Sumário
Introdução
1 A expressão leitura canônica
2 O método histórico-crítico
3 Breve panorâmica histórica da leitura canônica
4 Verbum Domini, Bento XVI e a leitura canônica
5 A perspectiva canônica e o diálogo ecumênico
6 Questionamentos e críticas
Conclusão
Introdução
A leitura canônica busca interpretar a Sagrada Escritura qual ponte entre a exegese bíblica e o cânon dos livros inspirados, tendo como pano de fundo não somente o texto em seu contexto imediato, mas no contexto amplo em que está inserido como, por exemplo, profetas ou escritos paulinos ou, ainda, em seu contexto canônico de Aliança, Antigo ou Novo Testamento e, por fim, levando em conta toda a Bíblia, como obra do Espírito Santo. Ela busca interpretar um determinado texto bíblico à luz do Cânon das Escrituras, isto é, da Bíblia recebida como norma de fé pela comunidade de fiéis. A partir disso, procura situar cada texto no interior do único desígnio salvífico de Deus, objetivando chegar a uma atualização da Escritura para os dias atuais (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 1993, p. 1326). Sob esse prisma, está em consonância com o princípio do ensinamento agostiniano, segundo o qual “uma só é a palavra de Deus que se estende por todas as Escrituras; […] um só Verbo, que sendo no princípio Deus junto de Deus, lá não consta de sílabas, porque está fora do tempo” (SANTO AGOSTINHO, 1998, p. 89).
Assim, a leitura canônica surge, de alguma forma, como um retorno às fontes patrísticas de hermenêutica bíblica, atenta à unidade da Sagrada Escritura (ELOY E SILVA, 2010, p. 25), consciente de que o livro das Escrituras é recebido das mãos da Igreja e interpretado no seio da fé eclesial (GARGANO, 2000, p. 191).
Embora alguns autores a ela se refiram como “exegese canônica”, não adotaremos essa expressão aqui. Por se tratar mais especificamente de uma aproximação ou uma abordagem ao texto e, portanto, enquadrar-se no horizonte mais hermenêutico que exegético, preferimos utilizar a expressão “leitura canônica”.
1 A expressão “leitura canônica”
O termo “cânon” pode significar tanto “norma, ideal” quanto “lista, catálogo ou medida fixa”. Aparece como sinônimo de “regra da fé cristã” em Clemente de Alexandria, em sua primeira carta (1Clem 7,2), na obra Stromata (4,15,98; 6,15,124) e em Ireneu de Lion, em sua obra Adversus Haereses (III,2,1; 11,1). Para indicar os livros bíblicos, o termo aparece pela primeira vez em Atanásio, que chama de livros apócrifos os que ele não considera como pertencentes ao “cânon bíblico”.
A expressão “leitura canônica”, adotada no título deste verbete, é uma tentativa de escolher uma palavra neutra, por entender que toda aproximação ao texto é um ato de leitura, pois a primeira dificuldade, quando se trata de aproximação metodológica de tipo canônico ao texto bíblico, é a falta de consenso entre os estudiosos do assunto (ELOY E SILVA, 2014, p. 111).
Enquanto J. Sanders usa a expressão “criticismo canônico” (canonical criticism), B. Childs prefere a expressão “abordagem canônica” (canonical approach). Ambos convergem, no entanto, na convicção de que o método histórico-crítico revelou-se inapropriado para interpretar o texto bíblico no que diz respeito à compreensão de seu horizonte teológico e de sua atualização ao leitor que, em todas as épocas, busca no texto bíblico a inspiração e a compreensão para sua atuação diante de questões da existência. Alguns autores optam por usar “criticismo canônico” quando falam da proposta de Childs, mesmo sabendo que o autor desaprovava tal expressão (PARSONS, 1991, p. 255 et seq.).
A ideia de um cânon bíblico inclui dois ingredientes integrais, conforme a ênfase que se dá: a forma literária final da Bíblia (norma normata) ou a função religiosa em desenvolvimento (norma normans).
Childs, com sua abordagem canônica, fez uma opção hermenêutica pela Bíblia em sua forma literária final (norma normata), com ênfase na compreensão de que o texto é um testemunho normativo de Jesus Cristo. Nesse sentido, o papel da Sagrada Escritura seria o de “regra de fé” que testemunha Jesus Cristo, em cuja encarnação encontra-se a norma para a regra de fé da comunidade. Segundo ele, a abordagem canônica é pouco interessada na reconstrução histórica ou linguística das intenções dos estágios pré-canônicos da formação de uma determinada composição ou coleção textual e, por isso, não possui interesse de tipo diacrônico. Justamente por tal motivo, mesmo cônscio de que há um processo canônico, i.e., um processo dinâmico de formação das Escrituras Sagradas, Childs dedica-se particularmente à dimensão sincrônica do período em que as Escrituras cristãs chegaram à sua forma literária final. A forma literária final selecionada, moldada e definida pela comunidade cristã como escritura normativa, assim como tornou-se referência para a mesma comunidade no passado, pode exercer o mesmo papel no presente.
2 O método histórico-crítico
Como dissemos acima, a leitura canônica surge como uma tentativa de complementar os resultados obtidos pelo método histórico-crítico. Enquanto perspectiva eminentemente diacrônica, o método histórico-crítico entende o texto bíblico como coleção de textos antigos que, postos em conjunto, mesmo sendo unidades de origem distintas, formam o corpo da Escritura, fruto de um complexo processo. É chamado de histórico porque se baseia nas fontes históricas dos textos, entendendo-os como uma realidade antiga, embora não estagnada, por terem passado por estágios de evolução histórica. É crítico por ser uma reação crítica à interpretação que o antecedeu, particularmente, a de tipo alegórico, predominante em época medieval, e por arvorar uma perspectiva de leitura de cunho unicamente científico.
A partir do que se pode sintetizar como resultado da exegese desenvolvida no século XIX e primeira metade do século XX, o método histórico-crítico leva em conta os seguintes passos ao estudar um texto antigo: a) crítica textual; b) análise linguística (delimitação, fonética, morfologia, sintaxe, semântica); c) crítica das fontes; d) crítica dos gêneros literários; e) crítica das tradições; f) crítica histórica da redação (ZIMMERMANN, 1982, p. 9-15).
A crítica textual parte do pressuposto de que nenhum texto bíblico preservou o texto original. Fundamentada nos vários manuscritos, seguindo critérios científicos, a crítica textual tenta aproximar-se o quanto possível do texto considerado original.
Após estabelecer o texto a ser estudado, em base aos critérios da crítica textual, o exegeta examina o texto partindo de seu elemento unitário que é o léxico, revisitando-o em colóquio com as unidades sintáticas simples e complexas em busca de identificar fragmentos ou junções que possibilitem acesso à origem histórica do elemento constituinte do texto. Realizando tais passos, por exemplo, é que Hermann Gunkel cunhou a expressão Sitz im Leben e Julius Wellhausen reconstruiu as camadas do Pentateuco.
A crítica das fontes busca separar, em um texto, as fontes antigas consideradas originárias daquelas entendidas como redacionais. Um exemplo desse trabalho, no Novo Testamento, é a Questão Sinóptica e a elaboração na hipótese da Fonte dos logia.
A crítica dos gêneros literários, mesclada por alguns autores com a crítica da forma, busca identificar o tipo de texto em análise, associando-o a categorias que possuem uma forma literária semelhante. A essa etapa pertence a identificação de um texto como parábola, oração, milagre, exorcismo etc.
A crítica das tradições situa os textos em correntes, buscando determinar e descrever cada etapa de uma tradição em seu processo de desenvolvimento.
A crítica da redação parte do pressuposto de que um texto não unitário tenha passado por um processo de crescimento. Não somente indica a presença de vários extratos no texto, mas busca identificar a relação entre eles.
Nota-se que o método histórico-crítico configura-se como um
método analítico que se aproxima sistematicamente da Sagrada Escritura como se aproximaria de qualquer outro texto antigo. Trata-se, também, de um método exigente e que requer grande competência filológica e histórica, numa análise em diálogo constante com outras línguas antigas e até mesmo com a arqueologia. (ELOY E SILVA, 2010, p. 18)
Este método recebeu oposição da parte de alguns estudiosos por se ocupar, demasiadamente com o aspecto passado do texto, tornando-se por demais filológico-arqueológico sem relação com o presente da comunidade de fé que se aproxima do texto bíblico para dele nutrir-se no hoje de sua história.
3 Breve Panorâmica histórica da leitura canônica
Em 1958, Childs publica o artigo Jonah: A Study in Old Testament Hermeneutics no qual ele reconhece o valor do método histórico-crítico, mas reconhece que se trata de um método inadequado para a interpretação do testemunho bíblico teológico do livro de Jonas, por não se aproximar ao texto com “os olhos da fé” (XUN, 2010, p. 20). Em 1964, publicou outro artigo com o título Interpretation in Faith: The Theological Responsibility of an OT Commentary no qual se encontram as principais ideias que haveriam de ser aprofundadas posteriormente, tais como as fragilidades do método histórico-crítico para a compreensão do Antigo Testamento e a necessidade de uma leitura do Novo Testamento à luz do Antigo. Entre elas, podemos elencar: a análise teológica de um texto bíblico deve pressupor a fé. Critica, assim, o estudo racional do texto bíblico como ato primeiro para depois aplicar a ele a dimensão da fé (CHILDS, 1964, p. 438); defende que não é objetivo da exegese identificar o autor dos textos ou sua data e local de formação, mas identificar a intenção do autor divino que inspirou os textos (CHILDS, 1964, p. 441-449). A compreensão de que todos os livros da bíblia possuem um autor divino é que lhes dá unidade. Historicamente esses livros formam um todo para a comunidade de fé, pois assim ela os assume. Tal unidade não contradiz o fato de que cada livro possui sua singularidade e sua especificidade.
No entanto, em 1970, com a publicação da obra Biblical Theology in Crisis, Childs propõe unir a Bíblia à teologia como caminho para o futuro da teologia bíblica. Nessa obra, ele cunhou o termo “abordagem canônica” (canonical approach) e pôs o acento na forma final do texto, aceito por ele como autoridade para a comunidade de fé, o que se tornou o elemento mais emblemático de sua pesquisa acerca do cânon. Childs entende que a relação entre o que ele chama de contexto histórico e contexto canônico é semelhante à relação entre a parte (a análise) e o todo (a síntese). Os métodos histórico-críticos são capazes da análise, mas não o são da síntese, tarefa que caberia à “abordagem canônica”.
Childs baseia sua proposta metodológica no conceito de cânon bíblico, elemento considerado fundamental para a compreensão da unidade da bíblia e, portanto, para a elaboração de uma possível teologia bíblica. Diante da autoridade teológica do cânon, cabe ao trabalho exegético encontrar a intenção canônica presente nas páginas da Sagrada Escritura, enquanto “cânon cristão”, incluindo o Antigo e o Novo Testamentos. Nessa perspectiva, ele propõe dispor os dois testamentos em diálogo e como testemunha unificada na interpretação de uma passagem específica em consonância com o todo da revelação expressa na totalidade da Escritura. Em outras palavras, além de o trabalho exegético relacionar um texto bíblico à sua situação histórica, ele deveria, ainda, explorar a relação entre o texto individual e seu contexto canônico completo. Assim, deve-se levar em conta a realidade teológica do cânon, a regula fidei, a exegese pré-crítica (a Tradição) e a interpretação judaica do texto (CHILDS, 1970, p. 99-107).
Childs defende que, diversamente de outras tentativas que buscaram construir uma teologia bíblica baseada em temas transversais supostamente presentes no corpus biblicum como, por exemplo, o conceito “Aliança”, defendido por Walter Eichrodt; o conceito bíblico de “Tempo”, defendido por Oscar Cullman ou, ainda, o conceito “História da Salvação”, defendido por Gerhard von Rad, é preciso basear-se não em “temas”, mas na aceitação do cânon como um princípio hermenêutico formal. Para tal, diversamente dos métodos histórico-críticos que se baseiam na individuação dos estágios precedentes que compuseram o desenvolvimento textual da Escritura, Childs propõe estudar o texto a partir da forma final (ou canônica) em que se encontra (CHILDS, 1979, p. 73). Sob esse aspecto, o professor de Yale considera o termo “canônico”, por um lado, como sinônimo de forma final do texto e, por outro, como sinônimo de “forma normativa para os cristãos”.
Em 1974, Childs publicou um comentário teológico ao livro do Êxodo (The Book of Exodus: A Critical, Theological Commentary), em cuja obra põe em prática elementos de sua proposta de abordagem canônica a um texto bíblico. Para cada parte do texto, ele baseia o comentário em seis seções: 1. Tradução, notas textuais e filológicas; 2. História das Fontes, das formas e das tradições; 3. Contexto do Antigo Testamento; 4. Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento; 5. História da exegese; 6. Reflexão teológica. Particularmente, a seção “Contexto do Antigo Testamento” é vista por Childs como elemento nuclear da obra (CHILDS, 1974, p. XIV).
Em 1979, Childs publica Introduction to The Old Testament as Scripture e, na década sucessiva, dando prosseguimento à sua pesquisa, em 1984, ele publica The New Testament as Canon: An Introduction. Nessas duas introduções, ele apresenta leituras canônicas dos livros individuais da Bíblia, buscando apontar as questões e os problemas segundo a perspectiva diacrônica dos métodos histórico-críticos para, depois, tratar da forma final de cada livro considerado em seus aspectos literário e teológico como um todo.
Em 1986, ele publica Old Testament in a Canonical Context, obra baseada na leitura intertextual das três partes da Bíblia Hebraica, tendo como pano de fundo o princípio do todo veterotestamentário como norma, revelação.
Foi, no entanto, em 1992, com a publicação de Biblical Theology of the Old and New Testaments: Theological Reflection on the Christian Bible que Childs deu um passo significativo. Nessa obra, indica a problemática de a Bíblia Cristã possuir várias formas canônicas e o fato de a Igreja primitiva, ao usar a Septuaginta, ter uma concepção canônica diversa da Bíblia Hebraica não somente na forma como normatiza a lista dos livros, mas também na forma como os interpreta ao usá-los no Novo Testamento. Propõe que, para evitar que a teologia bíblica seja entendida somente como teologia do Novo Testamento, é preciso entender que também o Antigo Testamento é testemunha de Jesus Cristo, não no sentido de uma indicação explícita, mas no sentido de não poder ser compreendido sem o Novo Testamento, no qual a pessoa de Cristo ocupa o foco central. Significativo, ainda, nessa obra, seu último capítulo, no qual o autor demonstra como é possível partir da exegese bíblica para chegar à teologia.
No início do novo milênio, Childs dedica duas obras ao profeta Isaías: Isaiah, A Commentary (2001) e The Struggle to Understand Isaiah as Christian Scripture (2004). Publica, ainda, Biblical Theology: A Proposal (2002) e deixa como última obra, publicada um ano após sua morte: The Church’s Guide for Reading Paul: The Canonical Shaping of the Pauline Corpus (2008). Childs falece, aos 84 anos, em 23 de junho de 2007.
Entre os pontos positivos da abordagem canônica, os autores reconhecem que se trata de uma contribuição significativa para corrigir as lacunas do método histórico-crítico que fragmenta excessivamente o texto ao analisá-lo, para superar o hiato entre exegese e atualização pastoral da Bíblia na vida da Igreja e para restituir o valor teológico aos estudos do texto bíblico.
Paralelamente a Childs, outro professor norte americano, da escola teológica de Claremont, Califórnia, James A. Sanders, ao estudar manuscritos da gruta 11, em suas obras The Psalms Scroll of Qumrân Cave 11 (11QPsa), de 1965, e Cave 11 Surprises and the Question of Canon, de 1969, nota a diferença entre salmos em Qumran não somente no quesito da ordem, que diverge do texto massorético, mas também identifica vários salmos presentes nos Manuscritos do Mar Morto e não constantes na Bíblia Hebraica. Conclui que o Saltério encontrado em Qumran possui tanto um caráter estável por conter um texto protomassorético, quanto um caráter instável por conter uma versão do Saltério não encontrada na Bíblia Hebraica.
Ele publica, no ano de 1972, sua obra Torah and Canon. Nessa obra, Sanders cunha a expressão canon criticism, expressão alterada por ele em 1984 para canonical criticism na obra Canon and Community: A Guide to Canonical Criticism com o objetivo de ler um texto a partir do cânon, mas não do cânon em sua forma final, como defendia Childs, mas como processo por meio do qual a comunidade chegou à forma considerada por ela como canonicamente significativa. Enquanto Childs parte do “cânon protestante”, levando em consideração ambos os testamentos, tendo como base o texto massorético para o Antigo Testamento, Sanders leva em conta outros “cânones” como, por exemplo, além do texto massorético que representa a Tanak judaica, os vários outros “cânones” presentes no cristianismo, tais como o protestante, o católico, o ortodoxo oriental etc.
Sanders interessa-se, assim, pela dimensão hermenêutica da composição inicial do texto canônico, bem como de seu desenvolvimento. Ele tira a atenção da Bíblia como norma normata, transferindo-a para compreensão de norma normans, ou seja, muda o foco da forma literária para a sua função eclesial. Dessa forma, o criticismo canônico, diversamente da abordagem canônica, concentra-se em como um texto bíblico torna-se canônico no ato de interpretação, isto é, como um texto torna-se meio para ir ao encontro da vida dos fiéis, confortando-os, impulsionando-os a alguma decisão ou até incomodando-os, dependendo da situação vital da comunidade eclesial.
4 Verbum Domini, Bento XVI e a leitura canônica
A temática da leitura canônica da Escritura foi retomada durante um evento significativo da Igreja, quando no dia 14 de outubro de 2008, durante a 14ª congregação geral da XII Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, Bento XVI tomou a palavra, demonstrando sua preocupação quanto ao tema “unidade entre exegese e teologia”. Em sua fala, recorda a necessidade do recurso ao método histórico-crítico, baseado no fato de que o acontecimento histórico é uma dimensão constitutiva da fé cristã, pois ela não é mitologia, mas história verdadeira. Todavia, essa história possui uma dimensão vinculada à ação divina e para tal necessita de uma abordagem metodológica que a compreenda em sua dimensão pneumatológica. Indica, então, como via de interpretação do texto bíblico, levar em conta a unidade de toda a Escritura, o que ele chama de “exegese canônica” sem se esquecer da Tradição viva de toda a Igreja e da analogia fidei. Conclui recordando que somente quando se observam os dois níveis, o histórico-crítico e o teológico, pode-se falar de uma exegese adequada da Sagrada Escritura. Recorda particularmente que, enquanto o primeiro nível recebeu adequada atenção, não se pode dizer o mesmo do segundo (BENTO XVI, 2008).
A inquietação de Bento XVI já havia sido manifestada quando ele era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, durante a elaboração do documento Bíblia e Cristologia, com as menções ao “cânon da Escritura” como base (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 1984, n. 912) e, na mesma linha, e mais explícita ainda, na segunda parte, em referência a “O testemunho global da Sagrada Escritura sobre Cristo” (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 1984, n. 991).
Posteriormente, quando em 1988, em Nova Iorque, proferiu sua Erasmus Lecture na Igreja Luterana de Saint Peter, ele se referiu ao método histórico-crítico como dissecador do sentido do texto bíblico e responsável por realizar uma “autópsia histórica” do texto, expressão antes utilizada por Kästner (RATZINGER, 1996, p. 114).
Pouco foi produzido, nesse campo, após o apelo de Bento XVI. Talvez porque a comunidade acadêmica ainda tenha suas reticências à leitura canônica por tê-la analisado de forma isolada e exclusiva e não em complementaridade com o método-histórico crítico, como proposto pelo pontífice (ELOY E SILVA, 2010, p. 24).
5 A perspectiva canônica e o diálogo ecumênico
Particularmente Childs, com suas publicações, abriu perspectivas significativas para o diálogo ecumênico por meio da abordagem canônica. Sua compreensão da “regra do Cânon” é muito próxima da regula fidei dos Padres da Igreja, como ele próprio reconhece (CHILDS, 1984a, p. 67). Com isso, entende que o cânon possui autoridade teológica para indicar a direção correta para a justa hermenêutica dos textos bíblicos.
Sob a mesma perspectiva, Childs é, ainda, muito próximo do espírito presente no que ensina a Dei Verbum (DV) 21 e 12. DV 21 recorda que a Igreja sempre considerou, junto com a sagrada Tradição, a Sagrada Escritura como regra suprema da própria fé. No entanto, o ponto de contato mais notável na inspiração de Childs em desenvolver uma teologia bíblica a partir do cânon encontra ponto de contato com DV 12.
O famoso e sempre citado texto do documento conciliar recorda a necessidade de se ler a Sagrada Escritura e interpretá-la com o mesmo espírito com que foi escrita, levando em conta o contexto e a unidade de toda a Escritura, com especial atenção à Tradição viva de toda a Igreja e à analogia da fé.
Os temas da unidade da Sagrada Escritura e da Tradição viva da Igreja descritos na DV são, também, temas desenvolvidos nos escritos de Childs, chamados por ele de unidade da bíblia e contexto da comunidade de fé (CHILDS, 1964, p. 438). Com efeito, ele afirma que Escritura e Tradição devem ser tratadas em conjunto: “Scripture and tradition belong together” (CHILDS, 1978, p. 53). Dirá que, sem a compreensão da Tradição de fé da comunidade, falta o contexto adequado para a realização da exegese que deseja alcançar o sentido teológico do texto. Por isso, defende que o cânon, de um lado, é a base sobre a qual é possível construir a teologia de toda a Escritura e a aceitação da unidade da Bíblia, e por outro, é a chave para a realização da desejada leitura do texto em seu aspecto canônico. Enfim, recorda, ao tratar da unidade da Escritura: ao Antigo Testamento compreende-se em sua relação com o Novo. O Novo, todavia, torna-se incompreensível sem o Antigo (CHILDS, 1992, p. 17).
Embora Childs tenha esses pontos de contato com o pensamento católico expresso na DV, é preciso destacar que sua compreensão de cânon exclui os livros deuterocanônicos e tende a manter o princípio hermenêutico da Sola Scriptura o que é, muitas vezes, visto pelos estudiosos como falta de coerência no interior de sua abordagem metodológica (SANECKI, 2004, p. 368-380). Isso, no entanto, não faz com que aluda, por exemplo, aos deuterocanônicos, como o faz com os livros de Baruc e de Sirácida (CHILDS, 1992, p. 743), ou expresse o ensejo de levar em conta o que chama de larger canon ao se referir à inclusão dos deuterocanônicos (CHILDS, 1979, p. 666).
Ele mesmo dirá que a insistência da Igreja Católica no papel decisivo da Tradição na formação da Bíblia Cristã foi um correto reconhecimento do papel do uso da Escritura pela comunidade tanto na proclamação da Palavra quanto na celebração litúrgica. Dessa forma, por meio da liturgia, a Igreja Católica recebeu a mensagem bíblica, valorizou-a e a transmitiu.
A regra de fé da Igreja, mais tarde expressa em credos, não buscou impor uma tradição eclesiástica estranha sobre as Escrituras, mas buscou preservar a unidade entre Palavra e Tradição como o Espírito continuamente avivou a verdade do evangelho a partir do qual a Igreja viveu. (CHILDS, 1992, p. 66-67. A tradução é nossa.)
E concluirá que parte da tarefa de uma teologia bíblica, cuja base é o horizonte canônico, é a de buscar conjugar os polos dialéticos, historicamente representados pelo catolicismo e pelo protestantismo (CHILDS, 1992, p. 67).
6 Questionamentos e críticas
Dentre as muitas dificuldades encontradas por aqueles que estudaram a leitura canônica está a de pensar que somente sob a perspectiva suscitada por Childs seja possível ler a Bíblia enquanto Sagrada Escritura em seu aspecto teológico. Entre seus opositores fulgura o posicionamento de que ele buscou uma simplificação e uma harmonização artificial da Escritura, escolheu o texto massorético e a Bíblia Hebraica como o cânon mais adequado para se fazer exegese cristã do Antigo Testamento, não se ateve suficientemente à dimensão histórica da revelação, não foi claro e preciso em apresentar de forma consequente sua proposta metodológica.
Kügler chega a chamar a abordagem canônica de “programa neoconservador” com tendências em incorporar correntes reacionárias à exegese bíblica (KÜGLER, 2008, p. 38), o que pode levar à “desistorização da mensagem bíblica e cristã” (TREBOLLE BARRERA, 1996, p. 687), já que o exegeta não precisa ler o texto em sua dimensão histórica, mas somente na globalidade do cânon.
Por outro lado, há o risco de que a leitura canônica não somente proclame, na linha de Roland Barthes, a morte do autor, mas também a morte do texto. Tal perigo surge quando a leitura canônica toma como modelo a alegoria usada em escritos patrísticos, uma abordagem de atualização do texto, mas que pode pôr em risco a autoridade de seu conteúdo (KÜGLER, 2008, p. 39), particularmente em diálogo com a situação cultural, social, econômica e histórica em que o texto foi produzido.
Além disso, a leitura canônica parece não se diferenciar de uma teologia bíblica sincrônica e temática, cujo escopo seja o de estabelecer grandes temas da Sagrada Escritura e suas relações, por exemplo, com o Novo Testamento (SIMIAN-YOFRE, 2010, p. 276). Consequentemente, tal leitura corre o risco de estar inspirada mais por motivos doutrinais e pastorais que por motivos propriamente exegéticos, ignorando tensões entre perícopes e livros, levando em conta uma tese estabelecida a partir não do texto bíblico, mas de fora dele (SIMIAN-YOFRE, 2010, p. 277), entrando, assim, não mais em uma perspectiva exegética, mas “eisegética” (KÜGLER, 2008, p.40).
Luís Henrique Eloy e Silva. PUC Minas/FAJE. Texto original em português. Enviado: 20/07/2021. Aprovado: 25/09/2021. Publicado: 29/12/2021.
Referências
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