O livro do Profeta Jonas

Sumário

Introdução

1 A pessoa do profeta

2 Posição no cânon bíblico

3 Dinâmica narrativa, estrutura e gênero literário

4 Pontos de teologia

5 Atualização da mensagem

Referências

Introdução

Quem se propõe a ler e a estudar o livro do profeta Jonas se depara, de imediato, com uma personagem emblemática e que, por suas ações e reações, encarna pessoalmente dois movimentos determinantes na história sociorreligiosa do antigo Israel em suas relações com YHWH e com as nações estrangeiras: a desobediência e a obediência à ordem de YHWH e as consequências que derivam dessas duas posturas tanto ad intra como ad extra dessa história.

A figura do profeta será apresentada a partir dos dados internos ao livro, dos elementos da tradição judaica e, em particular, dos traços da sua personalidade. Estes são depreendidos das ações assumidas e dos diálogos com os diversos personagens que interagem com Jonas.

A partir das ações de desobediência e obediência de Jonas, com base na ordem recebida, pode-se perceber o fluxo e a dinâmica da narrativa e assim propor uma possível estrutura do livro. Como uma novela dramática de cunho edificante, visto que o livro de Jonas está em prosa, com exceção do Salmo em Jn 2,3b-10, a trama se desenrola e envolve o ouvinte-leitor, encaminhando-o para as consequências e desfechos que resultam das ações assumidas pelo profeta Jonas diante de YHWH, dos marinheiros e dos ninivitas.

Graças a esse percurso, é possível evidenciar diferentes pontos de teologia, pelos quais as duas fases do posicionamento do profeta, em relação à ordem recebida, permitem dizer que o conhecimento de YHWH, e a expressão da sua vontade (teologia), se tornam determinantes para a compreensão do comportamento de Jonas (antropologia). Com base na percepção desse percurso e dos pontos de teologia, será oferecida uma possível atualização da mensagem.

1 A pessoa do profeta

No título do livro, encontra-se a seguinte informação: “E veio a palavra de YHWH a Jonas, filho de Amitai. O verbo hāyâ introduz uma narrativa e poderia ser entendido como “e aconteceu”, “e foi uma vez” (Js 1,1; Jz 1,1; 1Sm 1,1; 2Sm 1,1; Rt 1,1). Nessa narrativa, entra em cena Jonas e se oferece um parâmetro familiar de identificação: “filho de Amitai”. O nome do pai parece provir de ’emet que significa “fidelidade”, “verdade”, “firmeza” etc.

O nome Jonas (yônâ), além de ser usado como nome próprio, também é um substantivo comum, muito recorrente no Antigo Testamento, e significa “pomba” (Gn 8,8-12), um dos dois voláteis que, junto à rolinha, eram aceitos como oferta dos menos favorecidos para o sacrifício a YHWH (Lv 5,7.11; 12,6.8; 14,22; 15,14.29; Nm 6,10; Sl 68,14). Por detrás do uso patronímico aramaico baryônâ (“filho de Jonas”), como Jesus designou a Simão Pedro (Mt 16,17), parece ocultar-se uma forma abreviada para o nome João (Jo 21,15.16.17).

2Rs 14,23-29 apresenta um resumo da vida e do reinado de Jeroboão II, que reinou no Israel norte (783-743 aC), enquanto Amasias reinava em Judá (796-781 aC). No v. 25 há uma referência ao profeta Jonas, filho de Amitai, e também se diz que era de Gat-Ofer. Esse local fazia fronteira com o território de Zabulon e Neftali (Js 19,13), pouco distante, inclusive, de Nazaré. São Jerônimo, no comentário ao livro do profeta Jonas, disse que Gat-Ofer estava a 3km de Séforis, pela estrada que conduzia a Tiberíades. Nesse local (atual Meshhed), encontra-se um túmulo atribuído ao profeta Jonas.

A tradição judaica, que dá uma grande importância ao livro do profeta Jonas, durante os dias que precedem o yôm hakippurîm, afirma algo muito interessante. Associa o profeta Jonas ao filho da mulher sunamita, que foi concebido e ressuscitado pela intervenção direta do profeta Eliseu (2Rs 4,8-37; 8,1-6). Esse menino, mais tarde, veio a se tornar um dos “irmãos profetas”, seguidores de Eliseu, e por este foi encarregado de ungir Jeú (841-814 aC) como rei do Israel norte (2Rs 9,1-10).

Pelo relato de 2Rs 14,25 e de acordo com essa tradição judaica, o profeta Jonas teria vivido e atuado durante os séculos IX-VIII aC. Sabe-se que Nínive foi a capital do Império Assírio (745-612 aC), destruída por uma coalisão de povos babilônicos em 612 aC. O profeta Jonas, segundo essa disposição, teria proclamado a palavra de destruição sobre Nínive entre o início da ascensão do Império Assírio e antes da destruição de Samaria em 722/721 aC.

Nesse sentido, a tradição judaica buscou dar uma explicação para a tolerância que foi aplicada pelo exército assírio por ocasião da destruição do reino do norte (2Rs 17,5-6). Era de se esperar uma enorme e cruel matança, atitudes típicas e bárbaras dos soldados assírios. Em contrapartida, houve deportação e um enorme abrandamento da violência, inclusive com atenção à solicitação dos povos que foram deportados para Samaria, mantendo-se o culto a YHWH (2Rs 17,24-41). Buscou-se, assim, explicar a medida que o rei de Nínive determinou para todos os ninivitas, em particular a conversão do caminho perverso e da violência (Jn 3,8).

Da leitura atenta do livro, percebe-se que Jonas possuía traços bem peculiares e uma personalidade rebelde, indiferente, audaciosa, perspicaz e até colérica.

No primeiro capítulo, Jonas foi capaz de se rebelar ante a ordem recebida de YHWH, de se fechar à missão e de empreender uma grande aventura, entrando em uma embarcação rumo a Társis, a fim de se distanciar de Nínive, tomando o sentido oposto. Em meio à tempestade, mostrou-se indiferente (Jn 1,5-6), mas, uma vez descoberto como a causa dela, assumiu a sua origem em primeira pessoa: “Eu sou hebreu e a YHWH, que fez o mar e a terra seca, eu sou temente” (Jn 1,11 – referência à descendência abraâmica em Gn 14,13 que deriva de Eber, considerado o antepassado primevo dos hebreus – Gn 10,24-25; 11,14-17). Sabedor de que, enquanto não saísse da embarcação, a tempestade não cessaria a sua fúria, não hesitou em indicar a solução: “erguei-me, lançai-me ao mar e se acalmará sobre vós” (Jn 1,12). Diante de tamanha resolução, os marinheiros tudo fizeram para não incorrer em um assassinato e, ainda, tiveram a coragem de declarar que Jonas poderia ser sangue inocente (Jn 1,14).

No segundo capítulo, Jonas, mantido com vida dentro do ventre do grande peixe, elevou a YHWH a sua prece, demonstrando-se capaz de reconhecer os motivos que o levaram a tão grande adversidade. Usou, contudo, a “conversão” dos marinheiros como motivo de apelação, dando a entender que até a sua atrevida desobediência fora causadora de um benefício que, em última instância, acarretou o louvor a YHWH. Em sua expertise, que retrata o conhecimento de seu Deus, fez um voto, a fim de obter salvação ou uma segunda chance. Nota-se que esse ponto encontra relação com a morte e ressurreição do filho da sunamita por Eliseu.

No terceiro capítulo, Jonas resolveu obedecer à ordem divina já que recebeu a segunda chance. Mesmo assim, porém, não deixou de lado o seu temperamento e a sua antipatia pelos pagãos. Em seus lábios brotou uma palavra de ameaça que bem retratava o seu íntimo desejo: “ainda quarenta dias e Nínive será destruída” (Jn 3,5). Ao invés de percorrer toda a cidade, caminhou apenas um terço dela, assumindo uma nova postura de indiferença.

No quarto capítulo, Jonas revelou o seu lado colérico e insatisfeito por dois motivos. Em primeiro lugar, porque intuiu que YHWH usaria de misericórdia para com os ninivitas que fizeram penitência e resolveram se converter. Em segundo lugar, por causa do forte calor que se abateu sobre a sua cabeça. Apesar de todas as medidas tomadas por YHWH em seu favor, Jonas manteve-se irredutível no seu modo de pensar a justiça divina. Demonstrou-se mais condescendente com uma planta do que com os seres humanos incapazes de discernir entre o bem e o mal de suas ações. Resulta, enfim, uma questão em aberto: teria Jonas compreendido a vontade salvífica universal de YHWH pelo uso que fez da sua misericórdia?

Assim, é perceptível que o livro não contém a mensagem de um profeta, propriamente dito, mas pretende descrever, através da sua aventura pessoal no confronto com a vontade de YHWH, como a história não caminha sem um rumo ou desprovida de divinos objetivos. A última palavra não tem o ser humano, ainda que profeta, mas o próprio YHWH.

2 Posição no cânon bíblico

Na Bíblia hebraica, o livro de Jonas encontra-se entre Abdias e Miqueias. Já no cânon da Septuaginta, encontra-se entre Abdias e Naum, dentro de uma ordem dos livros que difere bastante da hebraica. São Jerônimo, na Vulgata, adotou a ordem do cânon hebraico.

Parece que a opção da Septuaginta buscou assegurar uma continuidade temática entre Jn 4,11 em Na 1,1 pela citação de Nínive. Contudo, tanto no cânon hebraico como no grego, o livro de Jonas aparece depois do livro de Abdias, assegurando uma palavra dirigida a outros povos. No caso de Abdias contra Edom e no caso de Jonas contra os ninivitas.

3 Dinâmica narrativa, estrutura e gênero literário

O livro possui quatro grandes cenas. Cada uma corresponde a um capítulo. Graças a isso, fica relativamente fácil identificar as seções do escrito e as suas respectivas cenas, que podem ser individuadas do seguinte modo:

Jn 1,1-3: os personagens são YHWH e Jonas. Os lugares são Jerusalém (suposto) e o porto de Jope. As cidades de Nínive e Társis são objetivos a serem alcançados. O primeiro, na ordem de YHWH, e o segundo, na intenção isolada e fugitiva de Jonas.

Jn 1,4-16: os personagens são YHWH, Jonas, os marinheiros e o capitão. Os lugares são a nau e o mar. Todavia, Jonas, ao apresentar o Deus ao qual serve, evoca “os céus” e “a terra seca”. Jerusalém continua figurada e subentendida no v. 16.

Jn 2,1-11: os personagens são YHWH, Jonas e o grande peixe. Os lugares são o mar (as profundidades e bases das montanhas eternas) e o ventre do grande peixe. Jerusalém continua subentendida na oração que Jonas elevou a YHWH (Jn 2,3b-10). Ante a decisão libertadora de YHWH, do mar se passa para a terra seca (Jn 2,11).

Jn 3,1-10: os personagens são YHWH, Jonas, os ninivitas, o rei e os animais. O lugar é Nínive, mas deve-se dar destaque ao palácio e aos pastos dos animais.

Jn 4,1-11: os personagens são YHWH, Jonas, o rícino e o verme. Já os ninivitas e os animais ficam em segundo plano. O lugar citado é “o oriente da cidade”. Jerusalém fica subentendida em Jn 4,2, que evoca as qualidades de YHWH.

Tendo individuado as cenas e o seu conteúdo, nota-se que, de fato, a estrutura corresponde aos quatro capítulos do escrito em dois blocos que poderiam ser colocados a partir dos dois movimentos: antes da “obediência” e depois da “obediência” de Jonas à ordem de YHWH.

Primeira parte: antes da obediência à primeira instrução e suas consequências (Jn 1,1–2,11).

Segunda parte: depois da obediência à segunda instrução e suas consequências (Jn 3,1–4,10).

Esses dois blocos estão assegurados pela fórmula: “e veio a palavra de YHWH” (Jn 1,1; 3,1); e pelo respectivo objetivo: “levanta-te, vá a Nínive, a grande cidade e clama…” (Jn 1,2; 3,2). As cenas, com os seus respectivos personagens e locais, são admitidos como os limites para as duas grandes seções individuadas. Mandirola faz um esquema sugestivo (MANDIROLA, 1999, p. 16):

1,1-3

Deus e Jonas:

Deus chama,

Jonas foge

3,1-3

Deus e Jonas:

Deus chama,

Jonas obedece

1,4-16

Deus e os pagãos:

a tempestade sobre a naus

3,4-10

Deus e os pagãos:

a pregação de Jonas em Nínive

2,1-11

Deus e Jonas:

salvação e oração

4,1-11

Deus e Jonas:

lição sobre o amor de Deus

Portanto, dependendo de como os exegetas se posicionam diante do livro do profeta Jonas, é possível encontrar diversos gêneros literários propostos que variam entre “mito e história”, entre “legenda e midrash”, entre “novela e narrativa profético-teológica”. Contudo, independentemente da posição assumida pelo exegeta, pode-se afirmar que o autor tinha uma sólida formação e estava atento às posturas teológicas da sua época em relação aos pagãos.

A favor dessa afirmação está o uso apropriado de certas tradições e escritos proféticos já existentes, como é o caso de Jeremias que foi chamado para levar uma mensagem às nações (Jr 1,10 – Jn 1,2; 3,1-2), pautada na necessidade da conversão (Jr 18,11. 23,22; 25,5; 26,3; 35,15; 36,3.7 – Jn 3,8). Nesse sentido, a posição do rei de Nínive, que se empenha para afastar a ira divina (Jn 3,9), é algo relevante na profecia de Jeremias (Jr 4,8; 23,20; 30,24).

Ao lado de Jeremias, também é possível citar Ezequiel e seus oráculos contra Tiro e Sidônia (Ez 26,1–28,26), pois revelam o sentido de uma nação que, apesar de se julgar forte por suas habilidades marítimas, pela beleza perfeita de seus navios, os teve, porém, engolidos pelas águas (Ez 27,3.26-27 – cf. Jn 1,4-16).

A possibilidade de YHWH voltar atrás no seu plano punitivo (teshuvá), base para a conversão humana, é também comum a Jeremias e a Jonas (Jr 18,8; 26,3.13.19; 42,10 – Jn 3,10; 4,10). Até mesmo o desejo de morrer de Jonas (Jn 4,3.8) aparece subentendido em Jr 15,10; 20,14-18. Tudo isso favorece a partilha da sensibilidade pelo tema da misericórdia como sinal da identidade de YHWH, como em Jl 2,14 e Jn 4,2 com base em Ex 34,6-7, justificando e enfatizando, como em Jl 2,13 e Jn 3,10, a mudança de atitude em YHWH.

Enfim, o uso que Mt 12,38-41 e Lc 11,29-32 fizeram do livro de Jonas está centrado no olhar e na compreensão cristã do episódio do grande peixe para atestar a possibilidade da ressurreição de Jesus, após três dias no sepulcro, bem como no fato de que a geração dos ninivitas se demonstrou mais aberta para a conversão do que os interlocutores de Jesus.

Todavia, para além desse uso limitado no NT, é possível afirmar que o livro do profeta Jonas, ao lado dos cantos do Servo Sofredor, presentes em Isaías, encerra uma eficaz doutrina sobre o amor de YHWH por todos os seres humanos que, se não encontra explícita expressão no Antigo Testamento, é o principal elemento da pregação e das ações salvífico-libertadoras operadas por Jesus de Nazaré no confronto de judeus e de pagãos. É o olhar aberto e assumido pessoalmente pelo apóstolo Paulo no tocante à evangelização dos gentios.

4 Pontos de teologia

Quem é Deus no livro de Jonas?

Essa pergunta básica permite definir e delinear alguns traços e elementos característicos de YHWH que dirige a palavra a Jonas, se faz próximo e está por detrás dos acontecimentos. Nesse sentido, o uso do Tetragrama Sagrado ficou reservado para as falas que relacionam o Deus de Israel com o seu profeta. Em contrapartida, nos lábios dos marinheiros e dos ninivitas foi usado o nome comum: ’Elohîm (Deus).

O ponto central de toda a narrativa recai sobre o conhecimento e a relação entre a justiça e a misericórdia divinas. Sobre essa relação pode-se aproximar o livro de Jonas a Ex 34,6-7, como se verifica em Jn 3,9. Como Moisés, o profeta mais íntimo de YHWH (Dt 34,10-12), o profeta Jonas também teve a oportunidade de conhecer YHWH, experimentando o modo como conduz e determina não apenas os rumos da história do seu povo, mas toda a história universal. A última fala do livro pertence a YHWH e traz em questão o tema da misericórdia relacionada à ignorância ou à incapacidade humana para discernir entre o bem e o mal.

Nada escapa a YHWH, que faz surgir a tempestade, bem como a faz cessar, porque é o Deus que fez o mar e a terra firme. A sua onipotência se verifica tanto no agir visível como no invisível, representado no fato de um grande peixe engolir, preservar Jonas com vida e de cuspi-lo novamente em terra firme. Ao lado do grande peixe (Jn 2,1-2.11), em todo o Antigo Testamento, somente a serpente do Éden (Gn 3,1-19) e a jumenta de Balaão (Nm 22,22-35) atuam como protagonistas animados ao lado do ser humano e servem aos desígnios divinos.

YHWH, por ser o Criador, fez surgir e desaparecer o pé de rícino, através de um verme, a fim de testar a sensibilidade de Jonas em relação ao ser humano, ainda que visto como inimigo. Ao lado do reino animal, Jn 4,6-10 mostra a atuação do reino vegetal na vida do profeta. Sobre isso, ainda, o decreto do rei em Jn 3,7 é digno de nota, pois os animais, ao invés de serem sacrificados, para aplacar a ira divina, foram associados à penitência dos ninivitas.

Quem é o ser humano?

Para responder a esta pergunta bastaria colocar em confronto a pessoa de Jonas e os pagãos. Salta aos olhos, por um lado, o fechamento do profeta aos pagãos e, por outro lado, a abertura dos pagãos a YHWH diante da fala e das ações que envolvem Jonas. Enquanto o ouvinte-leitor esperaria do profeta um comportamento mais condizente com o conhecimento que tem de YHWH, desponta que os pagãos são os que mais facilmente se deixam influenciar pelos acontecimentos pontuais e anunciados pelo profeta. Nota-se, então, pela dinâmica do livro, que YHWH é mais bem acolhido, ou melhor, temido e respeitado pelos de fora do que por aquele que representa seu enviado a pronunciar uma palavra de juízo diante dos acontecimentos.

Subjaz ao livro de Jonas uma profunda teologia da salvação que coloca em xeque o fechamento aos não judeus. Graças à desobediência de Jonas, que decidiu sair da presença de YHWH, aconteceu a conversão dos marinheiros diante da possibilidade da morte causada pela forte tempestade. Graças à obediência de Jonas, que anunciou a destruição de Nínive, isto é, por uma breve palavra causou uma tempestade dentro da cidade, aconteceu a conversão dos ninivitas. Em ambos os casos está latente o interesse de YHWH pela salvação dos pagãos.

Em contrapartida, a salvação de Jonas da morte por afogamento, através de um grande peixe (elemento marcadamente mitológico), e a aflição do profeta, que pediu a sua morte por ver a misericórdia de YHWH sendo dada aos ninivitas, se contrapõem ao que sentiu pela morte do rícino que lhe proporcionou um pouco de sombra e frescor sobre a cabeça. Tal fato acentua a contradição do profeta, que representa uma concepção salvífica de matriz nacionalista.

Portanto, para uma abertura e sensível compreensão do livro do profeta Jonas, é preciso levar em conta a pluralidade dos temas teológicos subjacentes ao escrito. O interesse pelas celebrações cultuais de tipo penitencial e pelas tradições proféticas em circulação enfatiza que o valor da revelação, pautada em uma profecia de castigo, permite compreender que a salvação do povo eleito não significa a condenação dos demais povos. A teologia da graça, presente no livro, aponta para o fato de que a conversão dos marinheiros e dos ninivitas não foi um mero capricho divino, mas passou pelo comprometimento e atuação do profeta, ainda que este necessite ser convencido de que a vontade de YHWH está pautada na sua onisciência.

O profeta Jonas não é um egocêntrico, mas representa a postura dos que compreendem a realidade salvífica de forma estreita e ainda muito voltada para si mesma. Por isso, a última fala do livro está em aberto, desejosa de encontrar a resposta favorável em cada ouvinte-leitor.

5 Atualização da mensagem

Pensar a fé e seus desdobramentos, a partir das próprias convicções religiosas, continua sendo um desafio a ser superado não apenas pelas diversas expressões religiosas presentes no mundo, mas por cada pessoa que se considera fiel à fé que professa e à doutrina que segue.

Nesse sentido, pode-se dizer que a aflição de Jonas foi menor em relação à misericórdia de YHWH do que em relação à capacidade de conversão que encontrou nos marinheiros e nos ninivitas, apesar desses serem vistos como malvados, violentos e cruéis. A aflição de Jonas atesta, também, o ímpeto da sua personalidade no confronto do seu povo, que deixa de crescer porque se fecha aos pagãos e não lhes concede compaixão a exemplo do seu Deus.

Ler e estudar o livro do profeta Jonas são apelos para a capacidade que cada fiel deve ter para olhar dentro de si mesmo, a fim de reconhecer que as próprias limitações e desilusões religiosas podem ser um excelente caminho de conversão pessoal e eclesial.

Quando se assume uma postura totalitária, pior ainda se essa é de matriz religiosa, a gravidade dos erros é aumentada e extremamente potencializada. Basta pensar no rei Davi, que foi dura e sabiamente reprovado pelo profeta Natã através de uma simples parábola (2Sm 12,1-15), ou no ensinamento sobre o amor ao próximo na parábola do bom samaritano, contada por Jesus (Lc 10,30-35), para se perceber que o ser humano é capaz de demonstrar o pior de si quando a religião se torna mais importante que as obras da fé pela caridade.

Então, há no livro de Jonas um apelo didático à conversão pela aceitação do amor de YHWH por cada ser humano. Por isso, o livro termina sem uma resposta para a questão deixada por YHWH a Jonas. O auspício é que cada ouvinte-leitor se deixe conduzir pela provocação do autor que protesta contra uma religiosidade augusta, mas exclusivista. Além disso, deixa claro que é preciso abandonar a comodidade religiosa e assumir uma postura mais aberta e missionária, sem pensar ou taxar quem é diferente como inimigo, ainda que considerado cruel. Se fosse assim, o pobre Ananias teria razão e Saulo não teria sido batizado (At 9,10-19).

Que a onipotente misericórdia de Deus, sobre indivíduos, povos e nações, do Oriente ao Ocidente, encontre, em cada um de nós, o espaço livre para o amor construir as razões que mostram o real sentido da obediência a Deus e à sua vontade: a vida que supera a morte. Esta é a grande lição do livro do profeta Jonas.

Leonardo Agostini Fernandes. PUC-Rio). Texto original em português. Enviado: 02/02/2021. Aprovado: 11/02/2021. Publicado: 24/12/2021.

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