Sumário
1 Emergência da justiça na ética sexual
2 Emerge na bioética a hermenêutica da justiça
3 A biotecnologia
4 A instabilidade global: militarização, migração, crises ecológicas e a necessidade de uma nova ordem mundial (legal)
5 Horizontes novos na teologia moral fundamental
6 Temas (ignorados) que necessitam atenção para uma nova ordem mundial: a raça, o diálogo inter-religioso e a igualdade
7 Referências bibliográficas
1 Emergência da justiça na ética sexual
Durante os últimos 50 anos, percebeu-se um deslocamento antropológico fundamental na teologia moral: do pessoal para o social. Foi um deslocamento extraordinário, possibilitado pela introdução da justiça hermenêutica global para as áreas da ética sexual e da bioética.
A hermenêutica da ética sexual focava, em geral, a castidade, virtude que basicamente dizia respeito ao indivíduo antes que tivesse relação sexual com outra pessoa e só considerava aquelas relações que são maritais. Portanto, a ética sexual não tratava do relacionamento, mas era preparatória. Enquanto, assim, a virtude regulamentava somente a conduta dos que já estavam dispostos a ela, mais recentemente os teólogos morais começaram a se interessar por uma virtude que se concentrasse menos na pessoa individual e mais nas relações. Esta decisão, tomada sobretudo por feministas, de introduzir a justiça na ética sexual foi inovadora.
Primeiro e principalmente, a introdução da justiça na ética sexual nos levou à questão da “igualdade de gênero” (gender equity), e esse tema vai nos acompanhar pelos próximos cinquenta anos, enquanto lidarmos com os temas concernentes à violência sexual e/ou à violação. Suscitou também a questão se a “complementaridade de gênero” deveria estar no centro do ensino moral referente às relações conjugais. A questão dos “direitos das mulheres” permanecerá e emergirá ainda mais como tema central de nosso tempo.
O desenvolvimento destes direitos e movimentos vai mudar radicalmente nossas noções de gênero, bem como nossa compreensão do masculino e do feminino, enquanto surge a pergunta se as próprias descrições dos dois vão se manter. Além disso, a inteira compreensão da família e do compromisso, junto com a ideia do matrimonio como associação, deverá ganhar mais maturidade enquanto as questões da igualdade de gênero continuarem emergindo.
Segundo, a discussão sobre a homossexualidade hoje está mudando, visto que a questão da sexualidade de uma pessoa é, cada vez mais, adjudicada pelos temas da justiça e da igualdade. A questão já não é o que a pessoa homossexual deve ou não fazer (ficar no armário, calada, ou casta – temas articulados através de uma hermenêutica de castidade); cada vez mais, agora, o tema central é como a sociedade deve tratar as pessoas homossexuais. Enquanto as cortes, as legislações e as populações votantes concederem às pessoas homossexuais mais direitos, veremos que, globalmente, o bem-estar delas estará protegido. Por expansão, serão consideradas também as pessoas transexuais, e a pergunta chave também será como a sociedade deverá tratá-las.
Como gays e lésbicas estão emergindo normalmente em nossa paisagem, de modo geral nossos conceitos mais clássicos dos estereótipos dos gêneros masculino e feminino se verão questionados, e os teólogos morais deverão considerar com muita atenção a “lei natural”, a igreja e a cultura local. Entretanto, devem se esperar modificações em relação à lei natural, mudanças que nos provoquem diminuir o rígido marco clássico da lei natural, cujo fundamento filosófico tem efeito inibidor. Enfim, o entendimento de nossa sexualidade e sua orientação começará a ser explorado de maneira nova somente quando as distinções, já problemáticas, entre homo e hétero forem vistas como socialmente construídas e inadequadas.
2 Emerge na bioética a hermenêutica da justiça
Na bioética, o deslocamento em direção à justiça se deu em duas plataformas. Primeiro, de modo geral, a bioética emergiu no mundo das economias fortes, onde as pessoas podiam pagar para ver um médico e custear seu próprio seguro. Em geral, a hermenêutica da atenção médica se desenvolvia num sistema de elite, em que a relação paciente-médico era predominante como modelo fundamental. Não obstante, essa relação determinou a bioética e também os temas concomitantes, a saber, o das decisões sub-rogadas, dos testamentos de vida, da reanimação e do uso de meios extraordinários.
Com a introdução da justiça ético-médica, conseguimos entender outros problemas da ética médica, mais urgentes que os anteriormente mencionados, sobretudo os que surgem quando nos damos conta de que a maior parte das pessoas no mundo não tem acesso a nenhum tipo de atendimento médico. As perguntas sobre o acesso ao atendimento médico se tornaram mais relevantes com o aparecimento do HIV/AIDS.
Com o HIV/AIDS, nova ética no atendimento médico emergiu como segunda plataforma, tornando-se um campo próprio, e começou-se a falar para a sociedade sobre a bioética na linguagem dos direitos humanos. A “hermenêutica dos direitos humanos” como linguagem da ética do atendimento médico está emergindo hoje em dia, mas, na realidade, formou-se em 1997, quando Jonathan Mann expôs diante dos oficiais da saúde pública uma intuição bastante reconhecida, mas até então bem pouco mencionada: “Está claro, através da história e em todas as sociedades, que os ricos têm vidas mais longevas e mais sadias que os pobres”. Mas, imediatamente depois deste comentário, acrescentou: “Uma pergunta mais importante, e que segue da proporcionalidade socioeconômica entre status e saúde, é: por que existe tal proporcionalidade”.
A pobreza, finalmente, irrompeu na paisagem bioética. A resposta dos funcionários da saúde pública aos assuntos da pobreza significou que os especialistas em ética médica necessitavam de uma hermenêutica que incluísse as questões do trabalho, da educação, da estabilidade social e política e do salário justo, além das questões de saúde. Os especialistas da saúde pública instigaram os especialistas em ética médica para que reconhecessem a utilidade crescente da linguagem dos direitos humanos para abarcar e analisar os temas vinculados à saúde como preeminentemente ligados aos indicadores sociais.
O reconhecimento da conexão entre a pobreza e a saúde passou a ser a intuição fundamental que terminou conduzindo à bioética contemporânea. Logo a linguagem da justiça deu lugar à linguagem dos direitos humanos, e isso teve impacto direto nas pessoas mais afetadas pela pandemia de HIV/AIDS. A partir disso, a comunidade global já não podia falar somente em proporcionar hospedagem para os afetados na parte sul do hemisfério global. De fato, o Brasil indicaria o caminho para se dar às pessoas infeccionadas o direito de receber o tratamento com retrovirais.
Claramente, a pergunta permanente se existe um direito universal de saúde universal agora está emergindo em alguma literatura da Índia e da África, mas não existe ainda um consenso fundacional entre os especialistas da moral quanto a esse tema. Inevitavelmente, os especialistas da ética se verão obrigados a desenvolver um modelo de saúde para o futuro, em um mundo onde a maior parte da saúde é paga do próprio bolso da pessoa. Tal modelo deverá também atender às questões financeiras (os preços, as necessidades de investigação, as tarifas) relacionadas às corporações farmacêuticas.
Enquanto avançamos rumo à saúde universal, os especialistas da ética deverão desenvolver argumentos de justiça para instigar a indústria da saúde a encontrar formas de eliminar as doenças curáveis, sobretudo no sul global. Por exemplo, não haveria mais razões para a existência de malária e tuberculose se existisse uma vontade coletiva para eliminá-las. Aqui, os fracassos respingam também sobre os especialistas da ética, porque não souberam liderar uma campanha contra essas doenças.
À medida que o mundo se tornar mais global, a justiça terá um lugar evidente também na resposta às possíveis pandemias, como na recente epidemia do vírus ebola. A decisão de simplesmente fechar as fronteiras já não é uma opção no mundo globalizado, onde a linguagem da ética da saúde pública é a justiça. No crescente mundo globalizado, a pergunta é: desenvolveremos um protocolo internacional para uma “ética pandêmica” (pandemic ethics)?
3 A biotecnologia
A justiça é, também, necessária ao desenvolvimento das questões acerca da biotecnologia. No passado, as perguntas sobre a engenharia genética nos mantinham num paradigma simples, que distinguia o ético do aético. Do mesmo modo, a distinção entre a “manipulação terapêutico-genética” e a “manipulação genética melhorada” (enhanced), mantinha esse arquétipo. Mas essa divisão não é viável, nem conceptual nem eticamente. De fato, algumas melhoras (enhancements) encontram-se exatamente nos desenvolvimentos terapêuticos (p. ex. próteses, produtos farmacêuticos).
Devemos repensar como traçar as linhas morais e perguntar-nos o que faz com que algumas melhoras sejam eticamente legítimas. Porque aqui, de novo, aconteceu uma mudança de hermenêutica. No paradigma anterior, distinguíamos a terapêutica da melhora a partir da ideia, em verdade bastante simples, de não termos permissão para fazê-la, como se, ao realizar qualquer melhora, estivéssemos “brincando de Deus”. Uma melhora em si não é um limite moral significante. As preocupações recorrentes a respeito das melhoras não concernem à categoria em si mesma, mas antes à sua relação com os recursos limitados, às prioridades sustentáveis que considerem as necessidades das pessoas mais marginalizadas, à maior igualdade entre as pessoas e, também, à possibilidade de dominação. A justiça nos ajuda a ver que as melhoras que aumentam o poder de um grupo sobre outro grupo são indicadores de possível aeticidade.
Além disso, precisamos estar atentos aos “trans-humanistas”, interessados em usar as melhoras para alterar o significado e o destino do ser humano. Precisamos revisar a antropologia, para que, por um lado, permita o uso de certas melhoras, mas, por outro lado, tenha consciência do propósito fundamental dos “trans-humanistas”: transcender a morte e negar a ressurreição corporal.
A biotecnologia, também, precisa ser examinada quanto a seu pressuposto. Na biotecnologia, muita coisa está voltada para o exótico ou o glamoroso e bem pouca coisa para as necessidades dos mais marginalizados. Numa palavra, ela tende a ser “cosmética”. Se todos os eticistas lembrarem as indústrias biotecnológicas da justica distributiva, da opção pelos pobres, dos padrões mínimos da saúde e de outros temas pertinentes dos direitos humanos, talvez logremos um mundo biotecnológico, puxado por pesquisa que vise à saúde em geral de todas as pessoas e não somente daquelas que têm dinheiro e poder para comprá-la.
Grande problema, infelizmente desconsiderado, é a crescente intrusão do “poder militar” no campo da biotecnologia. Por exemplo, o Revolutionizing Prosthetics Program, um componente da United States’ Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA), com orçamento de três bilhões de dólares, é uma agência muito bem financiada, cujas metas são primordialmente duas: tratar, curar e recondicionar os soldados feridos que perderam uma extremidade e, ao proporcionar-lhes uma prótese melhorada, preparar um superexército, “um exército robótico estendido aos soldados”. Observamos como o governo dos Estados Unidos, ao fornecer próteses bem sofisticadas para os veteranos que voltaram feridos, responde às necessidades e ao sofrimento atuais dos soldados, para logo montar um exército mais forte e mais eficiente no futuro. Este duplo propósito é o modus operandi fundamental do DAPRA: o incentivo para desenvolver próteses para os feridos é criar, em longo prazo, um exército robótico indomável.
4 A instabilidade global: militarização, migração, crises ecológicas e a necessidade de uma nova ordem mundial (legal)
Os especialistas da ética não acompanharam o crescimento do complexo industrial militar. A venda de armas é uma indústria gigantesca, que a maior parte dos especialistas da ética não soube examinar. Essas vendas são problemáticas não somente num mundo de estados-nações, mas, muito mais ainda, num mundo de governos e organizações terroristas múltiplas.
Além disso, assim como o exército aproveita a situação dos veteranos para desenvolver um exército robótico, ele está entrando rapidamente em outros campos na crescente globalização do mundo. Essa crescente militarização tem que ser examinada, porque seu aceso à tecnologia se desenvolve exponencialmente.
Por exemplo, “as forças policiais das áreas urbanas maiores” são progressivamente militarizadas com armas sofisticadas para o controle de multidões, ameaçando as liberdades civis dos cidadãos. Essas capacidades tecnológicas foram também usadas por estados para escutar ilegalmente as comunicações de outros governos soberanos, de tal forma que os escândalos de espionagem se tornaram lugar comum.
De modo similar, não se examinou “a militarização do espaço”, nem a questão da privacidade das pessoas. A presença dos drones em qualquer lugar aeroespacial é uma indicação clara da militarização do planeta e de sua capacidade para tomar decisões baseadas não na lei, mas no poder. Só os drones (e em particular sua efetividade em matanças seletivas e assassinatos) já requerem que os especialistas da ética elaborem, urgentemente, ferramentas para avaliar a legitimidade moral dessas estratégias militares.
A expansão militarista corre em paralelo com o “movimento migratório” e, além disso, os países com exércitos mais fortes tendem a ter fronteiras mais fortes, de modo que a migração acontece em outros lugares, em nações que recebem os migrantes sem poder oferecer uma solução para tais movimentos migratórios. A migração de pessoas gerada pelo conflito civil, pelas economias em depressão, pela perseguição religiosa ou política ou pelos desafios ambientais deixa o mundo com uma instabilidade cada vez maior. Para resolver essa instabilidade perigosa, as nações, em um número cada vez maior, consideram as “intervenções humanitárias” justificadas, ainda que tenham evoluído até a “responsabilidade de proteger”.
O número de refugiados e das pessoas sem cidadania continua aumentando, aproximando-se de figuras que existiam ao final da Segunda Guerra Mundial, e agora as pessoas deslocadas são confinadas por períodos maiores em áreas muito remotas, que não apresentam solução adequada.
Essas situações são exacerbadas pelo colapso continuo de nossa ecologia, que, do mesmo modo que o tema da migração, passa despercebido. A necessidade de desenvolver economias adequadas continua entravando a questão de responder às crises ecológicas. As pessoas e os governos se interessam muito mais pelo emprego e pela economia sustentável do que pela questão se nosso abuso do meio ambiente é sustentável. Não obstante, arriscamos nosso futuro ecológico apesar das advertências: o derretimento da capa de gelo, elevando os níveis do mar, a queima de fluorocarburetos, o corte de madeira, o problema climático universal experimentado nas secas, nos furacões e nos tufões cataclísmicos. A decisão de olhar somente para o sustento da economia, sem considerar a sustentabilidade do meio ambiente, é o tema que mais urge uma conversão internacional.
Neste panorama, todos os que estão observando o desenlace dos desastres ecológicos temem estar entrando num mundo onde o poder militar vai proteger aqueles a quem os líderes do mundo escolhem como merecedores de proteção.
Pois bem, estamos no século XXI, marcado por um expansionismo e uma instabilidade global como nunca antes se viu. De alguma maneira, isso nos recorda o expansionismo da Europa do século XVI, na conquista das Américas e no comércio com o Oriente. Naquele tempo, as ambições nacionais incontroladas e motivadas pelo poder militar talvez passassem despercebidas se pessoas como Francisco Vitoria, Bartolomé de las Casas e Francisco Suarez não tivessem apresentado uma visão diferente.
Temos necessidade de eticistas da lei internacional e da economia internacional. Isso com o fim de reformar o discurso por maior cooperação, um equilíbrio do poder, o restabelecimento da lei acima do poderio e uma nova visão da ordem global, que saiba valorizar e priorizar a intuição principal da opção pelos pobres. A participação e representação internacional tem que idealizar uma distribuição mais justa dos recursos e da riqueza necessários para uma vida adequadamente considerada digna.
Cabe aos especialistas da ética trabalhar para que as pessoas, tanto as do mundo como as da Igreja, saibam diminuir as suspeitas, os prejuízos e os medos, para poder cultivar confiança, respeito, tolerância e cooperação. Para isso, uma cooperação global maior entre os moralistas católicos é muito importante para modelar a cooperação em que o mundo precisa se engajar.
5 Horizontes novos na teologia moral fundamental
O campo da teologia moral fundamental tem sido afetado pela enorme mudança do perfil antropológico da pessoa. Essa era vista, anteriormente, como sujeito singular responsável por seus pecados e por sua salvação. Hoje, porém, é entendida como constitutivamente social e fundamentalmente relacional. Não nos é possível imaginar uma pessoa que não se relacione com outra ou conosco.
Esta mudança na visão da pessoa como constitutivamente relacional conectou-se com o aparecimento da justiça como virtude mais importante no discurso teológico, como foi comentado nos parágrafos anteriores. Esta virtude era pensada normalmente a partir da ética social, ainda que recebesse alguma atenção na teologia moral fundamental.
A guinada para a virtude da justiça em todos esses campos emergiu como resposta à irrupção do sofrimento no discurso teológico. Esta irrupção aconteceu primeiro pela introdução da teologia da libertação na América Latina. Depois, outros apropriaram-se dela, sobretudo na África, e também teólogos e feministas afro-americanos. Responder ao sofrimento passou a ser o tema decisivo em toda a ética teológica, fazendo uma ponte entre as disciplinas da bioética, a ética sexual, a ética social e a teologia moral fundamental.
Por esta razão, nos faz muita falta uma teologia moral fundamental na qual os temas do pecado e da santidade não sejam pensados a partir do indivíduo, e sim a partir do relacional e coletivo. As noções do pecado e da graça, tão frequentemente analisadas em relação às ações do individual, já não são adequadas. A linguagem do pecado social não deve ser vista como secundária, mas deve ser posta em primeiro plano. Além disso, necessitamos pensar as virtudes e os mandamentos desde seu aspecto social, e a ação mais na perspectiva da participação, mais institucional e estrutural.
Junto com isso, carecemos também de uma noção muito mais robusta da consciência, mais atenta e vigilante às necessidades e ao sofrimento no mundo. Devemos desenvolver dentro da Igreja uma valorização da consciência como a que foi reconhecida no Concílio Vaticano II, e precisamos inculcar nos leigos e na hierarquia um apreço da consciência que não seja conhecida primeiramente por sua capacidade de discrepar, mas por sua capacidade de ser responsiva socialmente. Também necessitamos de uma noção da consciência que vá além da “noção medieval da consciência como ato”: precisamos de uma ideia que represente a consciência como vigilância moral durável e sustentável que está atenta às necessidades dos tempos. Aqui nos urge pensar em maneiras para formar a consciência cristã e, neste sentido, a recuperação da ética da virtude deveria ajudar os especialistas a encarar os temas emergentes em torno da formação contemporânea da consciência cristã.
Precisamos desenvolver uma teologia moral que seja global, que saiba valorizar a natureza relacional da pessoa e que mantenha a influência formativa das forças culturais e sociais. Esta nova teologia moral tem de ser fundamentalmente bíblica. Já passaram 50 anos desde a famosa admonição de Optatam totius 16, que nos instruiu ser mais bíblicos. Esses passos são importantes, mas necessitamos de mais especialistas da ética, especialmente católicos, para enriquecer-nos com uma nova ética bíblica, que abrace a dupla competência da exegese bíblica e da hermenêutica ética complementar, sendo assim capaz de aplicar exigências bíblicas à vida contemporânea. Esta dupla competência talvez exija que os especialistas da ética colaborem mais extensivamente com os teólogos bíblicos para lembrar-lhes que, no passado, seus intentos em realizar uma ética bíblica sem uma hermenêutica ética adequada mostraram que devem procurar uma colaboração mais extensiva com a ética teológica.
Enquanto buscamos uma hermenêutica ética apropriada, os escritores contemporâneos da ética bíblica assinalam instrutivamente a ética da virtude, porque ela representa o tipo de instrução que os evangelistas e Paulo oferecem às comunidades de fé. Deste modo, a ética da virtude poderia nos ajudar a articular os traços virtuosos que se devem encontrar no discípulo contemporâneo de Cristo. Podemos aqui imaginar como a valentia, a misericórdia, a vigilância e a solidariedade estão intimamente conectadas com o chamado evangélico para trabalhar na construção do Reino de Deus.
Contudo, esta nova teologia moral deve ser teológica. A Igreja necessita em suas dioceses e paróquias dessa nova teologia moral. Deve encarar claramente os temas da graça e do pecado, da criação e da redenção, dos mistérios da encarnação, da Trindade e da promessa da liberação escatológica; do chamado para o discipulado e para o Reino de Deus. E, finalmente, tem que encarar os temas das virtudes de fé, esperança e caridade.
Esta guinada para a antropologia teológica foi acompanhada com uma mudança no desenvolvimento da ética da virtude. O desenvolvimento da ética da virtude requer que não somente desenvolvamos as virtudes que adequadamente se configurem com a imagem de Cristo, mas também que tenhamos consciência metódica de como essa ética proporciona normas e funciona como guia concreto e prudente. Ou seja, se as virtudes nos dizem como ser, também nos ensinam o que fazer.
Simultaneamente, necessitamos ter atenção às estruturas sociais em que vivemos e perguntar-nos se essas estruturas são adequadamente virtuosas ou problematicamente viciosas. A linguagem do pecado social, por extensão, deve nos provocar a observar as estruturas sociais para avaliar o que inibe o pecado e o que inspira a virtude. Falta-nos muito trabalho neste sentido.
Esta guinada para a ética da virtude, com a concomitante compreensão mais social da pessoa e da consciência, nos coloca uma pergunta emergente com respeito ao modelo clássico das quatro virtudes cardeais e se esse modelo é adequado para pessoas cujas virtudes não devem levá-las à perfeição, mas a melhorar suas relações. Por exemplo, assim como a justiça nos pede dar a cada um o que merece e a ser imparcial na hora de julgar as pessoas, a fidelidade nos pede reconhecer que a amizade, a família e o companheirismo (e outras relações mais íntimas) exigem uma fidelidade na qual trataremos as pessoas não com imparcialidade, mas com parcialidade, precisamente porque necessitamos manter essas relações especiais. O autocuidado poderia acompanhar a justiça e a fidelidade. Mas o autocuidado só se trona importante quando passamos a ser conscientes da justa relação, porque com a justiça nos damos conta de que devemos ser imparciais para com todos, dando a cada um o que merece. E, com a fidelidade, nos damos conta de que devemos nutrir as relações particulares, especiais e parciais com os amigos, a família, os vizinhos, os colegas e os concidadãos; e com o autocuidado, vemos que somos responsáveis por nós mesmos assim como somos responsáveis também com o estrangeiro e o amigo. A virtude da prudência nos ensina como tratar dessas virtudes, especialmente quando competem entre si. Serão estas, então, as novas virtudes cardeais?
Ainda nascente, a ética bíblica sublinha o impacto enorme que a misericórdia exercia nas primeiras comunidades. A misericórdia, entendida como a vontade de entrar no caos do outro, teve uma relação nítida com o crescimento do cristianismo, formando a marca determinante da primeira comunidade cristã. Mais recentemente, outros estudiosos assinalam a humildade, em particular uma “humildade epistemológica”, que nos faz considerar a comunidade, não a nós mesmos, como o centro de nosso mundo.
Uma terceira virtude que está recebendo muita atenção é a solidariedade, virtude que não se identifica facilmente com a tradição. A solidariedade emerge quando sabemos valorizar o fato de estarmos num mundo global. Enquanto a prudência instrui a justiça para que saibamos dar o quê a cada um, a solidariedade descreve como, na ordem da justiça, devemos estar juntos, atentos aos que estão nas margens ou em situações mais precárias.
Enquanto construímos uma ética teológica global, baseada na Bíblia, esperamos ver nas virtudes, tanto nas antigas (misericórdia, humildade, justiça e prudência) como nas novas (fidelidade, autocuidado e solidariedade) muita coisa que nos possa ajudar na formação das consciências no século XXI.
6 Os temas (ignorados) que necessitam atenção para uma nova ordem mundial: a raça, o diálogo inter-religioso e a igualdade
Essas virtudes nos devem ajudar a valorizar e a apreciar o número imenso de desafios que se nos apresentam no horizonte, não só os da ecologia ou do militarismo, mas também os que vêm de nós mesmos.
Quando começamos a compreender-nos num mundo global, cada vez mais interessado no diálogo transcultural, precisamos atentar aos temas que podem nos separar ou alienar e desfazer os passos que levam à solidariedade. Estes três temas são raramente discutidos pelos especialistas de ética e agora têm que emergir como questões urgentes.
Sabemos que cada cultura conta com, pelo menos, um grupo de pessoas que por seu nascimento ou por sua raça são objeto de discriminação. A capacidade humana para o preconceito é notável, e esse preconceito, muitas vezes, se desenvolve socialmente, e eventualmente se institucionaliza em estruturas perniciosas e pecaminosas. Em muitas sociedades, a obscuridade da pele é a medida permanente do preconceito. Na ética teológica – mesmo se alguns especialistas como, por exemplo, Shawn Copeland, Jean Marc Ela, Bryan Massingale e Agbonkhianmeghe Orobator desafiaram outros para encarar este tema moral de longa data – os especialistas da ética têm que abordar muito mais claramente essa questão da raça, tanto nacional como globalmente.
De modo similar, a intolerância religiosa é um desafio permanente, mais recentemente os esforços no discurso da teologia comparativa mostram o valor do diálogo inter-religioso. É notável que os especialistas católicos da ética não tenham fornecido uma contribuição significativa a esse discurso.
Finalmente, a questão da desigualdade socioeconômica, um tema que está em primeira linha para milhões de pessoas, somente agora está emergindo como merecedor de atenção.
James F. Keenan S.J. – Boston College, Chestnut Hill, US. Texto original Inglês
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