso poderia ser entendido como uma expressão de uma certa unilateralidade em uma relação que chamamos orgânica e de interação mútua. Para esclarecer esse possível mal-entendido, nos permitimos notar que a preferência do ponto de vista intercultural se deve à ênfase desse verbete na Theologica Latinoamericana Enciclopédia digital, que entendemos ser precisamente a interculturalidade. No entanto, convém insistir que, como dissemos, é uma relação de mutualidade, como deixa claro o título desta seção “Interculturalidade na interação dialética com a inculturação”.

Mas, para que não haja dúvida sobre isso, vamos mencionar aqui explicitamente pelo menos um momento representativo de reciprocidade nessa relação; ou seja, um momento que exemplifica a contribuição que o horizonte do enfoque da inculturação da fé cristã pode dar à interculturalidade.

Para isso, escolhemos um momento que nos parece de fundamental significação tanto para a fundamentação teórica no sentido último da interculturalidade quanto para a elaboração de propostas práticas para a reorganização da convivência social, política e ética em um mundo plural.

Referimo-nos ao seguinte momento:

Como um processo experiencial, histórico e contextual de “encarnação” do Evangelho de Cristo (como a palavra verdadeira revelada por Deus!) nas muitas culturas da humanidade, a inculturação confronta cada cultura particular com uma experiência de fé em um Deus encarnado, mas transcendente, que, por sua vez, e talvez como nenhuma outra experiência semelhante, mostra que o “fator religião” nas culturas não é apenas mais um fator cultural, um fator como qualquer outro, mas precisamente aquela área de culturas na qual se fazem ouvir os anseios mais secretos de sentido verdadeiro e plenitude da alma humana. É por isso que o ambiente em que as culturas podem tomar consciência, a partir de sua própria dinâmica de desenvolvimento, que em seus caminhos de humanização há também sinais – “traços”, na linguagem da filosofia da religião de Emmanuel Levinas  (1974, 1980) – que atestam a presença ativa e questionadora de uma outra ordem (metafísica e/ou escatológica) da realidade e da verdade que descentra a própria imanência de toda ordem cultural humana. Dito de forma mais concreta, e indo diretamente ao que essa experiência da inculturação segue para a interculturalidade: com a experiência de que sua tarefa de “encarnar” a fé cristã nas diferentes culturas da humanidade implica dar conta de uma tensão permanente e profunda entre o Evangelho e as culturas, e isso em todos os tempos e lugares, a inculturação representa para a interculturalidade, por assim dizer, uma espécie de espelho em que pode ver refletidos os esforços de articulação entre uma mensagem transcultural e ordens contextuais que podem muito bem ajudar a aprofundar sua própria aproximação para questões decisivas no âmbito de um diálogo intercultural aberto e construtivo. Nos referimos a questões como a de alcançar uma relação equilibrada entre a busca do universal e a afirmação do contextual ou local, em outras palavras, a questão de ajustar harmoniosamente o anseio de crescer na universalidade e o desejo não menos humano de se sentir como um ser que tem “raízes” em seu próprio solo; ou a questão dos critérios para o discernimento do verdadeiro e justo em meio à diversidade cultural e seu consequente pluralismo axiológico; ou, para mencionar mais um caso, a questão da fundamentação da possibilidade, aliás, da necessidade de um novo horizonte de universalidade à luz do qual se pode compreender, no diálogo entre culturas, que a denúncia de modelos opressivos de universalidade, sejam religiosos ou políticos, não é uma renuncia à universidade como ideal humano de uma comunhão bem-sucedida entre os povos.

No referencial limitado deste artigo, o esclarecimento prévio deve bastar como uma amostra representativa de que a abordagem da inculturação pode ajudar a interculturalidade no esclarecimento e aprofundamento da dimensão normativa e crítica da qual falamos no segundo ponto.

Mas, para concluir esta seção, ressaltemos ainda essa ideia: além da importância que, como tentamos mostrar, tem a interação dialética entre as abordagens da interculturalidade e da inculturação para o seu respectivo melhor desenvolvimento, deve-se observar que nesse processo de troca mútua e apoio se está traçando a convergência em uma experiência decisiva para a qualidade de todo diálogo entre alteridades. A experiência de que a abertura para o outro não é motivada pelas próprias deficiências, ou seja, o desejo egoísta de suprir as próprias deficiências e, assin, ser mais “autossuficiente” em e para si mesmo, mas que o diálogo com o outro tem seu motivo e fundamento em sentir a necessidade de comunhão, de compartilhar e se entregar reciprocamente como peregrinos da plenitude.

3 Observações finais

Intitulamos esta seção de “observações finais” porque com ela fechamos este estudo.

No entanto, as considerações que compartilhamos aqui não se destinam a “finalizar” o tema, apresentando “conclusões” ou resumindo a posição indicada em uma lista de resultados acabados. Seu propósito é exatamente o oposto, porque o que queremos propor com elas é mais uma hipótese para continuar o trabalho.

A hipótese ou perspectiva de trabalho que propomos é a seguinte: o tema “interculturalidade/inculturação” está hoje possivelmente enfrentando o desafio de um novo começo.

Por isso, gostaríamos de convidá-los a pensar que tanto a abordagem da interculturalidade quanto a da inculturação – e, claro, também a relação de interação dialética entre ambas que foi proposta nestas páginas – necessitam hoje se conscientizar de que, especialmente desde as últimas quatro décadas, as culturas da humanidade e, com elas, a memória cultural de seus membros passaram e passam por mudanças de tamanha importância que parecem questionar radicalmente a certeza histórica, ou seja, a verdadeira base de algumas das ideias fundamentais que serviram como pontos de partida evidentes na década de 1970, quando ambas as abordagens desenvolveram de maneira explícita e sistemática suas propostas teóricas e práticas.

Reconhecemos que, diante dessa afirmação, pode-se argumentar que o mundo e a humanidade sempre estiveram em mudança; e que as próprias experiências de interculturalidade e inculturação, mesmo antes de serem assim chamadas, são a prova de que a história da humanidade é uma história de mudança e transformação. Mas nossa afirmação não nega tal fato; o que parece óbvio para nós.

Assim, reconhecendo essa história de mudanças contínuas, o que queremos considerar com nossa hipótese de trabalho, entendida como tarefa para uma nova recontextualização das abordagens de interculturalidade e da inculturação, é que as profundas mudanças a que nos referimos aqui como um sinal específico de nosso tempo são mudanças que implicam uma diferença substancial em relação às mudanças de outras épocas.

Em que sentido? Pois no sentido de que as mudanças atuais interrompem o fluxo da tradição, a dialética da passagem entre o novo e o antigo. De maneira que, se nas mudanças dos tempos anteriores parte do passado ainda fluía e as novidades eram vividas ladeadas pelo tradicional, agora parece que as mudanças são mudanças que conhecem apenas a dinâmica de aceleração da produção de novidades, ou seja, que mais do que um passado, nossas mudanças se refeririam a si mesmas como uma “penúltima” novidade, à espera de outra novidade mais recente.

Como ilustração, um exemplo: em meados do século XX, o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer defendeu em sua famosa e influente obra Wahrheit und Methode (Verdade e método) a tese de que, apesar das mudanças radicais vividas em seu tempo, a continuidade da transmissão da tradição poderia ser dada como certa; pois tal foi o seu diagnóstico, mesmo em tempos de mudanças impetuosas e revolucionárias se preserva e transmite mais do antigo do que à primeira vista é pensado (GADAMER, 1960, p. 266). E naquela época essa apreciação de Gadamer era considerada plausível. Mas hoje, 60 anos depois, já não podemos mais ter certeza de sua plausibilidade. Além disso, no sentido de nossa afirmação, as mudanças do nosso tempo parecem refutá-lo.

Estamos, portanto, diante da necessidade de parar e pensar no desafio das mudanças que representam interrupções no fluxo da tradição e que, desta forma, separam, sobretudo as novas gerações, da memória histórica, especialmente do que Paul Ricœur chamou de “mémoire de humanité” (RICŒUR, 1964, p. 84). E nos referimos explicitamente a essa memória da humanidade no sentido em que Ricœur a entende por ser uma memória com peso ético e religioso, dois momentos essenciais para as abordagens da interculturalidade e da inculturação.

Como exemplos concretos dessas mudanças atuais que promovem a ruptura com a memória da humanidade que tanto a interculturalidade quanto a inculturação precisam realizar suas tarefas, vamos mencionar aqui apenas duas que, em nossa opinião, são indicadores inequívocos desse corte. Falamos, por um lado, da mudança que impulsiona o movimento do chamado transumanismo e/ou pós-humanismo e, por outro, da mudança que está concretizada no novo “individualismo” que fomenta a “cultura global” do capitalismo tecnocultural. Algumas breves palavras sobre ambos.

Como programa que promete realizar o sonho do homem de ser um “Deus com próteses”, como definiu Sigmund Freud, não sem ironia, (FREUD, 1968, p. 22), o transumanismo traça um horizonte de realização mecanicista para o homem em que sua corporalidade, sua “carne”, não é mais a “condição” de onde e em que vive, mas sim um “fato” a ser melhorado através de reparos técnicos que o colocam às portas da “imortalidade”. Quer dizer, se desenha no horizonte dessa mudança a construção de um “homem” que possa dizer “adeus” às consequências “irritantes” de sua condição finita, especialmente para duas delas: o sofrimento e a morte. A este respeito, foi justamente observado que transhumanismo ou pós-humanismo é:

… um termo em que uma autoconsciência vital e intelectual é condensada, diferente de outras concepções do ser humano e, portanto, da realidade como um todo. A expressão  post indica uma distância do humanismo, que designaria um estágio já superado, obsoleto, da história da espécie humana. Começa, portanto, um novo e distinto período no processo evolutivo que não é considerado humanista, talvez nem mesmo humano. O humano e o humanista deixam de ser um selo de glória e honra. Estamos começando a experimentar a condição pós-humana… e a partir da nova sensibilidade o passado humano pode ser considerado com o mesmo descontentamento com que os seres humanos contemplaram vermes ou répteis. (BUENO DE LA FUENTE, 2019, p. 27-28)

Mas, como não se trata de entrar em um debate com o transumanismo, mas de apontar o desafio que implica, o que deve ser retido aqui é que ele representa a construção de um contexto de lidar com o “material humano” no qual, de fato, a transmissão da memória da humanidade acumulada até agora pelo ser humano, como um “espírito encarnado”, perde seu significado em suas lutas milenares pelo aperfeiçoamento ético.

E ainda deveria ser considerado – como nota agravante do desafio que essa mudança de paradigma na concepção do ser humano coloca para a inculturação da fé cristã e do humanismo da interculturalidade – que palavras originais fundadoras como “encarnação”, “plenitude”, “gratuidade” dificilmente encontrariam condições de ressonância no “novo homem” projetado pelo transumanismo. Bem, vamos perguntar retoricamente, como poderia a mensagem dessas palavras fundadoras ressoar em um “humano” que se cria pelo poder de suas próprias biotecnologias?

 Em relação ao segundo exemplo, a mudança que vemos no novo “individualismo” que se expande com a cultura do capitalismo tecnocultural, destacamos, como no caso anterior, apenas o ponto que parece nuclear para entender o desafio atual de repensar o tema deste artigo: nas redes da cultura global atual marcada pelo capitalismo tecnocultural, se difundem formas e estilos de vida que apelam com insistência à criação de individualidades “únicas” e que nos convidam a adorar a “singularidade” de nossa própria identidade individual (RECKWITZ, 2018). Mas, se olharmos com cuidado, podemos perceber que este culto do indivíduo singular é acompanhado ao mesmo tempo, e não sem menos insistência, por “ofertas” no mercado que fingem nos fazer supor que o caminho para alcançar a singularidade não é o “caminho da interioridade”, mas o “caminho para o mercado”, quer dizer, o protagonismo como consumidor de “ofertas” que antecipam justamente os perfis individuais desejados. Se notará que a “astúcia” de tal argumento é fazer crer que as “ofertas” não oferecem qualquer produto, mas produtos que respondam antecipadamente a desejos singulares. Assim, no contexto dessa cultura global, projeta-se um novo tipo de “individualismo”, no sentido de que agora a comunicação com o outro indivíduo, considerado pela tradição humanista como condição do cultivo da verdadeira individualidade, passa para segundo plano, e seu lugar é ocupado pelo acordo unilateral e silencioso com a diversificada oferta de meios que prometem satisfazer os desejos de realização individual.

Essa cultura nos confrontaria, então, com o desafio de um individualismo de “singularidades” cujo interesse e preocupação central é a construção de uma imagem que torne visível sua “singularidade”. Um individualismo, portanto, carente de experiências de de convivência com o outro e para o qual, por isso, a “comunicação” é entendida como um processo de exposição de singularidades. É, em suma, um individualismo que leva à construção de vidas humanas que obscurece que a essência da vida é a coexistência e que, com isso, representa um sério obstáculo à ressonância, nas sociedades atuais, de outra das palavras fundadoras nas abordagens da interculturalidade e da inculturação: a palavra “comunidade”.

Que esta breve abordagem de duas mudanças exemplares em nosso mundo atual sirva como uma explicação de nossa proposta de que hoje em dia as abordagens da interculturalidade e da inculturação precisam, como dissemos, arriscar um novo começo; buscando métodos e práticas que resturem a continuidade no fluxo da “memória da humanidade” e assim possibilitem novamente a ressonância das palavras fundadoras de sua mensagem libertadora no contexto adverso da nova cultura global.

Raúl Fornet-Betancourt. Universidade de Bremen (Alemanha). Texto original Castellano. Enviado: 09/03/2021. Aprovado: 01/04/2021. Publicado: 24/12/2021.

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