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Maria Mãe de Jesus (Mariologia)

Sumário

1 Mariologia

1.1 Mariologia na atualidade

1.2 Ecumenismo

1.3 Dogmas marianos

1.4 Mariologia popular

1.5. María nas Conferencias Episcopais Latinoamericanas

1.6 María e a mulher

2. Referências Bibliográficas

1 Mariologia

Denomina-se Mariologia aos estudos sistemáticos sobre a mãe de Jesus, a Virgem Maria, com base na Palavra de Deus, a Tradição da Igreja, os santos Padres, o Magistério, a teologia e a fé dos fiéis. Ao longo da história foi colocada a pregunta  sobre o lugar da mariologia dentro da teologia, sobre se tinha o seu próprio espaço ou se ela estava ligada com a eclesiologia, como fez o Concilio Vaticano II, que a incorporou em um capítulo da Constituição Dogmática Lumen Gentium.

1.1 Mariologia na atualidade

O termo Mariologia surgiu para indicar um tratado diferente e separado de acordo com o método escolástico e seu uso tem variado ao longo da história. No século XX, observa-se uma fase de ascensão da mariologia representado pelo desenvolvimento de tratado de mariologia e sua introdução nas escolas de teologia. Bem como outra fase de contestação  que a coloca em crise e outra de recuperação mariológico sobre umas novas bases e uma nova abordagem. Na Mariologia atual tem aparecido um crescente interesse em investigar a vida concreta de Maria e seu significado salvífico. Também está se recuperando a sua imagem histórica, existencial, razão pela qual  foram publicadas desde o início do século XX várias “Vidas de Maria”. Através das fontes bíblicas fizeram-se incursões na sua vida histórica, referidas a Jesus, e que  ajuda a conhecer o seu lugar na vida da Igreja. Foram elaborados “retratos espirituais”, “ícones isolados da sua figura” que não são biografias, mas que nos aproximam de sua figura.

1.2 Ecumenismo

Ao longo dos séculos, a Mariologia e o culto mariano, juntamente com outras questões relacionadas com o papado e os ministérios da Igreja, foram apresentadas como dificuldades no caminho da unificação da Cristandade. Tanto é assim que as diferenças entre protestantes e postura católica frente à mãe do Senhor, podem ser consideradas insuperáveis apesar dos esforços do ecumenismo. Uma das dificuldades citadas por K. Barth e W. von Lowenich é a mediação de Maria. Para J. Daniélou, este é o coração do problema de divergência entre as duas (NAPIÓRKOWSKI, S., 2001, p. 644).

Dentro das raízes do problema se encontram metodologias teológicas incompatíveis, tais como a que afirma que,  apenas através da Escritura (sola Scriptura), a Revelação Divina é interpretada,  sem a Sagrada Tradição. Além disso, a visão antropológica que considera o ser humano cooperador de Deus (cooperatio), ou seja, que  com a ajuda da graça, pode merecer e  intermediar, levando a salvação de Jesus aos outros. Assim como a doutrina da comunhão dos santos (communio sanctorum) que une em amizade aqueles que já vivem junto de  Deus e aqueles que  peregrinam na terra. Ambas as visões são contrárias aos princípios protestantes de que somente através de Cristo (Solus Christus), unicamente pela sua graça (sola gratia) e só pela fé (sola fides), Deus salva. O princípio que afirma a Cristo como o único Mediador (Christus o unus Mediator) é considerado, em particular, como uma interpretação exclusivista e antimariológica. Ele enfatiza que Maria não exerce nenhum papel mediador e exclui a possibilidade de que os crentes podem recorrer a ela ou aos santos através da oração e intercessão. .

Quanto às dificuldades relacionadas com os conceitos mariológicos e as práticas devocionais existem várias causas, algumas são o resultado de abusos do catolicismo, que promoveu maximizar a piedade mariana. Um exemplo é a máxima de São Bernardo de Clairvaux quando afirmou que para dizer que a respeito de Maria nunca é dito o suficiente  (De Maria numquam satism).

Na base dessas diferenças encontramos a falta de conhecimento e compreensão mútua entre católicos e não-católicos que impossibilita alcançar acordos. Cometeram-se erros em ambos os lados e, ao longo dos anos, tem havido reuniões e diálogos ecumênicos que deixaram espaços abertos para continuar a discussão mariológica.

O decreto do Vaticano II sobre o ecumenismo, Unitatis redintegratio 11 recorda que “há uma ordem ou” hierarquia “de verdades na doutrina católica, por ser diversa sua conexão com o fundamento da fé.” Esta frase refere-se a situações de desconhecimento dos fiéis das verdades da fé que possam ser reinterpretadas em suas ações, tais como a oração em frente dos altares laterais da Virgem e dos santos e não diante do Santíssimo Sacramento em sua tabernáculo.

 As atitudes polémicas continuam em ambos os lados. O retorno às fontes bíblicas para a interpretação da mariologia tem ajudado no diálogo ecumênico. Devemos mencionar o grupo ecumênico de Dombes (1936), pioneiro na busca da unidade eclesial entre protestantes e católicos. O documento sobre “Maria no plano de Deus e a comunhão dos santos”, (1998) de sua autoria, foi uma contribuição positiva em uma das questões mais controversas, abrindo o caminho para o diálogo ecumênico.

Os avanços na reinterpretação dos dogmas são espaços que se abrem na busca da unidade, tal como expresso nas conclusões de congressos mariológicos internacionais com participação de protestantes e ortodoxos: “A declaração ecumênica sobre o papel de Maria na obra de redenção “, Roma 16 de maio de 1975, e ” declaração ecumênica sobre a veneração de Maria”, , Zaragosa, 9 de outubro de 1979. Nos EUA, o diálogo ecuménico teve início em 1965 com o patrocínio do comitê nacional da Federação Luterana mundial e a conferência dos Bispos dos EUA.

Para resolver a situação da Mariologia e procurar a unidade desejada no ecumenismo, os problemas a serem resolvidos de acordo com o mariólogo Napíorkowski,(cfr. (NAPIÓRKOWSKI, S., 2001, pp. 652-653), seriam:

– Admitir a existência do pluralismo teológico nas igrejas e assim também, através das várias estruturas de pensamento, é difícil, se não impossível um pleno acordo. Aproximações podem ser  alcançadas, mas não se consegue uma identificação completa como, por exemplo, com os dogmas da imaculada ou da assunção.

– É necessário uma correção do modelo de  mediação de Maria, uma vez que o modelo por Maria a Cristo tem dificuldades teológicas, pastorais e ecumênicas.

– É necessário evitar qualquer falso exagero como expressa LG 67 ” Evitem com cuidado, nas palavras e atitudes, tudo o que possa induzir em erro acerca da autêntica doutrina da Igreja os irmãos separados ou quaisquer outros.”

– A necessidade de realizar estudos aprofundados sobre a religiosidade popular, porque nela estão as maiores reservas de fé mariana.

 1.3 Dogmas marianos

Toda a vida de Maria está referenciada a Jesus e à Igreja através dos dogmas da Imaculada Conceição, Maternidade divina (Theotókos), Virgindade perpétua e Assunção ao Céu, que continuam afirmando o mistério de Deus operado em Maria. Paulo VI afirma que “a verdadeira piedade cristã nunca deixou de destacar o vínculo indissolúvel e referência essencial da Virgem ao Divino Salvador” (MC 25). Segundo são João Damasceno, Maria é o compêndio de todos os dogmas: “O único nome Theotókos, Mãe de Deus, contém todo o mistério da” economia “(DAMASCENO, Joao, La fe ortodoxa III, 12: PG 94, 1029c9). Esta definição dogmática teve lugar no Concilio de Éfeso, em 431. Cirilo de Alexandria debateu com Nestório, patriarca de Constantinopla, quem manteve a tese de chamá-la  Christotokos, que significa “Mãe de Cristo”, para restringir seu papel como mãe só da natureza humana de Cristo e não da sua natureza divina. O termo Theotókos (Deipara, Mater Dei), que significa “portadora de Deus”, foi o que melhor descreveu a união inseparável e perfeita da natureza humana e divina de Jesus. Podemos dizer que “Deus é revelado não como uma idéia desencarnada, um ideal de santidade extra-mundana , uma eternidade separada da história, mas como a Vida originaria que é encarnada por Maria na  carne concreta da história. Portanto, buscar a Deus é descobrir sua presença na mesma história e realidade humana,  nos eventos que vão se realizando  dentro da história. Isto é o que manifesta o Concílio de Éfeso com o dogma cristão da Theotókos, dogma que nos leva além de qualquer tentativa espíritualista “(TEMPORELLI, M. C., 2008, p.57).

O dogma da virgindade perpétua antes do parto, durante o parto e após o parto, “ virginitas ante partum, in partu et post partum ” (cfr. DS 251) pertence à fé cristã desde as origens da Igreja. A definição  “virgindade antes do nascimento”, virginitas ante partum , é  entendida a partir da fé baseada na Escritura especialmente dos Evangelhos de Mateus (1,18 a 25) e Lucas (1,26-38). Esta referência trata sobre o aspecto físico, isto é, que Jesus não foi fruto de uma relação marital com José, mas o fruto do Espírito Santo no seu seio virginal.

Para entender a definição de “virgindade no parto”, virginitas in partu, deve-se distinguir entre as representações sensíveis que foram dadas da mesma e a afirmação da fé. É uma verdade de fé a afirmação de que Maria permaneceu virgem física e moralmente durante o parto, o que foi definido no ano 649 pelo Concílio de Latrão (DS 503).

A definição  virgindade após o parto, , virginitas post partum perdura desde tempos imemoriais reconhecendo que Maria após o nascimento de Jesus  não teve mais filhos nem consumou seu casamento com José. A Palavra de Deus não expressa especificamente esta situação, mas tornou-se uma verdade de fé como evidencia teológica de que a vida de Maria foi orientada para a maternidade de Jesus. Mesmo quando o evangelho nomeia os irmãos de Jesus (cf. Mt 12: 46-50;. Lc.8 19-20, Mc.3, 31-35), sabemos pela exegese que são seus primos em diversos  graus.

Em suma, a virgindade de Maria nos fala de uma maneira de ser, de existir, de realizar-se, de fazer. É a assimilação do modo de vida que Jesus tinha. É a forma radical de pensar, sentir e agir a partir de critérios evangélicos que vêm a permear toda a pessoa, (cfr. TEMPORELLI, M. C., 2008, p.105).

O dogma da Imaculada Conceição, proclamado por Pio XI em 08 de dezembro de 1854:

“A bem-aventurada Virgem Maria, no primeiro instante de sua conceição, foi preservada de toda mancha de pecado original, por singular graça e privilégio do Deus Onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador dos homens, e que esta doutrina está contida na Revelação Divina, devendo, portanto, ser crida firme e para sempre por todos os fiéis” (DS 2803).

 A interpretação desta definição dogmática leva em conta que Maria, através dos méritos de Cristo, foi preservada do pecado original por decisão divina ao ser escolhido como a mãe de seu filho, sem ser mencionadas as consequências desse pecado original. “O mistério da” cheia de graça “que começa no momento da sua concepção, se desdobra ao longo de toda sua história, e sentiu-se no âmbito da aliança que envolve a escuta e a resposta como pessoas que se realiza livremente na história. (…) A Imaculada traz uma visão positiva sobre o surgimento humano e as nossas origens, superando a ligação geração-pecado, e nos permite recuperar o sentido positivo da corporeidade e da sexualidade. Afirma a nossa confiança no valor da vida em geral e das pessoas. “(Cfr. TEMPORELLI, M. C., 2008, p.145).

O dogma da Assunção de Maria, proclamada pelo Papa Pio XII em 1950: “É um dogma divinamente revelado que Maria, a mãe de Deus, imaculada e sempre virgem, após o término do curso terreno de sua vida, foi levada em corpo e alma à glória celestial “(DS 2803). Esta fórmula não aborda o problema da morte de Maria, não diz explicitamente se ela morreu. Esta questão fica na interpretação livre da discussão teológica. A palavra assunção é um conceito teológico que não expressa a ideia de mudança de lugar, mas de estado. Podemos dizer que a Assunção significa uma integração das condições mortais do ser humano nas suas aspirações à felicidade e, ao mesmo tempo, o esforço da libertação de toda a vitalidade humana, de modo que, sem negar a verdade da dor, o sofrimento e a morte, o ser humano pode interpretar seu próprio fim, sem dar â morte a última palavra “, (TEMPORELLI, MC, 2008, p. 194).

 1.4 Mariologia popular

 A mariologia popular refere-se à maneira como o povo vive a sua fé e amor à Virgem Maria, tornando vivido o que recebeu através da formação católica e do lugar que Maria tem no conjunto da religião do povo. Se expressa nas manifestações de fé à Virgem Maria, através das quais o povo fórmula a sua compreensão popular de Maria, identidade que, naturalmente, o povo lhe dá a partir da imagem que tem dela.

A religião popular é um assunto de pesquisa multidisciplinar, portanto, precisa incorporar no estudo a contribuição de outras ciências e disciplinas que se relacionam com o ser humano como a história, a antropologia, a sociologia, a teologia, a filosofia, a psicologia, entre outras. É uma questão complexa, requerendo uma metodologia adequada para ser entendido corretamente e não estar sujeito a análise que distorça a sua riqueza original. (Cfr. SILVEIRA, M. P. 2013).

1.5. Maria nas Conferencias Episcopais Latino-americanas

Nos documentos das Conferências Episcopais da América Latina, desde a primeira conferência no Rio de Janeiro ate Aparecida (1955-2007), se encontram referências à Virgem Maria (cfr. DE FIORES, S. 2008, p. 65-76). A Igreja da América Latina, ao difundi-las, colaborou na formação da imagem da Virgem e que o povo da América Latina assumiu como própria.

O documento do Rio de Janeiro (1955) cita Maria esporadicamente e sem relevância teológica. Fala-se dela pela primeira vez em um parágrafo que diz: “confiado no Santíssimo  Coração de Jesus e na Imaculada Virgem Maria, Mãe de Deus, Rainha da América”. A segunda citação é criticada porque visa difundir a “Obra do Apostolado do Mar, sob o  patrocínio da Virgem Maria, Stella Maris” (CELAM, 1955).

O documento de Medellín (1968) refere-se apenas à sua proteção na apresentação do documento e, em seguida, há um “silêncio inexplicável” sobre sua figura (CELAM, 1968). No documento de Puebla (1979) é apresentada como “mãe e modelo da Igreja”, destacando sua figura da “mulher e mãe,” que desperta “o coração filial que dorme em cada homem” (DP 295). É a “pedagoga do Evangelho na América Latina” (DP 290). O documento reconhece à “Igreja família cuja mãe é a Mãe de Deus” (DP 285). Se esboça sua  figura de “crente e discípula perfeita que se abre para a palavra e se deixa penetrar pelo seu dinamismo” (DP 296). Também se afirma que é um modelo de comunhão, “entretecendo uma história de amor com Cristo, íntima y santa, verdadeiramente única culminando na glória” (DP 292). Afirma que em Maria e em Cristo todos obtém “os grandes traços da verdadeira imagem do homem e da mulher” (DP 330) .E na “hora da nova evangelização” e do novo Pentecostes, citando Paulo VI, pede “que  Maria seja neste caminho Estrela da Evangelização sempre renovada” “(EN 81) (DP 303).

O documento Santo Domingo (1992) apresenta Maria como modelo de evangelização da cultura. Afirma que ela “pertence à identidade cristã dos nossos povos latino-americanos,” sendo “modelo de vida para os consagrados e apoios seguros da sua fidelidade” (SD 283 e 85). Coloca-a no papel de “protagonista da história pela sua cooperação livre, elevada à máxima participação com Cristo.” Esta é a “primeira redimida e crente,” está presente na piedade popular (SD 15 e 53). No final do documento, há uma profissão de fé, pedindo “a proteção de Nossa Senhora de Guadalupe” (SD 104 e 289).

No documento de Aparecida (2007), sua figura é de “discípula missionária, formadora de discípulos missionários.” Diante dos problemas da América Latina e do Caribe se convida, a partir de Cristo e para se identificar com ele, de acordo com o plano de salvação, emerge a figura de Maria (dA 41). O seu papel é unificar e reconciliar os povos por sua “presença materna indispensável e decisiva na gestação de um povo de filhos e irmãos, discípulos e missionários de seu Filho” (DA 574). Sua figura se destaca sendo “a discípula mais perfeita e o primeiro membro da comunidade dos crentes em Cristo.” “Mulher livre e forte, conscientemente orientada ao seguimento de Cristo” (DA 266 e 269. “Esplendida imagem de configuração segundo o projeto trinitário que se realiza em Cristo” (DA 141). “Seguidora mais radical de Cristo e seu magistério”, pelo qual Bento XVI  convida a “permanecer na escola de Maria” (DA 270). Sendo discípula entre os discípulos, colabora  na recuperação da “dignidade da mulher e seu valor na Igreja.” Compromete-se com “sua realidade com voz profética” (DA 451) como no Magnificat. Quando se enfrenta o problema de dignidade e participação das mulheres na vida da comunidade, considera-se  Maria como uma referência para “ouvir o clamor silenciado das mulheres sujeitas à exclusão e à violência” (DA 454). No final do documento, os bispos pedem sua “companhia sempre perto, cheia de compaixão e ternura” para que ela “nos ensine a sair de nós mesmos em caminho sacrifício, amor e serviço” (DA 453)

1.6 Maria e a mulher

“Vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei Para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos” (Gl 4, 4). Contemplando o dom singular que Deus fez a Maria como a Mãe do Senhor, é evidente a partir do testemunho de sua vida, o respeito que Deus tem para a mulher e sua alta estima, dando-lhe um lugar tão importante na história da humanidade. “Mas o Pai das misericórdias quis que a aceitação, por parte da que Ele predestinara para mãe, precedesse a encarnação, para que, assim como uma mulher contribuiu para a morte, também outra mulher contribuísse para a vida” (LG 56).

É interpretado aqui que tanto a mulher como o homem desobedeceram  experimentando o afastamento do Criador, e

em Maria, Deus suscitou uma personalidade feminina que supera em muito a condição normal das mulheres, como visto na criação de Eva. A excelência única de Maria no mundo da graça e sua perfeição são o resultado da particular benevolência, que quer elevar a todos, homens e mulheres, à perfeição moral e à santidade próprias dos filhos adoptivos de Deus. Maria é “bendita entre as mulheres”, no entanto, em certa medida, toda mulher participa da sua sublime dignidade no plano divino. (JOÃO PAULO II, 1998, p. 44).

Ao escolher Maria como a Mãe do Redentor, se está recriando e enriquecendo a dignidade humana frágil e limitada, uma vez que ela é o ponto de encontro “entre a riqueza da comunidade divina e a pobreza da sua condição humana.” É o que diz a teóloga Lina Boff, com base na carta de Paulo aos Coríntios: “.. a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por nós, para nos enriquecer com a sua pobreza” (cf. 2 Cor 8,9 ). Os Padres da Igreja (Gregório de Nazianzo e os Padres da Capadócia), a partir dessa frase, desenvolveram a ” “teologia do intercâmbio” aplicando-a de uma maneira especial para o mistério da Encarnação, onde Maria é o lugar onde a ocorre a troca admirável. Em seu corpo, o Filho de Deus tomou corpo humano com sua carne e sangue, Jesus recebeu a experiência do seu amor cotidiano ao compartilhar a vida com as suas limitações e dificuldades por muitos anos (cfr. BOFF, Li., 2001, p. 23).

O mistério da Encarnação enriquece a dignidade humana, pois possibilita a elevação sobrenatural à união com Deus em Jesus Cristo, que determina a finalidade tão profunda da existência de cada pessoa, tanto na terra e na eternidade. Seguindo este pensamento, a mulher é a representante e o arquétipo de toda a humanidade, ou seja, representa aquela humanidade que é própria de todos os seres humanos, sejam eles homens ou mulheres (MD 4). Se perdermos  de vista este fato, surgem visões errôneas que desprezam o papel da mulher em relação ao homem, desvalorizando suas capacidades, colocando-a em uma escala inferior. E dizer, que o dualismo no pensamento,  resultado de uma concepção patriarcal, pode influenciar na compreensão da mulher idealizando ou desvalorizando sua condição real. O desafio é descrevê-la a partir de uma antropologia centrada no humano, realista, unificadora, pluridimensional, igualitária e de companheirismo (Cfr. Johnson, E., 2005, p. 94).

A obra de Leonardo Boff, O rosto materno de Deus ensaio interdisciplinar sobre as formas femininas e religiosas (BOFF, L., 1979) fornece elementos para uma análise e discussão sobre a figura de Maria-mulher, pessoa histórica e objeto fé. É uma primeira tentativa de um tratado de mariologia adaptado ao nosso tempo recuperando os dados da tradição eclesial e resgatando a importância da figura de Maria para os cristãos hoje. Foi muito discutida sua hipótese sobre uma relação hipostática entre Maria e o Espírito Santo. Essa discussão leva a interpretações que empurram à Mariologia a uma transformação radical, tanto na sua estrutura como no conteúdo, o método, a  linguagem.

A figura de Maria manifesta uma tão grande estima de Deus pelas mulheres, que qualquer forma de discriminação fica sem base teórica (…) Contemplando a Mãe do Senhor, as mulheres vão entender melhor a sua dignidade e a grandeza de sua missão. Mas os homens, à luz da Virgem Mãe, poderão ter uma visão mais completa e equilibrada da sua identidade, da família, da sociedade (JUAN PABLO II, 1998, p. 45).

O evento da Encarnação, em que o “Filho, consubstancial ao Pai,” homem “nascido de mulher” constitui o ponto culminante e definitivo da auto revelação de Deus à humanidade (…), que tem um carácter salvífico. “(MD 3). A mulher, então, está no coração deste evento salvífico, porque de uma mulher, Maria, o Filho de Deus se fez homem, com necessidade de seu corpo, de sua vida para nascer. Ela, como toda mulher tem a capacidade de gerar, acolhendo em seu corpo o novo ser. Constitutivamente seu corpo está condicionado para receber a vida e acolhê-la na  interioridade. Colabora com sua gestação, alimentando-o com o seu sangue e distinguindo sua alteridade, é um ser diferente, embora esteja “dentro” do seu corpo. Assim, o corpo da mulher é um “espaço aberto” que pode ser habitável e onde ela mantém, protege e nutre a criatura. Na formação da nova vida ela não é passivo nem autossuficiente, precisa de um homem para a sua concepção. Pode se dizer que  “o interior da  mulher é a primeira morada de cada ser humano, seja homem ou mulher” (PORCILE, T., 1995, p.188).

Em Maria, a maternidade do Filho de Deus é um dom, o fruto do Espírito Santo e sua vida, é entendida a partir desse mistério. O “espaço interior” onde a vida se gesta contém características como o calor, ternura, amor, paciência,  tempo de fecundidade,   doação de si mesma com risco de vida, capacidade de dar à luz e de sofrer. No seu  ventre vive o Deus vivo, o autor da Vida naquela mulher, criatura criada com a capacidade de gerar e ser mãe. “Desde o início da revelação a  mulher  está ligada à geração da vida, é considerada a mãe dos viventes, a mãe de vida, por isso conhece as condições de que esta exige no seu germinar lento” (TEMPORELLI, MC, 2008, p.45).

Em Puebla é dito que “Maria é mulher (…) Nela, Deus dignificou à mulher em dimensões inimagináveis. Em Maria, o Evangelho penetrou a feminilidade, a redimiu e exaltou (…). Maria é uma garantia de grandeza feminina, mostra a forma específica de ser mulher, com essa vocação de ser alma, entrega que espiritualiza a carne e encarne o espírito “(DP 299).

No ventre de Maria se inaugura uma nova aliança com a humanidade, porque graças a seu fiat, o Filho pode se tornar homem e dizer ao Pai: “um corpo me preparaste. Aqui estou, vim para fazer a tua vontade, ó Deus “(cf. Heb. 10: 5-7). A virgindade e a maternidade coexistem nela, ao igual que seu ser esposa e filha, de modo que sua figura é próxima a cada ser humano. Maria “é da nossa estirpe”, “uma verdadeira filha de Eva” e “verdadeiramente a nossa irmã, que compartilhou em tudo, como mulher humilde e pobre, a nossa condição” (cfr. MC 56).

María del Pilar Silveira, Facultad de Teología de la Universidad Católica Andrés Bello, Caracas, Venezuela. Texto original Español.

2 Referências Bibliográficas

 BOFF, Lina. María na vida do povo. Ensaios de mariologia na ótica latino-americana e caribenha. Säo Paulo: Paulus, 2001, p. 23.

DE FIORES, S., MEO ELISEO TOURÓN, S. Nuevo Diccionario de Mariologia. Madrid: Ediciones San Pablo, 2001, p. 1272-1304.

DE FIORES, S. “María discípula y misionera en el camino pastoral de América Latina.” En Luces para América Latina, compilado por la Pontificia Comisión para América Latina, 65-76. Roma: librería Editrice Vaticana 2008.

GONZÁLEZ DORADO, A. De María conquistadora a María liberadora. Madrid: ediciones Sal Térrea, 1988.

SILVEIRA, M. P. Mariologia popular Latinoamericana. Fisonomía de la Mariologia popular venezolana, Caracas: UCAB-Arquidiócesis de Mérida, 2013.

TEMPORELLI, M. C. María, mujer de Dios y de los pobres. Relectura de los dogmas marianos. Buenos Aires: Editorial San Pablo, 2008.

Para aprofundar mais

BOFF, Leonardo. El Rostro materno de Dios: ensayo interdisciplinar sobre lo femenino y sus formas religiosas. San Pablo: Ediciones Paulinas, 1979.

CELAM. María, Madre de discípulos. Encuentro continental de pastoral mariana y congreso teológico pastoral-mariano. Bogotá: colección Quinta Conferencia, 2007.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. RIo de Janeiro Documento Conclusivo,  1955, http://www.celam.org/nueva/Celam/conferencia_rio.php (consultado el 7 de junio de 2014).

_________, Medellín. Documento Conclusivo. Montevideo: ed. Paulinas,  1968

_________, Conclusiones de la III Conferencia General del Episcopado Latinoamericano. La evangelización en el presente y en el futuro de América Latina. Montevideo: Ed. Paulinas, 1979, 285, 290, 292, 295, 296, 299, 303, 330.

__________, Santo Domingo. Documento Conclusivo. Montevideo: ed. Paulinas, 1992, 15, 85, 53,104, 283, 289.

_________, Aparecida. Documento Conclusivo. Bogotá: Centro de Publicaciones del CELAM, 2007, 41,141, 266, 269, 270, 451, 454, 524

DENZINGER, H. y HUNERMANN, P. El Magisterio de la Iglesia: Enchiridion Symbolorum Definitionume et Declarationum de rebus fidei et morum (ed. multilingüe). Barcelona: Herder, 2006, 251, 503, 2803.

JUAN PABLO II. La Virgen María. Madrid: ed. Palabra, 1998, p. 44-45.

________, Mulieris Dignitatem. Carta apostólica, Montevideo: Ed. Paulinas, 1988, 3-4.

JOHNSON, E.A. Verdadera hermana nuestra. Teología de María en la comunión de los santos. Barcelona: editorial Herder, 2005, p. 94.

NAPIÓRKOWSKI, S. “Ecumenismo.” En NDM. Madrid: Ediciones San Pablo, 2001, p. 644, 652, 654.

PABLO VI. Marialis Cultus, Exhortación Apostólica. Montevideo: Ed. Paulinas, 1974, 56.

PORCILE SANTISO, María Teresa. La mujer, espacio de salvación. Misión de la mujer en la Iglesia, una perspectiva antropológica. Madrid: Publicaciones Claretianas, 1995, p. 188.

RAHNER, K. “Sobre el problema de la evolución del dogma.” En Escritos de teología, Vol. I.

SCHÖKEL, L. A. La Biblia de Nuestro Pueblo. Bilbao: Ed. Mensajero, 2006.

VATICANO II. Documentos Conciliares. Constitución Dogmática Lumen Gentium, 56;  Decreto Unitatis redintegratio 11.  Buenos Aires: Ediciones Paulinas, 1988.

A fé

Sumário

Introdução

1 Dimensão antropológica da Fé

2 Dimensão teologal da Fé      

3 Dimensão comunitária da Fé

4 A transmissão da Fé

5 Referências bibliográficas 

Introdução

Através da fé, o ser humano pretende fundar sua realidade imanente na Realidade transcendente de Deus, em quem crê. Porém, Deus é Deus a quem “ninguém jamais viu” (Jo 1, 18). Daí a complexidade levantada na reflexão sobre a experiência de fé; pois o “objeto” ao qual remete tal experiência escapa a toda possível verificação direta. Deus é oculto (Is 45:15). Sendo assim  ” qualquer religião que não nos diga que Deus é oculto não é verdadeira e nenhuma teologia que não dá razão para isso é instrutiva. Isso é tudo para nós: Vere Tu es Deus absconditus … No entanto, a natureza é tal que por todas as partes nos indica (com “indícios”) a existência de um Deus escondido, tanto no homem quanto fora do homem “(PASCAL de 1858 , XII, XIII e 5, 3). A fé é, portanto, necessariamente uma “opção’ interpretativa da realidade que pode ser abordada a partir de diferentes perspectivas.

1 Dimensão antropológica da Fé

O ser humano está inserido  no mundo sensorial e se relaciona com ele apenas através dos sentidos. Não há ideias inatas. Também não as ideias religiosas, com as quais tentamos expressar a fé sobre realidades invisíveis,  são inatas. Portanto, a primeira pergunta sobre o valor antropológico da fé religiosa é: Até que ponto é razoável  crer no que eu creio? Por isso, somos obrigados a evitar a alternativa “dualista” de fé ou razão, ou de fé ou  ciência, e até mesmo de crentes ou ateus. A fé deve ser assumida pela razão, porque “uma fé não razoável deixa de ser fé, porque ninguém pode acreditar em algo se não for razoável crer nisso” (Agostinho, De praedestinatione sanctorum, II, 5).

Na medida em que as ciências foram verificando o caráter natural dos processos mundanos em todo o seu processo de causa e efeito, a cosmovisão pré-moderna mítico-ritual, que postulava causas sobrenaturais para explicar os fenômenos mundanos, foi se  secularizando,  resultando em uma cosmovisão científico-técnica, típico da modernidade ilustrada. O ateísmo foi sua forma mais radical. Nesse tempo a crítica ao supernaturalismo se agravou ao reagir ante o abuso frequente da fé religiosa como um pretexto para justificar opressões sociais, tanto na Europa (Marx), como mais tarde na América (GUTIERREZ, G., 1992). O próprio Concílio Vaticano II assumiu de forma autocrítica, as razões inerentes à origem do ateísmo (GS, 19).

No entanto, quais indícios existem, na realidade mundana verificável, que possam suscitar razoavelmente a  opção “crente”? A realidade em que o homem está imerso, junto com  a pergunta pelas “causas” (= a ciência aristotélica), também levanta outra questão. É a questão do “ser ou não ser ‘com que a consciência se sente tocada ao perceber que tudo o que é,  acaba sempre por deixar de existir. Existe, portanto, um risco real de que o nada e não o ser constituía, absurdamente, a última palavra da realidade observada. O mesmo “eu” prevê que deixará de ser “eu”, assim como o “tu” deixa sempre de ser “tú’. Pois bem, apesar desse risco angustiante, é razoável postular que o Ser, e não o nada, possa constituir a última palavra da realidade observada   e que tudo isso (a realidade) deva ter alguma Transcendência? Em situações sociais de marginalização dos povos majoritários da Ásia, África e América Latina e Caribe, a questão pelo sentido está fundamentalmente inserida na religiosidade do povo, clamando por Deus garantidor da justiça, de modo que, finalmente, não seja o mesmo ser vítima que algoz.

É o clamor da fé  do pobre Jó bíblico e dos milhões de sofredores desprezados  pelo poder dos mais fortes ao longo da história. O protótipo dessas vítimas é o sofredor crucificado Jesus de Nazaré: “Meu Deus, por que me desamparaste!” (Mc 15:34). Mas o grito desesperado é transcendido pela fé confiada no Deus que faz justiça: “Em tuas mãos, Pai, confio a minha vida” (Lucas 23:46). Da mesma forma, a experiência crente do povo reconhece também  que seu clamor é acolhido por Deus: “Tenho visto atentamente a aflição do meu povo… e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço seu sofrimento,  por isso, desci a fim de libertá-lo” (Ex 3,7-8).

Nesse nível da existência humana é onde está, e continua estando hoje, particularmente no mundo maioritário dos pobres e oprimidos, a dimensão antropológica da fé (ALFARO, J. 1988).

2 Dimensão teologal da Fé

Dentro da sua dimensão antropológica, a fé é experimentada como uma decisão psicológica do crente. No entanto,  por definição, o objeto próprio da fé é a Realidade mesma de Deus que, como tal, transcende nossa experiência psicológica imanente. Portanto, ” Não acreditamos nos enunciados, mas nas realidades que os enunciados exprimem, pois a fé do crente não tem por objeto os enunciados (dogmáticos),mas a Realidade à qual eles se referem” (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n.170).

Assim, para que a experiência crente possa ser um meio de conexão com a Realidade transcendente, tem que incluir um “Dom do alto” (Jo 3: 3); que não pode, como tal, coincidir com a experiência psicológica crente, mesmo que seja inseparável dela. É o que chamamos de ‘Graça’, única capaz de fazer que  a fé, sendo minha, seja “infinitamente” mais do que a minha, como um ‘Dom Transcendente “(ROUSSELOT de 1910, 241-159 e 444-475).

  Por isso os seres humanos podem compartilhar a mesma fé, mesmo quando acreditamos de muitas maneiras diferentes, tanto ao longo da história, com suas várias religiões, quanto dentro das mesmas confissões crentes. A fé “teologal” não é, portanto,  uma “gnose” (determinada ideologia crente), nem um ‘sentimento’ (certa euforia psicológica), embora sempre ‘nos é dada’ encarnada em situações historicamente concretas, ideológicas e emotivas. A fé, que experimentamos como nossa,  nos coloca bem em tensão em direção a seu Objeto próprio: a Realidade mesma de Deus, que é sempre um Deus “escondido” (Isaías 45, 15). No entanto, ” Não disse à descendência de Jacó: Buscai-me em vão; eu sou Yahweh,  e falo a verdade” (Is 45, 19). Assim, a fé está enraizada numa consciência (o coração) aberta para ser desafiada pela Palavra. Quanto mais abrir alguém seu coração ao impacto da Palavra, mais motivação vai experimentar sua liberdade de decidir na direção daquilo ao qual a Palavra interpela. No entanto, se fecha o coração, a Palavra não produz frutos e se perde a motivação da liberdade. Como Jesus nas parábolas do Reino, conclui avisando: “Quem tenha ouvidos para ouvir, ouça (Marcos 4,23) … Ao que tem, ser-lhe-á dado; ao que não tem, até o que tem lhe será tirado “(Marcos 4,25).         

A fé, portanto, não é medida, pelas ideias ou palavras religiosas, mas pela transformação do critério da ação livre: ” Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! mas aquele que faz a vontade de meu Pai ” (Mt 7: 21-23 ) .A questão crente é sempre, “o que devemos fazer, irmãos?” (At 2, 37; 2,42-47; 4,34-35) .Qual  é o critério para discernir o sentido apontado pela interpelação da Palavra e, portanto, a resposta para ela? A  tendência narcisista do ser humano sempre pode levá-lo para ‘usar Deus de acordo com seus próprios interesses. ” Portanto, quanto  menos suspeita de  narcisismo seja uma opção crente, mais razoável será  postular que possa se referir a uma Realidade Transcendente, precisamente por não ser funcional aos interesses do próprio eu. Deus garante, portanto,  a sua presença transcendente (Graça) em cada decisão humana que bu.sque agir com “boa vontade”; ou seja, sem referência egocêntrica, mas por alteridade misericordiosa, , de acordo com a mesma “boa vontade” divina , ” Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade ” (Fp 2,13).[1].

Esse mesmo ensinamento está recolhido na Gaudium et Spes e, assim, depois de confessar que a graça divina age através da visibilidade dos sacramentos da fé cristã, conclui: “Isto é também verdade para todos os homens de boa vontade em cujo coração atua a Graça de forma invisível (ou seja, mesmo sem a visibilidade sacramental) conhecida por Deus “(GS, 22)

Essa abertura do dom da fé para “todos os homens de boa vontade” é o verdadeiro significado “católico” da fé , uma vez que Cristo morreu por todos.” Essa declaração corresponde a Rm 8,32; mas o texto da GS, 22, o universaliza, omitindo o “nós” de Rm 8,32  citado pela GS, de acordo com a formulação católica do Concilio de Trento, que rejeitou o critério luterano-calvinista da “dupla predestinação” Se alguém disser que a graça da justificação  é concedida somente aos predestinados á vida, e que todos os outros que são chamados, decerto que são chamados, mas enquanto predestinados ao mal pelo poder divino, não recebem a graça, seja anátema ” (DS,1567).

Portanto, isto também constitui a missão católica’ da Igreja que, como tal, implica uma abertura real para ao “diálogo” ecumênico, inter-religioso com todos os homens e mulheres de boa vontade, em particular com as culturas e espiritualidades indígenas na América Latina[2].

De tal modo que, também nossa fé (com as seus enunciados, práticas religiosas e  morais), quando praticada com “boa vontade”, sendo a nossa decisão, é infinitamente mais do que nossa (cf. Rm 8,24-27). Em outras palavras, sendo “a nossa própria espiritualidade”,  é a presença transcendente do Espírito de Deus em nós: ” Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Ef 2,8) . O Dom é ” inerente “em nós, e não apenas ‘imputado’ extrinsecamente por Deus[3]. Pois pela fé temos já  a “substância (upóstasis) do que não vemos  (a Filiação divina) e a garantia da Realidade que esperamos (Vida eterna) (At 11,1)[4].

3 Dimensão comunitária da Fé

Se a fé pressupõe sempre “boa vontade” compassiva, é óbvio que por sua própria natureza tem uma dimensão comunitária.

Mais ainda, a fé é comunitária porque Deus é, em si,  Comunidade trinitária (BOFF, 1987). Deus não é EU, mas EU-TÚ. Não é “poder”, mas “Relação” extrovertida eterna no interior de si mesmo. “Alteridade” que constitui o seu ‘único Espírito “(Gl 4.6) . Daí que o critério final da ação humana não seja medido pelo poder, mas pela “Relação interpessoal’. Em definitiva, a única questão para a autenticidade da fé refere-se ao reconhecimento do “outro” como ‘outro eu’: decidiu agir com compaixão a favor de quem precisava, ou agiu evitando isso? (Mt 25,40ss) .Todo o resto fica relativizado ‘em relação” ao Absoluto da misericórdia. Por isso, “a realidade a que nos referimos através das formulações da fé, nos permite expressá-la e transmiti-la, celebrá-la em comunidade, assimilá-la e vivê-la cada vez mais “(CATECISMO, 170). Só conhece a Deus quem  “ama a Deus”, pois quem não ama não conhece, saiba o que souber (SOBRINHO, 1992) .Por isso, “os mestres da Lei (sábios” religiosos”) já me conheceram “(Jr 2,8). Mas “Ninguém jamais viu a Deus, por isso “Se alguém diz: ‘Eu amo a Deus’, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu?” (1 Jo 4,8 e 20). No entanto, a categoria de “irmão” pode esconder apenas teorias filantrópicas universais. O que está em jogo, no entanto, é o reconhecimento real e concreto do  “outro” que  se aproxima de mim. Assim, conhece-ama ao irmão, quem conhece-ama ao irmão que entra na minha proximidade. Se, portanto, um ser humano é parte da categoria de inimigo, mas entrar em sua proximidade, o reconhecerá-amará como irmão, tendo compaixão por ele. E esse é o verdadeiro significado crente do “amar ao inimigo” formulado por Jesus (Mateus 5: 43-48).

A fé é sempre uma experiência compartilhada com outros.  E  são tanto mais “outros”, quanto mais necessitem da nossa “alteridade” compassiva, independentemente do interesse próprio egocêntrico. Há, na verdade, uma espécie de irmão que, quando entra na minha proximidade, eu não deveria decidir por ele (porque ele não tem poder de retribuição), nem perco nada se continuo enfrente (porque não tem poder de retaliação); se, no entanto, apesar disso, eu o reconheço-amo como irmão, em seguida, aí verifico a minha fé, eu conheço-amo a Deus.

E esse é, em última análise, o sentido bíblico do pobre mísero (cf. Jr 22,15-16; 34.8,22 ; Is 52,6; 58,6-7) que Jesus ilustrou  magistralmente com a parábola do ferido necessitado de  atenção compassiva, contrastando a  ação do “bom samaritano’ com a indiferença do religiosos sacerdote e do levita: “você faça o mesmo ” que o “bom samaritano” e não imite o ortodoxo sacerdote nem o  levita (Lc 10, 25-37) .Isto implica que a fé cristã deve ser vivida na proximidade com os pobres que estão sempre lá, sem tentar evitá-los. Pois são os pobres quem vivem mais essa proximidade e podem ser modelos de fé, como o expressa de forma significativa o Documento de Puebla, quando destaca que as “Comunidades de  Base têm ajudado à Igreja a descobrir o potencial evangelizador dos pobres, porque constantemente a interpelam , chamando-a à conversão e porque muitos deles realizam em suas vidas os valores evangélicos de solidariedade, serviço, simplicidade e disponibilidade para acolher o dom de Deus “(n. 1147).

A “opção pelos pobres” no é, portanto, uma das opções possíveis; mas é a única possível para o cristão. E a escolha não é apenas pelos pobres, mas com eles, para não confundir a opção pelos pobres com o “paternalismo” de cima (os altos crentes) para baixo (os baixos crentes). Essa tem sido a principal contribuição da teologia latino-americana, redescobrindo o evangelho como uma chamada do mesmo Espírito que penetrou (como o Ungido-Cristo) a Jesus de Nazaré, para compartilhar a fé em comunidade com os pobres. Isto deu origem à eclesiologia das Comunidades Eclesiais de Base, com base na práxis-conhecimento (Iadath) dos pobres e com os pobres[5].

4 A transmissão da Fé

A fé apostólica é, portanto, a fé na Encarnação não  meramente fiel al enunciado ‘niceno-constantinopolitano’, mas  vivida de acordo com a historicidade de Jesus crucificado pelo que fez e disse, mas a quem Deus ressuscitou justificando-o. Desta maneira, quem enfrente sua vida na mesma linha em que Jesus a enfrentou, e pelo qual ele foi condenado à morte na cruz, tem razão, ainda que seja executado por isso. Essa fé deu origem à  Igreja “dos mártires” dos quatro primeiros séculos e é o núcleo eclesiológico da fé transmitida que continua a alimentar o compromisso com o martírio das comunidades pobres na América Latina e das  periferias suburbanas e rurais maioritárias do mundo.

Essa fé vivida e celebrada, foi registrada desde o início nas primeiras ‘fórmulas querigmáticas’ que Paulo reuniu  em seus escritos como uma ‘tradição recebida da comunidade pré-paulina que tinha conhecido Jesus em vida e experimentado a sua Ressurreição. E assim transmitirá a fé pascal, com estas palavras introdutórias do kerygma : “Eu transmiti-vos (paredoka) ao princípio o que era mais importante e que também me foi transmitido (paredothe) …” (1 Cor 15,1ss). Com a mesma introdução, Paulo recolhe a fórmula da celebração comunitária do kerygma, como foi também ‘transmitida’ (paradosis) de parte do Senhor Jesus (1 Cor 11,23).

Assim, a partir de agora, cada comunidade crente e cada grupo humano de “boa vontade”, pode se conectar com a mesma fé e a mesma celebração apostólica que nos conecta com o evento histórico salvador, que é Jesus Cristo: “fazei isto em memória de mim” ( 1 Cor 11:24; Lc 22:19).

É, portanto, a mesma intenção salvífica universal de Deus a que funda o carácter «transmissível» da Palavra que ‘comunica’ a fé apostólica. É aí que reside o verdadeiro significado da Tradição da Igreja, que não pode ser ‘Traída’. Portanto,  a fé apostólica, não só funda uma “comunidade” (comunhão) de fé “, mas uma” comunidade de missão (= Com-munus) ‘correspondente a todo o Povo de Deus (LG c.2) com a diversidade de seus ministérios: “Há diferentes formas de atuação, mas é o mesmo Deus quem efetua tudo em todos. A cada um, porém, é dada a manifestação do Espírito, visando ao bem comum (pros tosun-féron)” (1Cor 12, 6-7).

Antonio Bentué, Universidade Católica de Chile, Chile. Texto original espanhol.

5 Referências Bibliográficas

AGUSTÍN San,  “Una fe no razonable no es fe, puesto que nadie puede creer en algo si ello no es razonable creerlo”, De praedestinatione sanctorum,  II, 5.

ALFARO, J. De la cuestión del hombre a la cuestión de Dios, Ed. Sígueme, Salamanca, 1988.

BOFF, L. La Trinidad, la sociedad y la liberación, Madrid, Paulinas,1987.

CATECISMO DE LA IGLESIA CATÓLICA, n.170, citando a Tomás de Aquino  (Summa Th. II-II, q1,a2 ad 2m).

GUTIERREZ,G.  En búsqueda de los pobres de Jesucristo, CEP, Lima, 1992.

PASCAL, B. Pensées, Ed.Louandre, París, 1858, XII, 5 y XIII,3.

ROUSSELOT, P. Les yeux de la foi, RSR (1910) 241-159 y 444-475.

SOBRINO, J. El principio misericordia, Sal Terrae, Santander, 1992.

[1]O original grego permite interpretar também esta ‘eudokia’, referindo- a aos homens que querem agir com “boa vontade”; assim a traduzem tanto a Bíblia Latino-americana Ed. San Pablo 1994,  como o Novo Testamento da Edição Pastoral Católica, Ed Paulinas 1991: .. “tentando agradá-lo”.

[2]Apesar de que a declaração do Papa, no discurso de abertura  do Sínodo de Aparecida  e recolhido  no n. 95 do Documento final, não parece valorizar a religiosidade indígena pré-colombiana, o mesmo Sínodo reconhece que “há um processo de ocultação sistemática dos valores indígenas, d a sua história, cultura e expressões religiosas,” DA 96; portanto, valoriza ” seu profundo apreço comunitário pela vida, presente em toda a criação, na existência cotidiana e na milenária experiência religiosa, que dinamiza suas culturas, e que

chega á sua plenitude na revelação do verdadeiro rosto de Deus por Jesus Cristo, “DA 529.

[3]De acordo ao sentido do texto de Trento, no anátema do Canon 11, DS 1561.

[4]Comentando esse sentido da ‘fé teologal’, Tomás de Aquino expressa: “A fé é, pois, o hábito da consciência por meio do qual se inicia a Vida eterna em nós…” ,Summa Th. II-II, q4, a1.

[5]O termo bíblico para expressar o ‘conhecimento’ (Iadath), significa ao mesmo tempo ‘fazer o amor’ (cf. Gn 4,1 y 17).

Evangelização

Sumário

1 Evangelização, missão da Igreja

1.1 A Igreja vive para evangelizar e para ser evangelizada

1.2 Objetivos primários da evangelização

2 Evangelização no horizonte do mistério da comunhão trinitária

2.1 A Trindade como paradigma de una evangelização integral

3 Dimensões da Evangelização

3.1 Evangelização libertadora

3.2 Evangelização inculturada

3.3 Evangelização missionária

4 Desafios e possibilidades de atualização da Boa Nova do Evangelho

4.1 Fazer do ser humano o caminho da Igreja

4.2 O pluralismo como pressuposto, não apenas como abertura.

4.2 Revalorização da Igreja local

5 Referências Bibliográficas

1 Evangelização, missão da Igreja

1.1 A Igreja vive para Evangelizar e para ser evangelizada

Uma das tarefas essenciais da Igreja entendida não apenas como corpo institucional ou hierárquico, mas como Povo de Deus em marcha (cf. Evangelii Gaudium EG 111), é Evangelizar. Nesta ação encontra a sua felicidade e identidade (Evangelii Nuntiandi EN 14). Evangelizar é fundamentalmente comunicar a Boa Nova do Evangelho com obras e palavras. Este encargo é dado a ela, como um imperativo de Jesus e nele se fundamenta: “Ide e pregai o Evangelho …” …” Portanto, não surge como estratégia ou como meio para justificar sua existência, mas justamente o contrario, vive para Evangelizar, esta é sua missão fundamental sem a qual todas as outras ações pastorais perdem seu horizonte e força. É verdade que esta missão tem sido muitas vezes confundida e limitada à indoutrinação, reduzindo assim o conteúdo tão rico e profundo da ação evangelizadora.

Portanto, na ação evangelizadora, em vez de transmitir doutrinas ou verdades, trata-se de  anunciar, transmitir com fatos e  palavras a confissão de fé na pessoa de Jesus de Nazaré, sempre unido ao projeto do Reino. Assim, pode-se entender que as práticas eclesiais voltadas para muitos horizontes e ambientes, realizados em diferentes contextos, devem ser ações ou práticas essencialmente evangelizadoras, que dão sentido e direção à sua identidade e missão.

O sujeito da evangelização, é a comunidade dos crentes, Povo de Deus constituído por todas e todos os batizados. É um sujeito coletivo, onde todos somos responsáveis com diferentes ofícios e encargos (cf. Ad gentes AG 5, 11-12). Isto requer que a Igreja, à qual pertencemos, se posicione não apenas como mestra, mas também como discípula. Neste sentido podemos dizer que todo cristão, cristã, é ao mesmo tempo evangelizador e evangelizado. Lembre-se o caso emblemático da conversão de Cornélio, onde Pedro, o evangelizador, também é convertido e evangelizado neste encontro (At. 10, 34-43). Aqui o evangelista entra em diálogo com o evangelizado, põe em jogo e em consideração sua própria compreensão da fé. O anúncio e o diálogo são dois elementos constitutivos da ação evangelizadora que, quando se articulam em uma atitude aberta, dão muito fruto (cf. Documento de Aparecida DA 237). Antes da conversão é necessária a conversação (cf. EG 127).

Esta relação dialógica ou confrontação séria entre evangelizando e evangelizador permite, como  interlocutores, tomar uma atitude de mais humildade e vulnerabilidade, algo ao qual a Igreja está pouco acostumada. Esta atitude permite entrar e respeitar o mundo e a cosmovisão do evangelizado, porque se não, como se pode esperar que quem o escuta esteja disposto a  mudar a sua vida e pensamento se ele-o evangelizador- não está disposto a submeter-se a idêntica disciplina?

Isto é justamente o interessante e rico do processo  evangelizador, que quem evangeliza, arrisca sua fé no desempenho das suas funções. Pois, se isso não acontecer, quando se evangeliza a partir de uma posição fixa e inabalável, fechando-se a outras propostas ou análises críticas, corre-se o risco de tornar-se não mais evangelizadores senão propagandistas de uma marca ou um produto. “Neste processo de evangelização não existe evangelizador e evangelizado, como duas facções dentro da Igreja; uns e outros se  evangelizam  mutuamente, construindo assim uma Igreja como  Comunidade fraterna, toda ela ministerial, servidora e missionária “(Boff, L., 1991, p.77).

1.2 Objetivos primários da Evangelização

Um primeiro objetivo que continua a ser válido e legítimo no processo de evangelização é a conversão, isto é introduzir as pessoas em uma determinada visão do mundo, a um certo estilo de vida que não se tinha antes. Trata-se de aderir-se a uma doutrina particular, a umas certas crenças. Em um sentido geral, isto continua a ser válido.

No entanto, esta finalidade de conversão a Jesus e seu projeto do Reino, é reforçada com o afirmado no documento de Puebla (cf. DP 1145) quando diz que o melhor serviço ao irmão, e ao irmão mais pobre, ” é a evangelização que o liberta das injustiças, o promove integralmente e o dispõe como filho de Deus.” Aqui também se encontra um dos propósitos da Evangelização entendida como libertação e promoção do homem, para que se realizem  plenamente como  filha e filho de Deus. Nos documentos de Medellín encontramos esta mesma ideia, quando afirma que a Evangelização consiste principalmente em “passar de situações menos humanas a situações mais humanas” (Documento de Medellín Introdução n.6; Documento de Santo Domingo n. 162).

A evangelização unida à conversão tem como objetivo principal a humanização de cada homem e do homem todo. Isso já nos foi lembrado muito claramente por Paulo VI na Evangelii Nuntiandi, afirmando que entre promoção humana e evangelização existe uma correlação profunda de ordem antropológica, teológica e evangélica  (EN 31).

O fundamental para a prática evangelizadora é o anúncio da pessoa de Jesus e a denúncia de tudo o que se opõe ao estabelecimento do seu Reino como projeto continuador da vontade do Pai, sob a inspiração do Espírito Santo. Anunciamos, portanto, não apenas umas verdades, mas, principalmente, a pessoa de Jesus que, a partir da nossa fé e da nossa identidade como cristãos, representa uma confissão de fé, uma proposta entre muitas outros. Anunciamos a Boa Nova de Jesus, uma notícia e um evento de caráter salvífico, na  caminhada sob Evangelho (Ef 4.1;. Col 1,10; Gl 5:16).

No entanto, nós não anunciamos apenas uma pessoa abstratamente. Jesus não é apenas o homem, mas o homem que viveu sujeito às coordenadas do tempo e do espaço de uma forma muito específica e concreta. Nós anunciamos Jesus com todos os seus componentes fundamentais. Um delas é o projeto Reino que não é identificado com a Igreja, ou o progresso da tecnologia, mas fundamentalmente a experiência de algumas relações novas, algumas opções Novas.

O anúncio de Jesus não é um anúncio qualquer, nem sob quaisquer circunstâncias. É o anúncio de um Cristo, e este crucificado (I Cor 1,23.); É, portanto, um Jesus contextualizado, que “passou fazendo o bem” (Atos I Cor 2,2;. .. Gal 3,1). Não é um Jesus apenas de conceitos, mas um Jesus que sofreu, que foi crucificado, que morreu por uma causa concreta, que entrou em conflito com o centro, em suma, um Jesus que é Deus e que está presente e ativo no história.

2 Evangelização no horizonte do mistério da comunhão trinitária

2.1 A Trindade como paradigma de uma evangelização integral

De acordo com EN 26, “evangelizar é, acima de tudo, para dar testemunho, de uma forma simples e direta, de Deus revelado por Jesus Cristo através do Espírito Santo”. Neste ato testemunhal que já tem uma base trinitária, se dão vários paradigmas ou pontos de referência para sua realização. Um deles é o paradigma o modelo trinitário no qual encontramos o princípio básico de relacionalidade.

Este princípio funciona no nível de pessoas e no nível de culturas. “Estas constituem um sistema completo, mas aberto a outros sistemas e culturas, já que nenhum deles esgota as potencialidades do ser humano pessoal e social. Entre as culturas deve reger o mesmo que  governa o mistério trinitário, a radical relacionalidade entre as três Pessoas divinas. Cada um é uma irredutível, mas sempre em relação e em “pericorese” com os outros “(Boff, L., 1991, p. 48).

A obra evangelizadora da Igreja tem a sua origem e fundamento no mistério da comunhão trinitária, “na missão do Filho e a missão do Espírito Santo, de acordo com o plano de Deus Pai” (AG 2). Esta comunhão trinitária é o modelo de toda evangelização buscando a vivência da fé na dimensão comunitária, pois a vocação para viver e para participar nesta comunhão não se dá individualmente, mas em estreita conexão mútua. “A evangelização é uma chamada para a participação na comunhão trinitária” (DP 218).

Jesus, enviado pelo Pai, armou a sua tenda no meio de nós, assumindo toda a natureza humana, do mesmo modo como se dá em nós, exceto no pecado (Hb 4,5;. 9,28). O texto narrado pelo evangelista Lucas, quando Jesus entra na sinagoga de Nazaré, é uma passagem programática e paradigmática, é uma referência obrigatória e um programa para realizar a partir da evangelização. “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar aos pobres a Boa Nova, ele enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e a vista aos cegos, para libertar os oprimidos e para proclamar o ano da graça do Senhor “(Lc. 4,18-19).

Jesus é o modelo de evangelizador e a referência obrigatória para toda ação evangelizadora, a sua pessoa é Boa Nova que se concretiza em palavras, gestos, atividades e eventos do seu ministério. Para Jesus o central e básico no horizonte de sua mensagem é o reino ou reinado de Deus; tudo o resto é relativo (Mt 5: 3-12, 8), e todas estas coisas vos serão acrescentadas (Mt 6:33).

Os Evangelhos mostram a centralidade e a importância do Reino de Deus (Mt 5,3-12; 5-7 …). O Reino é dom misericordioso do Pai que salva e liberta homens e mulheres de toda  opressão; é convite para se encontrar com Deus e se comprometer com o estabelecimento do Reino no meio da realidade  social e pessoal, transformando, com a força do Evangelho, os critérios de juízo, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que estão em contraste com a Palavra de Deus e o plano da Salvação “(EN 19).

Para realizar este programa de evangelização, temos a presença santificadora do Espírito Santo, o Espírito Santo é o protagonista de toda a autêntica evangelização, porque através da sua ação “unifica na comunhão e no ministério e fornece dons hierárquicos e carismáticos para Igreja durante todos os tempos “(AG 4).

Desta forma, a ação evangelizadora da Igreja tem no mistério da Trindade, o seu fundamento último no sentido de ser o modelo por excelência de relacionalidade e de comunitariedade em que cada uma das pessoas contribui, fornecendo seu ser e sua presença.

3 Dimensões da Evangelização

3.1 Evangelização libertadora

“A evangelização não seria completa se não considerar a interpelação recíproca que, no curso dos tempos,  é estabelecida entre o Evangelho e  a vida concreta,  pessoal e social do homem” (EN 29). Esta afirmação da Evangelii Nuntiandi tem o seu impacto real no nosso continente latino-americano ao expressar-se como Evangelização Libertadora, à qual fazem um apelo os bispos reunidos em Puebla, quando reconhecem que a situação vivida nos tempos da Conferência Episcopal Latino-Americana em Medellín (1968) é ainda  muito mais grave. “Os pastores da América Latina temos razões gravíssimas razões gravíssimas para urgir a evangelização libertadora, não só porque é necessário recordar o pecado individual e social, mas também porque de Medellín para cá a situação se agravou na maioria de nossos países.” (DP 487). A partir desse momento até hoje, ainda poderíamos afirmar a urgência constante desta evangelização libertadora, ou esta evangelização com dimensão social, como indica o Papa Francisco (EG 176). Em que consiste fundamentalmente?

Aparecida nos dá uma guia para entender o que é quando afirma que o trabalho essencial da evangelização “inclui a opção preferencial pelos pobres, a promoção humana integral e a autêntica libertação cristã” (DA 146). Nestes três elementos reside fundamentalmente o conteúdo de uma evangelização libertadora: em uma opção pelos pobres, em uma promoção humana e a libertação cristã.

A luta pela justiça e a participação em favor da transformação do mundo é claramente uma dimensão constitutiva da ação evangelizadora da Igreja. Isto foi afirmado por João Paulo II em seu discurso de abertura da Conferência Episcopal Latino-Americano em Puebla (1979): “A missão evangelizadora tem como parte indispensável ação  para a justiça e as tarefas de promoção do homem”.

A evangelização libertadora envolve a superação de uma evangelização puramente doutrinal e kerigmática sem raízes na realidade. Seu ponto de ancoragem é a de uma Igreja que vive no horizonte do Reino como projeto do Pai e busca a libertação integral de homens e mulheres com a força do Ressuscitado e a presença ativa do Espírito Santo.

Em suma, podemos dizer que a evangelização libertadora não é opcional, que a inclusão da promoção humana, os esforços da promoção da justiça e a contribuição às transformações históricas não é uma questão de moda ou de regiões geográficas, mas “parte integral “,” parte indispensável “” dimensão constitutiva “sem a qual simplesmente não está completa a ação evangelizadora, faltando um componente importante e crítico que lhe dá identidade, orientação e sentido. “Se esta dimensão não está devidamente explicitada, sempre corre o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral que tem a missão evangelizadora” (EG 176).

3.2. Evangelização inculturada

Uma das tarefas evangelizadoras da Igreja consiste em encarnar o Evangelho no coração das culturas e, a partir daí, participar na conquista das grandes aspirações da humanidade. Portanto, ficam desautorizados são todos os tipos de visão míope e etnocêntrica e se impõe a consciência de que a Igreja, ao se fazer presente na diversidade de povos e culturas, é também uma realidade multicultural. Em coerência com o mistério da Encarnação, evangelizar não é, como dito acima, anunciar uma doutrina ou incorporar pessoas à Igreja, mas acima de tudo, encarnar o Evangelho na diversidade de culturas.

Trata-se de um processo, não na linha de “evangelização das culturas”, mas de uma “evangelização inculturada”. O primeiro paradigma parte do evangelho e se presta à implantação de uma igreja monocultural que não faz justiça à lógica da encarnação (EG 117); os destinatários do Evangelho, neste caso, são reduzidos a receptores passivos de um  evangelho já inculturado e concebidos como objetos da evangelização. O segundo,  parte da cultura e de seus respectivos sujeitos, permitindo o aparecimento de Igrejas culturalmente novas. Aqui, não é tanto o evangelho que a ignorância, mas os sujeitos da cultura que incorporam, à sua própria maneira, o evangelho.

Ao contrário de uma determinada “nova evangelização” que  acredita ser nova só porque incorpora meios inovadores para fazer o mesmo de sempre, uma evangelização inculturada segue a pedagogia da Evangelii Nuntiandi respeitando primeiro o trabalho de Deus já presente nas culturas e o «sacrário da consciência” dos interlocutores. “Acompanhar, cuidar e fortalecer as riquezas já existentes” (EG 69). Nesta mesma direção, trata-se de realizar  uma evangelização pelo testemunho (evangelização implícita); mais tarde, na gratuidade por ter “recebido pela graça” o dom do evangelho, propor com delicadeza e amor, oferecendo os meios necessários para que os destinatários possam, a partir de livre adesão, encarná-lo em suas culturas (evangelização implícita). Podem ser vislumbrados esses dois momentos nos seguintes passos (cf. BRIGHENTI, 1997, p.73-105):

Como evangelização implícita, implicaria, num primeiro passo, ser presença de testemunho ou de empatia, seguindo o dinamismo do mistério da Encarnação. Antes de tudo, evangelizar significa se inserir gratuita e respeitosamente no contexto no qual deseja desencadear um processo de evangelização inculturada. Trata-se, de acordo com a Gaudium et Spes, de se solidarizar com os problemas, alegrias e tristezas, angustias e esperanças do povo que se quer evangelizar, pois, evangelizar significa testemunhar uma atitude de respeito e acolhida das culturas por causa de Deus e da obra que Ele realizou  no interior das culturas.

Num segundo passo, trata-se de estabelecer uma relação dialógica ou de simpatia entre os agentes e os membros da cultura, de modo que num clima de confiança, ambas as partes expressem o seu modo existencial, pronunciem sua própria palavra e cultivem a capacidade de escuta e de apropriação que requer toda autêntica conversão. Evangelizar não é “ignorar nem se impor”.

O terceiro passo é identificar e reconhecer os valores da cultura como “sementes do Verbo”, porque sabemos que as culturas, tanto na sua dimensão simbólica quanto na sua dimensão ética, estão ecoando a voz de Deus, que sempre se dirige à sociedade e a cada subjetividade humana. As religiões, como  a alma das culturas, são, por acima de tudo,  reações à ação primeira de Deus e  caminho da divindade para as culturas.

Tendo em conta estes passos, é possível passar ao segundo momento do processo, o de uma evangelização explícita. Para isso, primeiro (quarto passo), trata-se de anunciar amorosa e respeitosamente as verdades do cristianismo. Depois de reafirmar que “o Deus da cultura” é o Deus de Jesus Cristo, presente e ativo na história de todos os Povos, é possível revelar explicitamente este Deus, isto é, dar a conhecer a positividade cristã. A tarefa do evangelizador, neste quarto passo consiste apenas em fornecer o texto da Bíblia, a história do texto, a tradição sua interpretação e criar o contexto eclesial comunitário de fé necessário para ler e interpretar a Mensagem.

O quinto passo é chegar a uma mutua evangelização explícita ou reflexão crítica não só dos agentes em direção aos membros da cultura, mas também dos próprios membros da cultura em agentes em relação aos agentes. Trata-se de que cada uma das partes ajude à outra para não absolutizar a própria cultura ante a transcendência do Evangelho, nem o seu modo de apropriação do mesmo, para evitar cair na “vaidosa sacralização da própria cultura  com o qual poderemos mostrar mais fanatismo do que autêntico fervor evangelizador “(EG 117). Por um lado, trata-se de inculturar a mensagem, e de outro, de  expurgá-lo de versões exógenas.

Finalmente, num sexto passo, chega o momento da apropriação ou assimilação sintética, que é a realização de uma simbiose entre Evangelho e cultura, tanto pelos membros da cultura que entram em contato com o Evangelho, quanto por parte dos evangelizadores que, mesmo que realmente estabeleceram uma relação dialógica com os novos membros, não obtiveram os mesmos resultados deste encontro. Não se dá uma relação dialógica, mas sintética. O resultado de um processo de evangelização inculturada com este (sétimo passo) é o surgimento ou crescimento de Igrejas culturalmente Novas, com “fisionomia própria” (EN 63). Trata-se mais de “criação” de uma Igreja particular autóctone, apoiada por uma eclesialidade pluriforme, do que simples “implantação”. Do mesmo modo que a Encarnação é um “assumir sem aniquilar” o surgimento de uma Igreja com o “rosto próprio” significa “inculturar sem identificar”. Um exemplo desse esforço, muitas vezes incompreendido, é a diocese de San Cristóbal de las Casas, no México (cf.RUÍZ, 1999, p.113-127).

3.3. Evangelização missionaria

Assim como o documento de Puebla enfatiza a dimensão libertadora da Evangelização, e Santo Domingo o da inculturação, o documento de Aparecida coloca a Evangelização em uma dinâmica missionária (DA 13). Ele faz um forte apelo ao compromisso por “uma evangelização mais missionária, em diálogo com todos os cristãos e ao serviço de todos os homens.” Esta dimensão missionária deve ser entendida no seu devido lugar, porque não é um movimento interior que busca o fortalecimento da Igreja como instituição, mas um movimento de saída e de desconcentração, onde a proposta não tenha o estilo de proselitismo , senão mais de contagio e atração. Precisamos “deixar o confortável  critério do “sempre foi feito assim ‘, sendo mais ousados e criativos “(EG 33).

A Igreja cumpre essa missão evangelizadora seguindo os passos do seu Senhor e adotando suas atitudes (cf. Mt 9, 35-36).

“Assim, a Igreja deve se proteger contra a tentação de medir a glória de Deus pela honra que a Ele se lhe rende, uma ideia que poderia induzi-la a concentrar todos os seus esforços com o único objetivo de restaurar a sua força, sua credibilidade, seu prestígio, sua influência na sociedade. […] Ela poderia ter pensado que sua missão era impor a sua presença no mundo com esplendor e poder de dar um testemunho definitivo da revelação cujo  depósito custodia “( MOING, 2011, p. 295).

A evangelização missionária envolve uma consciência de ser discípulos e missionários de uma vez, porque “são dois lados da mesma moeda”, porque o discípulo é por natureza missionária e o missionário é um fiel seguidor de Jesus, que o convida para prosseguir a causa do Reino. Esta chamada para fazer uma evangelização missionária não é momentânea ou transitória, mas permanente (cf. DA 210). A consciência missionária apesar de não negar a dimensão territorial ou geográfica, não se reduz a ela. “De fato, os destinatários reais da atividade missionária do povo de Deus não são apenas os povos não-cristãos e as terras distantes, mas também os âmbitos socioculturais e, acima de tudo, os corações.” Assim, as áreas de Missão não eles não estão apenas ligados principalmente territorial, mas também para as realidades onde as pessoas vivem, as “periferias existenciais”.

No DA encontramos dois elementos que poderiam traduzir-se em duas atitudes que formam uma mudança de paradigma no referente à missão: “atração” e “irradiação” atrair-irradiar, dois verbos que indicam um movimento de ida e volta. No número 159 Aparecida diz-nos que “a Igreja cresce não por proselitismo, mas pela atração: como Cristo atrai todos a si com a força do seu amor. A Igreja atrai quando vive em comunhão, pois os discípulos de Jesus serão reconhecidos se amarem uns aos outros como Ele nos amou (cf. Rm 12: 4-13;. Jo 13, 34). “. Assim, é  deixado para trás toda a dinâmica proselitista e se propõe a atração, descobrindo no cristão alguma singularidade que parece interessante no meio de tantas propostas. É preciso ter essa força para atrair, para convencer. Hoje a evangelização missionária é entendida através desta atração-contagio. De vizinho para vizinho, nossa igreja não convence apenas com grandes manifestações de massa, grandes eventos. Não é esse tipo de atração. “Trata-se de levar o Evangelho às pessoas com as quais cada um se relaciona, tanto próximos quanto estranhos. É a predicação informal que pode ser feita no meio de uma conversação e também é a que realiza um missionário ao visitar um lar “(EG 127).

Sobre este movimento de irradiação, há duas expressões no documento, os dois referidos à comunidade paroquial e sua missão: O DA  pede “que as Paróquias sejam  centros de irradiação missionária em seus próprios territórios” (DA306). “Necessitamos que cada comunidade crista se torne um poderoso centro de irradiação da vida em Cristo.” (DA 362). Isto significa, em primeiro lugar, que as comunidades paroquiais são iluminados pela vida de Cristo, que elas,  primeiramente,  experimentem a presença de Jesus em suas vidas e em seguida, expandam essa luz de Jesus, este verbo irradiar está em um sentido de respeito de expandir a luz sem impõe-la, mas propô-la como uma confissão de fé para a humanidade.

4 Desafios e Possibilidades de atuação da Boa Nova do Evangelho

4.1 Fazer do ser humano o caminho da Igreja

A Igreja hoje, mais do que nunca, precisa se mover para fora de seus assuntos internos e deixar de ser “auto-referencial” para entrar em sintonia com as grandes aspirações da humanidade. Se realmente quiser fazer uma autêntica evangelização,  além de um simples verniz simples e de uma ação supérflua que não toca a realidade nem o essencial da mensagem de Jesus, deve ser uma Igreja “em saída”  (EG 24). “O espaço estritamente religioso ou intra-eclesial não esgota a missão da Igreja, sinal e instrumento do Reino de Deus no coração da história: Deus quer salvar a todos, e a Igreja, como uma mediadora privilegiada, requer ser a Igreja de todos, mesmo daqueles que não são Igreja “( BRIGHENTI, 2009, p. 39).

Fazer do ser humano o caminho da Igreja é tomar consciência de tudo o que abrange a sua existência, em todas as suas dimensões e âmbitos. “Este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão, ele é o primeiro e fundamental caminho para a Igreja” (Redemptor hominis RH 13).

Esta estrada é hoje um desafio e uma necessidade para a ação evangelizadora,  que requer superar os conhecidos paradigmas ontológicos e hermenêuticos, a partir dos quais o ser humano é visto apenas como uma categoria universal, sem rosto e sem pátria. Já os bispos reunidos em Puebla, punham em questão este tipo de “universalidade” no nível cultural, que eles percebiam como “sinônimo de nivelação e uniformidade que não respeita as diferentes culturas, enfraquecendo-as, absorvendo-as ou eliminando-as. Com maior razão, a Igreja não aceita aquela instrumentação da universalidade que equivale à unificação da humanidade através de uma injusta supremacia e dominação sobre uns povos ou setores sociais sobre outros povos e setores “(DP 427).

Fazer do ser humano o caminho da Igreja implica ter em conta a dimensão da alteridade, uma questão que a teologia latino-americana leva muito a sério a ver que em muitos sectores, especialmente no econômico, foi negada a presença e participação do ” outro “, ou seja, dos pobres ou melhor, dos empobrecidos, privando-os de seus direitos mais fundamentais. “É hora de que a Igreja tire as consequências do  Evangelho social de Jesus Cristo, para que que a religião cristã seja de fato uma experiência salvífica, tanto na esfera pessoal quanto na social. Está em jogo a credibilidade não só da Igreja, mas também o próprio Evangelho ” (BRIGHENTI, 2009, p. 40).

4.2 O pluralismo como pressuposto, não só como abertura

É difícil ignorar o pluralismo como um fato óbvio hoje, quase ninguém pode duvidar de sua influência em todos os âmbitos. Mas o importante é não só dar-se conta da sua existência, mas assumi-lo e considerá-lo como algo praticamente inevitável em todas as reflexões e nas  práticas evangelizadoras, não é suficiente apresentá-lo como uma atitude de abertura a novas ideias ou propostas pastorais, mas inclui-lo nos desenhos e elaborações evangelizadoras como um componente próprio da Igreja. “A Igreja do futuro ou será pluralista, isto é, respeitosa e promotora do pluralismo, ou não será católica”.

O pluralismo -mais propriamente uma atitude pluralista- é uma possível resposta ao fato da pluralidade. Não é uma concessão à realidade que prevalece, ou uma abertura a outras ofertas ou possibilidades, mas um pressuposto de nossas propostas evangelizadoras. Isto significa que a Igreja, antes de falar sobre si mesma e seus próprios projetos,  tem que ouvir e considerar ao outro, não como uma prolongação de si mesma, mas como algo diferente, totalmente outro. A atitude pluralista nos leva a considerar o diferente (cultura, língua, símbolo, pessoa) não como uma ameaça, uma concorrência ou potencial inimigo, mas como um meio de enriquecimento e abertura para novas possibilidades pastorais.

Assim, na ação evangelizadora, não há destinatários, mas interlocutores, como acontece na revelação. Para que exista revelação, não é  suficiente que Deus se manifeste; é necessária a resposta humana. O ponto de partida da  evangelização é o outro e as suas circunstâncias, suas necessidades, porque, enquanto comunicação, só acontece quando o outro responde.

A atitude que dá o tom no encontro com o outro, o diferente, em vez da manipulação ou o proselitismo é, acima de tudo, o testemunho. O testemunho é sempre a expressão da discreta ação misteriosa de Deus, sempre respeitoso da liberdade humana.

4.3 Revalorização da Igreja local

O Concílio Vaticano II (LG 23, CD 11) redescobriu o grande valor da Igreja particular, não como uma parte, mas como uma porção da Igreja universal, na qual se contém a Igreja toda, mas não toda a Igreja, pois nenhuma Igreja local pode esgotar o mistério eclesial. Daqui  segue-se que a catolicidade da Igreja está,  a partir da Igreja local,  na comunhão das Igrejas, uma vez que a Igreja de Jesus Cristo é “Igreja de Igrejas” (cf. TILLARD, 1991).

Além disso, de acordo com o que mesmo Concilio nos lembra, a Igreja local está fundada sobre e construída pela Palavra de Deus. A Igreja é uma instituição da Palavra, que antecede à Congregação dos fiéis. Ela mesma é um resultado da evangelização. Assim, precisamente da obra evangelizadora e missionária da Igreja local, surge a missão universal da Igreja surge. Esta é, em primeiro lugar, uma chamada para evangelizar-se continuamente, assumindo um rosto próprio em relação com a alteridade das outras Igrejas;  em segundo lugar é uma chamada que incita a ir a todos os Povos, a fim de fazer surgir comunidades que procurem inculturar a fé em seu espaço local, a partir de suas peculiaridades, que por sua vez irá remodelar a face da Igreja local.

Uma das exigências da evangelização é a conformação de grupos  a “escala humana” (cf. DA 180) como um meio privilegiado para a prática evangelizadora da Igreja (cf. DA 307). A Igreja latino-americana, dependente da eclesiologia do Povo de Deus e  de Comunhão, queria ser uma Igreja viva e dinâmica (cf. Documento cf. de Santo Domingo DSD 23),  refletindo esse rosto nos vários níveis de Igreja, a partir da vivência de comunhão e participação, feita especialmente através das pequenas comunidades eclesiais de base, que são consideradas como um sinal de vitalidade eclesial, instrumento de evangelização e ponto de partida para uma nova sociedade (cf. DSD 61).

Elas são, portanto, consideradas assim por várias razões: em primeiro lugar, essas comunidades descentralizam e articulam as “grandes comunidades” impessoais ou de massa, transformando-as em ambientes simples e de muita vitalidade, tornando-se assim num espaço promotor do resgate da identidade,  a dignidade e a autoestima. Em segundo lugar, abrem um espaço para os excluídos, seja por razões económicas, étnicas, de idade, sexo, cultura. Dentro destas pequenas comunidades os pobres tornam-se sujeitos e atores de sua própria história, deixando de ser objeto de caridade ou de ajuda externa. Em terceiro lugar, as pequenas comunidades tentam unir fé e vida, unindo a religiosidade ao sentido, conscientes de que Deus deseja a vida a partir do corpo. No seu seio, a  religião, longe de ser um meio de  alienação, assume um caráter explícito de libertação, manifestando-se na história a parcialidade de Deus para com o pobre ante o sofrimento injusto. Em quarto lugar, as pequenas comunidades, ecoando o Concilio ao recuperar o sentido do sacerdócio comum dos fiéis, afirmam a urgência do protagonismo dos leigos na missão evangelizadora (cf. LG 10 DSD 103,293).

Ernesto Palafox, Pontificia Universidad de México. México. Texto original espanhol.

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Para aprofundar mais

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Crer na América Latina

Sumário

1 Introdução explicativa

2 Crer/Fé

3 Na América Latina: contexto

4 Hermenêutica libertadora

5 Desafios e perspectivas

6 Referências bibliográficas

1 Introdução explicativa

Em primeiro lugar, quando dizemos crer na América Latina (AL) afirmamos um lugar geográfico, ou melhor, uma vasta geografia em que a proposta da revelação cristã foi feita e tem feito história. A dificuldade de reduzir esta diversidade geográfica e humana a um conceito, AL, é evidente. A diferença entre os países do continente e as ilhas do Caribe é enorme e até dentro de um mesmo país, encontramos uma variedade de regiões e estruturas humanas que são relutantes em desistir de sua particularidade irredutível.

Quando se fala de contexto social e eclesial da América Latina e do Caribe, não se pode esquecer que é uma abstração, um recurso linguístico que não representa a viva realidade de nossas terras. As imagens e os conceitos são necessários para a reflexão, mas, ao mesmo tempo, eles são deficientes e inadequados. Seria uma ilusão intelectual, seja na sua vertente realista ou idealista, pensar que estas imagens encarnam o retrato pitoresco e animado da realidade viva.

Apesar desta dificuldade, erigida em memória, que homenageia a complexidade da realidade e a insuficiência e fragmentação de qualquer explicação sobre isso, existe consenso em afirmar um “espírito latino-americano” que, à sombra desta complexidade, se manifesta como “uma simplicidade permanente e, no entanto, constantemente criativo”.

Em segundo lugar, quando falamos de crer na AL, não estamos propondo uma reflexão teológica sobre a especificidade da fé (fides qua, fides quae) ou a fé entendida e justificada, mas consideramos a fé quoad exercicium, ou seja, como a resposta viva para uma proposta. Trata-se não de uma teoria sobre a fé em geral, que não existe, ou sobre a fé na AL, mas de buscar o que está implícito, como exigência e desafio, na resposta a essa proposta.

2 Crer/Fé

Quando o ser humano tem fé em algo ou em alguém, se diz que ele crê. A correspondência entre crer e ter fé não é absoluta, mas podemos dizer que o significado de ambos encontra uma determinada coincidência enquanto se  relacionam com algo que não é evidente. A partir deste ponto de vista, segundo o objeto de crença ou da fé, pode-se falar de uma fé ou de uma crença humana e religiosa.

A fé cristã tem uma característica singular por seu caráter teologal. Isto significa que ela não é meramente humana ou religiosa. Quando humanamente se tem fé em algo ou em alguém  não se pode garantir a fidelidade daquilo ou daquele em quem se crê. Desde o ponto de vista religioso, crer numa divindade, em uma força superior e misteriosa não implica necessariamente uma relação pessoal com essa divindade. Dizer que a fé cristã tem um caráter teologal significa que: a) ela tem a sua origem em Deus, o próprio Deus quem se propõe para ser crido (credere Deum); b) que a fidelidade de Deus é garantida, crê-se porque Deus é a razão pela qual se crê (credere Deo); e c) ela tem uma dinâmica relacional em que a própria divindade está envolvida promovendo, sustentando e encaminhando o assentimento a um fim que é o próprio Deus (credere in Deum).

O caráter teologal da fé, precisamente por aquilo que se crê, a quem se crê e para quem se crê, também envolve uma escuridão e uma certeza. Escuridão, porque à verdade do objeto da fé não se chega pela evidência da demonstração, mas pela autoridade de quem se propõe ser crido: “A fé é certa, não porque implica a evidência de uma coisa vista, senão porque é a adesão a uma pessoa que vê” (MOROUX, 1939, p.83). A certeza da fé não é, portanto, uma evidência baseada na visão do crente, mas na visão daquele em quem se crê.

A singularidade desta certeza é extraordinária, porque a pessoa em quem se crê se faz, por assim dizer, passiva de sua própria visão. Crendo aquele que vê, vemos através dele, porque ele vê através de nós. Em sentido estrito, a fé não é acompanhada pela dúvida, por este modo singular de visão aquele que crê não tem dúvida. Não se pode confundir a tendência para procurar e compreender com um estado de dúvida, esta tendência é inerente à natureza do mistério que não se deixa definir ou limitar nas nossas representações. A certeza da fé é confirmada, não só na confissão, mas também na prática, o exercício da caridade traz uma maior coerência e significado ao que se acredita. A fides quaerens intellectum também é fides quaerens caritatem.

Estritamente falando, crer na AL ou a fé na AL são equivalentes. Mas nós preferimos o verbo crer precisamente porque queremos sublinhar o dinamismo prospectivo e ascendente  da proposta que nos é oferecida como o caminho, a verdade e a vida (cf. Jo 14,6), e que o substantivo fé poderia obscurecer, pela mesma função do substantivo no artifício da linguagem, sugerimos a imagem ou a ideia de uma substância estável, de um fato adquirido, de um absoluto. O verbo nos dá a imagem deste singular e único (ato de fé) ato, mantém o seu carácter itinerante e temporário, nos transmite o sentimento  de que a resposta é sempre algo que precisa ser restaurado e completado, nos  abre à invenção .

3 Na América Latina: contexto

A proposta cristã se configura numa trama histórica particular (história da eleição do povo de Israel) com uma pretensão de universalidade. É uma proposta que atinge todas as nações e, neste sentido, no contexto da sua configuração histórica não limita a possibilidade de se realizar em outros contextos. A universalidade da proposta, o seu sentido original,  só pode ser recuperada se for compreendida nos novos contextos onde é proposta.  É, neste sentido, que se pode entender qualquer tipo de enunciado em que se explicitam as respostas à proposta em um determinado contexto, neste caso, crer na América Latina.

No entanto, apesar de hoje não entrar em discussão o caráter contextual de todo o discurso teológico, não é questionada a legitimidade deste discurso de recorrer a outros saberes para explicar a fé. A reflexão teológica latino-americana representou uma novidade por ampliar significativamente o leque de possibilidades de este recurso auxiliar em seu esforço intelectivo prático da proposta cristã.

A consequência lógica dessas afirmações é que a resposta (crer) à proposta da revelação está ligada a um contexto relativo e que, sem este vínculo necessário, não seria possível responder de forma coerente nem honrar a pretensão absoluta e universal da proposta. Esta tarefa requer um método adequado para poder dar conta, dar razão da experiência de fé, uma fé enraizada e com base em todas as experiências do passado, mas testemunhada no presente e projetada para um futuro de plenitude.

Quando afirmamos que toda reflexão teológica, toda resposta de fé à proposta da revelação está situada em um contexto particular, isto implica uma pluralidade de modos, de símbolos, de linguagem para  comunicar, dar razão e testemunhar esta experiência de fé. Nem a vida crente nem a reflexão teológica têm o privilégio de uma “extraterritorialidade”. Elas são parte da cultura e do contexto em que se desenvolvem. Esquecer esse relativismo, em nome do absoluto do conteúdo é, precisamente, cortar  qualquer possibilidade de contato com o grupo humano relativo e concreto ao qual se destina a proposta e, portanto, condenar-se a uma forma conservadora de agir e pensar. A fé praticada e pensada não foi nem é autônoma do seu  contexto. Esta vida e reflexão não ocorrem dentro de um laboratório livre de contaminação, mas no meio de um mundo contaminado por todas as tendências e lutas ideológicas. Mas, precisamente porque a fé se “mundaniza” é que ela respondeu e pode responder às perguntas e desafios que têm surgido ou possam surgir ao longo de todos os momentos cruciais da história da humanidade. Entendendo como crucial este tempo atual, que, para além dos seus movimentos contraditórios, como reconhece o Concílio, é marcado por uma busca sincera e profunda de significado (Cf. GS n.4-10).

4 Hermenêutica libertadora

A resposta, neste caso, crer, envolve já o estabelecimento de um diálogo. Isto significa que a proposta cristã, ao entrar em diálogo com um contexto social, cultural e espiritual, é reinventada. Uma das características principais deste diálogo-“conversa” é a reinvenção, esta mesma consequência do caráter universal da proposta e, por assim dizer, o lugar de sua verificação.

Reinventar não é prescindir de toda a preparação que tornou possível chegar ao ponto da conversa, mas a renúncia a estabelecer como condição que se cumpra a proposta, previamente lida e compreendida antes de ser acolhida. A invenção apresenta constantemente um carácter imprevisível, ao mesmo tempo em que permanece ligada a tudo o que a faz surgir. Para esta reinvenção, o crente necessita uma teologia que se distinga mais pelo método utilizado do que pela linguagem. Na AL, essa teologia é conhecida como Teologia da Libertação (TdL) não porque, como observou Juan Luis Segundo há 40 anos, o seu conteúdo seja a libertação, mas porque ela tenta ser uma teologia libertadora.

O método dessa teologia, proposto pelo próprio Segundo, é um círculo hermenêutico definido como:

a mudança contínua em nossa interpretação da Bíblia em função das contínuas mudanças de nossa realidade atual, tanto individual como social. Hermenêutica significa interpretação. E a natureza circular desta interpretação é que cada nova realidade requer interpretar de novo a revelação de Deus,  para mudar com ela a realidade e, assim, para voltar a reinterpretar … e assim por diante. (SEGUNDO, 1975, p.12)

O método é decisivo  para manter e garantir o caráter libertador da teologia. É por este método que o teólogo articula as disciplinas que lhe abrem ao passado e as disciplinas que lhe explicam o presente, armando-se com os critérios atuais que o tornam capaz de responder às novas questões decorrentes do contato com a nova realidade.

Para Segundo, fazer teologia libertadora será sempre interpretar a palavra de Deus, dirigida ao homem de hoje em seu aqui e agora, de uma nova maneira. Esta novidade é exigida pela nova realidade cujas perguntas ficariam sem respostas ou receberiam respostas inúteis ou conservadoras, respostas que procurariam aprovar o que já não existe ou refutar o que existe. Em outras palavras, a incapacidade de responder à nova realidade com uma nova maneira de interpretar a palavra de Deus equivaleria a responder a perguntas não feitas ou a determinar previamente as perguntas que deveriam ser colocadas, sem perceber que essas respostas, elas próprias, foram criadas em um determinado contexto.

Esta falha significaria, em última instância, o fracasso da teologia e sua pretensão de articular um discurso que anuncia e enuncia com sentido uma mensagem eloquente  para o homem de hoje, eloquente para ser capaz de responder e representar com seriedade a questão pelo sentido e a finalidade  última da história humana tecida em uma multiplicidade de contextos. A teologia falha quando dilui a proposta da fé (kerygma) ao privá-la de sua universalidade e caráter absoluto ou, o que é o mesmo, privando-a de sua natureza histórica, renunciando a historicizar-se. O conteúdo absoluto, revelação de Deus, destina-se – por ser proposta – a ser relativizado.

Este caráter circular do método teológico também foi expresso por Ratzinger em termos de discurso escatológico, como a necessária tensão entre a palavra-esquema e realidade. A palavra-esquema é o relato de uma história posterior, e por esta razão só é preenchida de conteúdo pela própria experiência histórica (realidade). No entanto, a palavra não é desprovida de conteúdo, ela é a fonte do cristão e sua norma. A palavra-esquema incorpora a realidade como a história posterior que, por sua vez, revela a amplitude e o alcance da palavra. A experiência histórica da progressiva  realidade está chamada a ser superada pela palavra com conteúdo que transmite o esquema; esse conteúdo é suficientemente claro e abrangente para incorporar toda a realidade e, ao mesmo tempo, deixar que seja esclarecido seu pleno sentido pela incorporação das experiências históricas.

O esquema clama a realidade e, portanto, tem de contá-la como  história posterior, mas, ao mesmo tempo, este esquema só é preenchido de conteúdo pela experiência histórica:

É somente assim, como o esquema é preenchido pela realidade. Ficaria, pelo contrário, um vazio esquemático se pretendesse deduzir o conteúdo exclusivamente a partir do texto reconstruído em sua forma mais primitiva. Assim, o próprio leitor é arrastado para a aventura da palavra, não podendo compreendê-la, mas como um copartícipe e não como um mero espectador. (RATZINGER,  2007, p.63-4).

5 Desafios e perspectivas

A partir destas considerações, podemos nos perguntar pelos desafios que se enfrenta e se tem que responder à vida crente em nosso continente, em outras palavras, o que significa crer na AL? Ou em que implica ou quais são as exigências para responder à proposta pessoal, e não individual, para seguir Jesus?  É claro que esta questão não se formularia sem um mínimo de inventário da realidade. Se alguém perguntar o que fazer ou qual seria a resposta que deveria dar em uma determinada situação, é porque já o próprio contexto está a colocar novas questões que exigem novas respostas. Experimenta-se uma insatisfação e o sentimento de não estar à altura das exigências do que se crê e, portanto, a necessidade de interpretar para que o testemunho da esperança seja coerente com ela (círculo hermenêutico).

A vida cristã é, em si mesma, enquanto vida com sentido, dar razão do que se crê ou o do que se espera porque se crê. Embora o “dar razão” (apologia) apareça no NT em um contexto de defesa, pode ser entendido em um contexto de diálogo, comunicar, dar  notícia, explicar a esperança para quem está interessado nela (1Pd 3,15). Essa conversa nos coloca na dinâmica de um duplo movimento. Por um lado, é dada a notícia que se acredita e, ao mesmo tempo, se entra em uma busca da própria identidade, o que significa entrar em um caminho de conversão.

Na AL, esse motivo de esperança não está tão relacionado com a dimensão racional, entendida como coerência lógica, conveniência,  plausibilidade do que é proposto para ser acreditado, quanto com o divórcio da proposta da vida crente e seu esforço por  humanizar o mundo ou, o que é o mesmo, fazê-lo segundo o coração de Deus.

A TdL tentou colocar o desafio de fé e da teologia neste contexto latino-americano, no nível das condições de injustiça em que vive a maioria do nosso povo. A racionalidade e a credibilidade de crer na AL dependem da força da fé para ajudar a transformar o mundo de injustiça. Não se trata de defender ou justificar a racionalidade e credibilidade da fé contra aqueles que eliminam a Deus do mundo ou o consideram uma fantasia infantil e estéril, mas, e aqui está o drama do nosso contexto, aos que  têm criado  e mantém a “injustiça estrutural” e que, ao mesmo tempo, se confessam crentes. Em outras palavras, se confessa a fé, os seus conteúdos (fides quae), mas não há um ato de fé (fides qua). Esse divórcio não faz mais do que revelar uma incredulidade disfarçada de credulidade ou, o que é o mesmo, acreditar em um falso deus ou em um deus que não existe e para quem a “injustiça institucionalizada” torna-se a realidade que o desmascara.

Motivada pelo espírito do Concílio Vaticano II, a Igreja latino-americana quis ser  protagonista do processo de humanização exigido pelo Concílio:

Eis a razão por que este sagrado Concílio, proclamando a sublime vocação do homem, e afirmando que nele está depositado um germe divino, oferece ao gênero humano a sincera cooperação da Igreja, a fim de instaurar a fraternidade universal que a esta vocação corresponde. Nenhuma ambição terrena move a Igreja, mas unicamente este objetivo: continuar, sob a direção do Espírito Consolador, a obra de Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar e não para julgar, para servir e não para ser servido. (GS, n.3)

Na AL, crer traduziu-se em uma opção: “opção preferencial pelos pobres”, uma opção que é “intrinsecamente cristológica”. No documento final da Conferência Episcopal da América Latina e do Caribe reunida  em  Aparecida, se afirma: “Tudo o que tenha relação com Cristo tem relação com os pobres e tudo o que está relacionado com os pobres reivindica a Jesus Cristo” (DA, n.393).

A opção preferencial pelos pobres tem sido a forma como a fé na AL encontrou sua realização histórica e assim seguiu o espírito do Concílio, quando afirma: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS, n.1) A opção preferencial pelo pobre, sem eufemismo e sem necessidade de notas explicativas, é o  “fato maior”, o “sinal dos tempos” da época e da realidade latino-americana e do Caribe.

Afirmar que a fé tem uma realização histórica significa que ela não é independente do contexto móvel no qual é anunciada, e que as autênticas aspirações humanas encontram uma afinidade com o que é proposto. A proposta de fé não é autônoma ou independente destas aspirações. Em um sentido cristão, deve ser afirmado que essas aspirações são o resultado de uma fé implícita, são o fruto da seminas verbi que o Semeador plantou no ser humano. Nisto consiste precisamente a universalidade da proposta, porque, em última análise, a proposta e a autêntica aspiração humana se reconhecem. Este poderia ser o profundo sentido da afirmação de Paulo VI, “a Igreja é perita em humanidade”, ou das palavras do Concílio:

Não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história. (GS, n.1)

Sua proposta é plenamente humana e ela se encontra com a busca autêntica da humanidade, como duas equipes perfurando um túnel a partir dos lados opostos da montanha, mas que se encontram na escuridão graças à habilidade do engenheiro (cf. BLONDEL, 1893, p.30).

Ao invés de tentar um diagnóstico do contexto latino-americano, já David Tracy disse, no início da década de noventa, que era impossível dar um nome para o presente, queremos aqui insistir na importância  do método para moldar uma resposta libertadora à proposta da fé. Nas palavras de J. L. Segundo:

a única coisa que pode indefinidamente manter o caráter libertador de uma teologia, não é seu conteúdo, mas seu método. Nele está a garantia de que qualquer que seja o vocabulário utilizado, e quaisquer que sejam as tentativas do sistema para reabsorvê-lo, o sistema em si continuará a aparecer no horizonte teológico como opressor. E nisto está  a maior esperança teológica para o futuro. (1975, p.48)

Para Segundo, o método (círculo hermenêutico) é o que permite resgatar a soberana  liberdade da palavra de Deus para dizer, qualquer que seja o nome dado ao contexto, o que é criativamente libertador nessa situação.

A dinâmica encarnatória da fé não poderia ser honrada sem a insistência na responsabilidade crente, como dizia I. Ellacuría e como diz Jon Sobrino,  para assumir a realidade, carregar a realidade, encarregar-se da realidade e deixar-se carregar por ela. Deus se manifestou definitivamente (Hb 1,1-6) na Palavra que se fez carne (Jo 1,1-4). Acreditando nesta proposta, qualquer que seja o contexto em que esta resposta é a vida acontecer, ele será sempre uma maneira de incorporar a sua universalidade (Mt 13,33) e universalizar sua encarnação.

Eugenio Rivas, SJ. FAJE, Brasil. Texto original em espanhol.

6 Referências bibliográficas

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A questão do mal

Sumário

Introdução

1 A experiência humana do mal na história da teologia moral

1.1 Primeira experiência humana do mal

1.2 Na historia da teologia moral

2 Características do mal

3 Simbólica do mal

4 Culpa e pecado

5 Formas de expressão

6 Resposta ao mal

7 Jesus frente ao mal

Referências

Introdução

Antes de iniciar o desenvolvimento de cada um dos pontos mencionados, é necessário situar, de forma muito breve, o assunto do mal. Em primeiro lugar, é importante notar que o problema do mal tem sido e pode ser abordado de várias maneiras, por exemplo, a partir de um ponto de vista psicológico; outros acreditam que o mal é uma questão de natureza metafísica, outros que é quase exclusivamente moral. Mas, em primeiro lugar, todos concordam que o mal é uma realidade que afeta os seres humanos. Em segundo lugar, há várias teorias sobre a natureza do mal, entre as quais estão aquelas que dizem: a) o mal faz parte da realidade; b) o mal é o último grau de ser, entendido este grau como pobreza ontológica; c) o mal faz parte do real, mas como uma entidade que opera dinamicamente e contribui para o desenvolvimento lógico-metafisico do que existe; d) o mal é o sacrifício que executa uma parte para o benefício do todo; e) o mal é uma completa falta de realidade, é pura e simplesmente o não ser; f) o mal é concebido como um afastamento de Deus e, nesta perspectiva religiosa, é concebido como uma manifestação do pecado. Em terceiro lugar, as doutrinas mais importantes sobre a origem do mal apresentam que: a) o mal procede de Deus ou da causa primeira; b) o mal tem sua origem no ser humano; c) o mal é o resultado do acaso; d) é uma consequência da natureza, da matéria ou de outras fontes. Tradicionalmente, os tipos de males foram classificados entre o mal físico, o que equivale a dor e sofrimento, e o mal moral, que é identificado com o pecado (e alguns autores concluem que esta é a origem do mal físico). A partir de Leibniz, que classificou o mal em três tipos – metafísico, físico e moral –, fala-se também do mal metafísico. Há, também, as seguintes maneiras de enfrentar o mal, ou atitudes frente a este que se identificaram: a) a aceitação do mal; b) o desespero; c) a fuga; d) a adesão; e) a ação individual ou coletiva para transformar radicalmente o mal (FERRATER MORA, 1979, p. 2079-2086).

Finalmente, é importante ressaltar que a maioria das religiões tem entendido o problema do mal essencialmente desde sua dimensão moral e não como uma questão física ou metafísica, mas nas histórias míticas todos estes aspectos estão sempre relacionados. Para a grande maioria das religiões o mal consistiu em uma violação da lei divina, portanto, o sofrimento, dor e morte são consequências da infração (GONZÁLEZ, 2014, p. 49).

1 A experiência humana do mal na historia da teologia moral

1.1 Primeira experiência humana do mal

Devemos começar destacando que abordar uma reflexão sobre a questão do mal não é uma tarefa fácil ou simples, porque de todos os problemas, a presença do mal no mundo é, sem dúvida, o que levanta mais perguntas. A dificuldade reside, também, na multiplicidade de abordagens devido à diversidade de maneiras com que se apresenta o mal (LATOURELLE, 1984, p. 335-337).

Da mesma forma, devemos esclarecer que levantar a questão do mal em termos de problema é uma consideração que pode ser incompleta e insuficiente, uma vez que o mal é uma realidade também apresentada como um mistério (LACOSTE, 2007, p. 733). Podemos dizer que se o mal é tanto problema quanto mistério, a sua abordagem não pertence exclusivamente ao campo filosófico, mas também ao campo religioso e teológico (LATOURELLE, 1984, p. 337-339).

Todo o enigma do mal radica em que entendemos sob o mesmo termo, pelo menos na tradição judaico-cristã ocidental, fenômenos tão diversos como, em uma primeira aproximação, o pecado, o sofrimento e a morte. Pode-se mesmo dizer que, se a questão do mal se distingue de pecado e culpa, é porque o sofrimento é constantemente tomado como um termo de referência (RICOEUR, 2007, p. 23-24).

Além disso, o fenômeno do mal é um fato indiscutível na experiência humana (BRAVO, 2006, p. 17). De uma coisa, todos os seres humanos, e não apenas os cristãos, estamos cientes: a existência do mal. Nós não precisamos de uma revelação particular ou uma demonstração específica para verificar a experiência dos seus efeitos (GUTIERREZ, 2014, p. 21). Todos nós podemos ver como “o problema do mal corta como uma espada, dura e terrível, toda a história da humanidade. Nenhuma cultura, e dentro dela nenhum indivíduo poderia escapar de seu enfrentamento” (TORRES, 2011, p. 11). A partir desta experiência do mal surgem questões prementes. Por que a fome? Por que os genocídios? Por que tal crueldade? Por que tantas guerras sem sentido? Por que o sofrimento de tantos seres humanos inocentes? (RUBIO, 1999, p. 151-155).

Esta experiência humana do mal é encontrada em fenômenos naturais como terremotos, secas, vulcões, inundações etc.; em males físicos e psíquicos que estão relacionados com a doença física e mental. Do mesmo modo a experiência do mal está presente no mal moral que afeta os indivíduos e grupos. Poderíamos dizer que o último, o mal moral, desde uma perspectiva teológica, refere-se ao pecado. Tem sua origem no coração do homem e é a causa da maioria das doenças físicas e psíquicas (LATOURELLE, 1984, p. 339-340). Portanto, a experiência do mal é teologicamente ligada ao que chamamos de pecado estrutural, o pecado coletivo ou pecado social (ESTRADA, 2012, p. 92). Assim, o mal moral refere-se a uma problemática de liberdade. Intrinsecamente. Assim, é possível ser responsável por ele, assumi-lo, confessá-lo e combatê-lo. O mal está inscrito no coração do ser humano. O mal remete a uma questão da liberdade, ou da moral (RICOEUR, 2007, p. 15). Se é assim, a questão já não é de onde vem o mal, mas de onde vem que o homem faça o mal.

1.2 Na historia da teologia moral

Os Padres da Igreja, desde Orígenes, Clemente de Alexandria, Gregório de Nissa, até Agostinho, levantaram o problema do mal com referência à criação. No entanto, e desde Agostinho, o mal é concebido não só como negatividade, mas, acima de tudo, como a decisão livre da pessoa. A causa é a deficiência da pessoa que se aplica a toda a sua vontade. Pois, embora o ser humano tenda, por sua natureza, para o bem, sempre há a possibilidade de escolher o mal. Nisso reside a grandeza do homem, mas também a maior deficiência do seu ser (GONZALEZ, 2014, p. 5-9). A partir desta abordagem falamos não de mal, mas do pecado constitutivo, e este como uma causa do pecado pessoal e do mal moral.

2 Características do mal

No contexto da racionalidade ocidental e da religião judaico-cristã, o mal se caracteriza por ser universal, irracional, pessoal e social. É universal porque nele testemunham os mitos mais antigos que procuram explicar a presença do mal no mundo[1].

Todas as etapas da história são atravessadas pela presença do mal que, sob diversas formas, chega até o presente. O mal, pelo menos como uma ameaça,  é encontrado em todas as realidades criadas e adota uma multiplicidade de formas, portanto, podemos dizer que a sua presença é universal e pluridimensional (GELABERT, 1999, p. 191-192). O mal é irracional. O mal é sempre irracional, não tem razão de ser e está além de toda razão (GELABERT, 1999, p. 192-193). Como exemplo, podemos ver essa irracionalidade nos campos de concentração de Auschwitz, nos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, apenas para ilustrar o que dizemos. No entanto, são muitas as situações que mostram a irracionalidade do mal.

Uma das características mais importantes é que o mal é um problema da liberdade humana. Por esta razão, o ser humano pode ser responsável por ele, aceitá-lo, confessá-lo e combatê-lo. O mal está escrito no coração do homem, portanto, o mal é também de ordem moral, como já tínhamos apontado (RICOEUR, 2007, p. 15).

3 Simbólica do mal

A simbólica do mal é uma tentativa de interpretar, compreender e explicar a questão do mal. Em outras palavras, é uma hermenêutica porque, como diz Ricoeur, “se ‘o símbolo dá que pensar’, o que a simbólica do mal dá que pensar se refere à grandeza e ao limite de qualquer visão ética do mundo, já que o homem que mostra esta simbólica não parece menos vítima que culpado” (RICOEUR, 2004, p. 17). Os símbolos são signos que expressam e comunicam um sentido, Ricoeur justamente diz que mythos já é logos  (RICOEUR, 2004, p. 179-183). Dentro das cosmovisões religiosas que Ricoeur apresenta, podem ser descritos quatro tipos de mitos sobre o mal: 1) na primeira narrativa mítica, Ricoeur situa o início do mal na origem mesma do ser, nos deuses que criam o mundo; 2) em um segundo grupo de mitos, afirma que o destino marca os acontecimentos e o mal, portanto, é intrínseco à existência e ao sofrimento permanente; 3) o terceiro é o mito adâmico judaico-cristão, que diz que foi o ser humano quem introduziu o mal no mundo; 4) finalmente, há o mito órfico, que indica que uma alma de origem divina é aprisionada em um corpo que a arrasta para o mal (DE COSSIO, 2011, p. 338-339). Não há, na verdade, uma linguagem direta, não simbólica, do mal padecido, sofrido ou cometido. Ou seja, o homem já se reconhece a si mesmo como responsável ou vítima de um mal que o ataca e que é expresso, desde um princípio, numa simbólica (RICOEUR, 2004, p. 27). No entanto, os símbolos do mal, por excelência, são a indigência e a finitude (ESTRADA, 2012, p. 74)

4 Culpa e pecado

Foi dito no primeiro ponto deste escrito que o mal é concebido não só como falta ou negatividade, mas também como livre escolha do ser humano. É que “o mal pertence ao drama da liberdade humana. É o preço da liberdade” (SAFRANSKI, 2005, p. 10). Assim, é a partir dessa abordagem que deveríamos falar, já não do mal, mas do pecado constitutivo[2]. No entanto, falando do pecado, devemos dar um passo adiante, e é o passo da razão à fé, porque, como Ricoeur observa, o relacionamento pessoal com Deus estabelece o espaço espiritual no qual se tenta explicar o mal, mas no nível do pecado. Portanto, a categoria que rege a noção do pecado é a que o compreende como algo feito “diante de Deus”. Assim, o pecado é uma magnitude religiosa antes de ser ético, não há a lesão de uma regra abstrata ou a violação de uma lei ou regulamento, mas, principalmente, é a quebra de uma ligação pessoal (RICOEUR, 2004, p. 214). E o mal não aparece apenas como uma carência, mas como o rompimento de um relacionamento (BRAVO, 2006, p. 218).

Além do pecado pessoal, existe a realidade de um pecado social ou estrutural, no sentido de que todo pecado pessoal tem um impacto sobre toda a comunidade (MATHIAS, 2011). O autor afirma, em seu livro, que existe um pecado estrutural, cujo sujeito está constituído pela comunidade presente naquela instituição social que ataca abertamente a vida humana, analisando os efeitos nos quais se reconhece a existência de um pecado estrutural num dado sistema social (VIDAL, 2012, p. 261-292).

5 Formas de expressão

É um fato indiscutível que o ser humano habita um mundo onde o mal existe e no qual se podem reconhecer vários tipos ou formas como ele se expressa (MONTERO, 2010, p. 7). Entre as várias manifestações do mal, que o homem reconhece, estão os desastres naturais, o mal físico que se manifesta em doenças como o câncer, a AIDS, o Ebola, as doenças mentais etc. No entanto, a presença do mal moral – como as guerras, o terrorismo, a fome, a crueldade, a pena de morte, a exploração e o abuso de mulheres e crianças, o mal disfarçado de progresso, a corrupção e um sem fim de eteceteras (LOPEZ, 2012, 20-49) – deve nos fazer pensar que somos todos responsáveis. Para ilustrar isso, apresentamos alguns dados. Em 2000, o presidente do Banco Mundial, disse:

São muitos os países onde o HIV/AIDS impediu o aumento da expectativa de vida e causou tanta dor e sofrimento. São muitos os países onde as armas, a guerra e os conflitos têm minado o desenvolvimento (…) Vivemos num mundo marcado pela desigualdade. Algo está errado quando os 20% mais ricos da população mundial recebem mais de 80% da renda global. Algo está errado quando 10% da população recebem metade da renda nacional, como acontece num grande número de países. Algo está errado quando a renda dos 20 países mais ricos é 37 vezes a média da renda dos 20 países mais pobres, uma diferença que aumentou mais do que o dobro nos últimos 40 anos. Algo está errado quando 1,2 bilhão de pessoas ainda vivem com menos de 1 dólar por dia e 2,8 bilhões com menos de 2 dólares.  Num momento em que todas as forças estão fazendo o mundo menor, é hora de mudar nossa maneira de pensar. É hora de perceber que vivemos juntos em um mundo, não em dois; que essa pobreza está na nossa comunidade, onde quer que vivamos. É nossa responsabilidade. É hora de os líderes políticos reconhecerem essa obrigação (WOLFENSOHN, 2000).

Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, diz que 1% da população tem o que 99% precisa. Esse 1% da população goza das melhores casas, a melhor educação, os melhores médicos e o melhor padrão de vida.

Em 1 de abril de 2014, Jim Yong Kim, presidente do Banco Mundial, afirmou:

Vivemos em um mundo de desigualdades. As disparidades entre ricos e pobres são tão evidentes aqui em Washington como em qualquer outra capital do mundo. No entanto, para muitos de nós no mundo dos ricos, as pessoas que estão excluídas do progresso econômico  permanecem, em grande medida, invisíveis. Como o Papa Francisco expressou textualmente: “Que algumas pessoas desabrigadas morram de frio na rua não é notícia. Pelo contrário, uma queda (…) nas bolsas é uma tragédia”.

O Papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, diz:

Assim como o mandamento “não matar” põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social. Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o fato de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população veem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. (FRANCISCO, 2013, n. 53)

Vivemos em um mundo dilacerado pela injustiça, a fome, as guerras, e assim por diante. E nós estamos fazendo algo errado, porque estes números e muitos outros relatórios apresentados a cada ano mostram que a desigualdade no mundo, em vez de diminuir, está aumentando.

6 Resposta ao mal

Deveria ser um fato indiscutível que “o mal convoca todos para lutar em uma frente comum: encontrar respostas que, apesar dos terríveis e intermináveis desafios do mal, permitam viver sem sucumbir ao absurdo e sem render-se para reparar os danos e procurar as melhorias possíveis” (TORRES, 2011, p. 111). No entanto, contra o mal encontramos uma variada gama de respostas, entre as quais estão: a aceitação alegre do mal (atitude que encontra no mal satisfação ou complacência); a aceitação resignada (atitude passiva ou racionalizada ante o mal); o desespero (atitude de escape psicológico); a adesão (atitude de submissão ou  reconciliação com o mal); e, finalmente, a ação (atitude de confronto e contestação) individual e comunitária (FERRATER MORA, 1979, p. 2084).

Não há dúvida que, para a teologia, a realidade do mal é um desafio (RICOEUR, 2007) e um convite para pensar nele como a raiz comum do pecado e do sofrimento. A questão do mal exige uma convergência de pensamento e ação que, política e moralmente, por sua vez, requer uma transformação de sentimentos. Portanto, a partir dessa transformação surge não a clássica pergunta “por que o mal”, mas “o que fazer contra o mal?” (Ricoeur, 2007, p. 25, 58, 60).

A resposta da fé em um Deus que livremente e gratuitamente se autocomunica ao homem (DV n. 2), nos leva a afirmar, com Ellacuría, que é preciso enfrentar a realidade, carregar a realidade e responsabilizar-se por transformá-la (ESTRADA, 2012, p. 789). Importante ter em conta que J. Sobrino considera a misericórdia ante o sofrimento das vítimas como a atitude fundamental de todo ser humano justo e como uma categoria articuladora da reflexão teológica (TAMAYO-ACOSTA, 1999, p. 241-242). Esta abordagem para a ação não pretende dar uma solução pronta, mas apresentar apenas o esboço de uma resposta (BRAVO, 2006, p. 220), porque sabemos que “o triunfo humano sobre o mal é sempre parcial e cada conquista é precária, prelúdio de novos desafios (…)” (ESTRADA, 2012, p. 87). No entanto, em face do mal, temos de ter esperança, porque o amor de Deus encarnado em Jesus capacita o ser humano para gerar o bem a partir da experiência do mal (ESTRADA, 2012, p. 94). Não há dúvida que o mistério do mal é muito profundo, mas ainda mais profundo é o abismo do amor de Deus. A força para lutar contra o mal é encontrada em um Deus que se comprometeu com um amor misericordioso na cruz e nos dá a esperança da vitória na ressurreição. Consequentemente, o que nos faz cristãos é acreditar que a última e definitiva palavra de esperança na luta contra o mal chegou até nós na cruz e ressurreição (TORRES, 2005a, p. 267) de Cristo, de quem se disse que: “(…)  andou fazendo o bem (…)” (At 10,38).

7 Jesus frente ao mal

Na seção anterior, fizemos uma breve aproximação do tema da resposta ao mal e insinuamos os limites e as possibilidades que tem. Temos também insinuado que a força e esperança, nesta tentativa de responder ao mal, são encontradas no amor de um Deus que se autocomunicou em Jesus de Nazaré. Por isso, olhar como Jesus se posicionou contra o mal pode guiar-nos nesta grande tarefa pendente de reagir e combater o mal.

Devemos começar por salientar que um dos traços característicos de Jesus é a sua sensibilidade ao sofrimento. “E, vendo as multidões, teve grande compaixão delas, porque andavam cansadas e desamparadas, como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9,36). Essa sensibilidade é transformada em compaixão e solidariedade com aqueles que sofrem e isso é demonstrado na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,29-37), em que fica evidente que não é suficiente o cumprimento dos deveres religiosos, mas o nosso amor por Deus deve ser traduzido em solidariedade efetiva com os que sofrem (TAMAYO-ACOSTA, 1999, p. 243). Devido à sua sensibilidade ao sofrimento, Jesus é solidário com aqueles que são estigmatizados e excluídos por causas religiosas, políticas e sociais, como os leprosos (Lc 5,12-15; 17,11-19; Mt 8,1-4), os cegos (Mt 9,27-31), os paralíticos (Mt 9,1-8; Lc 5,17-26), os possuídos por demônios (Mt 8,28-34; 9,32-34), os pecadores (Mt 9,10-13; Lc 5,29-32; Lc 7,36-50) os samaritanos (Jo 4,9-10) etc. São relações de reconhecimento e acolhida. É uma solidariedade tão profunda que o próprio Jesus se identifica com todos aqueles que sofrem:

Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me (…). Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.  (Mt 25, 31-46)

Porém, Jesus não fica apenas no tratamento misericordioso, solidário e compassivo com os que sofrem, Ele vai além e denúncia os poderes religiosos, políticos, sociais e econômicos que estão causando esse sofrimento (Mt 23,1-32; Lc 11,37-54). Poderíamos dizer que sua atitude com os marginalizados, excluídos e estigmatizados por todos esses poderes já é uma denúncia e um confronto contra o mal, esse mal que teologicamente identificamos com o pecado social ou com as estruturas de pecado (NEBEL, 2001, p. 292-340; SARMIENTO, 1987, p. 869-881; MOSER, 1992, p. 1369-1383)

Resulta evidente que a perseguição, o juízo, a condenação, a cruz e a morte que Jesus sofreu foi o resultado da sua vida, da sua luta contra o mal e do seu compromisso com a justiça e com o bem (GELABERT, 1999, p. 217). Portanto, a cruz não é um sinal da fraqueza de Deus, mas um símbolo da força do seu amor. A cruz não é o símbolo de um Deus que pacientemente aceita o sofrimento, ao ser ele próprio vítima do mal, pelo contrário, a cruz é o grito de protesto mais forte que alguém pode manifestar contra o mal.

A cruz não é um sinal de fracasso e desespero na luta contra o mal, porque “(…) Deus se solidariza com a vítima (…) Deus está no crucificado e em todos os massacrados da história, incluindo aquele que pendurava no arame farpado de Auschwitz (…) Deus está envolvido no mal não desde o poder, mas desde o amor (…) Não elimina a morte, mas oferece, desde ela, a vida” (LOIS, 2004, p. 35-36).

Ao observar qual é a atitude de Jesus contra o mal, devemos ter em mente que “a referência vinculante à memória do crucificado e ressuscitado, memória subversiva e subjugante (…) permite intuir ao crente o que é que seu Deus quer dele na relação com o mal existente (LOIS, 2004, 40). Portanto, o Cristianismo não é, em  primeiro lugar, uma doutrina que deve ser mantida o mais pura possível, mas uma práxis que devemos viver da maneira mais radical possível  (METZ, 1982, p. 33).

Algo parece claro a partir da vida e a mensagem de Jesus, da sua morte e ressurreição, Deus, o seu Deus, como diz Schillebeeckx, é o antimal. Esta é a grande contribuição da fé cristã ao problema do mal. Ao colocar Jesus no centro da sua vida e mensagem, o serviço a um reino de justiça e fraternidade, a luta contra o mal torna-se componente essencial da vida de cada seguidor de Jesus (LOIS, 2004, p. 40).

A atitude de Jesus contra o mal mostra que nem o pecado nem a morte têm a última palavra. A última palavra é a proximidade amorosa e clemente do Deus que se comunicou a si mesmo e quis vir fazer parte da nossa história.

 María Isabel Gil Espinosa. Pontificia Universidad Javeriana, Colombia. Texto original em espanhol[3]

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[1] “O mal está nos mitos mais antigos como um poder cujas raízes estão em um caos primordial ou nos domínios do divino. Pertence, como disse M. Eliade, o mundo da religião e supera as possiblidades do conhecimento da ação humana até que, nos tempos modernos, começa a sofrer um processo de secularização.” (Montero, 2010, 6-7)

[2] “A decisão de entrar no problema do mal pela porta estreita da realidade humana não expressa, portanto, senão a escolha de uma perspectiva central (…) Vai-se objetar que a escolha desta perspectiva é arbitrária, que é, em um sentido forte da palavra, preconceito. Em absoluto. A decisão de enfrentar o mal do ponto de vista do homem e da sua liberdade não é uma escolha arbitrária, mas adequada à natureza mesma do problema.” (RICOEUR, 2004, p.14).

[3] Doutora em Teologia Pontifícia Universidade Javeriana, Magíster em Teologia, Pontifícia Universidade Javeriana, Especialista em Bioética Pontifícia Universidade Javeriana, Licenciada em Ciências Religiosas, Pontifícia Universidade Javeriana. Professora de Teologia Moral na Faculdade de Teologia, Pontifícia Universidade Javeriana – Bogotá. E-mail: maria.gil@javeriana.edu.co

Temas emergentes na ética teológica

Sumário

1 Emergência da justiça na ética sexual

2 Emerge na bioética a hermenêutica da justiça

3 A biotecnologia

4 A instabilidade global: militarização, migração, crises ecológicas e a necessidade de uma nova ordem mundial (legal)

5 Horizontes novos na teologia moral fundamental

6  Temas (ignorados) que necessitam atenção para uma nova ordem mundial: a raça, o diálogo inter-religioso e a igualdade

7 Referências bibliográficas

1 Emergência da justiça na ética sexual

 Durante os últimos 50 anos, percebeu-se um deslocamento antropológico fundamental na teologia moral: do pessoal para o social.  Foi um deslocamento extraordinário, possibilitado pela introdução da justiça hermenêutica global para as áreas da ética sexual e da bioética.

 A hermenêutica da ética sexual focava, em geral, a castidade, virtude que basicamente dizia respeito ao indivíduo antes que tivesse relação sexual com outra pessoa e só considerava  aquelas relações que são maritais. Portanto, a ética sexual não tratava do relacionamento, mas era preparatória. Enquanto, assim, a virtude regulamentava somente a conduta dos que já estavam dispostos a ela, mais recentemente os teólogos morais começaram a se interessar por uma virtude que se concentrasse menos na pessoa individual e mais nas relações. Esta decisão, tomada sobretudo por feministas, de introduzir a justiça na ética sexual foi inovadora.

 Primeiro e principalmente, a introdução da justiça na ética sexual nos levou à questão da “igualdade de gênero” (gender equity), e esse tema vai nos acompanhar pelos próximos cinquenta anos, enquanto lidarmos com os temas concernentes à violência sexual e/ou à violação. Suscitou também a questão se a “complementaridade de gênero” deveria estar no centro do ensino moral referente às relações conjugais. A questão dos “direitos das mulheres” permanecerá e emergirá ainda mais como tema central de nosso tempo.

 O desenvolvimento destes direitos e movimentos vai mudar radicalmente nossas noções de gênero, bem como nossa compreensão do masculino e do feminino, enquanto surge a pergunta se as  próprias descrições dos dois vão se manter. Além disso, a inteira compreensão da família e do compromisso, junto com a ideia do matrimonio como associação, deverá ganhar mais maturidade enquanto as questões da igualdade de gênero continuarem emergindo.

 Segundo, a discussão sobre a homossexualidade hoje está mudando, visto que a questão da sexualidade de uma pessoa é, cada vez mais, adjudicada pelos temas da justiça e da igualdade.  A questão já não é o que a pessoa homossexual deve ou não fazer (ficar no armário, calada, ou casta – temas articulados através de uma hermenêutica de castidade); cada vez mais, agora, o tema central é como a sociedade deve tratar as pessoas homossexuais. Enquanto as cortes, as legislações e as populações votantes concederem às pessoas homossexuais mais direitos, veremos que, globalmente, o bem-estar delas estará protegido. Por expansão, serão consideradas também as pessoas transexuais, e a pergunta chave também será como a sociedade deverá tratá-las.

 Como gays e lésbicas estão emergindo normalmente em nossa paisagem, de modo geral nossos conceitos mais clássicos dos estereótipos dos gêneros masculino e feminino se verão questionados, e os teólogos morais deverão considerar com muita atenção alei natural”, a igreja e a cultura local. Entretanto, devem se esperar modificações em relação à lei natural, mudanças que nos provoquem diminuir o rígido marco clássico da lei natural, cujo fundamento filosófico tem efeito inibidor. Enfim, o entendimento de nossa sexualidade e sua orientação começará a ser explorado de maneira nova somente quando as distinções, já problemáticas, entre homo e hétero forem vistas como socialmente construídas e inadequadas.

2 Emerge na bioética a hermenêutica da justiça

 Na bioética, o deslocamento em direção à justiça se deu em duas plataformas. Primeiro, de modo geral, a bioética emergiu no mundo das economias fortes, onde as pessoas podiam pagar para ver um médico e custear seu próprio seguro. Em geral, a hermenêutica da atenção médica se desenvolvia num sistema de elite, em que a relação paciente-médico era predominante como modelo fundamental. Não obstante, essa relação determinou a bioética e também os temas concomitantes, a saber, o das decisões sub-rogadas, dos testamentos de vida, da reanimação e do uso de meios extraordinários.

 Com a introdução da justiça ético-médica, conseguimos entender outros problemas da ética médica, mais urgentes que os anteriormente mencionados, sobretudo os que surgem quando nos damos conta de que a maior parte das pessoas no mundo não tem acesso a nenhum tipo de atendimento médico. As perguntas sobre o acesso ao atendimento médico se tornaram mais relevantes com o aparecimento do HIV/AIDS.

 Com o HIV/AIDS, nova ética no atendimento médico emergiu como segunda plataforma, tornando-se um campo próprio, e começou-se a falar para a sociedade sobre a bioética na linguagem dos direitos humanos. A “hermenêutica dos direitos humanos” como linguagem da ética do atendimento médico está emergindo hoje em dia, mas, na realidade, formou-se em 1997, quando Jonathan Mann expôs diante dos oficiais da saúde pública uma intuição bastante reconhecida, mas até então bem pouco mencionada: “Está claro, através da história e em todas as sociedades, que os ricos têm vidas mais longevas e mais sadias que os pobres”. Mas, imediatamente depois deste comentário, acrescentou: “Uma pergunta mais importante, e que segue da proporcionalidade socioeconômica entre status e saúde, é: por que existe  tal proporcionalidade”.

 A pobreza, finalmente, irrompeu na paisagem bioética. A resposta dos funcionários da saúde pública aos assuntos da pobreza significou que os especialistas em ética médica necessitavam de uma hermenêutica que incluísse as questões do trabalho, da educação, da estabilidade social e política e do salário justo, além das questões de saúde. Os especialistas da saúde pública instigaram os especialistas em ética médica para que reconhecessem a utilidade crescente da linguagem dos direitos humanos para abarcar e analisar os temas vinculados à saúde como preeminentemente ligados aos indicadores sociais.

 O reconhecimento da conexão entre a pobreza e a saúde passou a ser a intuição  fundamental que terminou conduzindo à bioética contemporânea. Logo a linguagem da justiça deu lugar à linguagem dos direitos humanos, e isso teve impacto direto nas pessoas mais afetadas pela pandemia de HIV/AIDS. A partir disso, a comunidade global já não podia falar somente em proporcionar hospedagem para os afetados na parte sul do hemisfério global. De fato, o Brasil indicaria o caminho para se dar às pessoas infeccionadas o direito de receber o tratamento com retrovirais.

 Claramente, a pergunta permanente se existe um direito universal de saúde universal agora está emergindo em alguma literatura da Índia e da África, mas não existe ainda um consenso fundacional entre os especialistas da moral quanto a esse tema.  Inevitavelmente, os especialistas da ética se verão obrigados a desenvolver um modelo de saúde para o futuro, em um mundo onde a maior parte da saúde é paga do próprio bolso da pessoa. Tal modelo deverá também atender às questões financeiras (os preços, as necessidades de investigação, as tarifas) relacionadas às corporações farmacêuticas.

 Enquanto avançamos rumo à saúde universal, os especialistas da ética deverão desenvolver argumentos de justiça para instigar a indústria da saúde a encontrar formas de eliminar as doenças curáveis, sobretudo no sul global. Por exemplo, não haveria mais razões para a existência de malária e tuberculose se existisse uma vontade coletiva para eliminá-las. Aqui, os fracassos respingam também sobre os especialistas da ética, porque não souberam liderar uma campanha contra essas doenças.

 À medida que o mundo se tornar mais global, a justiça terá um lugar evidente também na resposta às possíveis pandemias, como na recente epidemia do vírus ebola. A decisão de simplesmente fechar as fronteiras já não é uma opção no mundo globalizado, onde a linguagem da ética da saúde pública é a justiça. No crescente mundo globalizado, a pergunta é: desenvolveremos um protocolo internacional para uma “ética pandêmica” (pandemic ethics)?

 3 A biotecnologia

 A justiça é, também, necessária ao desenvolvimento das questões acerca da biotecnologia.  No passado, as perguntas sobre a engenharia genética nos mantinham num paradigma simples, que distinguia o ético do aético. Do mesmo modo, a distinção entre a “manipulação terapêutico-genética” e a “manipulação genética melhorada” (enhanced), mantinha esse arquétipo. Mas essa divisão não é viável, nem conceptual nem eticamente. De fato, algumas melhoras (enhancements) encontram-se exatamente nos desenvolvimentos terapêuticos (p. ex. próteses, produtos farmacêuticos).

 Devemos repensar como traçar as linhas morais e perguntar-nos o que faz com que algumas melhoras sejam eticamente legítimas. Porque aqui, de novo, aconteceu uma mudança de hermenêutica. No paradigma anterior, distinguíamos a terapêutica da melhora a partir da ideia, em verdade bastante simples, de não termos permissão para fazê-la, como se, ao realizar qualquer melhora, estivéssemos “brincando de Deus”. Uma melhora em si não é um limite moral significante. As preocupações recorrentes a respeito das melhoras não concernem à categoria em si mesma, mas antes à sua relação com os recursos limitados, às prioridades sustentáveis que considerem as necessidades das pessoas mais marginalizadas, à maior igualdade entre as pessoas e, também, à possibilidade de dominação. A justiça nos ajuda a ver que as melhoras que aumentam o poder de um grupo sobre outro grupo são indicadores de possível aeticidade.

 Além disso, precisamos estar atentos aos “trans-humanistas”, interessados em usar as melhoras para alterar o significado e o destino do ser humano. Precisamos revisar a antropologia, para que, por um lado, permita o uso de certas melhoras, mas, por outro lado, tenha consciência do propósito fundamental dos “trans-humanistas”: transcender a morte e negar a ressurreição corporal.

 A biotecnologia, também, precisa ser examinada quanto a seu pressuposto. Na biotecnologia, muita coisa está voltada para o exótico ou o glamoroso e bem pouca coisa para as necessidades dos mais marginalizados. Numa palavra, ela tende a ser “cosmética”. Se todos os eticistas lembrarem as indústrias biotecnológicas da justica distributiva, da opção pelos pobres, dos padrões mínimos da saúde e de outros temas pertinentes dos direitos humanos, talvez logremos um mundo biotecnológico, puxado por pesquisa que vise à saúde em geral de todas as pessoas e não somente daquelas que têm dinheiro e poder para comprá-la.

 Grande problema, infelizmente desconsiderado, é a crescente intrusão do “poder militar” no campo da biotecnologia. Por exemplo, o Revolutionizing Prosthetics Program, um componente da United States’ Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA), com orçamento de três bilhões de dólares, é uma agência muito bem financiada, cujas metas são primordialmente duas: tratar, curar e recondicionar os soldados feridos que perderam uma extremidade e, ao proporcionar-lhes uma prótese melhorada, preparar um superexército, “um exército robótico estendido aos soldados”. Observamos como o governo dos Estados Unidos, ao fornecer próteses bem sofisticadas para os veteranos que voltaram feridos, responde às necessidades e ao sofrimento atuais dos soldados, para logo montar um exército mais forte e mais eficiente no futuro. Este duplo propósito é o modus operandi fundamental do DAPRA: o incentivo para desenvolver próteses para os feridos é criar, em longo prazo, um exército robótico indomável.

4 A instabilidade global: militarização, migração, crises ecológicas e a necessidade de uma nova ordem mundial (legal)

 Os especialistas da ética não acompanharam o crescimento do complexo industrial militar. A venda de armas é uma indústria gigantesca, que a maior parte dos especialistas da ética não soube examinar. Essas vendas são problemáticas não somente num mundo de estados-nações, mas, muito mais ainda, num mundo de governos e organizações terroristas múltiplas.

 Além disso, assim como o exército aproveita a situação dos veteranos para desenvolver um exército robótico, ele está entrando rapidamente em outros campos na crescente globalização do mundo. Essa crescente militarização tem que ser examinada, porque seu aceso à tecnologia se desenvolve exponencialmente.

 Por exemplo, “as forças policiais das áreas urbanas maiores” são progressivamente militarizadas com armas sofisticadas para o controle de multidões, ameaçando as liberdades civis dos cidadãos. Essas capacidades tecnológicas foram também usadas por estados para escutar ilegalmente as comunicações de outros governos soberanos, de tal forma que os escândalos de espionagem se tornaram lugar comum.

 De modo similar, não se examinou “a militarização do espaço”, nem a questão da privacidade das pessoas. A presença dos drones em qualquer lugar aeroespacial é uma indicação clara da militarização do planeta e de sua capacidade para tomar decisões baseadas não na lei, mas no poder. Só os drones (e em particular sua efetividade em matanças seletivas e assassinatos) já requerem que os especialistas da ética elaborem, urgentemente, ferramentas para avaliar a legitimidade moral dessas estratégias militares.

 A expansão militarista corre em paralelo com o “movimento migratório” e, além disso, os países com exércitos mais fortes tendem a ter fronteiras mais fortes, de modo que a migração acontece em outros lugares, em nações que recebem os migrantes sem poder oferecer uma solução para tais movimentos migratórios. A migração de pessoas gerada pelo conflito civil, pelas economias em depressão, pela perseguição religiosa ou política ou pelos desafios ambientais deixa o mundo com uma instabilidade cada vez maior. Para resolver essa instabilidade perigosa, as nações, em um número cada vez maior, consideram as “intervenções humanitárias” justificadas, ainda que tenham evoluído até a “responsabilidade de proteger”.

 O número de refugiados e das pessoas sem cidadania continua aumentando, aproximando-se de figuras que existiam ao final da Segunda Guerra Mundial, e agora as pessoas deslocadas são confinadas por períodos maiores em áreas muito remotas, que não apresentam solução adequada.

 Essas situações são exacerbadas pelo colapso continuo de nossa ecologia, que, do mesmo modo que o tema da migração, passa despercebido. A necessidade de desenvolver economias adequadas continua entravando a questão de responder às crises ecológicas. As pessoas e os governos se interessam muito mais pelo emprego e pela economia sustentável do que pela questão se nosso abuso do meio ambiente é sustentável. Não obstante, arriscamos nosso futuro ecológico apesar das advertências: o derretimento da capa de gelo, elevando os níveis do mar, a queima de fluorocarburetos, o corte de madeira, o problema climático universal experimentado nas secas, nos furacões e nos tufões cataclísmicos. A decisão de olhar somente para o sustento da economia, sem considerar a sustentabilidade do meio ambiente, é o tema que mais urge uma conversão internacional.

 Neste panorama, todos os que estão observando o desenlace dos desastres ecológicos temem estar entrando num mundo onde o poder militar vai proteger aqueles a quem os líderes do mundo escolhem como merecedores de proteção.

 Pois bem, estamos no século XXI, marcado por um expansionismo e uma instabilidade global como nunca antes se viu. De alguma maneira, isso nos recorda o expansionismo da Europa do século XVI, na conquista das Américas e no comércio com o Oriente. Naquele tempo, as ambições nacionais incontroladas e motivadas pelo poder militar talvez passassem despercebidas se pessoas como Francisco Vitoria, Bartolomé de las Casas e Francisco Suarez não tivessem apresentado uma visão diferente.

 Temos necessidade de eticistas da lei internacional e da economia internacional. Isso com o fim de reformar o discurso por maior cooperação, um equilíbrio do poder, o restabelecimento da lei acima do poderio e uma nova visão da ordem global, que saiba valorizar e priorizar a intuição principal da opção pelos pobres. A participação e representação internacional tem que idealizar uma distribuição mais justa dos recursos e da riqueza necessários para uma vida adequadamente considerada digna.

 Cabe aos especialistas da ética trabalhar para que as pessoas, tanto as do mundo como as da Igreja, saibam diminuir as suspeitas, os prejuízos e os medos, para poder cultivar confiança, respeito, tolerância e cooperação. Para isso, uma cooperação global maior entre os moralistas católicos é muito importante para modelar a cooperação em que o mundo precisa se engajar.

 5 Horizontes novos na teologia moral fundamental

 O campo da teologia moral fundamental tem sido afetado pela enorme mudança do perfil antropológico da pessoa. Essa era vista, anteriormente, como sujeito singular responsável por seus pecados e por sua salvação. Hoje, porém, é entendida como constitutivamente social e fundamentalmente relacional. Não nos é possível imaginar uma pessoa que não se relacione com outra ou conosco.

 Esta mudança na visão da pessoa como constitutivamente relacional conectou-se com o aparecimento da justiça como virtude mais importante no discurso teológico, como foi comentado nos parágrafos anteriores. Esta virtude era pensada normalmente a partir da ética social, ainda que recebesse alguma atenção na teologia moral fundamental.

 A guinada para a virtude da justiça em todos esses campos emergiu como resposta à irrupção do sofrimento no discurso teológico. Esta irrupção aconteceu primeiro pela introdução da teologia da libertação na América Latina. Depois, outros apropriaram-se  dela, sobretudo na África, e também teólogos e feministas afro-americanos. Responder ao sofrimento passou a ser o tema decisivo em toda a ética teológica, fazendo uma ponte entre as disciplinas da bioética, a ética sexual, a ética social e a teologia moral fundamental.

 Por esta razão, nos faz muita falta uma teologia moral fundamental na qual os temas do pecado e da santidade não sejam pensados a partir do indivíduo, e sim a partir do relacional e coletivo. As noções do pecado e da graça, tão frequentemente analisadas em relação às ações do individual, já não são adequadas. A linguagem do pecado social não deve ser vista como secundária, mas deve ser posta em primeiro plano. Além disso, necessitamos pensar as virtudes e os mandamentos desde seu aspecto social, e a ação mais na perspectiva da participação, mais institucional e estrutural.

 Junto com isso, carecemos também de uma noção muito mais robusta da consciência, mais atenta e vigilante às necessidades e ao sofrimento no mundo. Devemos desenvolver dentro da Igreja uma valorização da consciência como a que foi reconhecida no Concílio Vaticano II, e precisamos inculcar nos leigos e na hierarquia um apreço da consciência que não seja conhecida primeiramente por sua capacidade de discrepar, mas por sua capacidade de ser responsiva socialmente. Também necessitamos de uma noção da consciência que vá além da “noção medieval da consciência como ato”: precisamos de uma ideia que represente a consciência como vigilância moral durável e sustentável que está atenta às necessidades dos tempos. Aqui nos urge pensar em maneiras para formar a consciência cristã e, neste sentido, a recuperação da ética da virtude deveria ajudar os especialistas a encarar os temas emergentes em torno da formação contemporânea da consciência cristã.

 Precisamos desenvolver uma teologia moral que seja global, que saiba valorizar a natureza relacional da pessoa e que mantenha a influência formativa das forças culturais e sociais. Esta nova teologia moral tem de ser fundamentalmente bíblica. Já passaram 50 anos desde a famosa admonição de Optatam totius 16, que nos instruiu ser mais bíblicos. Esses passos são importantes, mas necessitamos de mais especialistas da ética, especialmente católicos, para enriquecer-nos com uma nova ética bíblica, que abrace a dupla competência da exegese bíblica e da hermenêutica ética complementar, sendo assim capaz de aplicar exigências bíblicas à vida contemporânea. Esta dupla competência talvez exija que os especialistas da ética colaborem mais extensivamente com os teólogos bíblicos para lembrar-lhes que, no passado, seus intentos em realizar uma ética bíblica sem uma hermenêutica ética adequada mostraram que devem procurar uma colaboração mais extensiva com a ética teológica.

 Enquanto buscamos uma hermenêutica ética apropriada, os escritores contemporâneos da ética bíblica assinalam instrutivamente a ética da virtude, porque ela representa o tipo de instrução que os evangelistas e Paulo oferecem às comunidades de fé. Deste modo, a ética da virtude poderia nos ajudar a articular os traços virtuosos que se devem encontrar no discípulo contemporâneo de Cristo. Podemos aqui imaginar como a valentia, a misericórdia, a vigilância e a solidariedade estão intimamente conectadas com o chamado evangélico para trabalhar na construção do Reino de Deus.

 Contudo, esta nova teologia moral deve ser teológica. A Igreja necessita em suas dioceses e paróquias dessa nova teologia moral. Deve encarar claramente os temas da graça e do pecado, da criação e da redenção, dos mistérios da encarnação, da Trindade e da promessa da liberação escatológica; do chamado para o discipulado e para o Reino de Deus. E, finalmente, tem que encarar os temas das virtudes de fé, esperança e caridade.

 Esta guinada para a antropologia teológica foi acompanhada com uma mudança no desenvolvimento da ética da virtude. O desenvolvimento da ética da virtude requer que não somente desenvolvamos as virtudes que adequadamente se configurem com a imagem de Cristo, mas também que tenhamos consciência metódica de como essa ética proporciona normas e funciona como guia concreto e prudente. Ou seja, se as virtudes nos dizem como ser, também nos ensinam o que fazer.

 Simultaneamente, necessitamos ter atenção às estruturas sociais em que vivemos e perguntar-nos se essas estruturas são adequadamente virtuosas ou problematicamente viciosas. A linguagem do pecado social, por extensão, deve nos provocar a observar as estruturas sociais para avaliar o que inibe o pecado e o que inspira a virtude. Falta-nos muito trabalho neste sentido.

 Esta guinada para a ética da virtude, com a concomitante compreensão mais social da pessoa e da consciência, nos coloca uma pergunta emergente com respeito ao modelo clássico das quatro virtudes cardeais e se esse modelo é adequado para pessoas cujas virtudes não devem  levá-las à perfeição, mas a melhorar suas relações. Por exemplo, assim como a justiça nos pede dar a cada um o que merece e a ser imparcial na hora de julgar as pessoas, a fidelidade nos pede reconhecer que a amizade, a família e o companheirismo (e outras relações mais íntimas) exigem uma fidelidade na qual trataremos as pessoas não com imparcialidade, mas com parcialidade, precisamente porque necessitamos manter essas relações especiais. O autocuidado poderia acompanhar a justiça e a fidelidade. Mas o autocuidado só se trona importante quando passamos a ser conscientes da justa relação, porque com a justiça nos damos conta de que devemos ser imparciais para com todos, dando a cada um o que merece. E, com a fidelidade, nos damos conta de que devemos nutrir as relações particulares, especiais e parciais com os amigos, a família, os vizinhos, os colegas e os concidadãos; e com o autocuidado, vemos que somos responsáveis por nós mesmos assim como somos responsáveis também com o estrangeiro e o amigo. A virtude da prudência nos ensina como tratar dessas virtudes, especialmente quando competem entre si. Serão estas, então, as novas virtudes cardeais?

 Ainda nascente, a ética bíblica sublinha o impacto enorme que a misericórdia exercia nas primeiras comunidades. A misericórdia, entendida como a vontade de entrar no caos do outro, teve uma relação nítida com o crescimento do cristianismo, formando a marca determinante da primeira comunidade cristã. Mais recentemente, outros estudiosos assinalam a humildade, em particular uma “humildade epistemológica”, que nos faz considerar a comunidade, não a nós mesmos, como o centro de nosso mundo.

 Uma terceira virtude que está recebendo muita atenção é a solidariedade, virtude que não se identifica facilmente com a tradição. A solidariedade emerge quando sabemos valorizar o fato de estarmos num mundo global. Enquanto a prudência instrui a justiça para que saibamos dar o quê a cada um, a solidariedade descreve como, na ordem da justiça, devemos estar juntos, atentos aos que estão nas margens ou em situações mais precárias.

 Enquanto construímos uma ética teológica global, baseada na Bíblia, esperamos ver nas virtudes, tanto nas antigas (misericórdia, humildade, justiça e prudência) como nas novas (fidelidade, autocuidado e solidariedade) muita coisa que nos possa ajudar na formação das consciências no século XXI.

 6  Os temas (ignorados) que necessitam atenção para uma nova ordem mundial: a raça, o diálogo inter-religioso e a igualdade

 Essas virtudes nos devem ajudar a valorizar e a apreciar o número imenso de desafios que se nos apresentam no horizonte, não só os da ecologia ou do militarismo, mas também os que vêm de nós mesmos.

 Quando começamos a compreender-nos num mundo global, cada vez mais interessado no diálogo transcultural, precisamos atentar aos temas que podem nos separar ou alienar e desfazer os passos que levam à solidariedade. Estes três temas são raramente discutidos pelos especialistas de ética e agora têm que emergir como questões urgentes.

Sabemos que cada cultura conta com, pelo menos, um grupo de pessoas que por seu nascimento ou por sua raça são objeto de discriminação. A capacidade humana para o preconceito é notável, e esse preconceito, muitas vezes, se desenvolve socialmente, e eventualmente se institucionaliza em estruturas perniciosas e pecaminosas. Em muitas sociedades, a obscuridade da pele é a medida permanente do preconceito. Na ética teológica – mesmo se alguns especialistas como, por exemplo, Shawn Copeland, Jean Marc Ela, Bryan Massingale e Agbonkhianmeghe Orobator desafiaram outros para encarar este tema moral de longa data – os especialistas da ética têm que abordar muito mais claramente essa questão da raça, tanto nacional como globalmente.

 De modo similar, a intolerância religiosa é um desafio permanente, mais recentemente os esforços no discurso da teologia comparativa mostram o valor do diálogo inter-religioso. É notável que os especialistas católicos da ética não tenham fornecido uma contribuição significativa a esse discurso.

 Finalmente, a questão da desigualdade socioeconômica, um tema que está em primeira linha para milhões de pessoas, somente agora está emergindo como merecedor de atenção.

 James F. Keenan S.J. – Boston College, Chestnut Hill, US. Texto original Inglês

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A Comunhão Trinitária

Sumário

1 Deus trino nas Sagradas Escrituras

2 Breve história da doutrina trinitária

3 Perspectiva sistemática. A Trindade como comunhão

4 Referências bibliográficas

A teologia trinitária contemporânea é fruto do espírito de abertura e renovação criativa que caracterizou a reflexão teológica do séc. XX e desembocou no Concílio Vaticano II. A busca de uma explicitação da fé mais próxima à linguagem e ao imaginário dos novos tempos, mas capaz, por sua vez, de se articular harmoniosamente com a tradição eclesial, teria um impacto significativo, especialmente no modo de compreender e dar conta do mistério de Deus.

Já antes do Concílio, Karl Rahner (1961, 105-136) tinha feito críticas significativas a alguns pressupostos e perspectivas da teologia trinitária clássica. Sua motivação fundamental era de carácter pastoral: embora os cristãos façam profissão de fé na Santíssima Trindade, em sua prática espiritual e religiosa são eminentemente “monoteístas”. Isso é tão verdadeiro que, se um dia a doutrina da Trindade fosse deixada de lado, não mudaria praticamente nada para eles. As causas fundamentais deste “esquecimento trinitário” devem ser buscadas no modo como a teologia explicou o mistério trinitário. A teologia ocidental clássica baseou a afirmação da unidade de Deus na ideia de uma substância espiritual absoluta, infinita, única e eterna. Deus é um só, porque é uma única substância, essência ou natureza. Só depois era explicado que nesta substância sub-sistem três pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo.

Nesse enfoque, parecia se ignorar que Deus nos Evangelhos nunca é apresentado por Jesus como uma substância divina abstrata, mas, mais especificamente, como seu Pai, de quem ele é o Filho amado, que veio para nos salvar, entregando-se e dando ao mundo o Espírito Santo.

O “esquecimento da Trindade” teria ido lado a lado com um descuido da dimensão salvífica da revelação. Mas a Trindade não se revela para dar a conhecer um conteúdo doutrinal, ou sua essência metafísica. Deus revela-se a si mesmo para salvar e salva entregando-se como é: Pai, Filho e Espírito Santo. A revelação é a sua autodoação (Selbstmitteilung) para o mundo. Rahner propõe um axioma como novo ponto de partida: “A Trindade econômica é a Trindade imanente e vice-versa”. Ou seja, a Trindade que nos foi dada na história da salvação é Deus como ele é em si mesmo: Pai, Filho e Espírito Santo.

Para além das críticas que a teologia de Rahner possa merecer, o seu axioma fundamental teve um enorme impacto e tornou-se um dispositivo essencial para a renovação trinitária iniciada no séc. XX.

1 Deus trino nas Sagradas Escrituras

Nesta nova perspectiva, a fé cristã entende a salvação como a progressiva autodoação do Deus trino na história, como convite e abertura ao ser humano da comunhão infinita de amor do Pai, Filho e Espírito Santo. Tanto o AT quanto o NT são o testemunho desta autodoação de Deus.

O AT, mesmo que ainda não contenha uma fé expressa em Deus como trino, já é o testemunho desta maneira particular em que Deus foi se revelando a Israel: mostrando-se como um Pai amoroso, que instrui com sua Palavra e guia com a sabedoria e o poder do Espírito. Trata-se de um Deus que se compadece do povo que sofre, toma a iniciativa e se aproxima para libertá-lo e oferecer sua amizade numa aliança de amor incondicional, que se tornará definitiva e eterna com a vinda e o triunfo do seu Messias, o portador do Espírito, que Javé infundirá para sempre no coração de seu povo.

Essa experiência de Deus no Antigo Testamento tomou uma dimensão e plenitude inusitadas com a vinda de Jesus Cristo. À luz da sua ressurreição, toda sua vida e obra foram relidas como cumprimento superabundante dessas promessas. Por isso, o evento da ressurreição envolve indissoluvelmente a questão da identidade última de Jesus, confessado agora como Senhor glorioso, sentado à direita de Deus. Quem devia ser esse homem para poder ressuscitar, subir ao Céu, entregar seu Espírito para a Igreja primitiva, reinar com Deus e inaugurar, assim, o acesso aberto à vida eterna para toda a humanidade? O NT é precisamente o testemunho desta busca de responder à pergunta do próprio Jesus: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15; Mc 8,29; Lc 9,20). A partir dessa pergunta, os primeiros cristãos releram toda a vida de Jesus, sua origem, seu nascimento e o sentido de sua morte na cruz. Os vários títulos aplicados a Jesus no Novo Testamento são a expressão dessa busca para entender o mistério de sua identidade particular e de sua relação com Deus, a quem ele chamava Abbá, Pai. Se Jesus considerava a si mesmo o Filho amado, se ele entendia sua vida e sua missão como um envio da parte do Pai, era nessa relação de Filho que devia ser encontrada a chave para a sua identidade. Deus tinha comprovado essa pretensão de Jesus, ressuscitando-o dentre os mortos pelo poder do Espírito.

Introduzindo o relato de um nascimento milagroso, os evangelhos sinópticos tentaram explicar que esta vinculação única de Jesus com Deus pelo Espírito, manifestada na ressurreição, implicava a confissão de que ele vinha de Deus. As cartas de Paulo expressam a mesma convicção que a salvação é inseparável da ação de Jesus Cristo, como Filho de Deus, constituído como Senhor, pelo poder do Espírito Santo. As fórmulas e saudações triádicas de tipo litúrgico e doxológico dos escritos paulinos (como 2Cor 13,13) testemunham, desde muito cedo, a incipiente intuição trinitária da fé da Igreja (Rm 1,3-7; 1Cor 12,4-6; Gal 4,4-7; Ef 1,3-14). Em escritos posteriores, como o Evangelho de João, já começam a aparecer formulações cada vez mais explícitas da filiação divina de Jesus como Logos de Deus (Jo 1,1-18), que na sua ressurreição leva o discípulo a confessá-lo “meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28).

Mesmo antes do desenvolvimento de uma doutrina propriamente trinitária, a comunidade de fé já proclamava sua fé em fórmulas triádicas e praticava o batismo como inserção e participação na vida divina, “em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28, 19). Com esta indissolúvel vinculação entre Pai, Filho e Espírito Santo, a teologia do NT proclamava o Deus que se revelou de maneira definitiva no destino de Jesus, mostrando-se assim, também para nós, como o Deus fiel da vida, o Deus que é amor (1 Jo 4,8), que se entrega pelos humanos em Jesus, identificando-se com os pobres, os pequenos e as vítimas da história. Um aspecto que se tornaria um foco central da teologia latino-americana.

2 Breve história da doutrina trinitária

Era esta salvação de Deus Pai, Filho e Espírito Santo que a Igreja das origens tinha que comunicar ao mundo. Essa evangelização devia realizar-se num contexto cultural dominado basicamente por dois horizontes de compreensão: por um lado, o estrito monoteísmo hebraico; por outro lado, o pensamento grego e sua busca de um único princípio racional organizador do cosmos. A fé num Deus Trino era difícil de ser conciliada com esses modelos de uma divindade concebida como unicidade monolítica, absoluta e imutável. Além do mais, parecia loucura (1Cor 1,23) mitológica pretender que Deus pudesse despojar-se kenoticamente de sua condição divina, assumir a carne mortal do homem e sofrer, por amor ao ser humano, a tortura e morte na cruz. No entanto, o desafio da evangelização implicava justamente expressar a fé em uma linguagem conceitual e simbólica, compreensível em cada novo cenário histórico e cultural. Nesse contexto, as primeiras disputas trinitárias ocorreram no intento de mostrar que a fé não ameaçava, mas resguardava a unidade de Deus, e isso mesmo à custa de enfraquecer sua confissão no Pai, Filho e Espírito Santo. Esta tendência monarquianista (mono-arkhé) adquiriu na história duas modalidades básicas: modalismo e subordinacionismo. O modalismo consistia em afirmar que Pai, Filho e Espírito Santo são apenas modos em que o único Deus se manifesta na história, ou seja, diferentes formas que o único Deus transcendente (unipessoal) adota no momento de se tornar presente no mundo. O subordinacionismo, por sua vez, aceita a existência do Filho e do Espírito, como diferentes do Pai, mas atribuindo-lhes uma categoria ontológica inferior, negando-lhes uma natureza divina igual à do Pai. Só o Pai é propriamente Deus. Alguns, no entanto, consideravam o Logos como uma entidade junto de Deus, como a primeira e mais perfeita das suas obras. Outros, os adocionistas, acreditavam que Jesus era apenas um homem de santidade irrepreensível, escolhido pelo Pai para adotá-lo como Filho pela unção do Espírito no batismo.

No séc. IV desencadeou-se uma das mais graves dessas crises doutrinais. Ário, discípulo de Orígenes e herdeiro de uma visão de mundo fortemente neoplatônica, partia da ideia de Deus como o não originado. “Tudo o que é causado é criado”, afirmava. Então, somente o Pai é o Deus único, eterno e sem origem. O Filho, por sua vez, vem de Deus como a primeira e mais perfeita de todas as suas criaturas. É superior e anterior a toda a criação. Através dele, Deus fez todas as coisas. Trata-se, portanto, de uma instância intermediária entre Deus e o mundo. Podemos chamá-lo “Deus” porque o é em relação a nós, num sentido funcional, mas não em sentido propriamente ontológico, em si mesmo e por si mesmo. O arianismo teve como consequência a convocação do Concílio de Niceia (325). Nele, foi elaborada uma confissão trinitária na forma de credo que tentava formular conceitualmente, da maneira mais precisa possível, a correta interpretação da fé. Para isso se recorreu à terminologia utilizada nas discussões e foi definido que o Filho é “Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, da mesma natureza (consubstancial) que o Pai” (homoousios) (DzH 125). A confissão terminava afirmando, também, a fé no Espírito Santo.

O Concílio, no entanto, não conseguiu resolver definitivamente as discussões. A expressão “da mesma substância” ainda podia ser lida em sentido subordinacionista ou modalista. A dificuldade provinha muitas vezes dos conceitos utilizados. Uma mesma palavra podia ser interpretada de forma diferente no Oriente e no Ocidente. A palavra sub-stância (usada para falar da essência divina) poderia ser compreendida por um grego como sinônimo de hypo-stasis (que geralmente se aplicava às pessoas). O arianismo ressurgiria logo depois do Concílio, como negação da divindade do Espírito Santo. Liderados pelo bispo Macedônio, os pneumatômacos (como Santo Atanásio os chamava) entendiam que o Espírito Santo era na realidade um dom e, portanto, não poderia ser igual ao doador. Ele não poderia ser uma hipóstase propriamente divina. A teologia dos Padres Capadócios foi decisiva para o Primeiro Concílio de Constantinopla (381), que assumiu totalmente o Credo de Niceia e apenas o completou, desenvolvendo mais um pouco a fé no Espírito Santo: “E [acreditamos] no Espírito Santo, Senhor e doador de vida, que procede do Pai; e com o Pai e o Filho recebe a mesma adoração e glória” (DzH 150). Não recorreu desta vez à discutida fórmula do homoousios. Preferiu voltar a expressões de tipo mais bíblico e litúrgico para estabelecer a fé na plena divindade do Espírito Santo.

Pode-se dizer que com o símbolo nicenoconstantinopolitano o dogma trinitário ficou definido nos seus aspectos fundamentais. O Concílio de Constantinopla II (553) utilizaria já como fórmula definitiva a expressão dos Capadócios “uma physis ou ousia”, “três hypostasis ou pessoas” (DzH 421).

Contudo, a teologia trinitária continuou buscando um maior aprofundamento e uma melhor articulação entre unidade e diferença no seio do Deus trino. Nem todos os problemas desapareceram. Vimos que o Primeiro Concílio de Constantinopla tinha afirmado que o Espírito Santo “procede do Pai” (DzH 150). No entanto, em algumas traduções latinas, logo começou a circular a versão que acrescentou “que procede do Pai e do Filho”. As fórmulas conciliares ainda não tinham tematizado explicitamente a relação entre o Filho e o Espírito Santo. Era essa ausência que a tradução latina parecia querer resolver, propondo que o Espírito procede conjuntamente do Pai e do Filho. Para a teologia do Oriente, que fundamentava a unidade do Deus trino, na pessoa do Pai como único princípio e origem fontal (e não tanto na ideia de uma substância ou uma essência divina), essa doutrina poderia significar a introdução do Filho como um novo princípio na Divindade, que ameaçava a sua unidade. Por motivos mais políticos do que propriamente teológicos, as discussões sobre esta questão do filioque se prolongaram durante séculos e desembocaram, finalmente, num cisma. Liderada pelo Patriarca Cerulário, a Igreja Oriental separou-se da Igreja Romana em 1054. Embora, desde então, tenha sido proposta reiteradamente como mais correta a fórmula segundo a qual o Espírito Santo “procede do Pai pelo Filho”, a questão do filioque nunca foi definitivamente resolvida.

Com a doutrina básica já consolidada, a Idade Média não assistiu a grandes disputas trinitárias. Se houve alguns Concílios dignos de menção, como o XI de Toledo no ano 675 (DzH 525 et seq.) e o IV de Latrão, no ano 1215 (DzH 800 et seq.), são importantes mais pela clareza de sua síntese do que por inovações doutrinais. Os termos ousia/essência, physis/natureza e substância foram fixados como expressões da unidade do único Deus, enquanto os termos hipóstase, prosopon e pessoa ficaram como os termos técnicos aptos para se referir a Deus como trino, Pai, Filho e Espírito Santo.

Esse processo de definição e síntese foi coroado com a Summa Theologiae de Tomás de Aquino († 1274). Sua obra foi baseada em seu extenso conhecimento da tradição e sua reelaboração não mais se baseou nos usuais moldes de cunho platônico, mas a partir do rigor da filosofia aristotélica. Tomás partia do De Deo Uno, referido à essência divina, sua unidade e seus atributos, e logo passava ao De Deo Trino, dedicado a explicar a diferença das pessoas divinas e sua unidade nessa única essência. As pessoas divinas são entendidas por ele como constitutivas da divindade, não meros acidentes, como relações subsistentes fruto das processões. A única essência divina só subsiste nas três pessoas e as três pessoas só subsistem relacionalmente nessa única substância. A substância divina não é, então, uma unidade imóvel, mas o ato de existir em si mesmo (subsistir) como plenitude, como ato de pleno conhecimento de si que gera o Logos e amor de si que espira o Espírito.

Esta síntese cimeira da escolástica estaria chamada a permanecer como doutrina oficial da igreja até meados do séc. XX.

3 Perspectiva sistemática. A Trindade como comunhão

Rahner observou que essa teologia, em seu esforço por esclarecer as fórmulas precisas da fé trinitária, tinha se afastado de suas fontes bíblicas e históricas, tornando-se cada vez mais formal e abstrata. Propunha por isso um retorno à Escritura e à tradição trinitária mais oriental, que parte da pessoa do Pai como a origem e fonte da divindade e não uma essência ou substância espiritual suprema.

No entanto, tanto a teologia que pensa Deus a partir da ideia de substância como a que funda a unidade divina apenas na pessoa do Pai como a fonte e a origem causal da Divindade podem levar ao perigo de partir da unidade como anterior à diferença, de um Deus uno quase prévio ao Deus Trino.

Com a filosofia moderna do sujeito, essa tendência se agravou. Deus não era pensado como substância, mas como Sujeito ou Espírito absoluto, que existe através do desdobramento ad extra de suas propriedades internas. Voltava-se assim a priorizar novamente a unidade sobre a pluralidade. A teologia contemporânea reagiu, então, com um retorno à história da salvação, ao evento da revelação de Deus em Jesus Cristo. Deus se dá a conhecer tal como ele é apenas na relação de Jesus com seu Pai no Espírito. O CV II reflete já a virada de uma perspectiva metafísica a uma teologia que prioriza uma compreensão mais histórica, fenomenológica, hermenêutica e existencial da realidade, mais em sintonia com a cosmovisão e a cultura atual. Conceitos como substância e hipóstase parecem não mais poder expressar, em um mundo cultural impregnado por outros valores e imaginários cosmológicos, o mistério divino que antes transmitiam. Obviamente, não se trata de mudar o confessado por aquelas fórmulas e conceitos, mas de expressar essa mesma fé em perspectivas e categorias mais compreensíveis e significativas para o homem de hoje. A ideia de uma substância suprema, um sujeito absoluto ou uma origem única, solitária e autárquica, não parecem já modelos aptos para transmitir o Deus do amor trino que se abaixou kenoticamente em Jesus Cristo, assumindo nossa condição humana, para tornar-nos capazes de receber seu espírito e participar, como filhos e filhas, do reino do seu amor. Daí que importantes teólogos do século XX (von Balthasar, Moltmann, Kasper, Pannenberg, Greshake), embora por caminhos muito diferentes, coincidiram na necessidade de buscar uma nova sistematização da teologia trinitária capaz de apresentar o Deus uno em sua constitutiva relacionalidade interpessoal.

Foi nesta linha que começou a utilizar-se a analogia da comunhão, frequente no CV II. Voltava-se, assim, a um termo de raízes bíblicas. 1João 4,8 diz: “Deus é amor”. Mas o amor não é nem um sujeito nem uma essência abstrata, é sempre um ato pessoal, que envolve simultaneamente relação e alteridade. O amor não existe como puro movimento de autorreflexão, mas como ato relacional, como comunicação e intercâmbio. O amor é constitutivamente ato comunicativo de doação-recepção, recepção-doação com relação aos outros.

A compreensão do ser como ato (tão própria do Aquinate) e das pessoas divinas como relação, se integram numa nova síntese que entende Deus como comunhão pericorética de amor. A teologia trinitária supera assim a aporia que forçava a escolher entre reduzir Deus a uma pura mônada primeira ou cair num imaginário de tipo social (ou triteísta) que pensa Deus a partir de três sujeitos divinos, quase autônomos, que, em seguida, se unem por amor ou consenso. Na comunhão divina, a unidade não é anterior nem posterior à Trindade. A Trindade é a koinonia perfeita do amor infinito que realiza a unidade na alteridade e a alteridade na unidade.

Aqui, Pai, Filho e Espírito Santo já não são compreendidos como sujeitos ou centros autônomos anteriores aos seus atos. Em Deus não há nada que seja anterior ao ato de existir como amor comunional tripessoal. As pessoas divinas existem em virtude do amor que elas mesmas são e o amor não é outra coisa que sua existência pessoal como intercâmbio de doação e recepção, para e a partir de umas e outras, nas outras, com as outras. O Pai é e realiza o amor como comunicação paternal fecundante, doando-se ao Filho e deixando-se por sua vez constituir por ele como seu “abbá”. O Filho ama filialmente, como recebendo-se e entregando-se sempre a partir de e para o Pai. O Espírito, no caminho iniciado por Ricardo de São Victor, exprime a abertura do amor que não pode fechar-se numa mera relação Eu-Tu, carente de um destino e direcionalidade comum. Ele é o condilectus, em quem os outros dois se encontram compartilhando o destinatário e a fecundidade gozosa e agápica do seu amor. Cada pessoa é assim mediação e consumação da relação entre as outras duas a partir de sua propriedade relacional específica.

Revela-se aqui também o profundo sentido da pessoa humana. Ela não é primariamente uma hipóstase ou um sujeito autônomo já constituído, que depois deve se realizar relacionando-se com outros. A pessoa é, antes, a existência que se sabe constitutivamente vinculada à comunidade humana, em constante abertura e intercâmbio com a realidade. Ela existe como radicalmente constituída em si desde fora de si, como recepção e relacionalidade extática, constituída por seu lugar e participação relacional e comunicativa no conjunto do real.

A mesma compreensão do ser fica afetada por este mistério da comunhão trinitária. Tudo o que é pode ser entendido fenomenologicamente como manifestação e doação extática. Tudo dado está sempre lá dando-se como doado em abertura ao conjunto vinculado e vinculante do real.

Para a teologia trinitária latino-americana que enfatiza a realidade, a história e a práxis a partir da opção pelos pobres e excluídos (referência são as obras de L. Boff e A. Gonzalez), é essencial essa compreensão do Deus da comunhão, que se identificou com eles na entrega de Jesus à morte, como excluído da comunidade, expulso da cidade, abandonado e condenado. A Páscoa de Jesus é uma expressão do Deus que resiste e se nega a deixar alguns excluídos do intercâmbio humano e social, da comunicação de identidades, bens e valores, do amor e comunhão do reino.

O Deus trino é o Deus do amor criador, que cria o mundo e o homem como expressão e destinatários da abertura de seu amor comunicativo e comunional infinito. Em um mundo que exige uma maior consideração do valor de cada pessoa para o conjunto da sociedade humana; do valor de cada grupo étnico, região ou cultura particular como expressão da riqueza do ser humano; do valor da pluralidade para o conceito mesmo de unidade; a revelação em Cristo do amor infinito, aberto e abrangente do Deus trino torna-se experiência de salvação e chamado que convoca o Espírito para construir o seu reino de comunhão.

 Gonzalo Zarazaga, SJ – Facultad de Teología del Colegio Máximo de San José, Argentina. Texto original espanhol.

 4 Referências Bibliográficas

 GONZÁLEZ, M. La Trinidad: un nuevo nombre para Dios. Buenos Aires: Paulinas, 2000.

GRESHAKE, G. El Dios uno y trino. Barcelona: Herder, 2001.

LADARIA, L. El Dios vivo y verdadero. Salamanca: Secretariado Trinitário, 1998.

RAHNER, K. Advertencias sobre el tratado dogmático “de Trinitate”. In: Escritos de Telogía IV, Madrid: Taurus, 1961, 105-36.

ZARAZAGA, G. Dios es Comunión. Salamanca: Secretariado Trinitário, 2004.

ZARAZAGA, G. La Trinidad en el horizonte de la Comunión. Stromata, San Miguel, v.59, p.113-42, 2003.

Para saber mais

BALTHASAR, H. U. v. El misterio Pascual. In: FEINER, J.; LÖHRER, M. (eds.). Mysterium Salutis III/2. Madrid: Cristiandad. p.143-329.

BOFF, L. A Trinidade e a sociedade. Petrópolis: Vozes, 1987.

FORTE, B. Trinidad como historia. Salamanca: Sígueme, 1988.

GONZÁLEZ, A. Trinidad y Liberación. San Salvador: UCA 1994.

KASPER, W. El Dios de Jesucristo. 4.ed. Salamanca: Sígueme, 1994.

LADARIA, L. La Trinidad, misterio de comunión. Salamanca: Secretariado Trinitário, 2002.

MOLTMANN, J. Trinidad y Reino de Dios. 2.ed. Salamanca: Sígueme, 1986.

PANNENBERG, W. Teología Sistemática I. Madrid: UPCO, 1992. p.281-485.

RAHNER, K. El Dios uno y trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvación. In: FEINER, J.; LÖHRER, M. (eds.), Mysterium Salutis II/1. Madrid: Cristiandad. p.359-449.

ZARAZAGA, G. La Comunión trinitária. La Contribución de K. Rahner. Estudios Eclesiásticos, Madrid, v. 80, p.263-90, 2005.

Quadro cronológico

a) Do êxodo do Egito até Salomão

  Fatos Textos
±1300 ∙Campanha dos egípcios contra os hititas
1286 ∙Aliança egípcio-hitita
±1250-1230

1235

∙O grupo de Moisés saindo do Egito (o Êxodo).

∙Estela do faraó Merneptá mencionando sua vitória sobre “Israel”

∙Cântico de Míriam

∙Livro das guerras de YHWH

± 1220 ∙Penetração das tribos de Israel na Palestina central, com Josué ∙Livro do Justo
± 1200 ∙Presença dos filisteus
± 1130 ∙Vitória das tribos de Israel (Débora) sobre Sísara ∙Cântico de Débora
± 1100 ∙Recessão da influência egípcia e aumento do domínio assírio
± 1050 ∙Vitória dos filisteus, morte de Heli
± 1040 ∙O profeta Samuel, juiz
± 1030-1010 ∙Reinado de Saul; morte em Gelboé
± 1010-972 ∙Davi rei de Judá e, em seguida, também de Israel ∙Primeiros Salmos
972-933 ∙Salomão rei de Judá e Israel

∙Construção do 1º Templo

∙Morte de Salomão

∙Histórias da Ascensão e da Sucessão de Davi

∙O “Javista”?

b) O período dos reinados

  Fatos Textos
  Reino do Norte (Israel)   Reino do Sul (Judá)  
933 ∙Revolta de Jeroboão, proclamado rei de Israel

∙Santuários de Betel e Dã

933 ∙Roboão rei de Judá, sucessor de Salomão
± 900 ∙Guerra siro-efraimita: Israel x a aliança da Síria e Judá 912-871 ∙Asa, aliado dos sírios contra Israel
886-875 ∙Omri (Amri)
875-853 ∙Acab; aliança com Judá

∙O profeta Elias

870-846 ∙Josafá; aliança com Israel (Acab) ∙O “Eloísta”?
852-841 Jorão

∙O profeta Eliseu

∙Ciclos de Elias e Eliseu
841-814 ∙Jeú 841-835 ∙Reinado de Atália
803-787 ∙Joás; crescente presença dos assírios 781-740 ∙Azarias (Ozias)
787-747 ∙Jeroboão II: período de bem-estar

∙Profetas Amós e Oséias

a partir de 747 ∙Decadência política ± 740 ∙Insistência dos assírios (Teglat-Falasar III)
740-735 ∙Joatão rei
722/721 ∙Assédio e tomada de Samaria pelos assírios; deportação da população da Samaria para a Assíria 735-716 ∙Acaz; torna-se vassalo dos assírios ∙Isaías e Miquéias

c) Judá, da queda de Samaria até o exílio babilônico

  Fatos Textos
716-687 ∙Ezequias; reforma religiosa; tentativa de independência ∙Isaías
701 ∙Campanha de Senaquerib contra Jerusalém (interrompida)
640-609 ∙Josias; restauração política e religiosa ∙“Deuteronômio primit.”

∙Sofonias e Jeremias

612 ∙Os neobabilônios tomam Nínive, capital da Assíria ∙Naum e Habacuc
609 ∙Batalha de Meguido (x faraó Necao) e morte de Josias
609-598 ∙Joaquim
605-562 ∙Nabucodonosor rei da Babilônia
598-597 ∙Jeconias (Joiaquin) rei.

∙1ª leva de exilados para a Babilônia, incl. Jeconias

∙Nomeação do rei Sedecias

∙Carta de Jr aos exilados

∙Ezequiel

589 ∙Revolta de Sedecias; conflito com Jeremias
587/586 ∙Destruição de Jerusalém e do Templo, por Nabuzaradã

∙2ª leva de exilados; Godolias governador

∙Assassinato de Godolias e represália

∙Jeremias levado ao Egito

582/581 ∙3ª leva de exilados
561 ∙Reabilitação de Jeconias (fim da historiografia deuteronomista) ∙”Obra deuteronomista”?

d) O período persa

  Fatos Textos
556-539 ∙Reinado de “fraco” Nabônides, rei da Babilônia; vice-reinado de Belshassar (Baltasar)
539 ∙Ciro, rei dos medos e persas, toma Babilônia; devolução da liberdade aos povos vencidos ∙2º Isaías, Is 34–35

∙Abdias

538 ∙“Edito de Ciro” para a reconstrução de Jerusalém e do Templo
520-515 ∙O príncipe Zorobabel e o sacerdote Josué ∙Ageu, Zacarias, 3º Is
458 ∙Atuação de Esdras (ou 398?) ∙Rute?
445 ∙1ª missão de Neemias
± 432 ∙2ª missão de Neemias
404-359 ∙Artaxerxes II (atuação de Esdras?) ∙Pentateuco?

∙Profetas anteriores?

e) O período helenista

  Fatos Textos
333 ∙Império de Alexandre Magno ∙2º Zacarias
323 ∙Morte de Alexandre e divisão do império ∙Profetas Posteriores?
312 ∙A Judeia sob os lágidas (ptolomeus), do Egito
± 300? ∙O cisma samaritano ∙Pentateuco samaritano?
300-200 ∙“Paz egípcia” ∙Eclesiastes, Tobias, Ester

∙Septuaginta

200 ∙A Judeia sob o domínio dos selêucidas, da Síria ∙Jesus ben Sirac hebr.
167 ∙Perseguição de Antíoco Epífanes e revolta de Matatias
166 ∙Judas Macabeu sucede a Matatias ∙Daniel
164 ∙Reconquista, purificação e dedicação do Templo ∙2Macabeus
160 ∙Morte de Judas Macabeu
∙Jônatas Macabeu: a dinastia dos hasmoneus
∙Fariseus e essênios
143 ∙Simão Macabeu.
134 ∙João Hircano ∙Eclesiástico/Sirácida gr.
128 ∙Hircano destrói o santuário samaritano do Garizim ∙Macabeus
104-63 ∙Os últimos hasmoneus ∙Judite, Baruc, Epístola de Jeremias
63 ∙A Judeia sob o poder romano (Pompeu)
∙Brigas dos generais romanos Pompeu e Júlio César
44 ∙Assassinato de Júlio César. ∙Sabedoria
37 ∙Herodes rei da “Judeia” (= Palestina)

f) Do nascimento de Cristo até o fim do judaísmo antigo

  Fatos Textos
± 5 aC ∙Nascimento de Jesus de Nazaré
4 aC ∙Morte de Herodes Magno
14 dC ∙Tibério imperador de Roma
27 ∙Atividade de João Batista — Batismo de Jesus
30 ∙Morte e ressurreição de Jesus de Nazaré
∙Pentecostes: primeira comunidade cristã (At 2–5)
36/37 ∙Grupo dos “Sete”: o cristianismo entre os judeu-helenistas
∙Martírio de Estêvão
∙Expansão na Samaria e na Síria (At 6–8)
39? ∙Conversão de Paulo de Tarso (At 9) ∙Coleções de sentenças e milagres de Jesus
∙Fundação da Igreja de Antioquia (At 11,19s)
43/44 ∙Perseguição de Herodes Agripa I
∙Martírio de Tiago Maior (Filho de Zebedeu) (At 12,2)
∙“Primeira viagem” de Paulo (At 13–14)
48/49 ∙“Concílio dos Apóstolos” em Jerusalém (At 15)
50-58 ∙Grande missão de Paulo na Europa (“segunda e terceira viagens”: At 16–18 e 19–20) ∙“Primeiras” e “grandes” cartas de Paulo
58-60 ∙Paulo em Jerusalém; prisão em Cesaréia (At 21–26) ∙Cartas do cativeiro
60-63 ∙Paulo transferido para Roma (At 17–28)
60-64 ∙Atividade de Pedro e Paulo em Roma
62 ∙Martírio de Tiago Menor, chefe da Igreja de Jerusalém
64 ∙Perseguição de Nero; martírio de Pedro; martírio de Paulo (ou 67?)
66 ∙Rebelião e perseguição dos judeus no Egito

∙“Guerra Judaica” ; os “zelotas”

∙Fim da comunidade cristã de Jerusalém

∙Ev. de Marcos

∙Carta de Tiago?

68 ∙Fim da comunidade de Qumrã
70 ∙Tomada de Jerusalém e destruição do Templo
72/73 ∙Suicídio coletivo dos zelotas em Massada
78-81 ∙Tito imperador
80ss ∙Reconstituição da comunidade judaica

∙Preponderância das comunidades helenistas entre os cristãos

∙Mateus; Lucas + Atos

∙“Cartas pastorais”

∙Hebreus, 1Pedro

81-96 ∙Domiciano imperador;
± 85? ∙Sínodo judaico de Jâmnia; excomunhão dos cristãos da comunidade judaica
90ss ∙Imposição do culto ao imperador e perseguição dos cristãos (Ásia Menor)

∙O cristianismo e a gnose

∙Ev. e cartas de João

∙Apocalipse, Judas, 2Pedro

 

132-135

 

∙Rebelião de Bar Kokbá e destruição de Jerusalém

∙ início do 2º séc.: conclusão do NT

Cristianismo antigo

Sumário

1 Primeira comunidade cristã

1.1 O que se entende por cristianismo antigo

1.2 A questão da datação cristã

1.3 Primeira comunidade cristã ou primeiras comunidades cristãs?

1.4 Querigma, conversão, fé e batismo

2 Primeira expansão cristã

2.1 O contexto da expansão cristã

2.2 Um cristianismo plural num mundo plural

2.3 Protagonistas da missão cristã

2.4 Ministérios

3 Paulo: viagens missionárias

3.1 Traços biográficos do Apóstolo Paulo

3.2 As viagens missionárias

3.3 As cartas paulinas

3.4 Paulo: verdadeiro fundador do cristianismo?

4 Cristianismo no mundo romano

4.1 Um mundo plural

4.2 Cidadãos de outra cidade

4.3 As primeiras dissensões e heresias

4.4 Os concílios e o nascimento da teologia cristã

5 As perseguições na Antiguidade

5.1 Causas das perseguições

5.2 As várias fases das perseguições

5.3 O sangue dos mártires: semente de novos cristãos

5.4 O fim das perseguições e a “guinada constantiniana”

6 Referências bibliográficas

1 Primeira Comunidade Cristã

1.1 O que se entende por cristianismo antigo

De maneira geral, por cristianismo antigo entende-se o cristianismo dos quatro primeiros séculos da Era Cristã, cujo período vai desde o nascimento da Igreja, no evento Pentecostes (cf. At 2), em que os discípulos de Jesus Cristo receberam o Espírito Santo para anunciar o seu Evangelho (c. 30 dC) até a queda do Império Romano do Ocidente (476 dC). Esse período de quatro séculos e meio é dividido, por sua vez, em duas grandes etapas: da pregação apostólica (c. 30 dC) à “guinada constantiniana” (313 dC) ou até o Concílio de Niceia (325) e daí até a queda de Roma (476 dC). Nesta seção iremos considerar a primeira etapa do cristianismo antigo. Há autores que preferem falar desta primeira etapa como “cristianismo primitivo” ou “pré-niceno”, como R. Markus, J. Hill ou H. Drobner.

1.2 A questão da datação cristã  

Os cristãos, inseridos no mundo greco-romano, utilizavam, no início, a datação comum das culturas nas quais se inseriam. Havia vários calendários, baseados no ciclo lunar e no ciclo solar. Dentre os mais comuns estavam o calendário Juliano e o calendário que contava as datas a partir da fundação de Roma (c. 753 aC). No século VI, o monge Dionísio, o Pequeno, organizou os eventos da história conhecida a partir do evento central do cristianismo, a Encarnação de Cristo. Daí ser comum no Ocidente usar a terminologia “antes de Cristo” (aC), “depois de Cristo” (dC), ou ainda “Era Cristã” ou “Era Comum” (EC).Nos seus cômputos, o monge cometeu alguns erros, que viriam a ser corrigidos no século XVII. Na verdade, Jesus Cristo nasceu 5 ou 6 anos antes da data proposta por Dionísio.

1.3 Primeira comunidade cristã ou primeiras comunidades cristãs?

Jesus pregou na Galileia, Judeia, Samaria e em alguns territórios pagãos e terminou sua missão em Jerusalém. A primeira comunidade cristã, apresentada de forma idealizada nos Atos dos Apóstolos (cf. At 2,42-47 e 4,32-35) espelha não apenas a comunidade de Jerusalém, mas também as demais comunidades. O acontecimento de Pentecostes (cf At 2,1-13), que deu nascimento à Igreja, com a vinda do Espírito Santo, em que se encontravam pessoas de todas as partes, provavelmente ilustra os lugares onde os cristãos já haviam constituído comunidades. Podemos assim falar, já na primeira década após o “evento pascal” (morte e ressurreição de Jesus), do surgimento de comunidades cristãs nos lugares onde ele proclamara a Boa Nova do Reino.

1.4 Querigma, conversão, fé e batismo

O cristianismo primitivo se apresenta, desde o início, com uma grande vitalidade, ao ponto de continuamente receber novos convertidos (cf. At 2,41.47; 6,7). O entusiasmo da pregação acerca de Jesus Ressuscitado e o testemunho de vida fraterna das primeiras comunidades cristãs logo atraíram não só judeus, mas também pagãos. O anúncio do querigma, centrado na vida, morte e ressurreição de Jesus (cf.At 2,24-36; 3,13-26; 4,10-12; 5,30-32; 10,36-43; 13,17-41) constituía a pregação fundamental, que suscitava a conversão dos ouvintes. A fé na pessoa e mensagem de Jesus levava à entrada na comunidade cristã, através do batismo. Em torno da catequese batismal desenvolver-se-á uma fórmula que condensa a doutrina dos Apóstolos: o credo ou símbolo apostólico. Logo, a catequese fundamental de preparação ao batismo será organizada no catecumenato.

2 Primeira Expansão Cristã

 2.1 O contexto da expansão cristã

A maioria dos discípulos e discípulas de Jesus era constituída de judeus. A primeira expansão do cristianismo deu-se nesse ambiente, a língua, costumes, tradições, práticas judaicas foram reinterpretadas à luz da mensagem de Jesus. Desde o século II aC, os judeus encontravam-se espalhados pelo mundo helenizado (diáspora). Em Antioquia, capital da província da Síria, os seguidores de Cristo foram, pela primeira vez, chamados “cristãos” (cf. At 11, 26). A partir das sinagogas e comunidades judaicas helenizadas, expandiu-se o cristianismo fora do contexto judaico tradicional. Por fim, o cristianismo expandiu-se até Roma, alcançando as fronteiras do Império Romano, no contexto do mundo gentio ou pagão.

2.2 Um cristianismo plural num mundo plural

O eficiente sistema viário do Império, a koiné (uma espécie de grego popular), o mundo urbano da bacia do Mediterrâneo e a cultura helenizada facilitaram o anúncio cristão. Diversificado era o judaísmo no qual se inseriam Jesus e seus primeiros discípulos. Após a destruição de Jerusalém (70 dC) e a revolta de Bar Kochba (130 dC) o ramo farisaico representará o judaísmo tradicional. Muito mais diversificado era o mundo do Império Romano. O cristianismo da primeira expansão apresenta-se assim também muito plural e diversificado. Os textos do Novo Testamento, a literatura dos Padres Apostólicos e Apologistas (I e II séculos), bem como a literatura cristã heterodoxa do II e III séculos despertam um vivo interesse para o estudo do cristianismo antigo.

 2.3 Protagonistas da missão cristã

Jesus vivia cercado de seguidores: multidões o seguiam em seus deslocamentos, havia discípulos temporários e discípulos permanentes (cf. Mt 8,18-21; Lc 6,12-13.20; 8, 2-3;10,1; Jo 11,1; 12,1-11).Esses discípulos e discípulas foram os protagonistas iniciais da missão cristã. Dentre estes todos, ele escolheu Doze, constituídos como os líderes do “novo Israel” (cf. Mt 10,1-4; 20,17; Mc 3,14; Mc 6,7; 10,32.35-40; 11,11; 14,17; Lc 8,1; 22,28-30; Jo 6,67-68). O mandato de Jesus de “fazer discípulas todas as nações” (cf. Mt 28, 19) expressa a convicção de que a sua mensagem não se circunscrevia apenas à casa de Israel. A mensagem do Mestre da Galileia encontrou eco, pois, no contexto judaico, judaico helenizado e grande mundo gentio. Em cada um desses contextos surgiram novos discípulos. A tradição cristã conta que, após Pentecostes, os Doze, depois de rezarem juntos, distribuíram-se pelas várias regiões do mundo conhecido para cumprirem o mandato. Em cada lugar, acompanhados de discípulos, fundavam comunidades. No final do século I e início do século II há notícias da presença cristã para além das fronteiras do Império, como em Edessa, importante centro mercantil no reino de Osroene. Daí o cristianismo estendeu-se para a Ásia, atingindo a Pérsia e a Índia.

2.4 Ministérios

O Novo Testamento apresenta uma gama variada de ministérios, ou serviços de coordenação e organização das comunidades cristãs. No século I, em cada contexto da expansão cristã vemos surgir formas de organização desses serviços. Desde o início, o grupo dos Doze escolhidos por Jesus gozava de uma espécie de primazia de honra entre os discípulos. Não devem ser confundidos com os apóstolos; a tradição posterior, no final do séc. I,identificou-os como “doze apóstolos”. Após a traição de Judas, foi necessário escolher outro para substituí-lo e completar o número “doze” (cf. Mt, 28,16; Mc 16,14; Lc 24,9.33; Jo 20,19.24.26; 1 Cor 15,5; At 1,15-26). No contexto judaico, cujo modelo é a comunidade de Jerusalém, adotou-se o modelo do conselho de anciãos (presbíteros), presidido por um ancião (uma espécie de presbítero-bispo). No contexto do judaísmo helenizado, logo se associam aos Doze e aos presbíteros os diáconos, espécie de administradores dos bens(At 6, 1-6). Nas comunidades fundadas por Paulo, destacam-se os Apóstolos (missionários itinerantes, fundadores e responsáveis gerais das comunidades: cf. At 13,2; 14,27; 15,27; 18,22), Profetas (líderes locais e presidentes das celebrações: cf. 1 Cor 14,15-17.29-32) e Doutores (espécie de catequistas: At 13,1; 18,4; 22,3). No final do século I, quando surgem as dissensões, com os “falsos profetas” e outros pregadores (cf. At 20, 29-31), instituem-se os vigilantes da “tradição” e do “depósito da fé”, os epískopoi (bispos). Os missionários passam a ser chamados de evangelistas (Ef 4,11; 2 Tm 4,5). A evolução dos ministérios chegará, no final do século II, à estrutura que, em geral, será adotada por todas as Igrejas: bispo-presbítero-diácono.

3 Paulo: viagens Missionárias

3.1 Traços biográficos do Apóstolo Paulo

O Apóstolo Paulo é, sem dúvida, a figura mais marcante do primeiro século cristão. As duas principais fontes sobre ele, nem sempre fáceis de conciliar, são os Atos dos Apóstolos e o grupo de escritos denominados corpus paulinum. Paulo é natural de Tarso, cidade próxima a Antioquia. É da mesma época de Jesus, ainda que não o tenha encontrado. Hábil fabricante de tendas, é um típico judeu da diáspora, um autêntico fariseu, que frequentou a escola do fariseu Gamaliel, em Jerusalém. Foi um dos líderes que organizaram a perseguição aos cristãos, na tentativa de suprimir a nova religião, assistindo ao martírio de Estêvão (cf. At 9). No entanto, no caminho de Damasco, teve uma extraordinária experiência mística, na qual encontrou Jesus. Ao se converter, mudou o seu nome Saulo para Paulo. Logo após o batismo começou a pregar o Cristo, primeiro na Arábia e depois em Damasco. Após a primeira prisão, foi a Jerusalém para encontrar-se com os Apóstolos e depois dirigiu-se a Tarso, onde permaneceu por vários anos.

3.2 As viagens missionárias

Por volta de seus 40 anos, Paulo começa as famosas três “viagens missionárias”. Na verdade, essas constituem idas e vindas pelo Império Oriental, uma verdadeira jornada missionária, pregando o Evangelho, fundando comunidades, formando líderes, escrevendo cartas, elaborando sua teologia. Uma jornada que culminaria na sua prisão definitiva e morte em Roma, por volta de 64-67 dC. Na primeira viagem, Paulo foi à Anatólia, depois a Jerusalém e Antioquia. Nas outras duas, viajou pela península grega. As principais cidades por onde passou: Atenas, Corinto, Éfeso, Tessalônica e Filipos. De volta a Jerusalém, Paulo, sendo atacado por uma multidão, alegando seus direitos como cidadão romano, quis ser julgado em Roma, para onde foi levado preso. Esperava ser solto e continuar sua missão. Tradições posteriores falam que ele teria ido à Ibéria e Gália. No entanto, o mais seguro é que tenha sido executado em Roma.

 3.3 As cartas paulinas

Em suas viagens, Paulo contou com vários companheiros, entre os quais Timóteo, Tito, Barnabé, Lucas. Treze cartas ou epístolas do Novo Testamento trazem o nome de Paulo. Os modernos estudiosos consideram como de sua autoria as seguintes: a carta aos Romanos, a 1ª e 2ª cartas aos Coríntios, uma aos Filipenses, uma aos Gálatas, a 1ª aos Tessalonicenses e a mais curta, uma espécie de bilhete a Filêmon. As cartas revelam suas experiências missionárias e testemunham suas preocupações teológicas. Muitas de suas ideias foram usadas como respostas aos problemas pastorais de suas comunidades. O papel de Cristo crucificado e ressuscitado na história da salvação ocupa um lugar central na teologia paulina.

3.4 Paulo: verdadeiro fundador do cristianismo?

Algumas vezes se afirmou que Paulo foi “o verdadeiro fundador do cristianismo”, chegando a ofuscar a mensagem original de Jesus e o papel dos Apóstolos, como se tivesse fundado uma “nova religião”. Paulo ocupa, sem dúvida, um lugar excepcional na difusão do cristianismo primitivo. No entanto, ele mesmo fala que teve dificuldades em ser aceito como Apóstolo (cf. Gl 1,15-24; 1 Cor 15,8;Ef 3,1-9). Uma das questões fundamentais levantadas por Paulo é se, para ser um autêntico seguidor de Cristo, era necessário aceitar todas as prescrições da tradição judaica. O conflito encontrou uma solução na reunião com os Apóstolos em Jerusalém, na qual se chegou a um consenso sobre os pontos fundamentais da vida e doutrina cristãs (cf. At 15; Gl 2,1-10). Esse acordo reconheceu a legitimidade da missão entre os gentios, garantindo a expansão do cristianismo e estabelecendo critérios para a resolução de conflitos e a unidade entre as Igrejas.

4 Cristianismo no Mundo Romano

4.1 Um mundo plural

O mundo no qual o cristianismo antigo se expandiu, apesar de sinais de decadência, era um mundo vigoroso. No século I da era cristã, a civilização romana, herdeira da civilização helenística, tinha alcançado sua plena expansão. Estamos sob o império de Augusto (30 aC) e Tibério (14-37dC). Roma estende seu domínio civilizador, com a pax augusta, uma paz militarizada, aos confins do Oriente. No século II, com os imperadores Antoninos, ainda temos a ordem, o direito e uma administração eficaz, dentro de um Estado relativamente liberal. Mesmo com a grande crise do século III, sob Diocleciano (284-305) sua história ganha um novo impulso: em seu governo instaura-se uma monarquia absoluta, apoiada em um poderoso aparelho administrativo.

Muitas culturas, muitos povos, muitos deuses. O Império romano tinha grande tolerância pela religião dos povos dominados. Tinham até em Roma um “panteão”, um templo para todas as divindades do Império. Os romanos exigiam apenas que se observasse o culto imperial, de caráter cívico, com suas cerimônias públicas, das quais todos os cidadãos do Império deveriam participar, para oferecer sacrifícios e rezar pelo Imperador: dominus ac divus (senhor e deus). A religião oficial era a base da unidade imperial. Atentar contra ela era crime. Os cristãos, ao afirmaram que seu único Senhor era o Cristo, serão considerados suspeitos, estranhos e inimigos do Estado.

Num mundo marcado por muitas inseguranças, miséria, opressão e escravidão, proliferavam muitas religiões vindas do Oriente e que se tornaram muito populares. Eram os cultos de Hórus, Ísis e Osíris (Egito); Mitra (Pérsia); Asclépio e Esculápio estavam entre os deuses “salvadores” mais populares. Essas religiões tinham um caráter iniciático: exigiam conversão ou uma passagem, um novo nascimento, um período de iniciação nos “mistérios” e uma cerimônia de iniciação. Os “iniciados” ingressavam na “fraternidade”, tornavam-se irmãos, associados à divindade, sua vida ganhava um novo sentido, era-lhes prometida a eternidade. O Império tratava-as como superstitio, religio nova, e considerava-as ilícitas. O cristianismo foi classificado como uma dessas religiões.

Os filósofos consideravam o politeísmo uma “alegoria” das realidades superiores, que eles tinham superado através do exercício da ascese e da razão, em busca da verdadeira doutrina ou filosofia. Muitos sistemas filosóficos procuravam responder às grandes questões das origens e finalidade do universo, de todas as coisas, dos problemas ligados ao homem e suas relações na polis e com o mundo divino, do significado da justiça, da felicidade, da imortalidade. Normalmente postulavam a existência de um Deus, princípio ou causa transcendente, com um mundo superior, imaterial. Não poucas pessoas vindas desse universo cultural buscarão a “verdadeira filosofia”, que encontrarão no cristianismo.

Nesse universo plural, despertou no século I um movimento de caráter sincrético, que amalgamou elementos de muitas tradições culturais, religiosas e filosóficas. Era o gnosticismo: através da gnose, um conhecimento superior, revelado aos capazes desse conhecimento, os gnósticos, o homem podia conhecer os mistérios do mundo divino e salvar-se. No século II e III há uma explosão de seitas e grupos gnósticos, existentes tanto entre os pagãos, como entre os judeus e cristãos.

4.2 Cidadãos de outra cidade

As primeiras gerações cristãs, apesar de oporem-se radicalmente ao “mundo”, à civilização circunstante, não eram insensíveis aos seus valores. Condenavam os limites e vícios dessa civilização pagã: as crueldades (combate dos gladiadores, abandono dos recém nascidos e idosos); a imoralidade dos costumes (devassidões, luxúria, orgias: cf. Rom 1, 2-32) e a idolatria e apego a este mundo passageiro.

A Igreja acolheu no princípio os humildes, os pobres, as mulheres, os escravos. Mas logo também os comerciantes, os soldados, funcionários do Império e depois membros da aristocracia e da própria casa imperial se converterão à religião do Nazareno. Todos habitavam esse mundo, mas sentiam-se cidadãos de uma cidade imperecível (cf. Carta a Diogneto).

4.3 As primeiras dissensões e heresias

Jesus anunciou e inaugurou a Boa Nova do Reino num contexto plural. Sua mensagem difundiu-se num mundo plural. Sua mensagem e sua pessoa, sua vida foram transmitidas, primeiramente, numa mentalidade semítica, tendo depois de buscar uma linguagem helenizada para se fazer compreender e daí, sucessivamente, germânica, céltica etc. É natural que houvesse diferentes interpretações de sua pessoa e sua obra. Já no Novo Testamento encontramos várias “teologias” e advertências contra os anticristos, falsos profetas. Dentre as primeiras “escolhas” parciais (“heresias”), que não davam conta de compreender corretamente Jesus Cristo e sua mensagem ou que extrapolavam seu conteúdo, encontramos os docetas (Jesus tinha “aparência” de homem, negavam portanto sua “humanidade”) e os ebionitas (era o Messias, um homem vindo de Deus, mas não o Filho de Deus, negavam sua “divindade”). Em torno dessas duas verdades proclamadas e da maneira de viver e praticar a mensagem de Jesus, surgiram, nos três primeiros séculos, muitas heresias e dissensões ou cismas: gnosticismo (vários ramos), montanismo, milenarismo, subordinacionismo, adocionismo, modalismo, maniqueísmo, entre tantas outras.

 4.4 Os concílios e o nascimento da teologia cristã

Para enfrentar esses desafios, já no final do século II e durante todo o século III, as Igrejas realizam reuniões com seus dirigentes, para buscar resolver os problemas e encontrar a unidade nas coisas essenciais. São os sínodos ou concílios. Nesse sentido, o encontro ocorrido em Jerusalém, por volta do ano 49dC, é considerado, simbolicamente, o primeiro concílio do cristianismo. Esses concílios tratavam de questões doutrinais e questões da vida prática. No final, davam determinações sobre os aspectos tratados, através dos cânones dogmáticos e disciplinares, com uma “carta sinodal” a ser enviada às Igrejas irmãs. Baseado nessa feliz experiência, o Imperador Constantino convocará, em 325, o 1º Concílio Ecumênico, para enfrentar o problema do Arianismo.

Na busca de compreender o Cristo e sua mensagem, a salvação, o significado da Igreja, dando respostas às heresias e dissensões, aprofundando a fé cristã, desenvolve-se a teologia cristã. Nesse sentido, o processo de elaboração da doutrina cristã usará dos recursos culturais da civilização greco-romana: a língua grega e latina, a retórica, a filosofia, o direito, práticas, costumes, instituições. A esse apropriar-se da cultura, utilizando o que ela tem de melhor para expressar a mensagem de Cristo, desde dentro, comumente chama-se inculturação. Esse fenômeno será uma característica constante da expansão cristã. A próxima etapa dar-se-á no mundo germânico.

5 As perseguições na Antiguidade

5.1 Causas das perseguições

Durante os três primeiros séculos da era cristã, o cristianismo foi perseguido, primeiro pelos judeus e depois pelos romanos. Até o incêndio de Roma, sob o governo de Nero (c. 64), os cristãos praticamente passaram despercebidos, confundidos com uma seita do judaísmo, que gozava de certa liberdade e alguns privilégios. Possivelmente tenham sido os judeus a denunciarem a Nero os cristãos como causadores do incêndio.

Somaram-se a isso os preconceitos populares, que viam os cristãos como gente que odiava o gênero humano, ateus, ímpios, sacrílegos e acusados de praticarem abominações e infâmias. Na verdade, os cristãos não eram “separatistas”, mas não seguiam os costumes idolátricos e pagãos, como certas festas públicas, a frequência ao teatro, não aprovavam a luta de gladiadores, a prostituição, adoração de estátuas ou a divinização do imperador.

Corriam no meio do povo boatos de que, em suas reuniões secretas, os cristãos adorariam a cabeça de um asno, com sacrifício de crianças, seguido de canibalismo, com uniões incestuosas e orgias (todos se chamavam “irmãos” e praticavam o “ósculo da paz”!).

Os intelectuais e as autoridades classificavam a religião dos cristãos como superstitio, sendo posteriormente condenada pelo Estado como associatioillicita, religio nova e religioillicita, por atentar contra a unidade e a sacralidade do Império. A legislação evoluiu, no primeiro século, de certa tolerância com o fato de ser cristão até a condenação pelo simples fato de ser cristão. Ser cristão acabava sendo um crime de lesa majestade.

5.2 As várias fases das perseguições

As perseguições dos dois primeiros séculos foram esporádicas, locais ou regionais, intermitentes, motivadas por denúncias ou ações pontuais. Já as perseguições do terceiro século e início do quarto foram desencadeadas pela autoridade imperial, através de decretos, de caráter geral, com o objetivo de exterminar o cristianismo.

Na primeira fase aconteciam por incitamento popular, submetidas posteriormente à apreciação dos magistrados. As autoridades visavam controlar a fúria popular e as desordens públicas. No entanto, o cristianismo já era considerado ilegal. Mas ainda são de caráter intermitente, seguindo-se longos períodos de tolerância e de paz.

Com Sétimo Severo, em 202, inicia-se uma nova prática: em certas ocasiões a própria autoridade promove as perseguições. Neste momento o alvo são os catecúmenos (os que se preparavam para o batismo), os neófitos (os recém-batizados) e os catequistas (que os preparavam). O objetivo era impedir que alguém se tornasse cristão.

Em meados do século III, iniciam-se as perseguições sistemáticas, com o objetivo de exterminar efetivamente o cristianismo. Décio foi o primeiro a decretar uma perseguição geral (250-251). Apesar de curta, atingiu tal intensidade e extensão nunca dantes vistas. O objetivo, mais do que fazer mártires, era fazer apóstatas. De fato, muitos sucumbiram e traíram sua fé ou comunidade (os lapsi), abrindo-se um problema no interior da Igreja. Em 257, Valeriano desencadeou nova perseguição: visava principalmente o clero e as propriedades da Igreja, mas também afetava o povo, com uma série de interdições que colocavam em risco sua segurança, confisco de bens, exílio, prisões. A última perseguição violenta foi a de Diocleciano (303-313).

Calcula-se que o número de mártires variasse entre cem e duzentos mil. De toda forma, ao longo de todo este período, os cristãos viveram em permanente insegurança e sofreram hostilidades por parte do povo.

5.3 O sangue dos mártires: semente de novos cristãos

Tertuliano de Cartago (…220) observa que foi à sombra do judaísmo que o cristianismo pôde dar seus primeiros passos sem confrontar-se com o Império. Junto com Justino de Roma, Atenágoras de Atenas, Teófilo de Antioquia, Irineu de Lião e Orígenes de Alexandria, ele é um pensadores, filósofo e teólogo que faz a apologia do cristianismo: defesa contra os ataques vindos do povo, dos judeus, dos filósofos e das autoridades; contra-ataque da imoralidade da religião pagã, das incoerências do povo da antiga lei, absurdo das teorias sobre Deus e decadência do Império, para apresentar a beleza, a sublimidade e a honestidade da religião de Cristo.

Quanto mais os cristãos são perseguidos e martirizados, mais se multiplicam. Nesse contexto, o próprio fato de entrar para o grupo de catecúmenos ou de pedir o batismo já demonstrava a seriedade dos candidatos. Somente após as perseguições é que a instituição do catecumenato veio a se tornar mais rigorosa, já num contexto de liberdade e maior frouxidão.

O primeiro modelo de santidade que encontramos no cristianismo antigo é o martírio. O mártir é a testemunha por excelência, que imita Cristo até o derramamento de sangue. Mártires foram vários dos discípulos que conviveram com Jesus, dos apóstolos, chefes das Igrejas e gente desconhecida, homens, mulheres, crianças, jovens, adultos, anciãos. Desenvolve-se desde cedo a “espiritualidade do martírio”. O túmulo dos mártires logo se transforma em lugar de peregrinações e culto.

Além de várias fontes antigas, as fontes privilegiadas para conhecer os mártires cristãos são as acta martyrum: documentos feitos pelas próprias autoridades no julgamento dos condenados e que depois eram lidos nas comunidades; as gesta: relatos escritos na época das perseguições e que misturam elementos históricos e romanceados; e as legenda, a maior parte de época posterior, com muitos motivos fantasiosos, constituindo-se uma literatura de edificação.

5.4 O fim das perseguições e a “guinada constantiniana”

Em 313, os imperadores Licínio e Constantino assinaram conjuntamente um documento, o Edito de Milão, que concedeu liberdade de culto aos cristãos e a outras religiões. Chegava ao fim a era da perseguição aos cristãos. Iniciava-se uma nova etapa, denominada por alguns historiadores como a guinada ou virada constantiniana (cf. F. Pierini, H. Matos e D. Mondoni). Constantino concedeu aos cristãos, além da liberdade de culto, uma série de isenções e privilégios, dando terras, propriedades, prestígio e poder à Igreja Católica. Em 380, o imperador Teodósio transforma o cristianismo em religião oficial do Império Romano: é a fase da “Igreja Imperial” ou “Era de Ouro da Patrística”.

Nessa nova etapa, reformula-se o catecumenato; desenvolve-se a liturgia e a disciplina eclesiástica; a teologia patrística chega ao seu ápice; é também o período de grandes cismas e heresias; os dogmas cristológicos e trinitários alcançam sua formulação mais plena; aprimora-se a organização da Igreja no território do Império, com as dioceses, paróquias e patriarcados; surge a vida religiosa, com o monacato; há um novo surto missionário em direção aos povos “bárbaros”. É a época dos concílios ecumênicos: Niceia (325), Constantinopla I (381); Éfeso (431) e Calcedônia (451).

Luiz Antônio Pinheiro, OSA. ISTA. Texto original português.

6 Referências bibliográficas

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Para saber mais

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COTHENET, E. São Paulo e o seu tempo. Cadernos Bíblicos 26. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 1985.

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HAMMAN, A.-G. A vida cotidiana dos primeiros cristãos (95-197).Patrologia. São Paulo: Paulus, 1997.

HILL, Jonathan. História do cristianismo. São Paulo: Rosari, 2009. p.12-77.

HOORNAERT, Eduardo. A memória do povo cristão. Coleção Teologia e Libertação. Série I. Experiência de Deus e Justiça. Petrópolis: Vozes, 1986.

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POTESTÀ, G. L.; VIAN, Giovanni. História do cristianismo. São Paulo: Loyola, 2013. p.11-62.

Comunidades eclesiais de base (CEBs) e opção pelos pobres

Sumário

1 Um pouco de história das CEBs no Brasil

1.1 Gênese das CEBs

2 A grande novidade da Igreja na América Latina e Caribe: a entrada (inserção) dos cristãos e cristãs na luta política de libertação dos pobres e excluídos

2.1 Entrada nas pastorais sociais, nos movimentos populares, sindicais, partidos políticos, movimento ecológico

2.2 Ligação Fé e Vida

2.2.1 Um novo modo de viver a fé

2.2.2 Um novo modo de transmitir a fé

2.2.3 Um novo modo de celebrar a fé

3 Desafios para as CEBs no início do Século XXI

4 Concluindo

5 Referências bibliográficas

As Comunidades Eclesiais de Base nascem no Brasil e na América Latina e Caribe no final da década de 1950 e início da década de 1960, pelo impulso do Espírito, e se apresentam como um processo significativo para a Igreja Católica, para as outras Igrejas Cristãs [Verbete: ecumenismo na vivência das CEBs: Cláudio de Oliveira Ribeiro ou Marcelo Barros] e também para toda a sociedade. Esta consciência de uma nova experiência eclesial própria da América Latina e Caribe se expressa no tema do 1º Encontro Intereclesial de CEBs: Uma Igreja que nasce do povo pelo Espírito de Deus (Vitória-ES – 6-8 jan 1975). Este processo pode ser considerado histórico e veio para ficar. Teologicamente, foi cunhado como eclesiogênese [Verbete Eclesiogênese: Leonardo Boff ou Francisco Aquino Júnior]: uma nova experiência eclesial, um renascer da própria Igreja e, por isso mesmo, uma ação do Espírito no horizonte dos sinais dos tempos preconizado pelo Vaticano II. Em se tratando de um processo de longo fôlego, torna-se necessário retomar a história desta caminhada.

1 Um pouco de história das CEBs no Brasil

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) surgem na conjuntura da sociedade contemporânea que produziu uma atomização da existência, um anonimato geral das pessoas e uma fragmentação em praticamente todos os níveis da convivência humana, devido aos desafios vindos de uma sociedade globalizada e urbanizada onde a vivência comunitária parecia não ter mais espaço para existir. Como reação a este fenômeno, há uma tendência de se retomar as relações primárias entre as pessoas e buscar relacionamentos de reciprocidade. As CEBs representam esta reação no interior da/s Igreja/s.

1.1 Gênese das CEBs

a) Gestação

Houve um longo período de preparação do terreno para o aparecimento das CEBs. Entre outros elementos destacamos a experiência da catequese popular (movimento catequético), a contribuição da Ação Católica Brasileira, que assume o modelo belga, francês e canadense da Ação Católica especializada (JAC – Juventude Agrária Católica; JEC – Juventude Estudantil Católica; JIC – Juventude Independente Católica; JOC – Juventude Operária Católica; JUC – Juventude Universitária Católica), o Movimento de Educação de Base (MEB), o Movimento por um Mundo Melhor (MMM), os diferentes Planos de Pastoral da CNBB (Plano de Emergência – 1962, Plano de Pastoral de Conjunto – 1966), contando ainda com o Movimento Bíblico que busca novas formas de interpretação da Palavra de Deus, e o Movimento Litúrgico na Europa e também no Brasil. Este processo possibilitou que o terreno fosse amainado para o surgimento das Comunidades de Base.

b) Nascimento

Podemos localizar o nascimento das CEBs no final da década de 1950 e início da década de 1960. Elas surgiram em vários lugares do Brasil e em muitos países da América Latina e do Caribe, no campo e na cidade.

c) Batismo

O batismo das CEBs se deu com Medellín (1968). Inicialmente eram chamadas de Comunidades Cristãs de Base:

Assim, a comunidade cristã de base é o primeiro e fundamental núcleo eclesial, que deve, em seu próprio nível, responsabilizar-se pela riqueza e expansão da fé, como também pelo culto que é sua expressão. É ela , portanto, célula inicial de estruturação eclesial e foco de evangelização e atualmente fator primordial de promoção humana e desenvolvimento (Medellín, 15.11).

d) Confirmação

A confirmação se deu em Puebla (1979), mas antes as CEBs já haviam encontrado sua legitimidade na palavra do magistério universal na Evangelii Nuntiandi, n.58: “(…) São solidárias com a vida da mesma Igreja e alimentadas pela sua doutrina e conservam-se unidas aos seus pastores”. O Documento de Puebla assim se expressa: “As comunidades eclesiais de base que em 1968 eram apenas uma experiência incipiente amadureceram e multiplicaram-se sobretudo em alguns países. Em comunhão com seus bispos e como o pedia Medellín, converteram-se em centros de evangelização e em motores de libertação e de desenvolvimento” (Puebla, n.97; cf. também n.641-642).

e) Maturidade

A maturidade das CEBs pode ser compreendida em três momentos:

O primeiro se dá com o Documento da CNBB (1982): “Fenômeno estritamente eclesial, as CEBs em nosso país nasceram no seio da Igreja-instituição e tornaram-se ‘um novo modo de ser Igreja’. Pode-se afirmar que é ao redor delas que se desenvolve, e se desenvolverá cada vez mais, no futuro, a ação pastoral e evangelizadora da Igreja” (CNBB, Doc.25, n.3).

O segundo momento acontece com o VI Encontro Intereclesial das CEBs, em Trindade-Go (1986), onde se cunhou a expressão “CEBs: Um modo novo de toda a Igreja ser”. Visava-se, com tal expressão, mostrar que o espírito das CEBs deveria fermentar toda a instituição eclesial a partir da opção pelos pobres. As CEBs constituem-se num elemento-chave para a vida eclesial no Brasil e apontam para um novo modelo eclesial. Encontramo-nos aqui com o papel protagônico das CEBs em vista de um novo paradigma de organização eclesial.

O terceiro momento pode ser compreendido a partir da feliz expressão de D. Pedro Casaldáliga – “CEBs: O modo normal de toda a Igreja ser”. Esta expressão quer significar que as questões fundamentais defendidas pelas CEBs devem ser assimiladas por toda a Igreja-instituição, pois fazem parte da defesa da vida. Por detrás desta vivência está presente a intuição do Vaticano II, sobretudo da Gaudium et Spes (GS, n.1 e 11). Nesta mesma direção, as CEBs são consideradas como instância primeira da Igreja, são sua expressão originante (At 2,42-47; 4,32-35). Dirigindo-se aos participantes do XIII Encontro Intereclesial, o Papa Francisco afirma que

Como lembrava o Documento de Aparecida, as CEBs são um instrumento que permite ao povo “chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé dos adultos” (n.178). E recentemente, dirigindo-me a toda a Igreja, escrevia que as Comunidades de Base “trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam a Igreja (Exort. Ap. Evangelii Gaudium, n.29).

 2 A grande novidade da Igreja na América Latina e Caribe: a entrada (inserção) dos cristãos e cristãs na luta política de libertação dos pobres e excluídos

 Para se compreender este novo modo de ser Igreja, é preciso recordar o assumir da opção pelos pobres e excluídos, que é uma das marcas da Igreja na América Latina e no Caribe (cf. Aparecida, n.391). A opção pelos pobres está também na base da Teologia da Libertação. Ela aparece de modo latente durante o Vaticano II, especialmente no Pacto das Catacumbas (Verbete Pacto das Catacumbas – José Oscar Beozzo) e, também de modo especial, a partir de Medellín (1968), Puebla (1979) e, mais recentemente, em Aparecida (2007), gerando uma intensa discussão com muitas tensões, incompreensões e tentativas de amortecer suas implicações práticas. Esta opção pelos pobres, expressa na década de 1960, tem suas raízes na Bíblia. Na caminhada das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), esta compreensão está explicitada no canto: “Javé, o Deus dos pobres, do povo sofredor, aqui nos reunimos para cantar o seu louvor. Pra nos dar esperança e contar com sua mão, na construção do Reino, Reino novo, povo irmão”. No livro do Êxodo, Deus se mostra como libertador, agindo na história: “Eu vi, eu vi miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa de seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel” (Êx 3,7-8b). Esta tradição do Deus libertador se expressa na profissão de fé do povo libertado: “Eu sou Iahweh teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Êx 20,2). Gustavo Gutiérrez afirma que a opção pelos pobres é teocêntrica, isto é, sai do coração amoroso de Deus: “É uma opção teocêntrica e profética que deita as raízes na gratuidade do amor de Deus e é exigida por ela” (GUTIÉRREZ, 2000, p.25).

A opção pelos pobres tem estado no cenário da Igreja da América Latina e do Caribe durante as últimas décadas. Na Conferência de Aparecida ela volta com maior intensidade, novo aprofundamento e novas exigências frente ao novo contexto sócio-histórico. Bento XVI afirma que a opção pelos pobres está implícita na fé cristã e faz parte integrante do discipulado como seguimento de Jesus Cristo: “Nossa fé proclama que ‘Jesus Cristo é o rosto humano de Deus e o rosto divino do ser humano’” (Aparecida, n.392). Por isso “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, enriquecendo-nos com sua pobreza. Esta opção nasce de nossa fé em Jesus Cristo, o Deus feito humano, que se fez nosso irmão (cf. Hb 2,11-12)” (Aparecida, n.392). Bento XVI afirma que o Deus revelado em Jesus de Nazaré é “o Deus de rosto humano; é o Deus-Conosco, o Deus do amor até a cruz” (Bento XVI, Sessão Inaugural dos Trabalhos da V Conferência em Aparecida, 2007). Interessante observar que essa afirmação do Papa se aproxima do canto das CEBs: “Tu és o Deus dos pequenos, o Deus humano e sofrido, o Deus de mãos calejadas, o Deus de rosto curtido. Por isso te falo eu, como te fala meu povo, porque és o Deus roceiro, o Cristo trabalhador” (Missa Campesina Nicaraguense) . Aproxima-se também da afirmação de Puebla n.31-39, retomada pela Conferência de Aparecida, n.392-393 e assumida também pelo papa Francisco: “Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica (…) A Igreja fez uma opção pelos pobres, entendida como uma ‘forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja’” (EG, n.198). Ao assumir o dinamismo missionário da Igreja, o papa Francisco afirma que “hoje e sempre os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho, e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos!” (EG, n.48).

Seguindo a reflexão de Gustavo Gutiérrez que afirma ser teocêntrica a opção pelos pobres, podemos pensá-la como opção trinitária. A opção pelos pobres é uma opção de Deus Pai (cf. Êx 3,7-10; 20,2; Mt 11,25-26), do Filho, Jesus de Nazaré (Lc 4,16-21) e do Espírito Santo que envia Jesus para o meio dos pobres (Lc 4,18-19). É interessante notarmos que na sequência da missa de Pentecostes, o Espírito Santo é proclamado como Pai dos Pobres (Pater Pauperum)! Esta opção é também mariológica e é assumida por Maria, a Mãe de Jesus (Lc 1,46-56). Esta opção é bíblica e evangélica e foi belamente descrita por Dona Luzia de Itumbiara-Go, ao dizer: “A Bíblia é o livro dos pobres, escrito para os pobres, dizendo para os pobres: chega de pobreza!”.

A opção pelos pobres continua sendo a pedra de toque da Igreja: “A opção pelos pobres é uma das características que marca o rosto da Igreja latino-americana e caribenha” (Aparecida, n.391). É a partir dela que se definem os modelos de Igreja. Certamente esta é a razão dos inúmeros conflitos no interior da própria instituição eclesial, pois ela exige um novo paradigma de organização eclesial diferente dos modelos existentes anteriormente, assim como também aponta para um novo modelo de sociedade. Neste sentido, os pobres se tornam os novos sujeitos eclesiais e também os novos sujeitos sociais. Na medida em que acreditamos nos pobres como sujeitos e protagonistas de sua própria libertação, compreendemos também a importância do diálogo ecumênico que abre possibilidades do testemunho comum e do diálogo inter-religioso [Verbete Diálogo inter-religioso = Faustino Teixeira] na construção da nova humanidade. Diante da realidade de pobreza que vive a grande maioria dos jovens latino-americanos e caribenhos, entende-se também o valor da opção pelos pobres assumida pelos próprios jovens (cf. Aparecida, n.446,e). Frente à dura realidade de miséria, pobreza gerada pela injustiça social, assume-se também a opção pelos pobres na defesa da ecologia, pois quem mais sofre com a devastação da “nossa irmã mãe terra” são os pobres, especialmente as mulheres, os camponeses e indígenas. Podemos também verificar, à luz da opção pelos pobres, todo o anseio por mudanças que estamos percebendo na América Latina e Caribe. Os pobres eram invisibilizados, mas hoje estão se fazendo presentes em vários países latino-americanos e caribenhos e indicam a necessidade de mudanças estruturais, como também a possibilidade de um outro mundo possível, para que haja vida e vida abundante para todos os seres humanos e também vida para toda a natureza.

 2.1 Entrada nas pastorais sociais, nos movimentos populares, sindicais, partidos políticos, movimento ecológico

 As pastorais sociais, fruto do engajamento dos cristãos e cristãs na concretização da opção pelos pobres, colaboram na compreensão do engajamento político, na importância de uma Igreja comprometida com as lutas populares e iniciam o processo de cidadania nas comunidades. Este processo se dá pela ligação das pastorais sociais com os movimentos sociais populares. A partir da pastoral da saúde abre-se a possibilidade de participação nos conselhos de saúde local, municipal, estadual. Assumindo a pastoral da terra (CPT), os cristãos e cristãs tem a possibilidade de participar do Movimento dos Sem Terra (MST). Participando da Pastoral Operária (PO), há a abertura para a participação nos sindicatos. Estando na pastoral carcerária, abre-se a possibilidade de participação no Movimento Nacional de Direitos Humanos, Anistia Internacional, de relacionamento com o Ministério Público. Da pastoral da Mulher Marginalizada (PMM) entra-se no movimento da mulher, tem-se abertura para a Marcha Mundial das Mulheres. Ao participar da Pastoral da Criança, vislumbra-se a participação nos conselhos da criança e do adolescente, como também no conselho tutelar. Da pastoral de fé e política, ética e política, abre-se o horizonte para a participação nos partidos políticos. Desta mesma forma, podemos ver a participação de cristãos e cristãs das CEBs na Semana Social Brasileira, no Grito dos Excluídos, nas romarias da Terra e das Águas, nas romarias dos trabalhadores/as.

Em nome da fé, os cristãos e cristãs saídos das CEBs assumem e apoiam as lutas dos movimentos populares, dos povos indígenas, dos negros, das mulheres. Participam dos movimentos ecológicos. À luz do Ensinamento Social da Igreja, participam do movimento sindical, dos partidos políticos ligados aos interesses da classe trabalhadora e, em alguns casos específicos, frente à violência institucionalizada (Medellín, n.16) e ao pecado social (Puebla, n.28), há a recorrência à luta armada em alguns países da América Latina e Caribe.

 2.2 Ligação Fé e Vida

 As CEBs utilizam o método Ver, Julgar e Agir advindo da Ação Católica e referendada por João XXIII na Encíclica Mater et Magistra (MM, n.235-236). Esse método está presente nas Conferências do Episcopado Latino-americano e Caribenho desde Medellín (1968) até Aparecida (2007) e sempre presente nos Documentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). É a partir desta ligação que houve uma nova experiência da vivência da fé que gera um novo modelo eclesial e uma nova forma de fazer teologia. Gustavo Gutiérrez relata de forma magistral esta articulação entre a inserção dos cristãos e cristãs na luta de libertação dos pobres e excluídos e este novo modo de viver, transmitir e celebrar a fé.

A inserção nas lutas populares pela libertação tem sido – e é – o início de um novo modo de viver, transmitir e celebrar a fé para muitos cristãos da América Latina. Provenham eles das próprias camadas populares ou de outros setores sociais, em ambos os casos observa-se – embora com rupturas e por caminhos diferentes – uma consciente e clara identificação com os interesses e combates dos oprimidos do continente. Esse é o fato maior da comunidade cristã da América Latina nos últimos anos. Esse fato tem sido e continua sendo a matriz do esforço de esclarecimento teológico que levou à teologia da libertação (GUTIÉRREZ, 1981, p.245).

 A ligação fé e vida, incluindo nesta ligação a relação da fé com a economia, a política, a cultura e a ecologia, aponta que o horizonte da libertação se amplia enormemente, exigindo uma libertação econômica, política, cultural, pedagógica, erótico-sexual, ecológica (DUSSEL, 2011) e revela também a ligação entre evangelização e libertação presente no Vaticano II: “Trabalhem os cristãos e cristãs e colaborem com todos os outros para estruturar com justiça a vida econômica e social” (Ad Gentes, n.12; cf. Ad Gentes, n.21) e confirmada pela Evangelii Nuntiandi de Paulo VI: “A evangelização não seria completa se ela não tomasse em consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida real” (cf. EN, n.29). A Evangelii Nuntiandi indica que o compromisso com a libertação em todas as dimensões da vida humana (econômica, política, social, cultural-religiosa) não é alheia à evangelização (cf. Evangelii Nuntiandi, n.30). Ainda confirma que entre evangelização e libertação há laços de ordem antropológica (o ser humano a ser evangelizado não é um ser abstrato, mas condicionado pelo conjunto dos problemas sociais e econômicos), laços de ordem teológica (não se pode separar o plano da criação do plano da Salvação do ser humano), e também laços de ordem eminentemente evangélica (como proclamar o mandamento novo sem promover a justiça, a paz?) (cf. Evangelii Nuntiandi, n.31). As CEBs, pela ligação da fé com a vida, esforçam-se para que a libertação possa abranger todas as dimensões da vida do ser humano, buscando realizar o desejo expresso por Jesus que todos e todas possam ter vida e vida em abundância e também buscam seguir São Paulo, preocupando-se hoje com toda a criação (cf. Rm, 8,22-25). A participação nas lutas acarreta muitas perseguições entre os pobres e entre aqueles e aquelas que, por livre opção, mesmo sendo de outras classes sociais, assumem o lado dos pobres e excluídos. Por isso, em toda a América Latina e Caribe, encontramos mártires que, como Jesus de Nazaré, enfrentam a perseguição e chegam até o extremo do derramamento do sangue. São trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, indígenas, negros e negras, advogados e advogadas, religiosas e religiosos, padres, bispos. Muitos destes/as mártires são saídos das CEBs e expressam a dimensão profética da/s Igreja/s. A entrada dos cristãos e cristãs na luta de libertação dos pobres e excluídos possibilita um novo modo de viver a fé, um novo modo de transmitir a fé e um novo modo de celebrar a fé.

 2.2.1 Um novo modo de viver a fé

À luz do Concílio Vaticano II, os cristãos e cristãs das CEBs, movidos pelo Espírito do Ressuscitado, preocupam-se com os problemas da vida em sociedade e também com os problemas relacionados com a natureza, descobrindo que “as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (GS, n.1). Com esta espiritualidade, a vivência da fé exige dar resposta às necessidades em todas as dimensões da vida humana.

 2.2.2 Um novo modo de transmitir a fé

Com a fé relacionada a todas as necessidades humanas, a Palavra de Deus (Bíblia) começa a ser lida com uma maior complexidade, buscando dar respostas às questões da vida a partir da leitura feita pelos pobres (relação de classe), pelas mulheres (relação de gênero), pelas diferentes culturas (relação étnica), a partir das crianças, adolescentes, jovens, anciãos (relação de geração) e, também iluminados pela teologia da criação, faz-se uma leitura da Bíblia a partir da defesa da vida da natureza (relação ecológica). É no bojo de todas essas leituras que vai surgindo também um novo modo de teologizar (Teologia da Libertação), como também uma nova catequese com uma dimensão martirial.

2.2.3 Um novo modo de celebrar a fé

A ligação fé e vida faz com que a liturgia seja vivida e se expresse a partir das diferentes culturas e celebre as lutas em defesa da vida, assumindo as expressões culturais do povo. Como afirma o papa Francisco, “natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas. A graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe” (EG, n.115).

 3 Desafios para as CEBs no início do Século XXI

 A caminhada das CEBs, ao longo desse processo histórico, tem sido marcada por enfrentamentos e conflitos tanto no interior da Igreja como no seio da sociedade. No interior da Igreja, nota-se o confronto entre modelos de Igreja e a base deste confronto está na interpretação dada aos documentos do Concílio Vaticano II. As CEBs tem um papel protagônico na perspectiva de um novo modelo eclesial que assume a eclesiologia do Povo de Deus presente no Concílio. Nesta busca de um novo modelo eclesial, surgem conflitos e perseguições. No seio da sociedade, as CEBs se articulam, em praticamente todos os países da América Latina e Caribe, com as forças populares que apontam para um novo modelo de sociedade, na busca de um outro mundo possível e urgente, como tem proclamado o Fórum Social Mundial. [Verbete Fórum Social Mundial = Francisco Witacker]. Esta busca por outro modo de organização da vida em sociedade entra em confronto com o neoliberalismo ainda muito presente em países latino-americanos e caribenhos, acarretando conflitos e perseguições que podem levar ao martírio. Deste modo, as Cebs são chamadas a fortalecer sua caminhada, neste novo momento eclesial em que o papa Francisco, em sua Mensagem às CEBs por ocasião do 13º. Intereclesial, afirma que “as CEBs são um instrumento que permite ao povo ‘chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé dos adultos’ (Aparecida, n.178). E recentemente, dirigindo-me a toda a Igreja, escrevia que as Comunidades de Base ‘trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam a Igreja’ (Exort. Ap. Evangelii Gaudium, n.29)”. As CEBs procuram manter os pontos essenciais para a construção de um novo modelo eclesial e de um novo modelo de sociedade que tenham as marcas do Reino de Deus anunciado por Jesus de Nazaré.

a) Manutenção da opção pelos pobres

Diante da vulnerabilidade presente em nossa sociedade e frente ao neoliberalismo, a opção pelos pobres é fundamental para a resistência dos povos e defesa da vida.

b) Teologia da Libertação

A Teologia da Libertação é também fruto da opção pelos pobres e necessita de novos aprofundamentos diante das novas exigências do momento histórico atual, buscando dar respostas para as questões relacionadas com as culturas, a bioética, a sexualidade, a ecologia.

c) Ministérios e a presença da mulher na Igreja e nas CEBs

Há uma presença majoritária de mulheres nos serviços e coordenações nas CEBs, mas há uma contradição entre a proclamação da igualdade e a realidade de desigualdade nas relações entre homens e mulheres no seio das Igrejas cristãs, mas especialmente no seio da Igreja católica, onde a mulher, por ser mulher, não pode assumir determinadas tarefas e postos de decisão, contrariando o princípio do sacerdócio comum dos fiéis.

d) O diálogo inter-religioso e a luta pela defesa da vida e da natureza

Este desafio é o de todas as Igrejas e de todas as religiões, pois não haverá paz no mundo, se não houver paz entre as religiões (Hans Küng, 2004).

4 Concluindo…

As CEBs são uma invenção do Espírito Santo: “Uma Igreja que nasce do povo pelo Espírito de Deus” (I Intereclesial – Vitória, 1975). Elas traduzem uma nova experiência eclesial a partir dos países latino-americanos e caribenhos, alicerçada no sangue de muitos mártires que seguiram Jesus no compromisso com a justiça e com a vida plena para todos e todas.

As CEBs têm contribuído em vários países da América Latina e do Caribe na transformação da sociedade, gestando lideranças nos mais diferentes espaços de participação política. São sementeiras de agentes de transformação.

As CEBs, com um papel protagônico, têm colaborado na mudança do rosto das Igrejas locais e influenciado as Conferências Episcopais Latino-americanas e Caribenhas na perspectiva de construção de uma Igreja Povo de Deus de acordo com os documentos do Vaticano II.

As CEBs, no seguimento de Jesus de Nazaré, empenham-se na construção de um outro mundo possível e urgente e que antecipe o Reino de Deus na história.

Benedito Ferraro. PUC-Campinas. Texto original português.

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