Interculturalidade / Inculturação

Sumário

Nota introdutória

1 Esclarecimento mínimo do termo interculturalidade

2 Interculturalidade na interação dialética com a inculturação

3 Observações finais

Referências bibliográficas

Nota introdutória

O pano de fundo histórico e teórico deste artigo é a história de luz e sombra que o cristianismo escreveu com a real trajetória de um desenvolvimento que o fez presente em todos os continentes do mundo. Aqui não podemos nos debruçar sobre esta história milenar, mas sua menção torna-se necessária no início deste artigo. Pois bem, esta complexa história do cristianismo é precisamente aquela que desenha o pano de fundo das luzes e sombras que supomos como um marco geral explicativo da posição a favor da qual queremos argumentar com as reflexões que se seguem.

E nos permitiremos antecipar que a proposta de tal posição pode ser resumida nestes termos: supondo que a “inculturação” seja um dos momentos que delineiam a face luminosa da história do cristianismo, pensamos que com o estabelecimento da interculturalidade, vista acima de tudo – como é o caso deste artigo – em sua possível relação com esse processo teológico e religioso constitutivo da história do cristianismo que é a “inculturação”, floresce um movimento denso de crescimento espiritual que pode contribuir para tornar ainda mais luminosa a face luminosa da “inculturação” do cristianismo nos espaços e tempos da história da humanidade no futuro.

1 Esclarecimento mínimo do termo interculturalidade

A interculturalidade representa uma formulação crítica e inovadora que anima hoje áreas de reflexão e ação tão diversas quanto, por exemplo, a antropologia, a educação, o direito, a filosofia, a pedagogia, a linguística, a política, a psicologia, a psiquiatria ou a teologia; com a consequência de que, com seu desenvolvimento nesses campos – e sem esquecer, por outro lado, que esse desenvolvimento multidisciplinar ocorre em contextos culturais diversos –, a perspectiva intercultural recebe evidentemente ênfases específicas que dificultam uma definição geral, e além disso, que não aconselham a elaboração de “um” conceito definidor de interculturalidade. (FORNET-BETANCOURT, 2002; KIRLOSKAR-STEINBACH, DHARAMPAL-FRICK, FRIELE, 2012).

A partir desta amplitude de referências disciplinares e contextuais em que a interculturalidade se move, queremos começar este ponto indicando precisamente que se intitula “esclarecimento mínimo” não por um recurso retórico, mas para com isto dar conta de que, nesta aproximação com o termo interculturalidade, vamos olhar apenas para um dos acentos possíveis, ou seja, o filosófico; e, além disso, que “minimiza” ainda mais nosso esclarecimento, prestando especial atenção aos “tons” da ênfase filosófica que, em nossa opinião, melhor se prestam à interação com o processo teológico ou religioso da inculturação.

Assim, no contexto dessa delimitação, enfatizaremos que a filosofia intercultural (FORNET-BETANCOURT, 1994; MALL, 1995; PANIKKAR, 1990; WIMMER, 2002) carrega a abordagem da interculturalidade com um acento específico que tem a ver, primeiro, com a concepção de cultura e, mais concretamente, com a relação do ser humano com sua cultura de origem ou a cultura em que nasceu e cresceu. Resumimos essa concepção dizendo que se trata de uma concepção histórica, não essencialista, que sublinha o valor das diferentes culturas da humanidade como formas de vida e convivência pelas quais o ser humano “entra” e é “direcionado” para o que chamamos de “mundo humano”. Assim, essa concepção também defende o reconhecimento respeitoso do pluralismo cultural, pois revela os múltiplos caminhos que podem ser seguidos para humanizar o homem. Ao mesmo tempo, porém, essa concepção considera que as culturas em si não são “as últimas”, mas devem sim ser vistas como formas históricas em que os caminhos são abertos, sempre dentro da ambivalência constitutiva que tudo o que é humano implica “o último”, entendendo aqui por “o último” o sentido da plenitude da vida humana.

Em segundo lugar, e em relação ao aspecto anterior, a ênfase filosófica da interculturalidade tem a ver com uma concepção do ser humano. Uma palavra sobre isso. Esta concepção supõe, entre muitos outros momentos que não podemos citar agora (FORNET-BETANCOURT, 2008), que em razão de sua condição de finitude e, principalmente, de sua fragilidade afetiva, é um ser que precisa de identidade pessoal e de sentimento de pertença familiar, cultural, religiosa etc. Ou seja, é um ser que precisa de um “ambiente” no qual possa se sentir “em casa”, um espaço que o reconhece como “seu” e o vivencie como “familiar”. Mas essa concepção afirma, por outro lado, que na condição finita do ser humano também mora um anseio por plenitude que transborda o “familiar” e que o move, se a metáfora é permitida, a habitar sua casa, sua cultura e identidade, como uma casa que mantém as portas e janelas abertas; em outras palavras, como um espaço de acolhimento e hospitalidade.

E, em terceiro lugar, a ênfase colocada na filosofia intercultural sublinha que a dinâmica da interação dialógica e do encontro com a alteridade que distingue a abordagem da interculturalidade, assim como um esforço para superar a parcialidade ou unilateralidade das visões que separam culturas e seus membros (sejam elas cosmológicas,  éticas, epistemológicas, religiosas, filosóficas, etc.), é uma dinâmica de crescimento em direção à plenitude que requer, como condição de seu verdadeiro significado, a postulação da abertura do humano finito a um horizonte infinito. Pois apenas o infinito, que não é simplesmente o que não tem limites, mas sim o ilimitado, não é unilateral e permite, portanto, a jornada em direção à plenitude.

Como por razões óbvias de espaço não podemos continuar a aprofundar na explicação da ênfase filosófica, os três destaques devem ser suficientes aqui para fazer um ponto em nossa argumentação que é importante para o que se segue, a saber, que a filosofia intercultural entende e desenvolve a interculturalidade no sentido de uma perspectiva crítica que deve cumprir, na compreensão e na prática do encontro com as culturas, uma função reguladora, normativa e, portanto, também corretiva, tanto na teoria como na prática.

Com isso, também queremos afirmar que, pelo menos a partir dessa compreensão filosófica, a interculturalidade é mal compreendida quando está associada a um relativismo cultural que não conhece freio e que leva, por isso, no final, a uma falsa “tolerância” ou indiferença. O contrário segue-se a concepção que apresentamos aqui, pois trata-se de uma interculturalidade que, justamente porque visa a ultimidade da plenitude humana, quer ser o caminho para a experiência que nenhuma cultura em particular dá a medida completa do significado final que o ser humano busca; e é por isso que introduz no diálogo das culturas um critério de julgamento e discernimento, ou seja, um critério de correção mútua. Mas passemos agora ao terceiro ponto deste artigo para tratar de apresentar alguns momentos de interculturalidade em sua relação explícita com o processo teológico e/ou religioso de inculturação.

3 Interculturalidade na interação dialética com a inculturação

Nesta seção é, portanto, trata-se de apresentar algumas pistas que ilustram que a relação entre interculturalidade e inculturação, dentro da qual se torna possível justamente a contribuição mencionada na nota introdutória, deve ser compreendida no sentido de uma articulação orgânica entre ambas as abordagens.

Para compreender esta proposta de uma relação mutuamente enriquecedora de interação entre interculturalidade e inculturação, deve-se deixar claro, no entanto, que aqui se supõe que a inculturação não é uma estratégia mais ou menos sutil de expansão ou ocupação da casa do outro, mas um verdadeiro processo de “encarnação” e, portanto, de aprendizagem, de diálogo sincero e comunicação franca (IRARRÁZAVAL, 1994, 1998; SUESS, 1996).

É por isso que foi dito na nota introdutória que, para nós, a inculturação faz parte do perfil da face luminosa da história do cristianismo. Com isso, não negamos, evidentemente, que na inculturação tenham sido seguidos às vezes caminhos errados, ao confundir a encarnação da Boa Notícia de Jesus com a adaptação ou simples transplante de uma forma de inculturação ou um modelo de cristianismo já inculturado. E por isso Ignacio Ellacuría apontou, com um claro senso crítico e com toda a razão, que:

… a fé cristã foi padronizada a partir as exigências e as facilidades do mundo ocidental e da atual civilização cristã ocidental – que é como a chamam. Isso, para nós, supõe uma redução séria, em si mesma e em sua capacidade de inculturação. Quer dizer, a for­ma que o Cristia­nismo tomou na Europa, ao longo de todos esses séculos, os antigos e os modernos, na melhor das hipóteses é uma das for­mas possíveis de viver o Cristianismo. No melhor dos casos, se o tivesse feito certo. Mas de nenhuma maneira é a melhor forma possível de viver o Cristia­nismo. (ELLACURÍA, 1990)

Mas se, como assumimos neste artigo, compartilha-se a visão de que a inculturação busca caminhos de “comunhão” dentro e com as alteridades culturais e religiosas da humanidade, então parece legítimo e bem fundamentado propor que a relação entre interculturalidade e inculturação não precisa necessariamente ser uma relação entre “paradigmas” opostos, muito pelo contrário: uma relação entre horizontes de compreensão e de vida que se potencializam reciprocamente. Em seguida, tentaremos ilustrar essa relação orgânica listando sinteticamente alguns momentos que, em nossa opinião, falam não só a favor da possibilidade, mas também da necessidade de cultivar essa relação como recurso metodológico para aprofundar o significado e a finalidade de ambos os “paradigmas”. Assim:

Primeiro: como um processo integral de capacitação para abrir de dentro da própria identidade (a casa com portas e janelas abertas) espaços para encontros em relações de transformação mútua e crescimento, a interculturalidade pode, de fato, apoiar o aprofundamento da exigência da inculturação para entrar em diálogo com a diversidade cultural e religiosa da humanidade.

Segundo: a interculturalidade, e como consequência do momento anterior, poderia intensificar, nos esforços de inculturação, a atitude de respeito em relação à santidade e, em geral, em direção ao mistério da graça divina que se manifesta na riqueza do pluralismo cultural e religioso; uma atitude de respeito que seria mais do que tolerância, pois é o respeito que nasce do amor e da gratidão ao outro por também ser o portador do que santifica e salva.

Terceiro: a interculturalidade promoveria, assim, pedagogias e catequese na inculturação orientadas pelo que Raimon Panikkar descreveu como a prática da “mística do diálogo” (PANIKKAR, 1993).

Quarto: a interculturalidade, em consequência, seria também uma força que ajudaria a evitar na tarefa de inculturação qualquer tentativa ou qualquer tentação de instrumentalizar a alteridade do outro, ou dito positivamente, promoveria na inculturação a dinâmica do crescimento espiritual integral a partir da diversidade das culturas e, principalmente, a partir deseus  núcleos religiosos. E como consequência disso.

Quinto: a interculturalidade ajudaria a compreender o horizonte da inculturação, ao fazer sua teoria e prática mais sensíveis frente aos possíveis resíduos eurocêntricos que, devido ao impacto da inculturação hegemônica da qual Ellacuría fala na passagem supracitada, ainda sobrevivem, dito metaforicamente, no porão de certas práticas e doutrinas. Ou seja, a interculturalidade poderia contribuir para a percepção de que uma inculturação que não rompa decisivamente e radicalmente, isto é, com todas as suas consequências e em todos os níveis, com o eurocentrismo continuará a reduzir a capacidade de diálogo e a comunhão universal do cristianismo.

Sexto: reforçando a superação radical das sequelas da herança eurocêntrica no desenvolvimento do cristianismo, a interculturalidade também seria um ponto de apoio para que a inculturação seja verdadeiramente um horizonte de caminhos que apontam a um cristianismo universal culturalmente policêntrico (METZ, 1986) e que, desta forma, abrem a uma nova consciência da universalidade da mensagem de Cristo.

Mas vamos parar com essa enumeração aqui.

Deve-se notar que nos seis momentos mencionados falamos a partir do ponto de vista da abordagem da interculturalidade, quer dizer, destacamos a contribuição que a interculturalidade poderia fazer a um aprofundamento da inculturação como processo de diálogo e comunicação com o outro na transmissão da mensagem cristã. E isso poderia ser entendido como uma expressão de uma certa unilateralidade em uma relação que chamamos orgânica e de interação mútua. Para esclarecer esse possível mal-entendido, nos permitimos notar que a preferência do ponto de vista intercultural se deve à ênfase desse verbete na Theologica Latinoamericana Enciclopédia digital, que entendemos ser precisamente a interculturalidade. No entanto, convém insistir que, como dissemos, é uma relação de mutualidade, como deixa claro o título desta seção “Interculturalidade na interação dialética com a inculturação”.

Mas, para que não haja dúvida sobre isso, vamos mencionar aqui explicitamente pelo menos um momento representativo de reciprocidade nessa relação; ou seja, um momento que exemplifica a contribuição que o horizonte do enfoque da inculturação da fé cristã pode dar à interculturalidade.

Para isso, escolhemos um momento que nos parece de fundamental significação tanto para a fundamentação teórica no sentido último da interculturalidade quanto para a elaboração de propostas práticas para a reorganização da convivência social, política e ética em um mundo plural.

Referimo-nos ao seguinte momento:

Como um processo experiencial, histórico e contextual de “encarnação” do Evangelho de Cristo (como a palavra verdadeira revelada por Deus!) nas muitas culturas da humanidade, a inculturação confronta cada cultura particular com uma experiência de fé em um Deus encarnado, mas transcendente, que, por sua vez, e talvez como nenhuma outra experiência semelhante, mostra que o “fator religião” nas culturas não é apenas mais um fator cultural, um fator como qualquer outro, mas precisamente aquela área de culturas na qual se fazem ouvir os anseios mais secretos de sentido verdadeiro e plenitude da alma humana. É por isso que o ambiente em que as culturas podem tomar consciência, a partir de sua própria dinâmica de desenvolvimento, que em seus caminhos de humanização há também sinais – “traços”, na linguagem da filosofia da religião de Emmanuel Levinas  (1974, 1980) – que atestam a presença ativa e questionadora de uma outra ordem (metafísica e/ou escatológica) da realidade e da verdade que descentra a própria imanência de toda ordem cultural humana. Dito de forma mais concreta, e indo diretamente ao que essa experiência da inculturação segue para a interculturalidade: com a experiência de que sua tarefa de “encarnar” a fé cristã nas diferentes culturas da humanidade implica dar conta de uma tensão permanente e profunda entre o Evangelho e as culturas, e isso em todos os tempos e lugares, a inculturação representa para a interculturalidade, por assim dizer, uma espécie de espelho em que pode ver refletidos os esforços de articulação entre uma mensagem transcultural e ordens contextuais que podem muito bem ajudar a aprofundar sua própria aproximação para questões decisivas no âmbito de um diálogo intercultural aberto e construtivo. Nos referimos a questões como a de alcançar uma relação equilibrada entre a busca do universal e a afirmação do contextual ou local, em outras palavras, a questão de ajustar harmoniosamente o anseio de crescer na universalidade e o desejo não menos humano de se sentir como um ser que tem “raízes” em seu próprio solo; ou a questão dos critérios para o discernimento do verdadeiro e justo em meio à diversidade cultural e seu consequente pluralismo axiológico; ou, para mencionar mais um caso, a questão da fundamentação da possibilidade, aliás, da necessidade de um novo horizonte de universalidade à luz do qual se pode compreender, no diálogo entre culturas, que a denúncia de modelos opressivos de universalidade, sejam religiosos ou políticos, não é uma renuncia à universidade como ideal humano de uma comunhão bem-sucedida entre os povos.

No referencial limitado deste artigo, o esclarecimento prévio deve bastar como uma amostra representativa de que a abordagem da inculturação pode ajudar a interculturalidade no esclarecimento e aprofundamento da dimensão normativa e crítica da qual falamos no segundo ponto.

Mas, para concluir esta seção, ressaltemos ainda essa ideia: além da importância que, como tentamos mostrar, tem a interação dialética entre as abordagens da interculturalidade e da inculturação para o seu respectivo melhor desenvolvimento, deve-se observar que nesse processo de troca mútua e apoio se está traçando a convergência em uma experiência decisiva para a qualidade de todo diálogo entre alteridades. A experiência de que a abertura para o outro não é motivada pelas próprias deficiências, ou seja, o desejo egoísta de suprir as próprias deficiências e, assin, ser mais “autossuficiente” em e para si mesmo, mas que o diálogo com o outro tem seu motivo e fundamento em sentir a necessidade de comunhão, de compartilhar e se entregar reciprocamente como peregrinos da plenitude.

3 Observações finais

Intitulamos esta seção de “observações finais” porque com ela fechamos este estudo.

No entanto, as considerações que compartilhamos aqui não se destinam a “finalizar” o tema, apresentando “conclusões” ou resumindo a posição indicada em uma lista de resultados acabados. Seu propósito é exatamente o oposto, porque o que queremos propor com elas é mais uma hipótese para continuar o trabalho.

A hipótese ou perspectiva de trabalho que propomos é a seguinte: o tema “interculturalidade/inculturação” está hoje possivelmente enfrentando o desafio de um novo começo.

Por isso, gostaríamos de convidá-los a pensar que tanto a abordagem da interculturalidade quanto a da inculturação – e, claro, também a relação de interação dialética entre ambas que foi proposta nestas páginas – necessitam hoje se conscientizar de que, especialmente desde as últimas quatro décadas, as culturas da humanidade e, com elas, a memória cultural de seus membros passaram e passam por mudanças de tamanha importância que parecem questionar radicalmente a certeza histórica, ou seja, a verdadeira base de algumas das ideias fundamentais que serviram como pontos de partida evidentes na década de 1970, quando ambas as abordagens desenvolveram de maneira explícita e sistemática suas propostas teóricas e práticas.

Reconhecemos que, diante dessa afirmação, pode-se argumentar que o mundo e a humanidade sempre estiveram em mudança; e que as próprias experiências de interculturalidade e inculturação, mesmo antes de serem assim chamadas, são a prova de que a história da humanidade é uma história de mudança e transformação. Mas nossa afirmação não nega tal fato; o que parece óbvio para nós.

Assim, reconhecendo essa história de mudanças contínuas, o que queremos considerar com nossa hipótese de trabalho, entendida como tarefa para uma nova recontextualização das abordagens de interculturalidade e da inculturação, é que as profundas mudanças a que nos referimos aqui como um sinal específico de nosso tempo são mudanças que implicam uma diferença substancial em relação às mudanças de outras épocas.

Em que sentido? Pois no sentido de que as mudanças atuais interrompem o fluxo da tradição, a dialética da passagem entre o novo e o antigo. De maneira que, se nas mudanças dos tempos anteriores parte do passado ainda fluía e as novidades eram vividas ladeadas pelo tradicional, agora parece que as mudanças são mudanças que conhecem apenas a dinâmica de aceleração da produção de novidades, ou seja, que mais do que um passado, nossas mudanças se refeririam a si mesmas como uma “penúltima” novidade, à espera de outra novidade mais recente.

Como ilustração, um exemplo: em meados do século XX, o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer defendeu em sua famosa e influente obra Wahrheit und Methode (Verdade e método) a tese de que, apesar das mudanças radicais vividas em seu tempo, a continuidade da transmissão da tradição poderia ser dada como certa; pois tal foi o seu diagnóstico, mesmo em tempos de mudanças impetuosas e revolucionárias se preserva e transmite mais do antigo do que à primeira vista é pensado (GADAMER, 1960, p. 266). E naquela época essa apreciação de Gadamer era considerada plausível. Mas hoje, 60 anos depois, já não podemos mais ter certeza de sua plausibilidade. Além disso, no sentido de nossa afirmação, as mudanças do nosso tempo parecem refutá-lo.

Estamos, portanto, diante da necessidade de parar e pensar no desafio das mudanças que representam interrupções no fluxo da tradição e que, desta forma, separam, sobretudo as novas gerações, da memória histórica, especialmente do que Paul Ricœur chamou de “mémoire de humanité” (RICŒUR, 1964, p. 84). E nos referimos explicitamente a essa memória da humanidade no sentido em que Ricœur a entende por ser uma memória com peso ético e religioso, dois momentos essenciais para as abordagens da interculturalidade e da inculturação.

Como exemplos concretos dessas mudanças atuais que promovem a ruptura com a memória da humanidade que tanto a interculturalidade quanto a inculturação precisam realizar suas tarefas, vamos mencionar aqui apenas duas que, em nossa opinião, são indicadores inequívocos desse corte. Falamos, por um lado, da mudança que impulsiona o movimento do chamado transumanismo e/ou pós-humanismo e, por outro, da mudança que está concretizada no novo “individualismo” que fomenta a “cultura global” do capitalismo tecnocultural. Algumas breves palavras sobre ambos.

Como programa que promete realizar o sonho do homem de ser um “Deus com próteses”, como definiu Sigmund Freud, não sem ironia, (FREUD, 1968, p. 22), o transumanismo traça um horizonte de realização mecanicista para o homem em que sua corporalidade, sua “carne”, não é mais a “condição” de onde e em que vive, mas sim um “fato” a ser melhorado através de reparos técnicos que o colocam às portas da “imortalidade”. Quer dizer, se desenha no horizonte dessa mudança a construção de um “homem” que possa dizer “adeus” às consequências “irritantes” de sua condição finita, especialmente para duas delas: o sofrimento e a morte. A este respeito, foi justamente observado que transhumanismo ou pós-humanismo é:

… um termo em que uma autoconsciência vital e intelectual é condensada, diferente de outras concepções do ser humano e, portanto, da realidade como um todo. A expressão  post indica uma distância do humanismo, que designaria um estágio já superado, obsoleto, da história da espécie humana. Começa, portanto, um novo e distinto período no processo evolutivo que não é considerado humanista, talvez nem mesmo humano. O humano e o humanista deixam de ser um selo de glória e honra. Estamos começando a experimentar a condição pós-humana… e a partir da nova sensibilidade o passado humano pode ser considerado com o mesmo descontentamento com que os seres humanos contemplaram vermes ou répteis. (BUENO DE LA FUENTE, 2019, p. 27-28)

Mas, como não se trata de entrar em um debate com o transumanismo, mas de apontar o desafio que implica, o que deve ser retido aqui é que ele representa a construção de um contexto de lidar com o “material humano” no qual, de fato, a transmissão da memória da humanidade acumulada até agora pelo ser humano, como um “espírito encarnado”, perde seu significado em suas lutas milenares pelo aperfeiçoamento ético.

E ainda deveria ser considerado – como nota agravante do desafio que essa mudança de paradigma na concepção do ser humano coloca para a inculturação da fé cristã e do humanismo da interculturalidade – que palavras originais fundadoras como “encarnação”, “plenitude”, “gratuidade” dificilmente encontrariam condições de ressonância no “novo homem” projetado pelo transumanismo. Bem, vamos perguntar retoricamente, como poderia a mensagem dessas palavras fundadoras ressoar em um “humano” que se cria pelo poder de suas próprias biotecnologias?

 Em relação ao segundo exemplo, a mudança que vemos no novo “individualismo” que se expande com a cultura do capitalismo tecnocultural, destacamos, como no caso anterior, apenas o ponto que parece nuclear para entender o desafio atual de repensar o tema deste artigo: nas redes da cultura global atual marcada pelo capitalismo tecnocultural, se difundem formas e estilos de vida que apelam com insistência à criação de individualidades “únicas” e que nos convidam a adorar a “singularidade” de nossa própria identidade individual (RECKWITZ, 2018). Mas, se olharmos com cuidado, podemos perceber que este culto do indivíduo singular é acompanhado ao mesmo tempo, e não sem menos insistência, por “ofertas” no mercado que fingem nos fazer supor que o caminho para alcançar a singularidade não é o “caminho da interioridade”, mas o “caminho para o mercado”, quer dizer, o protagonismo como consumidor de “ofertas” que antecipam justamente os perfis individuais desejados. Se notará que a “astúcia” de tal argumento é fazer crer que as “ofertas” não oferecem qualquer produto, mas produtos que respondam antecipadamente a desejos singulares. Assim, no contexto dessa cultura global, projeta-se um novo tipo de “individualismo”, no sentido de que agora a comunicação com o outro indivíduo, considerado pela tradição humanista como condição do cultivo da verdadeira individualidade, passa para segundo plano, e seu lugar é ocupado pelo acordo unilateral e silencioso com a diversificada oferta de meios que prometem satisfazer os desejos de realização individual.

Essa cultura nos confrontaria, então, com o desafio de um individualismo de “singularidades” cujo interesse e preocupação central é a construção de uma imagem que torne visível sua “singularidade”. Um individualismo, portanto, carente de experiências de de convivência com o outro e para o qual, por isso, a “comunicação” é entendida como um processo de exposição de singularidades. É, em suma, um individualismo que leva à construção de vidas humanas que obscurece que a essência da vida é a coexistência e que, com isso, representa um sério obstáculo à ressonância, nas sociedades atuais, de outra das palavras fundadoras nas abordagens da interculturalidade e da inculturação: a palavra “comunidade”.

Que esta breve abordagem de duas mudanças exemplares em nosso mundo atual sirva como uma explicação de nossa proposta de que hoje em dia as abordagens da interculturalidade e da inculturação precisam, como dissemos, arriscar um novo começo; buscando métodos e práticas que resturem a continuidade no fluxo da “memória da humanidade” e assim possibilitem novamente a ressonância das palavras fundadoras de sua mensagem libertadora no contexto adverso da nova cultura global.

Raúl Fornet-Betancourt. Universidade de Bremen (Alemanha). Texto original Castellano. Enviado: 09/03/2021. Aprovado: 01/04/2021. Publicado: 24/12/2021.

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