Religião e religiões na Bíblia

Sumário

Introdução

1 A religião de Israel em seu contexto religioso e cultural

1.1 A religião dos patriarcas e matriarcas

1.2 Religião na monarquia

1.3 Religião no exílio

1.4 Religião no período persa

1.5 Religião no período helenista

2 A religião cristã do Novo Testamento em seu contexto religioso e cultural

2.1 Jesus de Nazaré, encarnado, crucificado e ressuscitado

2.2 O movimento de Jesus e as primeiras comunidades cristãs

2.3 Comunidades na Ásia Menor, Grécia e Roma

2.4 Igrejas cristãs

Referências

Introdução

O assunto é amplo e complexo, porque abrange Judaísmo e Cristianismo, com suas mútuas relações, em interação com inúmeros sistemas religiosos diferentes. Ao mesmo tempo, a unidade da religião bíblica é assegurada por um fio condutor que perpassa o cânon estabelecido e aceito, conhecido como Antigo e Novo Testamento, que compreende a Bíblia Hebraica e as Escrituras Cristãs. Para compreender a interação com outras religiões, servem as contribuições da arqueologia e de outros documentos, correspondentes às épocas da historiografia bíblica. A análise se pauta por uma leitura crítica e abrangente.

O assunto é amplo e complexo, também, porque envolve Teologia e História. Do ponto de vista teológico, a religião bíblica parte do dado revelado, a fé em Deus que se manifesta à humanidade. Do ponto de vista histórico, essa religião se encarna em determinado contexto cultural, sofre adaptações e evolui, num processo de assimilação e de depuração. A análise propõe estabelecer a ponte entre Teologia e História, sem prejuízo de uma ou de outra.

O assunto é amplo e complexo, ainda mais, porque o texto bíblico à nossa disposição, em sua redação final, é fruto de longo período de tradição vivida, narrada e escrita, com abrangência de mais de um milênio. Como resultado, o Antigo Testamento apresenta uma religião revelada, monoteísta, javista. Essa religião prepara aquela do Novo Testamento, a revelação plena em Jesus Cristo, o messias encarnado como salvador da humanidade, com a proposta do Reino de Deus, realizado por meio da sua Igreja. A análise propõe a leitura diacrônica que explica a elaboração desse processo histórico.

1 A religião de Israel em seu contexto religioso e cultural

A religião dominante, que podemos chamar a religião de Israel (Judaísmo), é evolutiva e interiormente plural, em confronto com o mundo religioso interno (tradições cananeias e israelitas antigas) e externo (desde as religiões egípcias e mesopotâmicas até as persas – iranianas – e helênico-romanas).

Essa dinâmica da religião de Israel passa por diversas etapas, de acordo com o processo evolutivo do povo bíblico. Essas etapas são condicionadas por acontecimentos históricos marcantes e por contatos com civilizações diferentes. Os estudos que apresentam a “História da religião de Israel” estabelecem periodização mais ou menos similar, como seguida nesta apresentação: pré-estado, estado, exílio, período persa e período helenista (ALBERTZ, 1999; FOHRER, 1982; GUNNEWEG, 2005; RENCKENS, 1969).

1.1 A religião dos patriarcas e matriarcas

As origens de Israel e de sua religião devem ser buscadas na terra de Canaã, a partir do sistema tribal familiar. Foi dentro do território cananeu e em seu contexto cultural que se desenvolveu a religião dos hebreus, com a participação de diversos grupos tribais oriundos de fora, além da influência das religiões dos povos vizinhos (SCHWANTES, 2008, p. 31-33).

A pré-história de Israel é caracterizada pelo tribalismo, sistema este que continuou resistindo mesmo sob os regimes posteriores. A tribo representa a família ampliada, isto é, cada tribo se compõe de clãs que, por sua vez, reúnem diversas famílias. A liga tribal se baseia na consanguinidade, embora possa integrar clãs diferentes. Esses grupamentos resistem há milênios, como seminômades ou sedentários, vivendo nas estepes, à margem das cidades. Sua subsistência básica é o pastoreio. São conhecidos também como grupos abraâmicos, por ter no personagem Abraão o seu principal representante (GERSTENBERGER, 2007, p. 32-33).

Nesse sistema, os eventos mais valorizados são os relacionados à vida familiar, tais como nascimento, circuncisão, matrimônio e sepultamento. O culto normalmente é exercido por um membro da família, que pode ser o pai, como Abraão (Gn 17,23), ou as mulheres ou mães, como Séfora (Ex 4,24-26), visto que não existe ainda sacerdócio organizado. O altar é edificado como local de culto, sagrado, mas provisório, como próprio de povos migrantes, a exemplo de Abraão que constrói altares comemorativos (Gn 12,7.8). Enquanto o altar é o local de rito, as colunas de pedra são memoriais de eventos importantes na vida da pessoa ou da tribo, como fez Jacó (Gn 35,14). O culto se liga a elementos da natureza, como aos carvalhos de Mambré, nas histórias de Abraão (Gn 13,18) e aos altares de pedra, como na prescrição do código da aliança (Ex 20,25). Não faltava o culto às divindades caseiras, chamadas terafim, como os que Raquel tomou de seu pai (Gn 31,19.30) (SCHWANTES, 2008, p. 81-83).

Com o movimento de sedentarização, foram se estabelecendo lugares sagrados, santuários em torno aos quais se confederaram as tribos, numa organização conhecida como anfictionia, termo grego que significa etimologicamente morada ao redor. Assim são conhecidos os santuários de Siquém, Betel, Hebron e Bersabeia, entre outros. Em Siquém, Abraão construíra um altar como memorial de sua experiência com Deus (Gn 12,6-7). Betel recorda especialmente Jacó, porque aí Deus, chamado El-de-Betel, lhe apareceu (Gn 31,13; 35,7). Hebron está associada a Abraão, a Isaac e a Jacó (Gn 35,27). Bersabeia era antigo local de culto cananeu e passou pela recordação dos patriarcas e matriarcas (Gn 21,1-34) (RENCKENS, 1969, p. 69-76).

Qual Deus ou deuses veneravam as famílias e tribos no período da pré-história de Israel? Não há evidências da invocação ou presença do Deus Yhwh[1] nessas origens. Os textos bíblicos que o mencionam são redigidos posteriormente, e refletem o monoteísmo javista que predominou mais tarde. Tampouco há evidências de um monoteísmo ou henoteísmo nos tempos patriarcais. Dois textos mencionam claramente que os antepassados adoraram outros deuses. A Moisés, Deus diz que apareceu a Abraão, a Isaac e a Jacó como El Shaddai, e confirma: “Mas, pelo meu nome, Yhwh, não lhes fui conhecido” (Ex 6,3).[2] Nas palavras de Josué: “Além do rio habitavam outrora os vossos pais, Taré, pai de Abraão e de Nacor, e serviram a outros deuses” (Js 24,2). Há textos que se referem a uma ruptura com divindades diferentes. Jacó propõe a sua família: “Lançai fora os deuses estrangeiros que estão no meio de vós, purificai-vos e mudai vossas roupas” (Gn 35,2). Na chamada assembleia de Siquém, Josué propõe ao povo: “Lançai fora os deuses aos quais serviram os vossos pais do outro lado do rio e no Egito, e servi a Yhwh” (Js 24,14). Há testemunho de cultos privados, “sacrificando nos jardins, queimando incenso sobre lajes” (Is 65,3); com menção a deuses arameus, “preparais uma mesa para Gad, ofereceis mistura em taças cheias a Meni” (v. 11). Há detalhes do culto a Ishtar, a rainha dos céus, provável deusa familiar, pelas mulheres que declaram: “Porque continuaremos a fazer tudo o que prometemos; oferecer incenso à rainha do Céu e fazer-lhe libações, como fazíamos, nós e nossos pais, nossos reis e nossos príncipes, nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém” (Jr 44,17) (GERSTENBERGER, 2007, p. 66-80).

A presença de divindades femininas é constatada em outros textos. As palavras de Yhwh a Gedeão ordenam: “Toma o touro de teu pai, o touro de sete anos, destrói o altar de Baal que pertence a teu pai e quebra a Ashera que está ao lado” (Jz 6,25). A presença de Ashera, que algumas Bíblias traduzem como “poste sagrado”, se refere, na verdade, a uma deusa conhecida também como Astarte, em outros textos bíblicos (Jz 2,13), identificada como deusa do amor e da fecundidade, consorte de Baal e, segundo hipóteses arqueológicas, do próprio Yhwh (CORDEIRO, 2007, p. 1-22).

As diversas famílias ou clãs tinham cada qual as suas divindades, como atestam alguns textos. Na moldura literária da autoapresentação divina, Yhwh aparece como: “o Deus dos vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó” (Ex 3,16). Essa referência ao Deus (elohim) de quatro pessoas parece referir-se a quatro experiências diferentes de Deus, ou possivelmente a quatro entidades religiosas diversas. Essas experiências são resumidas na expressão “Deus dos pais” (Ex 3,13). Além de se associarem a pessoas diferentes, essas divindades possuem epítetos próprios. O Deus de Isaac é conhecido como o “Temor de Isaac” (Gn 31,43.53); o Deus de Jacó é o “Poderoso/Forte de Jacó” (Gn 49,24; Is 49,26; 60,16; Sl 132,2.5). O Deus de Abraão será associado com “Deus Todo-Poderoso” (Gn 17,1). Teríamos, assim, três experiências religiosas ou três teologias diferentes, cuja memória foi conservada nos textos bíblicos (SCHWANTES, 2008, p. 75-83).

Essa religião da pré-história, assim como nas demais etapas da história de Israel, é marcada por influências de inúmeros povos vizinhos. Há menção aos arameus, como nas histórias de Jacó (Dt 26,5; Gn 24-36); de midianitas, como na família do sogro de Moisés, Ragüel ou Jetro (Ex 2,16-22), também nomeado Hobab, o quenita (Jz 1,16; 4,11) e talvez com outras regiões como o Norte da Arábia (SCHMIDT, 2004, p. 19).

O monoteísmo javista, que configura a redação final do Antigo Testamento, inicia-se com o evento do êxodo, associado à teofania do Sinai. Anteriormente, os pais e mães de Israel veneraram El, que era o deus principal do panteão cananeu, e que foi posteriormente identificado com Yhwh. Muitos hebreus cultuaram o deus cananeu Baal, posterior arquirrival de Yhwh. A própria descrição de Yhwh representa um deus da tempestade, mais conforme ao imaginário cananeu. O Deus Yhwh, por sinal, está associado ao contexto do sogro de Moisés, Jetro, sacerdote de Madiã (Ex 18,1-12). O culto ao Deus do êxodo poderia ter chegado a Israel, portanto, pelo grupo de escravos libertos do Egito, ou mesmo pelos mercadores madianitas (RÖMER, 2016, p. 72-73).

Pode-se concluir, pois, que o culto a Yhwh é anterior a Israel, e vem de fora de Canaã. “Yhwh veio do Sinai, alvoreceu para eles de Seir, resplandeceu no monte Farã. Dos grupos de Cades veio a eles, desde o sul até as encostas” (Dt 33,2). Essa região sul corresponde ao território ocupado pelos madianitas, quenitas, beduínos de Shasu. Em torno a esse Deus da montanha, os hebreus teriam desenvolvido o culto do Sinai. A esse culto é associada a lei divina, no Código da Aliança. Essa tradição do Sinai, posteriormente, foi associada à tradição do Êxodo. O Deus da montanha, manifestado nos fenômenos da natureza, passou a ser cultuado como o Deus da história, libertador da escravidão do Egito (SILVA, 2004, p. 75-80).

1.2 Religião na monarquia

A confederação das tribos em direção a uma unidade ideal vai se consolidando em torno a um regime específico, conhecido como período dos juízes, com duração histórica de dois séculos, mais ou menos entre 1220 e 1040 aC e com persistência pelos séculos futuros. Esse movimento de unificação tribal corresponde a um processo de sedentarização e, conjuntamente, de identificação cultural e religiosa. Os relatos bíblicos, principalmente dos livros de Josué e Juízes, apresentam esse processo como luta pela conquista da terra, com ajuda da ação divina.

Seja como for, estabelecido na terra, este Israel sente necessidade de um regime monárquico, com um rei que exerça a justiça, “como acontece em todas as nações” (1Sm 8,5). A monarquia surgiu, portanto, como imitação dos reinos circunvizinhos, com tentativas diversas, que culminaram na unção de Saul, seguido de Davi e Salomão. Após esse tempo de monarquia unida, que teria durado cerca de um século, mais ou menos de 1040 a 930 aC, divide-se o reino entre Israel Norte e Judá Sul.

A monarquia introduz mudanças em todos os sentidos na vida de Israel. Do ponto de vista político, o clã é suplantado pelo Estado. O Estado, por sua vez, se consolida como única instância política e jurídica. No aspecto econômico, aparece a prática do tributarismo, com a concentração de bens e produtos e, especialmente, com a cobrança de impostos. Desenvolve-se o comércio, centralizado pelo Estado.

A religião se conforma ao novo modelo político por um lado e, por outro, a monarquia se adapta ao Deus Yhwh. O governo monárquico adquire caráter sagrado, a exemplo dos reinos vizinhos. O rei se apresenta como representante da divindade. Deus é o protetor do rei, e o povo passa a ser propriedade de Deus. O santuário e o templo são do rei. O sacerdócio é articulado como poder e como instância de apoio ao governante (SCARDELAI, 2008, p. 23-25).

A prática religiosa desse período é marcada pelo sincretismo. A população originária de Canaã possuía uma religião tipicamente camponesa, com variações do casal divino Baal e Astarte, que se adaptavam às diversas necessidades da vida. As manifestações religiosas se ligavam aos fenômenos da natureza e aos ciclos da vida humana e das atividades agrícolas. Não faltavam práticas degeneradas, como prostituição e sacrifício de crianças. Nesse cenário camponês, era difícil o Deus dos nômades concorrer com as divindades sedentárias (RENCKENS, 1969, p. 162-163).

A realeza de Israel, entretanto, tenta se adequar ao javismo. Yhwh era Deus do deserto e da tempestade, nas origens, tendo assumido a função de libertador da escravidão, no Egito, depois de guerreiro valente, na conquista, e assume, agora, a função de camponês, no sedentarismo. Enquanto a monarquia de Israel imita a das nações vizinhas, inclusive com apoio de sacerdotes e de profetas palacianos, o culto a Yhwh lhe confere um diferencial. Como respondeu Gedeão ao povo, numa tentativa de instituir a realeza: “Não serei eu quem reinará sobre vós, nem tampouco meu filho, porque é Yhwh quem reinará sobre vós” (Jz 8,23). Essa convicção de que só o Senhor é rei vai garantir o diferencial na orientação dos diversos governantes da nação. Em vista disso, o rei é representante de Deus, porém está submisso à lei divina. Ele tem o poder executivo e judiciário, mas não o legislativo, visto que a Lei estava dada e cabia ao rei executá-la (RENCKENS, 1969, p. 172).

Quem assegura o javismo como religião de Israel, durante a sequência dos vários monarcas, é a profecia. Profetas havia também em outras monarquias da época, mas com a função de prestar apoio à própria realeza. Em Israel, os profetas assumem função crítica, para anunciar a proposta divina e denunciar os desmandos dos reis.[3]

A profecia de Israel deixou uma contribuição única para a história, com a mensagem centrada na justiça. Em vista disso, os profetas tornaram-se guardiães do javismo, consciência crítica da monarquia, desde a primeira hora. O profeta Samuel reprova a desobediência do rei Saul (1Sm 15,24); assim como Natã denuncia Davi (2Sm 12,1-10); e Aías de Silo apoia a revolta contra Salomão (1Rs 11,29-31). Essa tradição profética permanece durante toda a monarquia, com picos crescentes nos momentos de maior crise.

Elias representa um momento particular do embate entre javismo e baalismo, em meados do século IX aC. Naquele momento, as divindades Baal e Ashera tiveram seu culto incrementado em Israel, graças ao casamento do rei Acab com a rainha Jezabel, filha do rei de Tiro. O profeta Elias investe contra o rei Acab e a casa real: “Não sou eu o flagelo de Israel, mas és tu e tua família, porque abandonastes Yhwh e seguistes os baals” (1Rs 18,18). Desafia os profetas de Baal no monte Carmelo (1Rs 18,20-40). Condena a rainha pelo suborno, assassinato e roubo contra o vinhateiro Nabot (1Rs 21,17-24). As ações de Elias, em vista de uma reforma javista, prosseguem com Eliseu, a quem ele transfere seu manto profético, e com grupos conhecidos como “filhos de profetas” ou “irmãos profetas” (2Rs 2,7-18).

Esse incremento do javismo será reforçado, no Norte, pelas profecias de Amós e Oseias, um século mais tarde, em meados do século VIII aC. Amós investe como leão a rugir (Am 3,8), contra o santuário do rei, em Betel, e contra o seu sacerdote, Amasias (Am 7,10-17). Denuncia os crimes das nações vizinhas (Am 1-2) e do próprio Israel, seja a corrupção, o suborno e a exploração dos fracos. Anuncia o dia de Yhwh como um dia de trevas (Am 5,18-20). Propõe uma ética diferente, baseada na justiça, o que será um diferencial constante na tradição religiosa de Israel, e pode ser sintetizado na formulação de Amós: “Que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso” (Am 5,24). Oseias levanta a voz no mesmo tom e no mesmo contexto histórico, através da metáfora da prostituição, “porque a terra se prostituiu constantemente, afastando-se de Yhwh” (Os 1,2). Daí as críticas aos cultos cananeus (Os 4,12-14); aos pedidos de ajuda ao Egito e à Assíria (Os 7,8-12); à prática religiosa exterior, sem coerência com a vida (Os 8,11-14). Toda essa situação leva o profeta a concluir, em nome do Senhor: “Porque é o amor que eu quero e não sacrifício, conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6,6).

Enquanto isso, o profeta Isaías atua no Sul, por longo período, entre 740 e 700 aC, e assiste à ascensão da Assíria sobre Israel e sobre Judá. Suas críticas focam inicialmente contra a corrupção geral de Judá (Is 3,1-15); em seguida, contra as alianças com Israel e Síria (Is 7,1-9); depois contra a submissão de Judá à Assíria (Is 20,1-6); e, por fim, sobre a invasão fracassada da Assíria sobre Jerusalém (Is 14,24-27). Com a queda da Samaria, o império assírio destruiu o reino do Norte e com as sucessivas incursões militares, reduziu o Sul à vassalagem. Com isso, introduziram-se os cultos estrangeiros, sobretudo assírios, nos santuários do Norte, mas também em Jerusalém. A tentativa de reforma político-religiosa de Ezequias não impediu que continuassem as divindades cananeias, como Baal e Astarte, nem que se introduzissem outras estrangeiras como Ishtar, Shamash, Tamuz, com práticas como prostituição sagrada e sacrifício de crianças, levando à consequente degradação moral.

Como se conclui pelas denúncias proféticas, durante a monarquia, o culto a Yhwh estava longe de ser unanimidade. O que torna oficial o javismo é a reforma de Josias, por volta de 622 aC. O rei se aproveita de um período de recrudescimento do imperialismo assírio para empreender uma reforma político-religiosa no reino de Judá. Essa reforma se baseia no livro da Lei ou livro da aliança (2Rs 22-23), identificado com o Deuteronômio, e está expressa na teologia deuteronomista, que se resume em três pilares: um único Deus, Yhwh; um Templo central, Jerusalém; e um rei imperante, da dinastia de Davi. Essa teologia reafirma as tradições javistas, como as promessas aos patriarcas, a libertação do Egito, a posse da terra e a aliança com Davi, como se expressa na profissão de fé (Dt 26,5-10). O Templo de Jerusalém centraliza o culto a Yhwh com exclusividade (Dt 12,5). Essa estabilidade reporta à aliança do Senhor com o rei Davi, modelo ideal, segundo a tradição bíblica dominante (2Sm 7,1-17). As consequências da reforma de Josias para os cultos populares estão descritas em 2Rs 23, e se resumem na demolição dos santuários, destruição dos objetos de culto, destituição dos sacerdotes, proibição dos cultos a Baal e a Ashera, aos astros e a outras divindades (NAKANOSE, 2000).

Num balanço geral da vida religiosa de Israel, durante a monarquia, constatam-se influências diversas. Do Egito, Israel herdou o modelo de monarquia, com todo o seu aparato institucional e com a ideologia que lhe deu sustentação, e que se reflete na história dos reinos, na literatura sapiencial e em inúmeras tradições relativas aos reis. Da Mesopotâmia, herdou narrativas das origens, estruturas de alguns Salmos, poesias como Jó e tradições legais. De Canaã, a representação de Deus como rei e as tradições de luta contra o caos (SCHMIDT, 2004, p. 20).

1.3 Religião no exílio

O exílio babilônico marca o século VI aC, com a deportação de levas da população de Judá, principalmente ligadas à elite. O drama histórico deixa a nação sem território, sem governo e sem Templo. Mas não sem a fé. É no exílio que se faz sentir o efeito da reforma de Josias. Se não há território, é a chance para criar outros laços de união. Se não há rei, é hora de reforçar o senhorio de Yhwh. Se não há templo, é a oportunidade para se valorizar o livro da Lei. Se não há sacerdócio, valoriza-se a profecia. A Babilônia é o ambiente em que se fortalece a religião de Israel, com renovadas práticas de fé. “É um fato bem notável que a ruína de Israel não constitui ao mesmo tempo o fim de sua religião. Não apenas não terminou ainda a história da religião de Israel, mas é agora que ela começa em definitivo” (RENCKENS, 1969, p. 181).

A queda de Jerusalém está descrita em 2 Rs 25,8-30, com incêndio do Templo, do palácio real e dos principais edifícios, com saque dos objetos sagrados e com prisão de sacerdotes e dos chefes. A descrição da queda se conclui com a afirmação: “Assim, Judá foi exilado para longe de sua terra” (2Rs 25,21). Na sequência, escreve uma palavra sobre os remanescentes, os camponeses de Judá, denominados “o povo da terra” (2Rs 25,22-24), e outra sobre o grupo que foi deportado para o Egito (2Rs 25,25-26).[4]

A situação dos remanescentes em Judá pode ser compreendida a partir do livro de Lamentações, espécie de coletânea de cantos fúnebres, lamentações individuais e coletivas. Refletem o sofrimento do povo, velhos abandonados, viúvas desamparadas, crianças famintas. Referem-se à destruição de Jerusalém, e têm o seu ambiente vital nos escombros do Templo. Constituem “uma espécie de ‘cancioneiro’ das celebrações litúrgicas junto às ruínas do templo de Jerusalém” (SCHWANTES, 2009, p. 57).

A situação dos refugiados no Egito se encontra em Jr 42-45. O próprio profeta acompanhou o grupo e lá proferiu palavras de ânimo e de esperança, além de denunciar as práticas sacrificiais à rainha dos céus e outras abominações (Jr 44).

A situação dos deportados para a Babilônia é a que revela mais dados sobre a vivência religiosa naquela época. Pode ser constatada nas palavras do salmista: “À beira dos canais da Babilônia nos sentamos, e choramos com saudades de Sião” (Sl 137,1). A vivência religiosa dos tempos exílicos está registrada pelas palavras e atuação de dois grandes profetas, Ezequiel e um discípulo de Isaías, conhecido como Segundo Isaías ou Dêutero Isaías (Is 40-55).

Ezequiel era sacerdote da elite de Jerusalém e foi vocacionado para a profecia em terras de exílio, fato inédito, torna-se o primeiro profeta a atuar fora da terra de Israel (Ez 1,3). O sacerdote transforma-se em profeta, outro fato extraordinário e, nessa condição, passa a animar as comunidades exiladas (3,15; 8,1; 14,1…). A glória do Senhor, que antes se manifestava no Templo de Jerusalém, transfere-se agora para aquele vale (3,23), para junto do rio Cobar (Ez 1,3; 3,15.23). Com isso, a visão profética se amplia, e reconhece a presença de Deus em meio a um grupo de pessoas escravizadas. A salvação, nessa perspectiva, está no exílio, não em Judá, que foi um povo rebelde (2,5; 12,2-3) e praticou a abominação (6,9; 8,6). Ezequiel denuncia o rei (17), os profetas (13), o Templo (8) e a elite (22,23-31). Sua proposta inclui um novo Davi, justo e dedicado aos pobres (34,23-24; 37,24); um novo templo, controlado por sacerdotes, não por políticos (40-48); um novo êxodo, com recondução dos dispersos à terra de Israel (20,42; 36,24; 37,12). Nessa visão de esperança, os reingressados serão purificados (36,25; 37,23). Os fracassos de outrora serão suplantados, em vista de uma recriação radical, “por causa do meu santo nome”, diz o Senhor (36,22). A nação será reconstruída, com o efeito do Espírito, capaz de vivificar um vale de ossos secos (37). O profeta quebra a teologia da retribuição, que justificava os males e, especificamente a destruição de Judá, como castigo de Deus. Nesse sentido, desaprova o provérbio que dizia “Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados” (18,2); e completa: “Sim, a pessoa que peca é a que morre! O filho não sofre o castigo da iniquidade do pai, como o pai não sofre o castigo da iniquidade do filho: a justiça do justo será imputada a ele, exatamente como a impiedade do ímpio será imputada a ele” (18,20). (SCHWANTES, 2009, p. 75-92).

O Dêutero Isaías (Is 40-55) dá um passo a mais. Representa um profeta ou uma profecia comunitária, porta-voz de grupos exilados. Começa proclamando: “Consolai, consolai o meu povo… dizei que o seu serviço está cumprido, que a sua iniquidade está expiada” (Is 40,1-2). O desterro foi um período de purificação, mas os pecados estão apagados (43,25-28). O que se vislumbra agora é uma recriação (43,1), um novo êxodo (43,16), com o retorno à terra de Israel (48,20; 52,11-12). Nessa libertação, manifesta-se a glória de Javé (40,5), pela ação de Ciro, o ungido (45,1) (SCHWANTES, 2009, p. 92-108).

Na realidade do exílio, a Babilônia tornou-se o ponto de referência para a renovação religiosa. Numa carta enviada por Jeremias, de Jerusalém, para as lideranças dos exilados, ele propõe que reconstruam a vida naquela nova realidade, com edificação de casas, cultivo de plantações, realização de casamentos e vida social normal: “Procurai a paz da cidade, para onde eu vos deportei; rogai por ela a Yhwh, porque a sua paz será a vossa paz” (Jr 29,7). Nesse contexto, as pessoas deportadas podem organizar-se em colônias, manter o direito de ir e vir, trabalhar nos campos. Podem manter sua língua, seus costumes e, sobretudo, suas práticas religiosas, o que assegura a sua identidade como um povo.

No contexto religioso do exílio, o javismo se afirma como domínio de um único Deus, portanto como monoteísmo, a ser reafirmado no pós-exílio, de maneira absoluta e excludente, com o retorno da elite sacerdotal. Na boca do Dêutero Isaías, é colocada esta profissão de fé: “Eu sou Yhwh, e não há outro, fora de mim não há Deus” (Is 45,5). O Deus de Israel ganha força, justamente no confronto com o Deus babilônico Marduc, ao mesmo tempo em que assume atributos daquela divindade (REIMER, 2009, p. 48-50).

A ausência do lugar sagrado para realizar os cultos dá lugar às reuniões em torno à palavra, que adquire maior importância naquele contexto. Independentemente da localização geográfica, o javismo pode ser praticado em qualquer contexto em que as pessoas se reúnem. Ezequiel reporta diversas dessas reuniões (Ez 8,1; 14,1; 20,1). Estavam lançadas aí, possivelmente, as raízes da sinagoga, instituição que surgirá mais tarde, com edifícios apropriados.

A guarda do sábado, de antiga tradição dos hebreus, passa a ser um rito de destaque para os grupos exilados. Com efeito, o sábado torna-se um distintivo da identidade daquele povo, visto que não era conhecido dos babilônios. Com razão, Ezequiel recomenda: “Deveis santificar os meus sábados, de modo que sejam um sinal entre mim e vós, para que se saiba que eu sou Yhwh, vosso Deus” (Ez 20,20).

A circuncisão tornou-se outra prática fundamental para distinguir o povo do Senhor. Tendo sido prática comum em Canaã, a circuncisão não se impunha na Mesopotâmia, de sorte que, para o povo do exílio, passou a ser, juntamente com o sábado, “sinal da aliança” (RENCKENS, 1969, p. 231).

A religião babilônica, entretanto, constituiu uma forte ameaça para o javismo. O deus Marduc era celebrado com procissões pomposas e se apresentava como vitorioso, a tal ponto que havia derrotado o povo de Israel. Não faltou quem, em suas casas, erigisse imagens dos deuses babilônicos (Ez 14,1-11), nem consultas a feiticeiras da magia daquelas divindades (Ez 13,18) (FOHRER, 1982, p. 285-286).

Apesar disso, o javismo resistiu, se fortaleceu e se recriou no ambiente exílico. Ali foi cultivado e ampliado o livro, que mais tarde veio a chamar-se Bíblia. A palavra de Deus alimentou a vida espiritual, com reinterpretação das antigas tradições, com aplicação de leis e mandamentos e com novos conceitos sobre Deus e sobre o povo. No exílio, foi ampliado o livro da Lei, que constitui basicamente o Deuteronômio; foi revista a Obra Histórica Deuteronomista (Josué-Reis); e foi concluído o Código de Santidade (Lv 17-26) (FOHRER, 1982, p. 388-390).

No exílio babilônico, a religião de Israel se refez totalmente. Essa renovação constituiu nova criação: “Assim diz Yhwh, o teu redentor, aquele que te modelou desde o ventre materno: eu, Yhwh, é que tudo fiz” (Is 44,24); nova história: “Não fiqueis a lembrar coisas passadas” (Is 43,18); novo êxodo: “Eis que vou fazer uma coisa nova” (Is 43,19); nova aliança: “Concluirei com eles uma aliança de paz, a qual será uma aliança eterna” (Ez 37,26). A esperança no futuro começa a ganhar contornos escatológicos, com visões de uma era futura de redenção e libertação. A ideia de povo de Deus sofre mudanças radicais. A salvação é para um “resto”: “Então o resto de Sião e o remanescente de Jerusalém serão chamados santos” (Is 4,3; Sf 3,13); Deus resgata a nação a partir das cinzas: “Não temas, vermezinho de Jacó, e tu, bichinho de Israel” (Is 41,14); o Messias é um servo sofredor, solidário com os escravos da Babilônia: “Yhwh quis feri-lo, submetê-lo à enfermidade. Mas, se ele oferece a sua vida como sacrifício pelo pecado, certamente verá uma descendência, prolongará os seus dias, e por meio dele o desígnio de Deus há de triunfar” (Is 53,10).

1.4 Religião no período persa

A entrada do exército de Ciro na Babilônia, em 539 aC inaugura o império persa e introduz tática política e religiosa diferente. Essa política de tolerância permite o repatriamento dos povos exilados e a prática de sua religião. A administração política e jurídica persa fica por conta das províncias, denominadas satrapias, tendo um sátrapa à frente de cada uma. O sistema econômico tributário é aperfeiçoado, com incentivo à circulação da moeda. Isso acentua a exploração, os débitos e o escravismo. A sociedade mista, resultado da política de repatriação, aumenta as diferenças sociais, herança dos babilônios. A religião oficial do império persa se baseia na tolerância, possibilitando a cada povo praticar a sua fé e seguir os seus costumes. No próprio império persa, persiste a prática religiosa com ênfase escatológica, com desdobramentos de Zoroastro, messianismo, dualismo, juízo e ressurreição.

Esse novo contexto permite o retorno dos exilados e favorece a reconstrução de Judá. Por isso, o novo imperador será saudado como “pastor” (Is 44,28) e como “messias” (Is 45,1). Com efeito, o edito de Ciro, de 538, reportado no final de 2 Crônicas e no início de Esdras, corresponde à ideologia da política persa. Liberada a possibilidade de reconstrução, vários projetos se apresentam, não sem conflitos e oposições.[5]

“No primeiro ano do rei Ciro, o rei Ciro ordenou: Templo de Deus em Jerusalém. O Templo será reconstruído para ser um lugar onde se ofereçam sacrifícios, e seus alicerces devem ser restaurados” (Esd 6,3). Com efeito, o Templo de Jerusalém foi reconstruído em cinco anos, de 520 a 515 aC. Diversas forças convergiram para a proposta de recuperação do sacerdócio, culto e sacrifícios. Com apoio do imperialismo persa, colaboram Zorobabel, descendente do rei de Judá; Josué, descendente do sumo sacerdote de Jerusalém; Esdras, escriba e representante do rei da Pérsia; Neemias, governador de Judá, nomeado pelo rei da Pérsia; os profetas Ageu e Zacarias. O projeto de reconstrução, claramente, reunia as elites colaboracionistas, para juntar trono e altar, política e religião, numa espécie de sistema teocrático. Na concorrência para identificar quem era o verdadeiro Israel, o grupo dominante conseguiu apoio de grande parte do povo, para construir o chamado segundo Templo. A teologia da retribuição foi recuperada, para justificar que o sofrimento do povo era castigo de Deus, por ter abandonado o Templo em ruínas (Ag 1,3-11); ou que era devido aos casamentos com mulheres estrangeiras (Esd 9,1-2; 10,2.10). A ideologia que dá sustentação a esse projeto exclusivista está expressa na teologia deuteronomista, agora intensificada (VASCONCELLOS; SILVA, 2009, p. 161-170).

Em síntese, a proposta religiosa oficial propõe o cumprimento estrito da Lei, explicada por Esdras e pelos levitas (Ne 8,1-8); a recuperação da pureza da raça, com a consequente expulsão das mulheres estrangeiras e dos filhos nascidos dessas uniões (Esd 10,3.11); a construção do Templo, como lugar exclusivo de culto ao único Deus Yhwh; o restabelecimento da teologia davídica, com a proposta de um novo messias.

Essa religião baseada na Lei, no Templo e na raça pura foi a que se impôs como oficial e constituiu as bases do Judaísmo. Mas não sem oposição. Já na construção do Templo, confrontaram explicitamente os samaritanos (Esd 4,1-23), que passaram a formar uma corrente religiosa diferente. Outros grupos ou movimentos de contestação podem ser identificados nas entrelinhas da literatura que se seguiu. Cinco rolos, devidamente nomeados Meguillot em hebraico, constituem uma espécie de Pentateuco popular. Reúnem histórias como a de Rute, mulher, viúva, estrangeira, pobre, que se integra ao povo e ao Deus de Israel: “Teu povo será o meu povo e teu Deus será o meu Deus” (Rt 1,16); e dá origem à linhagem de Davi, um messias bem diferente daquele rei ideal: “Nasceu um filho a Noemi e chamaram-no Obed. Foi ele o pai de Jessé, pai de Davi” (Rt 4,17). O Cântico dos Cânticos é outro livro do mesmo teor, protagonizado pela fala de uma mulher, camponesa e pastora, decantando o amor e a paixão, na liberdade dos corpos e na transgressão das regras legais de pureza. A única menção ao nome divino, em todo o livro, seria uma abreviatura de Yhwh, quando declara: “Pois o amor é forte, é como a morte! Cruel como abismo é a paixão; suas chamas são chamas de fogo uma faísca de Yah” (Ct 8,6). Mais adiante, nessa mesma coleção dos cinco rolos, encontra-se Eclesiastes, questionando o próprio sentido da existência sob os governos opressores, e no qual não há uma menção sequer ao nome de Deus. Completam a lista dos cinco rolos os livros de Lamentações, sobre as ruínas de Jerusalém e de Ester, sobre o heroísmo de uma mulher (MENA LÓPEZ, 2010, p. 9-158).

Nessa linha de oposição ao Judaísmo oficial, poderiam ser mencionados Jó, que contesta a teologia da retribuição; e Jonas, inconformado com a conversão de Nínive. E ainda, as propostas escatológicas de novo céu e nova terra, com inclusão de estrangeiros, do Trito Isaías (Is 56-66); o derramamento do Espírito sobre crianças e idosos e sobre escravos e escravas, do profeta Joel (Jl 3,1-5); o Messias pobre, montado num jumento, conforme o Dêutero Zacarias (Zc 9,9-10); o Templo como centro de justiça, do profeta Malaquias (Ml 3,1-5).

1.5 Religião no período helenista

Alexandre, denominado o grande, ao vencer os persas, funda novo império, e dá início ao projeto helenista, a partir de 333 aC. A sua breve e vitoriosa trajetória, sintetizada no início do primeiro livro de Macabeus, bem como o reinado de seus sucessores e de seus filhos, recebem um juízo lapidar: “E multiplicaram os males sobre a terra” (1Mc 1,9). Na visão de Daniel, Alexandre é comparado a um bode chifrudo, de cujos chifres nascem quatro outros, que o sucederam (Dn 8,1-22). O chifre mais terrível será um de seus descendentes, Antíoco Epífanes (Dn 7,8). A informação do primeiro livro de Macabeus é confirmada pela história: “Alexandre… depois de tudo isso, caiu doente e percebeu que ia morrer… convocou então os seus oficiais… e, estando ainda em vida, repartiu entre eles o reino” (1Mc 1,5.6). Com efeito, o reino foi dividido entre os quatro generais de confiança de Alexandre, chamados diádocos. Os que mantiveram controle sobre a Judeia foram os Ptolomeus, a partir do Egito, por um século (301 a 198 aC), em seguida os Selêucidas, a partir da Síria, por quase mais um século. E impuseram, cada império ao seu modo, o pensamento helenista.[6]

A partir de Alexandre, efetivamente, o mundo de então passa a ser helenizado, com consequências que perduram até os dias atuais. A unidade política autônoma, nos domínios helênicos, é a polis, a cidade livre. A economia, baseada no livre mercado, aumenta a circulação de riquezas e facilita a sociedade latifundiária e escravista. A filosofia que dá sustentação ao novo projeto é racionalista, com desdobramentos para o universalismo, o humanismo, o materialismo e o dualismo. A religião segue os moldes filosóficos, tendo Zeus como deus supremo de um panteão variado. A prática religiosa incluía sacrifícios às divindades, prostituição sagrada e êxtases místicos. A mitologia explicava os grandes mistérios do ser humano e do mundo. As preocupações com a vida após a morte não eram tão acentuadas como em outras religiões (REINKE, 2019, p. 232-247).

O Judaísmo oficial, nos inícios da época helenista, deve estar bem constituído, tendo o Templo de Jerusalém em funcionamento, com todo o seu aparato litúrgico e com a hierarquia sacerdotal em exercício, como se constata pelos livros do Levítico e de Ezequiel. A Lei, dita Torah, deve ser seguida fielmente, como forma de ser e de comportar-se, conforme o Pentateuco, que já tem sua forma definitiva. Para interpretar a Lei, surge uma nova classe, ao lado dos sacerdotes, os escribas ou doutores da Lei. Enquanto os sacerdotes cuidam do Templo, ligados ao culto, os escribas orientam a sinagoga, focados no livro. São chamados de rabbi, e manterão o Judaísmo ativo, após a destruição do Templo. Historicamente, o Templo de Jerusalém, reconstruído após o retorno do exílio, não chegou a ocupar a centralidade do culto, como ocorrera com o primeiro Templo, da época da monarquia. A novidade do culto fica por conta da sinagoga, não mais centrada nos sacrifícios sangrentos oficiados por sacerdotes, como os do Templo, mas sim na participação de toda a comunidade, mulheres, crianças e homens judeus, como atestado desde a época persa, conforme a assembleia liderada pelo escriba Esdras, com leitura da escritura e oração (Ne 8). Na sinagoga, “leitura e aprendizado da Torá são as atividades principais, às quais se agregam oração e meditação” (GERSTENBERGER, 2007, p. 306).

Da Bíblia Hebraica, duas coleções estavam formadas, a Lei (Torah) e os Profetas (Nebiîm). A terceira coleção, dos Escritos (Ketubîm), é objeto de forte atividade literária nesse período helenista, com acento na sabedoria (RENCKENS, 1969, p. 241-243).

A literatura sapiencial, expressão forte do pensamento judaico, recebe sua forma definitiva nesse período próximo à era cristã, embora suas raízes sejam muito antigas. O livro de Provérbios expressa essa contribuição, através de ditos populares, passados de boca em boca, a partir de experiências do cotidiano. Por isso mesmo, os provérbios refletem as contradições da vida, seja de riqueza e pobreza, palácio e campo, reis e escravos, justiça e impiedade, mulheres e homens, crianças e anciãos, sábios e estultos. A sabedoria em geral, e os provérbios em particular, sofreram influências estrangeiras, principalmente do Egito (Pr 22,17-24,22). Nesses momentos de crise, o livro de Eclesiastes elabora o pensamento judaico crítico na diáspora do Egito, sob o domínio de Ptolomeu. O livro de Jó, questionando o sentido do sofrimento do inocente, aprofunda a crítica à teologia da retribuição (CRB, 1993, p. 13-33).

A literatura apocalítica também ganha impulso, nesse período helenista, com influência persa e com acento na escatologia. Desde a crise do exílio, a profecia começa a ganhar traços apocalípticos, já com Ezequiel (Ez 38-39) e com Isaías (Is 24 e 27; 34 e 35; 65 e 66). Porém ganha traços mais escatológicos com Joel, Malaquias, Dêutero Zacarias (Zc 9-14) e, principalmente, com Daniel. Esse gênero se desenvolve amplamente no período do intertestamento, em diversos livros apócrifos. No Novo Testamento, o Apocalipse de João é a expressão máxima dessa teologia. Caracteriza-se como expressão religiosa de resistência de quem não tem força política; traduz-se em linguagem fortemente simbólica, para expressar os anseios religiosos; possui, em geral, visão dualista do mundo e da história; não raro apela para o pseudônimo e para nomes cifrados; busca, sobretudo, decifrar os mistérios divinos em meio à crise (CRB, 1996, p. 32-59).

O hassidismo foi outro movimento religioso de resistência judaica, contra o helenismo, no período de dominação selêucida e, especialmente, frente à dominação de Antíoco IV Epífanes. Os hassideus (piedosos) tinham raízes antigas como grupo dos observantes da Lei judaica (1Mc 2,29-42). Mas se manifestaram com veemência no confronto com a helenização dos selêucidas, batalhando ao lado de Judas Macabeu (2Mc 14,6). Uniram-se posteriormente ao sumo sacerdote Alcimo (morto em 159), porém este os desiludiu em suas esperanças religiosas, ofendendo-os com a destruição dos muros externos do Templo, o que facilitava o acesso dos pagãos ao lugar sagrado. Há quem atribua aos hassideus, Dn 7-12 e 2Mc 6-7, textos sobre o martírio de Eleazar e a mãe com os sete filhos. O movimento hassideu, posteriormente, deu origem aos fariseus e aos essênios, estes ligados a Qumran. O nome fariseu foi dado pelos gregos, para significar “separados” ou “separatistas”. Fariseus e saduceus nasceram no período de João Hircano I (134-104 aC), o sacerdote comandante. Ambos preocupados com a lei, sendo os saduceus mais liberais e inclinados à política helenista (KONINGS, 2011, p. 102-103).

As influências do helenismo se farão sentir, sobre a religião de Israel, bem como sobre o Cristianismo, de maneiras diversas. Enquanto os judeus se identificavam com práticas éticas e religiosas específicas, fundamentadas na Lei, os gregos propunham uma religião universal, desvinculada do contexto existencial. Enquanto alguns judeus aderiram a essas ideias helenistas, outros reagiram radicalmente. Dentre as influências helênicas sobre o Judaísmo, destaca-se a tradução da Bíblia Hebraica para o grego, chamada Septuaginta ou LXX. Essa Bíblia será o elo de ligação com o Cristianismo, principalmente pela atuação dos missionários junto às comunidades gentílicas. A Septuaginta reflete o ambiente dos judeus da diáspora, vivendo numa comunidade helenizada do Egito, chamada Alexandria (SCARDELAI, 2008, p. 86-88).

A cultura helenista incidiu de tal maneira sobre os inícios do Cristianismo que fez Jesus e os apóstolos galileus falarem grego; impôs a escrita dos Evangelhos e de todo o Novo Testamento na mesma língua grega; e obrigou os hagiógrafos cristãos a citarem a Bíblia Hebraica a partir da tradução grega dos LXX. Outras influências do helenismo se estendem sobre o Cristianismo e sobre a própria cultura ocidental, e incluem aspectos que envolvem o conceito político de democracia, a filosofia racionalista, o movimento renascentista, a visão dualista do ser humano como corpo e alma, e a teologia cristã aristotélico-tomista.

2 A religião cristã do Novo Testamento em seu contexto religioso e cultural

A religião do Novo Testamento é constituída por “uma comunidade que nasceu do Judaísmo antigo, mas que, ultrapassando-lhe a delimitação étnica e cultural, compreendeu-se a si mesma como a verdadeira renovação da Aliança e como caminho para a realização universal do ‘povo de Deus’: a comunidade cristã” (KONINGS, 2011, p. 115).

A comunidade cristã, com efeito, surge como uma renovação interna do próprio Judaísmo, de cuja tradição herdou as Escrituras Sagradas, os costumes e as práticas que constituem a sua matriz religiosa. Afirmou-se também no diálogo, ora amistoso, ora conflitivo, com o helenismo, tanto em suas ideias filosóficas quanto em suas práticas populares. E se consolidou no Império Romano, com forte caráter de resistência e de superação.

Diante da vastidão e complexidade do assunto, segue-se, igualmente, elaboração sintética, com intenção didática, na abrangência histórica do primeiro século da era cristã. Para a periodização desses cem anos, utilizam-se alguns eventos marcantes, com datas arredondadas: nascimento de Jesus (ano 1), morte de Jesus (ano 30), início das grandes missões e da redação do Novo Testamento (ano 50), queda de Jerusalém e incêndio do Templo (ano 70), final do primeiro século (ano 100).[7]

2.1 Jesus de Nazaré, encarnado, crucificado e ressuscitado

As primeiras três décadas do Cristianismo, idealmente do ano 1 ao ano 30 da nossa era, situam-se nos confins do Império Romano, entre o vilarejo da Galileia dos gentios, chamado Nazaré, e a capital da fé judaica, a cidade de Jerusalém. A trajetória histórica de Jesus se desenvolve entre dois acontecimentos extraordinários para a fé, a encarnação e a ressurreição. A encarnação é descrita, por Lucas, com o anúncio de um anjo: “Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor, na cidade de Davi” (Lc 2,11). E a ressurreição é apresentada por Marcos igualmente com as palavras de um jovem mensageiro: “Estais procurando Jesus de Nazaré, o Crucificado. Ressuscitou, não está aqui” (Mc 16,6). Os Evangelhos reconhecem, nesse homem, a realização das esperanças messiânicas judaicas. Identificam o Messias servo sofredor com a pessoa do judeu galileu dos inícios do século I. Jesus pode ser situado “no mundo judaico no qual ele nasceu, cresceu, foi educado, e pelo qual ele foi barbaramente crucificado na cruz romana” (SCARDELAI, 1998, p. 230).

Os seus conterrâneos o reconhecem como um profeta, e mais, como “o” profeta, aquele prometido nos tempos antigos (Dt 18,15.18), como declara a multidão após a multiplicação dos pães: “Este é verdadeiramente o profeta, aquele que deve vir ao mundo” (Jo 6,14). Pelas palavras e ações de Jesus, relatadas nos Evangelhos, emerge a figura de um profeta popular, com traços messiânicos, atento prioritariamente ao pão e à saúde do povo pobre e marginalizado. Nas curas das doenças se revela a ação de Deus, e na partilha da mesa com os pobres se constrói a comunidade. Com linguajar simples e envolvente, através de ditos e parábolas, chama a atenção para um estilo de vida diferente. Essa proposta desafiadora exige radicalidade total, a ponto de renunciar à própria vida. E leva a uma relação diferente com o próprio Deus, como uma criança que se dirige ao seu papai (Abbá). Essa proposta radical da Galileia se apresenta como uma boa notícia, preferencialmente para os pobres, como expressa o chamado Sermão da Montanha (Mt 5,1-12). Propõe um Israel renovado, com perdão das dívidas, recuperação de famílias e comunidades, além da superação da doença e da fome. A esse projeto de vida radical, o próprio Jesus chama de Reino de Deus (PIXLEY, 1986, p. 85-96).

O projeto de Jesus, como era de se esperar, encontra resistências, por parte das autoridades da religião judaica por um lado e, por outro, por parte das autoridades da política romana. A conjugação dessas forças é que vai condená-lo à morte. A sentença sobre a sua cabeça traz como acusação: “rei dos judeus”.

Jesus viveu, efetivamente, a realidade de um camponês da Galileia, região sufocada pela presença militar e pela cobrança de impostos por parte do Império Romano. Assimilou, plenamente, as tradições religiosas de seu povo, com as orações em família e com os cultos na sinagoga. Na Galileia, praticou a Torah e respeitou a religião popular do seu povo. Mas superou os limites legais, pela proposta da justiça com misericórdia. Rompeu, nesse sentido, com as amarras do legalismo e da religião formal (FREYNE, 1996).

2.2 O movimento de Jesus e as primeiras comunidades cristãs

As próximas duas décadas, esquematicamente, do ano 30 ao ano 50, situam-se no contexto da religião judaica, com incursões no mundo helenístico, entre Jerusalém e Antioquia da Síria. É o período de discipulado e missão, em que muitas comunidades judaicas aderem ao modo de vida proposto por Jesus. A sua memória torna-se uma presença constante e intensifica o cultivo de suas palavras e ações. Começam a ser coletados os seus ditos e parábolas, elaborados relatos de paixão e reunidas narrativas de milagres.

Jesus chama discípulos, segundo Marcos (Mc 3,14-15), com três finalidades específicas: ficar com ele, sair a pregar e expulsar demônios. Esse tríplice chamado se realiza plenamente após a morte e ressurreição do Mestre. O “permanecer com Jesus” se efetua na memória viva, através do cultivo das suas palavras e das celebrações de sua ceia. O “sair a pregar” desencadeia um movimento missionário para além dos limites geográficos e culturais. O “expulsar demônios” se concretiza no combate a todas as formas de mal que grassavam nos diversos contextos.

O que chamamos de movimento de Jesus era uma proposta de vida radical, que implicava desapego de pátria, de família e de posses. O fundamento para essa proposta está no chamado discurso missionário (Mt 10). Indica um estilo de vida itinerante, dois a dois, de casa em casa, sem levar nada consigo, para expulsar os males e levar a paz (HOORNAERT, 1994, p. 85-91).

Esse movimento missionário afirma-se nas sinagogas e nas casas, constituindo grupos locais, comunidades de fé com novo formato. Em torno à pessoa de Jesus, de seus familiares e vizinhos, possivelmente formam-se as primeiras reuniões. Eram comunidades de fala aramaica. Sua vivência marca os Evangelhos, com características camponesas, ligadas à pesca, vítimas da exploração, acometidas por muitas doenças, mas firmes na fé e na esperança. Os Evangelhos apresentam vários indícios da importância da Galileia para os inícios da fé cristã. Segundo Marcos, logo que soube da prisão do Batista, Jesus começou a proclamar o Evangelho de Deus na Galileia (Mc 1,14). De acordo com Lucas, na sinagoga de Nazaré, aldeia natal de Jesus, ele proclama a sua missão profética para evangelizar os pobres (Lc 4,16-22). Os diversos relatos de aparições de Jesus remetem para o encontro com o ressuscitado na Galileia (Mc 14,28; 16,7; Mt 28,7.10.16; Jo 21). Os Atos dos Apóstolos também confirmam a existência de comunidades na Galileia (At 9,31). E a apresentação daquilo que poderia ser um primeiro plano missionário, na força do Espírito Santo, é dito pelo ressuscitado: “E sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e a Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8) (FREYNE, 1996, p. 229-231).

Logo, em Jerusalém, formam-se comunidades em torno à ressurreição de Jesus e à luz do Pentecostes. Ao reunir judeus e helenistas, essas comunidades enfrentam conflitos internos (At 6). A concorrência se dá entre a prática de um Judaísmo radical e legalista, representado pelo grupo de Tiago (At 12,17; 15), e a proposta de outro grupo mais liberal e aberto aos gentios, representado posteriormente pelo apóstolo Paulo.

Entre a Galileia e a Judeia, na Samaria, formam-se comunidades cristãs, reunindo judeus e samaritanos. Atos dos Apóstolos registra a missão de Filipe, com o batismo do eunuco (At 8). O Evangelho de João também testemunha essa presença cristã, pela evangelização da mulher samaritana (Jo 4).

Em Antioquia, capital da Síria, já fora dos limites de Israel, os seguidores de Jesus são chamados cristãos pela primeira vez (At 11,26). Nessa comunidade, de tradição judaica e com forte presença de helenistas, acentua-se o conflito entre duas formas de viver a fé, segundo a Lei judaica ou aberta para a inserção de gentios. A discussão entre Pedro e Paulo ilustra bem essa diferença (Gl 2,11-14). As divergências concentravam-se sobre a necessidade ou não de circuncidar os não judeus, mas envolviam questões de pureza, de comer carnes imoladas aos ídolos e de uniões ilegítimas, como consta no chamado Concílio de Jerusalém (At 15,1-35).

2.3 Comunidades na Ásia Menor, Grécia e Roma

Em mais duas décadas, entre os anos 50 e 70 dC, o Cristianismo se expande da capital do Judaísmo, Jerusalém, até Roma, a capital do Império. É o período de abertura para o helenismo, passando pela Ásia Menor, Grécia e Roma. Os conflitos com o Judaísmo se acentuam, à medida que a novidade cristã se difunde. A revolta do Judaísmo contra o Império Romano termina com a queda de Jerusalém no ano 70 e a consequente diáspora judaica. O movimento missionário cristão é impulsionado, com destaque para a atuação do apóstolo Paulo. A pregação da Boa Nova se concentra nas grandes cidades do Império, mas também inclui comunidades rurais, como testemunham as cartas aos Gálatas e a primeira carta de Pedro. Ganha impulso, nesse período, a tradição escrita, que formará as escrituras cristãs, o chamado Novo Testamento. Começa com as cartas de Paulo e prossegue com a redação dos Evangelhos, e com os demais escritos, até terminar, com o Apocalipse.

Paulo é o protótipo do judeu helenista que adere ao Cristianismo. Ele consegue conciliar, em sua rica personalidade, características diferentes e até contraditórias: judeu radical de tradição farisaica, grego helenista da diáspora, romano com cidadania imperial, cristão apóstolo e missionário. A sua atuação envolve a colaboração de pessoas diversas: o casal Priscila e Áquila, o pregador egípcio Apolo (At 18,24), as líderes Cloé (1Cor 1,11) e Lídia (At 16,14), a diácona e patrona Febe (Rm 16,1.2), os missionários Silvano e Timóteo, o médico e escritor Lucas, o escritor Tércio (Rm 16,22) e muitas outras pessoas (Rm 16). Esse movimento missionário se expande por todo o Império e desencadeia uma inovação radical: o Cristianismo ultrapassa a Ásia e se difunde para a Europa; alarga os conceitos da religião judaica com a inclusão do Helenismo; amplia as práticas camponesas para o mundo urbano; supera a família patriarcal pela comunidade eclesial; substitui o regime da Lei pelo dom da graça; e suplanta o sistema escravagista pela liberdade em Cristo (MESTERS, 1991, p. 130-131).

Nessa expansão missionária, o Cristianismo recupera a importância da casa, conceito judaico que envolve o sentido de clã ou família ampliada. O casal Priscila e Áquila disponibilizou sua casa para fundar igrejas em Corinto, Éfeso e Roma (Rm 16,3-5; 1Cor 16,19). A Filêmon, Paulo escreve saudando a “igreja da tua casa” (Fm 2). Outro exemplo significativo é a “igreja da casa” da mulher Ninfas (Cl 4,15). Outra “igreja da casa” liderada por uma mulher é a de Lídia, em Filipos, que acolheu Paulo (At 16,15.31.34) (COMBLIN, 1987, p. 320-355).

Para além da realidade das casas, essenciais para o apoio missionário, o Cristianismo integrou a prática das associações da época. No âmbito do Império Romano, diversas categorias culturais ou religiosas reuniam-se em associações, conhecidas como collegia. Podia ser de artesãos, esportistas, teatrólogos, fiéis de uma mesma crença e outros. A associação dos ourives em Éfeso é recordada pelo confronto com Paulo (At 19,23-24). A comunidade de Qumran é um exemplo radical de associação religiosa. A mais importante, para o Cristianismo, era a própria sinagoga judaica, assembleia religiosa que serviu de matriz para as comunidades cristãs. Essas diversas assembleias criavam um ambiente favorável à expansão religiosa. As primeiras missões cristãs estavam inseridas nesse ambiente religioso, em movimentos de aproximação e de oposição, em vista de uma proposta original (COMBY; LÉMONON, 1988).

Essas primeiras comunidades cristãs, em geral de tradição paulina, cultivavam laços de fraternidade e partilha, mas eram heterogêneas. Reuniam mais gentios (helenistas) que judeus. Gentios incluíam “prosélitos”, pagãos que aderiram integralmente ao Judaísmo, até mesmo com a prática da circuncisão e “tementes a Deus”, pagãos que haviam aderido a algumas práticas do Judaísmo. Na sua diversidade, as comunidades apostólicas incluíam pobres e ricos, mais pobres das periferias das grandes cidades, com grande número de escravos. Na mesma comunhão com escravos, participavam também libertos e livres. Mulheres e homens tinham igualdade de participação. Havia pessoas rudes e outras cultas. As lideranças eram espontâneas, segundo os diversos carismas, como apóstolos, profetas, mestres e muitos outros (MESTERS, 1991, p. 63-106).

A prática de partilha incluía coletas solidárias, como as das comunidades gentias da Macedônia e Acaia para as comunidades judaicas de Jerusalém (Rm 15,26-28). O mesmo exemplo é recomendado à Igreja de Corinto (1Cor 16,1-4), com motivação, elogio e proposta de organização da coleta (2Cor 8,7-15). Paulo se refere à partilha no contexto de sua autodefesa: “Depois de muitos anos, vim trazer esmolas para o meu povo e também apresentar ofertas” (At 24,17). Essa opção é formulada expressamente, como uma prioridade absoluta, após a assembleia de Jerusalém: “Nós só nos devíamos lembrar dos pobres, o que, aliás, tenho procurado fazer com solicitude” (Gl 2,10).

Ao interno das comunidades, as celebrações avivavam a memória de Jesus Cristo presente. As menções principais referem-se à Palavra, à ceia e ao batismo. A liturgia da Palavra era feita com leitura e partilha pelas pessoas da assembleia. A celebração da ceia ganhava importância central, a ponto de ter sido identificada com a religião dos mistérios, em que se comia a carne e se bebia o sangue de um Deus. O batismo era o rito de adesão de novos fieis às comunidades cristãs. A expectativa da parusia iminente, isto é, da próxima segunda vinda de Jesus, animou a esperança das comunidades perseguidas, sobretudo nos inícios de sua vivência cristã.

2.4 Igrejas cristãs

O ano 70 dC representa um trauma para as comunidades cristãs e judaicas. Após quatro anos de resistência, a revolta judaica é abafada por Roma, com a queda de Jerusalém e o incêndio do Templo. As três décadas finais do primeiro século são marcadas por perseguições por parte dos romanos e por conflitos entre judeus e cristãos, que evoluem para o rompimento, com consequências históricas duradouras. Enquanto alguns partidos político-religiosos, como os saduceus, herodianos, zelotes e essênios perdiam força, devido à destruição do Templo, os cristãos e os fariseus ganharam novo impulso, mas tomaram caminhos diferentes. O farisaísmo se concentra em Jâmnia, onde se separa do Cristianismo, e evolui para o rabinismo judaico (SCARDELAI, 2008, p.142-146).

Enquanto isso, no período pós-destruição de Jerusalém, os cristãos se afirmam e se expandem em suas comunidades, com diferentes acentos teológicos.

Mais conhecidas são as comunidades pós-paulinas, pelas informações dos escritos atribuídos a Paulo, e conhecidos como cartas deuteropaulinas (2Ts; Cl; Ef; 1 e 2Tm; Tt; Hb). Essas cartas retratam o ambiente da Ásia Menor e refletem visão teológica distinta das anteriores. Demonstram um Cristianismo mais voltado para a institucionalização hierárquica, organizacional e doutrinal. Enquanto as cartas anteriores eram endereçadas a assembleias comunitárias, agora tendem a ser dirigidas a líderes de comunidades, como Timóteo e Tito. Timóteo está em Éfeso (1Tm 1,3) e Tito é responsável por organizar e constituir presbíteros na Igreja de Creta (Tt 1,5). Jesus Cristo era o mestre das comunidades locais, agora é apresentado como cabeça da Igreja, centro do cosmo, acima de tronos, dominações e potestades (Cl 1,15-20). As Igrejas, antes grupos de vivência e de partilha, tendem agora para comunidades organizadas em hierarquia, com epíscopos, presbíteros e diáconos (1Tm 3,1-13). As relações interpessoais eram solidárias na igualdade, agora são assimétricas, com poder de senhores sobre escravos e de homens sobre mulheres (Col 3,18-4,1). A prática eclesial, antes voltada para orientações comunitárias, visa agora mais a ética e a piedade individuais (Tt 2,2-10). A insistência na prática do amor fraterno é suplantada pela recomendação com a sã doutrina (1Tm 1,10) e a prevenção contra falsos doutores (1Tm 4,1-11) (STRÖHER, 2006, p. 5-134).

As comunidades joaninas situam-se no final do século I, e podem ser conhecidas por uma literatura própria, constituída por um Evangelho (Jo), aparentado com três cartas (1, 2 e 3Jo) e um Apocalipse (Ap). Retratam o ambiente da Ásia Menor, em torno a Éfeso, e se ressentem de influências filosóficas externas, de ruptura com a sinagoga judaica e de conflitos doutrinais internos. Por isso mesmo, insistem no testemunho, no amor e na fidelidade. Confirmam a perseguição e a perseverança, com verdadeiro martírio de sangue e com renovada esperança de novo céu e nova terra (KONINGS, 2011, p. 145-147).

Outras comunidades de fé cristã, do final do século I, são retratadas nas ditas cartas católicas ou universais (Tg; 1 e 2Pd; 1, 2, 3Jo; Jd), porque se dirigem a comunidades diversas, de maneira mais abrangente. Essa literatura ilustra a inserção do Cristianismo em contextos diferentes, de maneira fiel e criativa.

Sirva como conclusão de toda essa caminhada histórica, a afirmação da carta de Tiago, que sintetiza a dimensão ética da religião da Bíblia: “A religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1,27).

Valmor da Silva . PUC Goiás. Texto original em português. Recebido: 05/01/2020. Aprovado: 09/11/2021. Publicado: 24/12/2021.

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[1] Yhwh será utilizado normalmente, como transcrição do tetragrama para o nome divino, dito Adonay, Javé, Jeová ou Senhor.

[2] Para a citação dos textos bíblicos, segue-se normalmente a Bíblia de Jerusalém (2002).

[3] Sobre a importância da profecia na religião de Israel há inúmeras obras. As notas que seguem podem ser aprofundadas em Renckens (1969, p. 184-221); Fohrer (1982, p. 273-358); Gunneweg (2005, p. 235-283).

[4] Sobre a religião no exílio, segue-se aqui, fundamentalmente, Schwantes (2009), Renckens (1969, p. 222-233); Fohrer (1982, p. 381-407); Gunneweg (2005, p. 285-295).

[5] Sobre a religião no período persa, pode-se consultar Renckens (1969, p. 233-238); Fohrer (1982, p. 411-440); Gunneweg (2005, p. 297-306).

[6] Sobre a religião no período helenista, veja Renckens (1969, p. 238-251); Fohrer (1982, p. 441-485); Gunneweg (2005, p. 307-341).

[7] Para a visão panorâmica da história e literatura pode-se conferir: Vasconcellos e Silva (2009, p. 223-370).