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Teologia e Cultura

Sumário

1 Introdução

2 Da “cultura” para as “culturas”

3 O impacto do Vaticano II

4 Teologia da inculturação e teologia intercultural

5 Teologia do Povo ou da Cultura

6 Evangelii Gaudium e Teologia do Povo

7 Referências

1 Introdução

Em fevereiro de 2017, um núcleo importante de teólogos e teólogas católicos da Iberoamérica se reuniu no Boston College (Massachusetts, EUA) para discernir os sinais dos tempos em uma época de globalização, interculturalidade e exclusão. As migrações, a presença da diversidade das culturas e a vida nas margens da sociedade dos mais pobres permitiram discernir que a relação entre teologia e cultura, tão antiga como a história do Apocalipse, tinha que retornar à cena do trabalho teológico com uma vitalidade renovada.

 A Declaração de Boston insistiu na transição da pluriculturalidade para a interculturalidade no campo sociocultural com a correspondente elaboração de teologias proféticas inculturadas e a construção de processos interculturais de reconhecimento da alteridade e pluralidade para a reflexão teológica. A Declaração é explícita em seu desejo de colaborar com o programa do Papa Francisco de promover uma “cultura de encontro” desde as periferias, autênticos lugares teológicos, e desde uma Igreja pobre para os pobres. O texto aqui proposto sob o título de Teologia e Cultura faz parte desta preocupação da Declaração de Boston que aborda a transição do monoculturalismo para o pluralismo cultural no imaginário eclesial, o impacto do Vaticano II para a mudança cultural da pastoral e a teologia da igreja, a inculturação e a interculturalidade como linguagens teológicas para a relação entre teologia-cultura na América Latina e o significado da Teologia do Povo, também denominada Teologia da Cultura, na reflexão latino-americana e no magistério  do Papa Francisco.

2 Da “cultura” para as “culturas”

A relação entre teologia e cultura é tão antiga quanto a História da Revelação (MIRANDA, 2001, 15-19). A fé não é dada de forma pura, toda fé é expressa em uma linguagem cultural-religiosa. Não é surpreendente que a pluralidade das leituras da Bíblia hoje incorpore pesquisadores e teólogos da cultura, pois incorpora, por exemplo, leituras estruturalistas, psicanalíticas, feministas ou ecológicas (SHORTER, 1988, 104-134). A leitura crítica-cultural da Bíblia nos interessa para descobrir como o plano de Deus é cumprido através da interação com as culturas. A opinião comum de considerar a Bíblia como um texto culturalmente etnocêntrico não tem muito apoio, já que o povo judeu e suas tradições foram o produto de uma interação intercultural notável (SHORTER, 1988, p. 106). A “catolicidade” da expansão do cristianismo primitivo se origina no impulso do Espírito para traduzir a narrativa cristã para diferentes línguas e culturas, vivendo a identidade na diversidade (VON SINNER, 2012, p. 58). Sem Paulo e sua missão aos pagãos, a “seita messiânica dos Nazarenos” teria permanecido como uma seita de renovação dentro do judaísmo destinada a desaparecer ou ser reabsorvida pelo judaísmo rabínico algumas gerações mais tarde (DUNN, 2017, 139).

A referência a Pablo não é gratuita. Rahner, em sua notável Interpretação Teológica Fundamental do Vaticano II, escreveu que a passagem do cristianismo judeu para o cristianismo gentil significava a transição para uma situação   histórico-cultural e teológica essencialmente nova (RAHNER, 1979, 720-724). No artigo mencionado, Rahner sustenta que a história da Igreja pode ser lida desde três grandes períodos. O primeiro deles, muito breve, era o judeu-cristão; o segundo, o da Igreja que existe em uma certa área do helenismo e da civilização europeia; O terceiro período, o da Igreja Mundo (World Church). O Vaticano II supôs uma ruptura na Igreja apenas comparável àquela que significava a passagem da Igreja judaico-cristã, qe pregava o evento salvífico cristão da morte e ressurreição de Jesus Cristo em Israel e para Israel, para a Igreja que cresceu no campo de paganismo O novo tempo, inaugurado pelo Vaticano II, é a virada de uma igreja ocidental para uma Igreja Mundo. Em nossos dias, o Papa Francisco, citando São João Paulo II, referiu-se à beleza de uma Igreja com um “rosto multifacetado” e a atração de sua “harmonia multiforme” (FRANCISCO, EG, 2013, nº 116-117).

Um conceito de cultura, definido por Bernard Lonergan como “classicista”, explica essa miopia etnocêntrica que durou dezesseis séculos. O Vaticano II passou de uma noção classista de cultura para uma noção pluralista e este passo determinou a abertura à diversidade e à pluralidade, da “cultura” em singular às “culturas” em plural. Com efeito, a noção “classicista” de cultura era normativa, única, universal, plausível para ser implantada em qualquer lugar em uma forma cultural única e perfeita. Tudo o que estava fora desse molde era a barbárie (LONERGAN, 1988, 293). As exigências de outras histórias, de outras culturas, de outras experiências religiosas, foram anatematizadas (SHORTER, 1988, 167). “A fé é a Europa e a Europa é fé” (Hilaire Belloc). O Syllabus de erros contra o liberalismo moderno (1864), o Vaticano I e sua rejeição frontal do racionalismo e a defesa da infalibilidade do Papa (1869), a condenação do modernismo por Pio X (1907) são boas expressões de uma teologia um classicista que se murmurou contra a consciência histórica emergente, mas não conseguiu resistir ao seu ataque pluralista. Diante do espírito “classicista” monocultural, o espírito pluralista abriu espaço para o reconhecimento e legitimidade da multiplicidade das tradições culturais. A evangelização teve que encontrar os meios de fazer das culturas o veículo de comunicação da mensagem cristã e esse caminho era o Concílio Vaticano II (LONERGAN, 1988, 348).

3 O impacto do Vaticano II

O reconhecimento do pluralismo cultural tem, no entanto, uma breve história antes do Vaticano II. De acordo com Aylward Shorter, no discurso do Papa Pio XII às Pontifícias Obras Missionárias, em 1944, está a primeira declaração oficial da Igreja reconhecendo a pluralidade das culturas. Mas foi uma declaração ambígua. Pio XII continuou a sustentar que o objetivo das missões era produzir um catolicismo monolítico. Um pequeno avanço foi feito na Encíclica Evangelii Praecones (no caminho para promover o trabalho missionário), de 1951, onde pede respeito a outras culturas. No final de seu pontificado, em 1958, sua ideia de cultura evoluiu para um conceito moderno e empírico que será herdado por João XXIII (SHORTER, 1988, 183-186).

O Papa João XXIII tem duas intervenções significativas. O primeiro deles foi na Encíclica Princeps Pastorum no apostolado missionário de 1959. Ele escreve que “a Igreja não se identifica com nenhuma cultura, nem mesmo com a cultura ocidental, embora sua história esteja tão ligada a ela. Porque sua própria missão é de outra ordem: a da salvação religiosa do homem “(n.10). A segunda intervenção significativa, embora não seja nova na teologia da Igreja, enfatiza a distinção entre a “substância da fé” e o “modo pelo qual ela é expressa”.

 No discurso de abertura do Concílio Vaticano II, em 11 de outubro de 1962, ele formulou que “uma coisa é o depósito da fé, isto é, as verdades contidas na doutrina revelada e outra maneira de expressar essas verdades, preservando , no entanto, o mesmo sentido e significado”. Aqui está de fundo a fórmula tomista que afirma que o ato de fé do crente não para no enunciado, mas na realidade enunciada (São Tomás de Aquino, S.Th., 2-2, q.1, a.2, ad 2). ). Mas essa distinção já marcou a diferença com a teologia tridentina que não distinguia a verdade eterna e a formulação histórica contingente (MIRANDA, 2001, p. 24). Com essa distinção, controversa em seu tempo, João XXIII abriu a possibilidade de explorar a influência do condicionamento cultural, da história e da linguagem, nas expressões de fé.

As contribuições inovadoras do Concílio têm muito a ver com a quebra da hegemonia da compreensão classicista da cultura, em termos de Lonergan e o início difuso da compreensão da pluralidade de culturas e religiões. As Constituições sobre a Sagrada Liturgia e sobre a Igreja no Mundo; os Decretos sobre o Ecumenismo e a atividade missionária da Igreja; e a Declaração sobre as relações com as religiões não-cristãs testemunha esse trânsito tênue. Mas uma “teologia da cultura”, na opinião de Andrés Tornos, não foi  “resolvida completamente” porque a contribuição do Vaticano II sobre a relação entre fé e culturas, em vez de uma definição, foi a descoberta de um campo de ” tarefas que nunca foram formuladas, de necessidades pouco presentes até então na consciência eclesial “(TORNOS, 2001, 91-104). Teríamos que esperar o Sínodo dos Bispos sobre a Evangelização de 1974, para que a linguagem teológica sobre as culturas adquira consistência. Tornos reconhece que Gaudium et Spes (GS) foi o documento que surcou esse “campo de tarefas dificilmente formuladas”.

GS expressamente dedica o segundo capítulo da segunda parte ao tema da cultura. Elabora um conceito de cultura, pronuncia-se sobre o compromisso da Igreja com o progresso cultural da modernidade e deixa abertas as questões sobre a pluralidade e a relatividade das culturas provocadas pelos processos de descolonização e as contribuições da antropologia (TORNOS, 2001, 93-104). O número 53 é o princípio hermenêutico. Em 53 (a), um conceito humanista de cultura é desenvolvido, uma vez que a pessoa “alcança um nível verdadeiro e totalmente humano” “cultivando bens e valores da natureza”. Em 53 (b) passamos a um conceito sócio-histórico e entendemos a cultura em “um sentido sociológico e etnológico”, isto é, como “estilos de vida diversos e formas diversas de organizar os bens da vida”. Neste sentido, fala-se de “pluralidade de culturas”. O fator determinante neste conceito social histórico é que é reconhecido que pessoas sem sua cultura não seriam quem são e que essa cultura está enraizada em uma história.

“Nenhuma cultura é, portanto, apenas um conjunto supra-histórico de conhecimentos neutros, sobre os que se pode julgar desde fora da história de experiências em que se concretizaram, desde fora dos estilos de convivência social aos quais essa história de experiências  conseguiu conduzir” (TORNOS, 97).

As implicações teológicas desta compreensão da cultura podem ser vistas na GS 58: A Revelação de Deus, desde as idades mais remotas até sua plena manifestação em Cristo Encarnado, falou de acordo com a cultura de cada povo, a igreja é uma comunidade multiforme de fiéis, não está ligada de forma exclusiva e indissolúvel a qualquer cultura, raça ou gênero de vida em particular e pode entrar em comunhão com as diferentes civilizações, com as quais há um enriquecimento mútuo. A Boa Nova de Cristo renova a vida e a cultura do homem caído, purifica e eleva continuamente a moralidade do povo, fecunda as qualidades e tradições espirituais de cada povo.

Para uma leitura latino-americana da influência da GS, é aconselhável ler o artigo de Juan Carlos Scannone, Influjo de Gaudium et Spes en la problemática de la Evangelización de la Cultura en América Latina- Evangelización, Liberación y Cultura Popular, de 1983. Para a teólogo argentino, o principal contributo da GS foi a mudança decisiva em direção ao homem, a sociedade e as culturas da América Latina, que motivou uma nova forma de reflexão teológica. A teologia da libertação e a evangelização das culturas, as principais expressões da recepção do Vaticano II na América Latina, incorporadas nas Conferências Episcopais de Medellín (1969) e Puebla (1979), nasceram sob a influência direta ou indireta da Constituição Pastoral Gaudium et Spes e, concretamente, do novo entendimento da “cultura” que a Constituição elaborou em uma perspectiva antropocêntrica, histórica e integral.

Já foi advertido que haveria que esperar ao IV Sínodo dos Bispos de 1974 e à Exortação Evangelii Nuntiandi (EN) de 1975 para que a teologia da cultura adquira densidade. Em EN, pela primeira vez, um documento da Igreja adotou de forma decidida e unitária a abordagem sociológico-antropológica para se referir às relações entre o Evangelho e as culturas e desenterrar o oculto ao longo dos dezesseis séculos: que a ruptura entre o evangelho e a cultura é um drama ( EN 20). A evangelização deve atingir as raízes da civilização e das culturas, o Evangelho não se identifica com uma cultura, que os “trabalhadores da evangelização” são as igrejas locais que falam uma certa linguagem, são consequência de uma herança cultural, de uma visão do mundo, de um passado histórico e de um substrato humano específico (EN 62) e resgata a importância da religiosidade popular que expressa, bem orientada, uma certa “sede de Deus que só os pobres e os simples podem experimentar” e um caminho de verdadeiro encontro com Deus em Jesus Cristo (EN 48).

O legado da Evangelii Nuntiandi permanece válido para a América Latina e para a Igreja Mundial. Em março de 2017, o Papa Francisco falou sobre isso como “o maior documento pastoral do período pós-conciliar” em um colóquio com o clero italiano sobre a cultura da diversidade em face da tentação de uniformidade (FRANCISCO, 2017).

4 Teologia da inculturação e teologia intercultural

Se GS marcou uma viragem decisiva em direção ao homem, a sociedade e a cultura, ao  propor um conceito de cultura histórico-social, o conceito de inculturação pode ser entendido como uma “virada dentro da virada”, uma vez que representou a formulação de um paradigma teológico para o entendimento das relações de fé com as culturas. Hoje em dia este paradigma está sob revisão pela força crítica do policentrismo cultural e teologias interculturais e descolonizadoras (TAMAYO-ACOSTA de 2003, 31-49).

A origem do conceito é o neologismo cunhado por Joseph P. Masson, jesuíta Universidade Gregoriana, que em 1962 escreveu sobre a necessidade urgente do catolicismo para ser inculturado em uma variedade de formas (SHORTER, 1988, 10). Masson se baseava no conceito antropológico de “enculturation“, desenvolvido por Melville Herskovits, em 1952, para se referir ao processo de socialização do indivíduo em uma cultura. Este conceito deslocou os termos “adaptação”, “assimilação”, “alojamento”, “indigenização” utilizados oficialmente pela Igreja desde 1950 até o Magistério de João Paulo II para descrever a relação entre fé e cultura (s). Não encontramos o termo “inculturação” em qualquer documento do Vaticano II nem na Evangelii Nuntiandi. Os bispos da África e Madagascar no quarto Sínodo de 1974 pediram superar a “teologia da adaptação” por uma “teologia da Encarnação”, mas não usaram o neologismo (TEIXEIRA, 2001, 84).

Um dado significativo para a incorporação e expansão do conceito na linguagem eclesiástica e na elaboração de um paradigma teológico foi a Congregação Geral XXXII da Companhia de Jesus (1974-1975), seu órgão máximo de governo, que emitiu um decreto sobre a inculturação da fé. Em 15 de abril, 1978 Pedro Arrupe, Superior Geral dos jesuítas, enviou uma carta a toda a Companhia de Jesus em um esforço para encorajar a promoção mais ampla de inculturação no trabalho de evangelização da ordem. Arrupe define a inculturação como

“A encarnação da vida cristã e a mensagem cristã em um contexto particular, de tal forma que essa experiência não só se expressa através dos elementos próprios da cultura em questão (que não pode ser mais do que uma adaptação superficial), mas torna-se o princípio inspirador, normativo e unificador que transforma e recria essa cultura, originando assim uma nova criação” (ARRUPE, 1978).

João Paulo II acolheu o termo pela primeira vez em seu discurso aos membros da Comissão Bíblica (1979), e depois na Exortação Apostólica Catechesi Tradendae (1979). Deve-se dizer que, mesmo nestas duas referências de João Paulo II, os termos “aculturação” e “inculturação” aparecem indistintamente, mostrando que o conceito estava “em construção”. Na relação final do Sínodo de 1985, o conceito aparece mais elaborado, diferente da simples adaptação exterior da fé, “significa uma íntima transformação de autênticos valores culturais  por sua integração no cristianismo e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas humanas “(MIRANDA, 2001, p. 31). A Comissão Teológica Internacional elabora o documento A fé e a inculturação, em 1988 e, finalmente, em Redemptoris Missio, de João Paulo II (dezembro de 1990), pode ser encontrada uma síntese teológica bastante completa. Entende-se, então, que a Quarta Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe em Santo Domingo (1992), possa falar explicitamente da “teologia da inculturação” e  que as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil de 1999-2002 esclareçam brevemente o que se entende por evangelização inculturada (MIRANDA, 2001, p. 34).

Após o “amanhecer eclesial” que a teologia da inculturação significou por duas décadas, o paradigma está em questão. A filosofia intercultural, o surgimento de teologias locais críticas e a epistemologia descolonizada que emergiu do sul levantaram sérias questões. O filósofo cubano Raúl Fornet-Betancourt colocou na agenda a necessidade da transição da inculturação para a interculturalidade (FORNET-BETANCOURT, 2005). Seguimos seus motivos aqui.

O autor reconhece que o termo “inculturação” descreve todo um programa de renovação teológica, pastoral, litúrgica e catequética e que a teologia da inculturação reorientou a presença do cristianismo na sociedade e deu início a uma nova maneira de entender a relação entre evangelho e culturas, bem como a relação entre o cristianismo e outras religiões. Objeta, no entanto, que o programa da inculturação, nos novos tempos, reflete um projeto interventor nas culturas de tal forma que elas perdem seus direitos de interação já que prevalece a consciência da superioridade do cristianismo, a falta de um autêntico respeito pela alteridade e uma deficiência na reciprocidade. Outra observação adicional é que a inculturação instrumentaliza a pluralidade cultural. Não é uma abertura franca para a alteridade porque o encontro com ele já está planejado, sabe antecipadamente o que deve acontecer e qual deve ser o objetivo em que deve ser alcançado. Instrumentaliza a diversidade porque a coloca à sua disposição. É uma forma de neocolonização.

A interculturalidade, por outro lado, é resignação, renúncia. É uma atitude que não é projetada como uma “missão” para transmitir ao outro o próprio de si mesmo, mas como uma “renúncia” permanente do próprio para que possa surgir em nós o contexto de acolhida no qual o encontro com o outro é experiência de convivência e de busca pela verdade.  As implicações para uma teologia da cultura intercultural envolvem uma série de “renúncias”: a renúncia à sacralidade da origem da própria tradição, isto é, dialogar criticamente com a história de sua tradição de fé e reconhecer a relacionalidade da mesma, que a origem não é absoluta, mas faz parte de uma cadeia de eventos; a renúncia a converter a própria  tradição em um itinerário seguro e exclusivo; a recusa de ampliar as “zonas de influência” para estar presente na sociedade como parte de um projeto de convivência em um fluxo relacional simétrico sem dissolver as identidades em misturas sincréticas ou relativistas.

A razão fundamental para este conjunto de renúncias é o respeito pelo mistério da graça que está presente nas culturas e na pluralidade das religiões; O respeito que anula a pretensão de conquistar ou influenciar e se expressa como uma escuta que é abandonada à alegria da experiência da riqueza da pluralidade.

Porta-vozes da teologia da inculturação na América Latina, como Paulo Suess e Diego Irarrázaval hoje têm como preocupação central a “questão intercultural” por causa de seu potencial emancipatório de atrasos etnocêntricos e colonizadores (Suess 2007; Irarrázaval, 2002). Aloysius Pires, um teólogo jesuíta do Sri Lanka, é um crítico da primeira hora de inculturação. Ele afirma que o conceito de inculturação baseia-se na distinção latina entre religião e cultura, algo impensável no sul da Ásia porque pensa que uma religião cristã sem cultura está inserida em uma cultura asiática sem religião não-cristã (PIERIS, 1991). Michael Amaladoss, um jesuíta da Índia, acredita que é preciso ir “além da inculturação”, um “belo princípio teológico” que não oferece uma imagem verdadeira do que acontece quando o evangelho encontra-se com uma cultura porque o modelo é de adaptação de um evangelho preexistente que, de certa forma, para se fazer cristão, um deve se tornar  semítico (AMALADOSS, 2005, 146-147).

Esses paradigmas são realmente excludentes? A crítica intercultural oferece medidas corretivas para uma inculturação que viola esse mistério da graça referido por Fornet-Betancourt. O desafio é interculturalizar a inculturação, tirá-la de suas distorções etnocêntricas e fazer desse encontro dialógico o espaço apropriado para a inter-fecundação em perspectiva dessa “nova criação” à qual o Padre Arrupe aludiu. A palavra mais apropriada pode ser “interculturar” ou “interculturação”, uma palavra já cunhada pelo Pe. Joseph Blomjous, em 1980, bispo de Mwanza, Tanzânia, e que foi um padre conciliar (SHORTER, 1988, 13-16).

5 Teologia do Povo ou da Cultura

As raízes teológicas do Papa Francisco são encontradas na Teologia do Povo Argentino, considerada uma corrente da Teologia da Libertação com seus próprios acentos. Outros preferem chamá-la de “teologia da cultura”, porque concebe as pessoas como criadoras de cultura (SCANNONE, 2015, 247). Seus maiores expoentes foram Lucio Gera (1924-2012), Rafael Tello (1917-2002), Justin O’Farrell (1924-1981) e permanecem Juan Carlos Scannone (1931-) e Carlos Maria Galli (1957-).

A Comissão Pastoral Episcopal (COEPAL), órgão da Conferência Episcopal Argentina, fundada imediatamente após o Vaticano II para a elaboração de um plano pastoral nacional à luz do Conselho, foi o espaço de reflexão que criou o surgimento da Teologia Popular sob a liderança de Gera e Tello. O “Documento de San Miguel”, de 1969, documento conclusivo da Segunda Assembleia Extraordinária do Episcopado Argentino, pode ser considerado o documento fundador da Teologia do Povo, especialmente a parte da Pastoral Popular que aplicou a Conferência de Medellín na Argentina. A COEPAL estava interessada na emergência dos leigos e na inserção da Igreja na história dos povos como sujeitos da história e da cultura, destinatários, mas também agentes de evangelização graças à sua fé inculturada (SCANNONE, 2014, 33-34).

Como uma das correntes da teologia da libertação chamada por Scannone como “teologia desde a práxis dos países latino-americanos”, distingue-se, em relação ao método e às ênfases temáticas, da “teologia da práxis pastoral” (Eduardo Pironio ), a “teologia desde a práxis dos grupos revolucionários” (Hugo Assman) e a “teologia da práxis histórica” (Gustavo Gutiérrez) (SCANNONE, 1982, 3-40). Quanto ao método, a teologia do povo privilegia a análise histórica-cultural e a mediação hermenêutica da história, a cultura e a religião enraizadas no discernimento sapiencial distanciando-se da análise marxista ou histórica-estrutural e suas respectivas estratégias de ação. A abordagem temática enfatiza o conceito de cultura, valoriza teológica e pastoralmente a religião do povo e a piedade popular e a opção preferencial pelos pobres.

Scannone não duvida da influência da Teologia do Povo no Sínodo dos Bispos de 1974 pelas intervenções dos bispos latino-americanos e, especialmente, pelas contribuições do bispo Eduardo Pironio, também formado no COEPAL. Da mesma forma, a influência desta teologia é evidente no Documento de Puebla, no que diz respeito à Evangelização da Cultura (DP 385-443), graças à participação de Lucio Gera, que já havia sido especialista no Vaticano II e em Medellín. O conceito de “cultura” trabalhado em Puebla é obra deste teólogo, que reinterpreta o conceito da GS 53 no sentido da teologia da cultura, acrescentando a expressão “determinado povo” ao texto conciliar. “Com a palavra cultura se indica a maneira particular como determinado povo cultivam os homens sua relação com a natureza, suas relações entre si e com Deus” (GS 53a). Esta inclusão muda o sentido de mais humanista de cultura desenvolvido na GS 53a para o sentido sociológico e etnológico que a GS 53 (b) aborda em seu terceiro parágrafo (SCANNONE, 2014, 35).

Precisaremos a categoria povo e a religião do povo nesta teologia da cultura de raízes argentinas por representar duas categorias-chave do pensamento de Francisco.

A característica distintiva desta teologia da cultura é encontrada na compreensão da categoria de “povo”. As correntes teológicas da práxis histórica e a práxis dos grupos revolucionários entenderam “povo” como classe. Distinguindo-se da sociologia marxista e explorando na história e a cultura da América Latina categorias de investigação, Lucio Gera concebeu essa categoria como povo-nação, ou seja, como a unidade plural determinada pela mesma cultura ou estilo de vida comum que se concretiza em uma vontade e decisão política de autodeterminação e auto-organização para a realização do bem comum. A vontade da solidariedade política e do querer  agir em conjunto é maior do que a diversidade e pluralidade de opiniões ou concepções sobre o bem comum. A cultura, entendida como desenho de vida, estrutura a escala de valores, a memória histórica e a projeção do futuro desejado dessa unidade plural que é povo-nação. Entre “cultura” e “pobre” há uma interação próxima, porque a cultura das pessoas é conservada e transmitida precisamente pelos pobres. (SCANNONE, 2015, 240).

A relação entre religião e cultura elaborada por Paul Tillich teve uma influência importante na teologia de Lucio Gera e na irradiação da Teologia do Povo no Magistério latino-americano. Tillich escreveu que a religião, como preocupação última, é a substância que dá sentido à cultura e a cultura é a totalidade das formas que expressam as preocupações básicas da religião. Sua fórmula é clássica: “a religião é a substância da cultura e a cultura é a forma da religião” (TILLICH, 1964, p. 42). Evangelii Nuntiandi adverte sobre a falta de sensibilidade diante da religiosidade popular, há muito considerada uma forma religiosa “menos pura e às vezes desprezada”, e chama a reconhecer seus valores que “refletem a sede de Deus que só o pobre e o simples podem conhecer “(EN 48). O Documento de Puebla insiste em que a religião do povo (religiosidade ou piedade popular) é uma coleção das respostas às grandes incógnitas da existência (DP 444-46) e que a cultura impregnada de fé é conservada de maneira viva em os setores pobres e se faz vida na piedade e em espaços de convivência solidária (DP 414). Mas é no Documento de Aparecida (DA), de 2007, onde a piedade popular adquire uma solvência teológica inequívoca. O cardeal Bergoglio foi o presidente do comité de redação do documento final.

Bento XVI, em seu discurso inaugural, referiu-se à piedade popular como o “tesouro precioso da Igreja Católica na América Latina” e o Documento Final conseguiu discernir nele um lugar de encontro com Jesus Cristo (DA 258-265) porque contém e expressa um “intenso senso de transcendência, uma capacidade espontânea de se apoiar em Deus e uma verdadeira experiência de amor teologal” (DA, 263). O documento também identifica essa piedade como uma forma de espiritualidade e uma mística popular, ideias que encontramos em Evangelii Gaudium de Francisco. Trata-se de uma espiritualidade e de uma mística popular incorporada na cultura dos pobres que integra o corpóreo, o simbólico e as necessidades mais concretas das pessoas nas festas dos padroeiros, nas novenas, nas peregrinações, no rezo do Rosário, no tocar as imagens. Essa piedade popular é mística que abre às possibilidades de justiça e santidade (DA, 264).

6 Evangelii Gaudium e a  Teologia do Povo

“Para entender o Papa e suas reformas, devemos conhecer suas raízes teológicas e acredito que a Teologia do Povo é a base do que ele está fazendo e dizendo, como é claramente visto na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium” (SCANNONE, 2015 b). Não pretendemos seguir o rastro da Teologia Popular na EG de forma exaustiva, mas destacar apenas algumas questões relacionadas com às características desenvolvidas neste artigo, as categorias de “povo”, “religião do povo” e os pobres.

O “Povo fiel“: o gesto do Papa Francisco de ser abençoado pelo povo imediatamente após sua eleição fala por si mesmo do apreço teológico pelo “Povo fiel de Deus”. O Evangelho deve ter uma inserção real no “povo fiel de Deus e nas necessidades concretas da história” (EG 95). Deus nos chamou “como povo e não como seres isolados” (EG 113). “Este povo de Deus está encarnado nos povos da terra, cada um dos quais tem sua própria cultura. A noção de cultura é uma ferramenta valiosa para compreender as diversas expressões da vida cristã que se encontram no Povo de Deus. Trata-se do estilo de vida que uma certa sociedade tem, da maneira como seus membros têm que se relacionar uns com os outros, com outras criaturas e com Deus. Assim entendida, a cultura cobre a totalidade da vida de um povo “(EG 115). “Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus de acordo com sua própria cultura, a Igreja expressa sua genuína catolicidade e mostra a beleza deste rosto pluriforme” (EG 116). “Deus dá à totalidade dos fiéis um instinto da fé – o sensus fidei – que os ajuda a discernir o que realmente vem de Deus. A presença do Espírito dá aos cristãos uma certa connaturalidade com as realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite intuitivamente apreendê-las, mesmo que não tenham os instrumentos adequados para expressá-las com precisão “(EG 119).

Piedade popular e opção preferencial pelos pobres: Evangelii Gaudium dedica várias questões à força evangelizadora da piedade popular (EG 122-126), à relação da piedade popular com a inculturação (EG 68-70), o reconhecimento da sabedoria peculiar de uma cultura popular evangelizada (EG 68),a agência dos povos na evangelização “podemos pensar que os diferentes povos em que o Evangelho foi inculturado são sujeitos coletivos ativos, agentes da evangelização. Isto é assim porque cada povo é o criador da sua cultura e o protagonista da sua história “(EG 122). A Exortação aceita, como a TdP, que as expressões da piedade popular são lugares teológicos para pensar sobre a nova evangelização através do testemunho vivido dos pobres e simples e de sua mística popular (EG 126). Por outro lado, Evangelii Gaudium destaca o lugar dos pobres no Povo de Deus (EG 197-201), reafirma que, para a Igreja, a opção pelos pobres é uma categoria teológica em vez de cultural, social ou filosófica e expressa seu desejo de um Igreja pobre para os pobres (EG 198).

Luís Augusto Herrera Rodríguez, SJ. FAJE, Belo Horizonte (Brasil). Texto original em espanhol.

7 Referências

ARRUPE, Pedro. Carta y Documento de Trabajo sobre la Inculturación. In: Acta Romana Societatis Iesu, t. XVIII, 1978, 229-255.

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CELAM. V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Texto Conclusivo. São Paulo: Paulus, 2007.

DECLARACION DE BOSTON. El presente y el futuro de una teología iberoamericana inculturada en tiempos de globalización, interculturalidad y exclusión. http://teologia.javeriana.edu.co/documents/3722978/3755604/Declaraci%C3%B3n+de+Boston/88b338ce-d517-4604-8bba-176f6dd286aa. Acesso em 10/03/2017.

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A opção pelos pobres

Sumário

1 Introdução

2 Esclarecimento do termo pobres como categoria básica

3 Inscrição do tema nesta época e nesta situação

4 Pertence ao núcleo da mensagem cristã

4.1 Opção pelos pobres do Deus de Jesus

4.2 Opção de Jesus pelos pobres

4.3 Correlação entre os pobres e o Reino de Deus

4.4 Resposta de muitos pobres: pobres com espírito

4.5 O compromisso pela salvação dos pobres traz a salvação ao mundo

4.6 Igreja dos pobres

5 Nós problemáticos e opções indispensáveis

5.1 Assumir que a opção pelos pobres também é uma opção contra a pobreza

5.2 Repudiar o totalitarismo fetichista do mercado e lutar para que seja superado

5.3 Iniciar uma vida alternativa já

5.4 Reconhecer ao povo a condição de sujeitos humanos, superando o relacionamento ilustrado e a aliança com ele no seio do povo

5.5 A opção pelos pobres deve ser proposta sobretudo aos próprios pobres

6 Referências

1 Introdução

A Opção pelos Pobres é uma expressão básica do ser cristão e, portanto, um eixo transversal da vida e da reflexão cristã sobre ela. Nesse sentido, foi central para os fundadores da Igreja latino-americana e foi retomada por Medellín e Puebla como uma recepção criativa do Vaticano II e, antes disso, como a expressão mais genuína do cristianismo que foi vivida naqueles anos da América Latina. Abordaremos a opção cristã pelos pobres através de quatro etapas: explicitar as noções com as quais operamos; inscrição do tema nesta época e nesta situação; horizonte cristão que baseia nossa opção; tematização das opções específicas que hoje e aqui implica a opção pelos pobres.

2 Esclarecimento do termo pobres como categoria básica

Aquele que ouve a palavra “pobre” sente-se tão concernido que, para não se forçar a envolver-se no que será discutido, ele pergunta de quais pobres se trata, porque dá por certo que há muitos tipos de pessoas pobres e, assim, os pobres passam a ser apenas uma classe deles, diluída entre os pobres homens, os pobres doentes, os pobres pecadores e até os pobres ricos. É por isso que é essencial esclarecer este ponto.

Noção absoluta: o antônimo dos pobres é rico e ambos pertencem à órbita econômica, embora tenham implicações sociais, antropológicas, políticas e religiosas. Pobre significa a falta contínua e estável de elementos básicos ou mínimos para viver. Esta última é pobreza extrema: a miséria.

Noção dialética: ocorre quando aqueles que controlam a propriedade e as relações de produção e sociais apropriam-se da maior parte do produto social e dos bens da terra, destinados a todos e negam à maioria o direito de capacitar-se. Nesse sentido, há pessoas pobres porque há pessoas ricas.

Se nos perguntarmos o motivo dessa carência estável, teríamos que responder que o pobre não é simplesmente aquele que não tem nada senão aquele que não tem como ter. Isso pode acontecer devido à falta de desenvolvimento humano, ou porque a estrutura produtiva e sociopolítica impede que os pobres, como um grupo social, escapem da pobreza, mesmo trabalhando duro e bem. Hoje, com o grau de desenvolvimento das forças produtivas, a existência de um número apreciável de pessoas pobres sempre tem um componente de privação injusta.

Autopercepção e heteropercepção: é conveniente ressaltar que não raramente a situação objetiva não coincide com a percepção de que os pobres têm de si mesmo ou com a percepção que os outros têm dele. Em alguns países latino-americanos, muitas pessoas tendem a considerar-se mais pobres do que são e, por isso, têm um autoconceito baixo que chega até a autocomiseração e é por isso que eles estão diante de sua sociedade em uma atitude implorante ou exigente. Em outros, a maioria das pessoas pobres não se consideram pobres porque se sentem capazes de lidar com suas vidas por conta própria e avançar.

Também muitas vezes a heteropercepção não coincide com a realidade objetiva. Muitas pessoas que vivem em urbanizações de classe média ou classe média alta iguala a todos as do bairro, considerando-os pobres, sem perceber as profundas diferenças que existem entre elas. Em certas culturas, a pobreza é muito estridente e é evidente mesmo no modo de caminhar e vestir, de tal forma que muitos que as veem de fora pensam que são mais pobres do que são. Em outras, o problema é o oposto: a maioria das pessoas que atravessam o centro da cidade são pessoas do bairro e, no entanto, não é fácil distingui-las dos populares ou da classe média baixa.

A pobreza da qual falamos até agora é a pobreza no sentido próprio. Há também uma noção metafórica e uma noção analógica.

Noção metafórica: falamos dos pobres ricos por causa das preocupações que eles têm para preservar e aumentar suas riquezas e por causa da desumanização que engendra colocar o coração nas riquezas. Por este último motivo, também falamos dos pobres pecadores porque o pecado tira a vida dos outros e desumaniza quem o comete. Então, dizemos de alguém que é um homem pobre para significar que ele não tem peso humano. Também metaforicamente nos referimos aos pobres doentes, pelo diminuídos como estão. Por esse mesmo motivo, dizemos pobre a alguém que sofreu um infortúnio.

Noção analógica: nós incluímos realidades que, embora propriamente não expressem o conceito de pobreza em si, no entanto, de fato, na realidade histórica concreta, participam dela.

A etnia é a realidade que expressa mais claramente o que queremos dizer, porque, embora não haja grupos étnicos superiores ou inferiores, podemos ver que em nossa região que a maioria dos pobres é de grupos étnicos não-ocidentais. A causa histórica desta realidade é que a sociedade latino-americana nasce como uma sociedade senhorial, subjugando as pessoas desses grupos étnicos. Para fazê-lo com boa consciência, eles sustentaram que seu status subordinado veio de seu status como bárbaros. A contraposição civilização-barbárie ganhou nova validade nos séculos XIX e XX e está longe de ser superada.

Outro caso, muito característico, é o da mulher, considerada na sociedade patriarcal como um ser fraco, fisicamente e moralmente e, portanto, dependente do homem e confinada ao lar. Essa discriminação a impediu de desenvolver suas habilidades e, quando se manifestaram, impediu-a de exercitá-las fora de sua esfera privada. Embora hoje o machismo atual deriva, em vez disso, do ressentimento desses homens por não estarem à altura das mulheres.

Um conceito analógico de pobreza, especialmente relevante para nós, é o dos pobres com espírito. Essas pessoas pobres não têm bens essenciais, mas têm Deus como o bem dos bens. É por isso que, antropologicamente, eles não podem dizer que não têm apoio: o impulso do Espírito torna possível que, quando não existam condições de viver, vivam com dignidade e dão da sua pobreza, de modo que, se não conseguem escapar da pobreza, é somente pelas regras de jogo.

Outro conceito analógico de pobreza é o dos pobres evangélicos, que são aqueles que tendo possibilidade de ter, e não sendo por isso pobres, são em certa medida pobres como um componente de sua opção pelos pobres. Dizemos em certa medida porque, mesmo que entram em seu mundo, eles o fazem voluntariamente, o que é uma diferença essencial com aqueles que não podem deixar esse mundo. Eles se inserem no seu mundo através da solidariedade: para ajudar aos empobrecidos a superar sua pobreza.

Outro conceito analógico de pobreza é o do pobre de espírito. O pobre, como ele não tem possibilidade de ter, e sabendo-se sem nenhum direito, se dirige com confiança para aquele que pode dar-lhe; assim, aquele que se sabe sem nenhum direito diante de Deus, mas que confia em sua misericórdia, pode ser chamado analogicamente pobre porque o espírito dele está diante de Deus como um pobre diante de quem pode dar-lhe como viver. Se, na parte mais profunda de seu ser, uma pessoa está diante de Deus sabendo que não possui nenhum mérito, mas é aceita pela sua misericórdia, ela não pode ser de outro modo diante de si mesmo ou diante dos outros. Tender seriamente a sê-lo implica um grau de humanização muito notável.

3 Inscrição do tema nesta época e nesta situação (EG, 52-60; 67; 202-205)

A opção para os pobres está fora do horizonte epocal. A direção dominante desta figura histórica é o totalitarismo do mercado, com marcantes traços fetichistas, e neles os pobres são vítimas por excelência, embora não sejam os únicos.

O mercado é apresentado como um absoluto ao qual é necessário sacrificar o que quer que seja: o trabalho, a segurança e os benefícios adquiridos de toda uma coletividade. Se os lucros dos grandes investidores são o absoluto, a democracia, o Estado, a vida real dos cidadãos e os direitos humanos valem tanto quanto são bons condutores desses ganhos. É óbvio que, quando os grandes investidores reinam, os que mais perdem são os pobres.

A maneira mais comum de viver essa figura histórica tão endurecida é resignar-se à situação, acreditando que é inevitável. Muitos dos insatisfeitos com sua resignação estão envolvidos em algum tipo de voluntariado. Existem modos de exercitá-lo que são alternativos por causa das capacidades que se transferem para o meio popular e o tipo de relacionamento estabelecido: horizontal, mútuo, gratuito e humanizador para ambas as partes. Mas a maioria dos voluntariados são meramente compensatórios, uma vez que não excedem o horizonte estabelecido e, ao mitigar os efeitos mais perversos, eles o reforçam. Este julgamento não implica reprovação; muitos são positivos e, além disso, essa experiência pode provocar um processo que ao longo do tempo envolva uma verdadeira exterioridade em relação ao sistema.

Tampouco o é a chamada solidariedade passiva, que consiste em dar dinheiro aos pobres, sem se envolver pessoalmente em ações solidárias que contenham algum tipo de protesto contra injustiças institucionais ou estruturais ou contato direto sistemático com os pobres. Não desprezamos esse tipo de solidariedade, que pode ser um sinal de abertura para esse mundo, que pode acabar em uma verdadeira opção.

A opção pelos pobres que o Evangelho propõe como participação da Deus e de Jesus envolve um compromisso vital, um horizonte no qual caminhar, uma aliança que tende a ser totalizadora. A opção pelos pobres só pode ser concebida e vivida como uma alternativa ao dado: como o contraditório, que inclui, em outro horizonte, suas potencialidades e seus colaboradores, pelo menos em nossa intenção, mas que tem as maiorias populares, os pobres, como o núcleo em torno do qual os outros setores são agrupados.

Assim, para nós, a opção pelos pobres não pode ser apenas uma opção ideológica ou política. Tem que envolver a pessoa: só pode ser realizada ancorando-se no mais transcendente e aprofundando-o; mas tampouco pode acontecer sem exceder muito do que um é e o que exista de pertença ao sistema. O mesmo pode ser dito sobre os bens civilizadores: eles devem ser possuídos em uma excelente medida, porque eles são uma alavanca poderosa, mas eles não podem ser vividos como o sistema os pratica, porque eles estão profundamente deformados.

Nesta transformação reside em grande medida a dificuldade de optar pelos pobres hoje e, por outro lado, o seu sentido dinâmico e humanizador.

4 Pertence ao núcleo da mensagem cristã

Não é um dos temas da ética social, uma parte da ética. Este foi o caso na Europa, quando a teologia latino-americana a colocou no centro da mensagem cristã, e é por isso que os teólogos que não compreenderam essa ruptura epistemológica consideraram que os latino-americanos extrapolavam uma questão de ética social, colocando-a em um lugar que não correspondia a ela. A esse nível epistemológico, a mudança consistiu em passar de uma teologia doutrinal a uma teologia narrativa porque a revelação é histórica. Nesta perspectiva, os pobres são colocados na linha de frente como receptores privilegiados da ação de Deus. Esse status é aquele que foi reconhecido, tanto pelas Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano (GUTIÉRREZ, 1979, TRIGO, 1979, 108-11), quanto pelos Sumos Pontífices e pela academia. A opção pelos pobres é um eixo transversal de toda a teologia porque pertence ao núcleo da mensagem evangélica.

4.1 Opção pelos pobres do Deus de Jesus

Nos referimos ao deus judaico-cristão revelado escatológicamente por seu Filho Jesus. Deus revela-se por seu nome no processo de libertação de grupos oprimidos pelo império egípcio, um processo que inclui a saída de sua zona de influência e a constituição de um povo libertado, isto é, crente e fraterno, no esforço de criar vida e ser criado como um povo no deserto onde não havia condições para viver (TRIGO, 1978, ELLACURÍA, 2000b, 545-560, SIVATTE, 1999a, 31-57, 1999b, 151-172). Neste processo de libertação, Deus revela-se aos oprimidos como aquele que os acompanha, dando-lhes consistência quando eles entravam em colapso, força e solidez quando sentiram que não podiam fazer mais, fundamento quando estavam enfraquecidos, que isso significa o nome de Javé.

Quando o povo se torna sedentário, Yahweh revela-se como o Deus do estrangeiro, o órfão e a viúva, que são os que não têm chão para se estabelecer: Deus lhes dá a consistência que a sociedade lhes nega, quebrando a fraternidade que deve caracterizar ao povo de Deus. Naquele trance, Deus é revelado, através da palavra dos profetas, como um Deus incompatível com a opressão, que exige que a justiça seja feita aos oprimidos e que os fracos não sejam explorados.

Quando os reis não cumpriram este papel de campeão dos pobres em relação aos ricos e poderosos, Yahweh manifestou-se naquela parte do povo pobre que não podia viver da sua justiça, mas que viveu pela fé naquele Deus que o acompanhava como sua pedra firme. O povo pobre e esperançoso foi chamado pelos profetas, os pobres de Yahweh e, portanto, paradoxalmente, nele estava a esperança da renovação, porque nele reinava Yahweh, dando-lhe vida e humanidade, dando-lhe paz quando tudo parecia perdido.

Esta predileção de Deus por seus pobres chegou a ponto de confiar tanto neles que os escolheu como habitat de seu filho: assim aparecem caracterizados Maria e José, os pastores, Simeão e Ana, no Evangelho da infância de Lucas.

Esta revelação de Deus como aquele que chama à existência ao que carece de vida e ressuscita os mortos, que começa por dar a Abraão e Sara a força para engendrar, culmina no Jesus crucificado, a quem ressuscitou dos mortos (Rm 4,17-25).

Assim, o Deus judaico-cristão não é o deus dos deuses e o senhor dos senhores, que culmina e transcende as hierarquias sociais, um deus que não existe, mas é uma projeção da força dos poderosos e dos anseios dos fracos, mas aquele que está com os de abaixo, dando-lhes consistência, sua mesma consistência, como foi revelado em seu Filho Jesus, uma consistência que não puderam quebrar os poderes deste mundo e da qual vivemos e viveremos sempre.

4.2 Opção de Jesus pelos pobres (SOBRINO, 1991, 33-46; GUTIÉRREZ, 1992,203-220; FRANCISCO, 2014; TRIGO, 2008, 67-71)

O pressuposto da opção de Jesus pelos pobres é que “ele nasceu e viveu pobre entre seu povo” (Puebla 190). É por isso que seus pais, ao resgatá-lo, só podiam pagar a oferta dos pobres. A opção de Jesus consistia em que ele não viveu como um pobre a mais, tentando preservar sua vida, nem se promoveu dando-lhes as costas, mas assumiu solidariamente sua condição e, e quando Deus o chamou para a missão, ele deixou sua casa, sua profissão e sua família e se fez tão pobre que não tinha para onde descansar a cabeça. Por isso, se ele se entregou completamente aos outros, ele também precisou pedir o alimento e o teto diariamente. Mas ele também deu aos pobres direito sobre sua pessoa, ele os respeitou, se entregou a eles. Não foi um benfeitor que dá de cima. Jesus, uma vez que não tinha nada para dar, deu de si até se entregar a si próprio. Deu em relações horizontais e mútuas, porque dependia de outros para alimentação e alojamento. Como Paulo diz, “ele nos enriqueceu com sua pobreza” (2Cor 8,9).

Tão relevante ou mais do que sua condição de pobre e sua missão entre os pobres, é que ele realmente quis permanecer nos pobres[1], independentemente de que seja sabido que o serviço aos pobres, ou sua falta, é um serviço ou não serviço ao próprio Jesus (Mt 25,31-46). O serviço aos pobres é a porta para os outros sacramentos, e é por isso que Paulo diz ao corintianos que eles não celebram a Ceia do Senhor porque eles os discriminam (1Cor 11,20).

4.3 Correlação entre os pobres e o Reino de Deus (SOBRINO, 1991b, 110-121; MUÑOZ, 1987, 198-209; PIERIS, 2006)

O que Jesus viveu, também foi o núcleo da sua proclamação. O evangelho do Reino é para eles (Lc 4,18, 7,22): Deus se entrega incondicionalmente, reinando em seus corações e dá-lhes o Reino; é por isso que os pobres já são felizes (Lc 6,20) (CASTILLO, 1998a, 111-138, 1998b, 279-324, 1999, 35-53, 191-243). Eles ainda são pobres, mas não são mais indefesos, porque Deus está com eles. Isto é formalizado por Pieris com estas equações: “Onde quer que ame e sirva a Deus, são os pobres, e não a pobreza, quem reina. Onde os pobres amam e servem, é Deus, e não Mammon, que reina “(PIERIS, 2006, 52).

Este não é um fato meramente objetivo, mas uma relação interpessoal que inclui a revelação dos mistérios do Reino; uma revelação negada ao sábio e entendido (Lc 10.21) (TRIGO, 2011, 145-183). É óbvio que quase ninguém acredita nisso. E, por essa descrença, surgem muitos problemas na nossa Igreja.

Os pobres perceberam que o que Jesus disse era verdadeiro porque o sacramentou com a vida dele. Para o pobre, Jesus não era um altruísta, mas um homem de Deus, e eles sabiam que sua ação revelava Deus e seu plano de salvação.

4.4 Resposta de muitos pobres: pobres com espírito

A denominação é de Ellacuría, que os caracteriza pela obediência primordial ao Espírito, ajudados pela fé em Deus e a religião popular (ELLACURÍA, 1984, 70-75). Nós apenas explicamos que a obediência primordial ao Espírito é realizada, em primeiro lugar, na vida cotidiana: para se manter na vida e para que a vida seja qualitativamente humana; mesmo na luta política, deve-se manter o primado da cotidianidade, que inclui a vida aberta a Deus, aos outros e concretamente aos diferentes, sobre a organização e a luta (MESTERS, 1985, p. 199). Se os pobres com espírito são pobres das bem-aventuranças, são pobres que amam a paz e a constroem.

4.5 O compromisso pela salvação dos pobres traz a salvação ao mundo  (ELLACURÍA, 1993, 1051-1054)

A razão é que Deus o providenciou assim. Porque os pobres são o único lugar de universalidade concreta. Somente quando os pobres estejam indo bem, todos estaremos bem. A encarnação cristã é a encarnação kenótica: a partir de baixo. Foi assim a de Jesus e constitui o único caminho que leva à vida. A única maneira de humanizar é reconhecer os irmãos necessitados e assumir a responsabilidade por eles, percebendo o questionamento do rosto dos necessitados e saindo de si para atendê-los, ou, ou da parábola do Bom Samaritano, aproximando-nos do que caiu. nas mãos dos ladrões para servi-lo. O paradoxo cristão é que o salvador é o salvo, quando contribui para salvar.

4.6 Igreja dos pobres (ELLACURÍA, 1984, 84-125; 170-174; 1990, 144-153; GUTIÉREZ, 1971, 125-175; 1980, 117-127; BOFF, 1986,19-184; CODINA, 2010, 19-115; MUÑOZ, 1974, 269-376; 1983, 147-245; ESTRADA, 2008, 71-102; RAMOS, 1984, 392-449; RICHARD, 1987,17-95; TRIGO, 2003, 115-175; AQUINO JUNIOR, 2012, 277-298).

Não consiste em que esteja dedicada aos pobres e nem mesmo em que seja pobre. É aquela em que os pobres, e mais especificamente, os pobres com espírito, chegaram a ser seu coração, o que a impulsiona e é, portanto, sua hierarquia espiritual, que não substitui a hierarquia institucional. Os restantes abrimo-nos para a graça que foi concedida aos pobres e nos colocamos no discipulado dos pobres com espírito. Isto não é feito com proclamações, mas com o relacionamento habitual com eles, não como benfeitores, mas como irmãos em Cristo, que deram fé à sua palavra de que Deus lhes revelou os mistérios do Reino. A maneira mais integral de nos encontrar cristãmente com os pobres é através das CEBs.

O problema para a nossa Igreja não é que não adotemos essa direção, mas que não a abordamos realmente. No entanto, sempre existe um pequeno núcleo comprometido nessa direção e vive com alegria e gratidão. Hoje, esta imagem da Igreja começa a mudar, graças aos gestos, inequivocamente evangélicos, do Papa Francisco, o primeiro papa latino-americano, que já em sua primeira declaração à imprensa expressou seu fervoroso desejo de que a Igreja seja pobre e para os pobres e que está ratificando essa dupla dimensão de forma sistemática.

5 Nós problemáticos e opções indispensáveis

5.1 Assumir que a opção pelos pobres também é uma opção contra a pobreza (KOLVENBACH, 2007, 545-555; GONZÁLEZ-CARVAJAL, 1987, 105-152)

A título preliminar, deve ser estabelecido que a pobreza pode ser combatida sem ter uma opção para os pobres, enquanto que não é possível optar consistentemente pelos pobres sem combater, de uma forma ou de outra, a pobreza.

O primeiro é claro: a pobreza pode ser combatida para ter mais consumidores e aumentar a produção e os lucros dos produtores[2]; um governo populista pode combatê-lo para adquirir uma clientela leal e uma base segura de apoio; uma pessoa religiosa pode lutar por ser um preceito de Deus que ele cumpre para merecer antes dele; uma pessoa moral pode fazê-lo por um imperativo categórico; e pode ser o caso de fazê-lo, porque essa é a sua idiossincrasia.

A luta contra a pobreza é um aspecto que segue a opção para os pobres porque o amor busca o bem da pessoa que ama e quem opta pelos pobres, sejam pobres ou não pobres, não quer que as pessoas que ele escolheu como suas vejam sua existência drasticamente diminuída por causa da pobreza. A pobreza, especialmente a pobreza extrema, torna extremamente difícil viver humanamente porque a tensão constante para continuar vivendo tende a quebrar o equilíbrio e é propício para a pessoa desistir de sua integridade e ser dominada por suas paixões mais prementes. Como a pobreza não é boa nem é desejada por Deus, e ainda menos hoje, quando há uma possibilidade de recursos para todos, o amor por eles é uma alavanca muito poderosa para lutar para que eles não vivam em uma agonia perpétua[3]. Este poder do amor é muito claro como podemos ver nas mães pobres que lutam por seus filhos com uma energia e criatividade que elas não teriam, se lutassem apenas por elas.

A opção é diretamente pelas pessoas; mas essa dedicação a essas pessoas específicas impede a resignação à sua pobreza e move a lutar porque melhorem suas condições de vida. Na medida em que visa a humanização dos pobres, a luta não é feita de qualquer modo. mas para que, embora o processo seja mais longo, eles sejam sujeitos da sua superação e, assim, a luta contribua para sua personalização.

Existe uma grande resistência a unir a opção pelos pobres com a luta para superar a pobreza porque a pobreza não é uma magnitude residual, mas um efeito (indesejável, dizem seus defensores, embora reconheçam que é necessário) das políticas econômicas e sociais. Portanto, lutar contra a pobreza supõe representar uma alternativa à situação atual, e está tão acima das possibilidades e tão arriscado para a segurança vital, que é experimentado como uma ameaça, uma vez que, embora seja feito do modo mais inteligente, discreto e processual, leva a sair de seu status como um cidadão normal e até mesmo excelente, de acordo com a estimativa atual, para se tornar alguém controverso, suspeito e, a longo prazo, uma ameaça ao sistema. É por isso que há resistência para unir a opção para os pobres com a luta contra a pobreza.

E, no entanto, o que mudou é a figura histórica, não as exigências da opção pelos pobres. Podemos dizer, pelo contrário, que hoje é mais necessário. Portanto, quem opta por eles não pode deixar de fazer um esforço para lutar contra a pobreza, mesmo que resulte em uma direção extra-sistêmica. Porque devemos reconhecer que a união entre a opção pelos pobres e a luta pela eliminação da pobreza ou, pelo menos, por sua redução progressiva, tem sido uma constante no cristianismo.

Aqueles de nós que escolhemos os pobres, seguindo Jesus, temos a missão de refazer as relações de produção, as relações sociais e políticas e, antes disso, os corações humanos, para que, com a participação de todos e o protagonismo dos pobres, lutemos de forma decisiva para superar a pobreza, o que não será possível universalizando o Estado de bem-estar, mas criando uma alternativa na qual a maior sobriedade dos que estão acostumados ao dom é compensada pela alegria das relações fraternas, cada vez mais criativas e frutíferas. Como você pode ver, é uma tarefa infinita, mas irrenunciável, se queremos seguir Jesus.

No entanto, combater cristãmente contra a pobreza não significa lutar contra pessoas ricas porque distinguimos entre seu papel social e seu ser pessoal. Outra coisa é que eles se identifiquem com esses papéis e nos vejam como seus inimigos. Para um cristão, é indispensável não desistir de ninguém porque considera cada um como seu irmão. As direções históricas são irreconciliáveis; mas na nossa cabem eles como pessoas e como especialistas, embora com relações de produção e relações sociais que não sejam opressivas nem exclusivas, mas simbióticas e fraternas.

5.2 Repudiar o totalitarismo fetichista do mercado e lutar para que seja superado

Caminhar no reconhecimento da opção de Deus pelos pobres exige semear a opinião de que vivemos em uma sociedade fetichista que exige vítimas (HINKELAMMERT, 1989, 1991, MO SUNG, 1994, 119-166, RICHARD, 1987, 124-133; SOBRINO, 2008, 61-75, TRIGO, 2006, 152-162, 2008, 55-58, 2010, 120-128): os pobres, que, além de serem explorados, estão excluídos do poder da deliberação e da decisão. A opção pelos pobres exige assumir o comando e repudiar publicamente este totalitarismo e fetichismo[4], exige, além disso, libertar-se, viver alternativamente e lutar para que seja superado.

Hoje, esse aspecto tende a ser deixado de lado, afirmando que não faz sentido denunciar, uma vez que não terá efeito algum; nem se opor porque a oposição não é mais que retórica porque os opressores são inalcançáveis. Além disso, as consequências consistem em ser privados de recursos e influências para poder ajudar os pobres tanto quanto possível.

Existem dois tipos de incidência nos centros de poder: um é desde dentro e outro desde a sociedade organizada (redes sociais) e desde o aprofundamento da democracia (política). Desde dentro é pertencendo, de alguma forma, a eles. O preço a pagar é a pertença a essa ordem de coisas. Se é verdade que estamos vivendo o totalitarismo do mercado, é lícito pagar por isso? O Deus de Jesus quer que pertençamos a esse mundo?

Mas, se quisermos viver numa macro instituição, é possível não participar dele? Se for possível, os preços são altos. Por exemplo, quando o padre Arrupe promoveu a opção de fé-justiça na Companhia de Jesus, ele previu que muitos benfeitores se tornariam inimigos. Assim aconteceu. Foi um preço muito alto? Não havia que pagar pela fidelidade? Não foi verdade que ele recarismatizou a ordem e deu importância àqueles que se deixaram moldar por esse horizonte e alegrou aos pobres, que foram evangelizados com essa proximidade?

Temos tanto direito de participar quanto mais pública seja nossa condenação da direção dominante desta figura histórica. Nossa luta é para que outro mundo seja possível e para que, quando se observem certas possibilidades de sucesso, não seja maior a hipoteca do que o fruto. Se a condição para participar é o silêncio, é preferível não obter essas pequenas vitórias ao custo da cumplicidade.

Assim, a maioria dos esforços teria que ir na direção da pressão pública e da luta pelo aprofundamento da democracia. Este segundo método de incidência exige, antes, deixar claro, tão concretamente quanto possível, o caráter fetichista da ordem estabelecida.

Aceitar o horizonte estabelecido, mesmo por resignação, é considerar a ação a favor dos pobres como um paliativo e assim contribuir para a estabilidade do sistema. Além disso, essa inibição acaba envolvendo o fato de pertencer ao sistema: perderíamos nossa sensibilidade para perceber a presença do pecado-do-mundo porque nos tornaria em mundo: participantes bem-pensantes desta situação de pecado.

Agora, se não fizermos uma demarcação entre os bens civilizadores dessa revolução tecnológica e os bens culturais, que devemos adquirir e a direção dominante dessa figura histórica, nossa oposição será ineficaz e não conseguiremos uma alternativa superadora.

Acreditamos que o que o Papa Francisco diz e faz constantemente deixa claro que esta denúncia sistemática é possível e, acima de tudo, a alegria que ela traz para aqueles que são mantidos como descartáveis e para todas as pessoas de boa vontade.

5.3 Iniciar uma vida alternativa já

Somente desde uma vida alternativa, existe uma opção pelos pobres (ELLACURÍA, 1989, 165-181, SOBRINO, 2007, 17-38, MAIER, 2014, 41-52, TRIGO, 2012, 10-139). A razão mais elementar tem a ver com o que Freud chamou de economia das emoções: se você não vive alternativamente, todas as energias já estão ocupadas. O fascínio, a aquisição e o gozo do publicitado e o trabalho para reunir os recursos para adquiri-lo, o absorve tudo. Os pobres serão algo residual: a boa obra que nos redime diante de nossa consciência (não diante de Deus).

Somente desde uma vida que não precisa de muitas coisas consideradas necessárias, será possível ter tempo e energia para olhar além do horizonte do consumo e do emprego, e somente deste modo liberado de viver pode se dar origem a um encontro denso com o pobre, porque não está mais dividido entre o vício do bem-estar e a entrega solidaria.

Esse é o custo da opção pelos pobres. Um custo que não pode ser minimizado porque implica sacrifícios que tornam a vida mais estreita e menos segura e que só pode ser realizada como um caminho que contém vida qualitativa e dá-la, na qual se contribui e ajuda em profundidade; mas no qual a pessoa que o percorre também é ajudado e recebe mais do que o que ele dá.

Mas os bens recebidos a causa desta opção por uma vida alternativa solidária só podem ser compreendidos desde dentro. É por isso que resulta imprescindível um ato de fé nos irmãos pobres e em que a solidariedade com eles nos trará fecundidade. Fé no Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que é capaz de preencher o coração para que ele possa prescindir de muitas coisas.

Ao nos referir à vida alternativa, denotamos um modo de vida integral e não apenas um sacrifício de tempo e dinheiro, dentro da vida proposta pelo Sistema. Chamamos isso de uma alternativa porque é uma superação dialética do estabelecido, porque retém seus elementos mais potencializadores e nega o que tem de auto-centramento competitivo e consumista, com seu corolário de injustiça e exclusão.

Conserva os recursos civilizadores da última revolução: quem opta realmente pelos pobres é incessantemente qualificado, porque caso contrário, não serve para nada. Qual será a utilidade do seu desejo de servir? Também retém os bens culturais, que são afirmados retoricamente, mas não são realizados: a cultura dos direitos humanos, a da democracia e a da vida. Somente respeitando os direitos dos pobres, os direitos humanos são verdadeiramente respeitados.

O sistema aprecia a democracia política formal, mas a divisão de poderes está longe de ser efetiva, como o governo sob o domínio da lei e segurança para todos, a veracidade da mídia ou a igualdade de oportunidades ou o controle do grande capital e as grandes corporações. Em tudo isso há um ótimo campo para a vida alternativa.

Mas a democracia política nunca será preenchida com conteúdo até que a cultura da democracia floresça, o que ocorre fundamentalmente no cotidiano, mas que gradualmente deve permear a vida das instituições e até mesmo a política e a economia (TRIGO, 2012 , 29-58). A cultura da vida[5] é uma novidade em relação à sociedade industrial. Tornou-se consciente dos limites do crescimento (MEADOWS, DH, MEADOWS, DL, RANDERS, J; BEHRENS, W., 1982), do respeito pela natureza e da aspiração positiva de habitar a terra como uma casa compartilhada, mesmo, como mãe nutricial. Mas até hoje o sistema mostrou-se incapaz de andar naquela direção porque as grandes corporações não querem fazer os sacrifícios indispensáveis. Neste ponto, a alternativa é cortar com a compulsão de comprar e consumir, que é a base de todo o sistema.

O desenvolvimento propriamente humano tem que ver com a capacidade de viver em profundidade, ficar em silêncio e estar em paz consigo mesmo, com os outros e com a natureza; viver com simpatia e compaixão, com responsabilidade, cultivando a convivialidade, o simbólico, o festivo, o lúdico e, para nós cristãos, as duas relações de filho de Deus de irmão de todos.

Somente dessa perspectiva e sensibilidade, os pobres da terra terão um lugar. E eles tenderão a deixar de ser pobres. Precisamos dedicar grandes energias a imaginar outro estado de coisas que não produza estruturalmente pobres e em que os pobres sejam capacitados, não só para serem integrados no dado, mas também para serem sujeitos do que eles querem construir.

5.4 Reconhecer ao povo a condição de sujeitos humanos, superando o relacionamento ilustrado e a aliança com ele no seio do povo

A opção pelos pobres baseia-se no reconhecimento da condição de seres humanos que os pobres têm (TRIGO, 2008, 185-213, 2011). Isso implica que não existe uma opção evangélica pelos pobres, se o conceito de pobre os totaliza. A opção é para aqueles seres humanos, injustamente privados, uma situação que não os determina.

Esta distinção geralmente não é feita nem no assistencialismo nem na promoção nem na conscientização. É por isso que o relacionamento com eles é unidirecional e vertical porque se estima que os pobres não têm nada para dar.

A dificuldade para que um ilustrado supere seu modo de relacionamento com o povo vem do fato de que as deficiências observadas preenchem toda atenção e suas potencialidades são deixadas nas sombras. E, no entanto, elas são decisivas. Somente a experiência de ser ajudado pelos pobres pode levar a compreender e assumir a condição de sujeitos que eles têm. Pode haver uma abertura em princípio, mas somente através de experiências concretas pode ser preenchido com conteúdo, sejam experiências pontuais ou processos sustentados. Uma maneira de alcançar essa abertura é a consciência de que Deus revelou aos pobres os mistérios do Reino, uma vez que isso implica que eles são capazes de receber essa revelação.

Essa consciência é o pressuposto do contínuo diálogo de Jesus com o povo. Que essa suposição era verdadeira é evidente porque foi o sucesso que teve com o povo o que foi percebido pelas autoridades como uma ameaça à estabilidade do sistema e o que causou sua condenação (Jo 11,47-53; 12-18-19).

Agora, neste novo esquema de relacionamento recíproco, é necessário integrar muitos dos conteúdos do relacionamento ilustrado porque o povo precisa crescer em muitos aspectos e, para isso, precisa ser ajudado.

A opção pelos pobres é estabelecida como uma aliança entre camadas populares e não populares no seio do povo. Nessa aliança todos ganham. Quem mais ganha, o não popular, que recebe o mais qualitativo (a densidade da realidade, a tentativa agônica pela vida, a fé e o fato de dar da sua pobreza), que somente os pobres com espírito podem dar; mas também ganha o povo, que recebe, além dos bens civilizadores e culturais, o presente daqueles que se entregam a ele.

5.5 A opção pelos pobres deve ser proposta sobretudo aos próprios pobres

Se os pobres são antes que pobres, sujeitos humanos, eles são os primeiros a quem propor essa opção. Acreditar que eles não têm que fazê-la porque bastante têm com  não sucumbir à pobreza é negar sua condição de sujeitos. Este é o veneno escondido do populismo e de muitos planos de assistência e promoção.

Assim, os pobres, mesmo com sua pobreza nas costas, são capazes dessa opção por eles e seus vizinhos e por aqueles que são mais pobres do que eles, como algo a que Deus os chama. A opção dos pobres pelos pobres é parte de sua resposta ao evangelho da opção de Deus por eles. E a opção por seus irmãos pobres torna-se a alavanca mais poderosa para se personalizar. Também os liberta da tentação de deixar individualmente seu mundo, alinhando-se com o sistema que os torna pobres. Mas, além disso, é essencial propor isso porque a ação dos pobres é indispensável. Não será possível avançar na qualidade humana, se os pobres não optarem por eles.

Na verdade, seria preciso reconhecer que os pobres são os que mais fazem esta opção, às vezes de forma heroica, embora, obviamente, há muitos que não a fazem.

Vamos enumerar algumas questões que devem ser tratadas com mais profundidade: o destinatário concreto da opção dos pobres e não pobres pelos pobres não são os indivíduos pobres nem os pobres como  categoria sociológica ou política, nem pode ser restrito aos mais pobres. senão que é pelo coletivo personalizado dos pobres, assumindo as relações que os constituem como pessoas.

Situacionalmente falando, a opção pelos pobres tende hoje em nossa América para o reconhecimento de seu caráter multiétnico e pluricultural em um estado de justiça entre culturas e grupos étnicos e de interação simbiótica entre eles.

Esta opção implica para a instituição eclesiástica a inculturação do evangelho em cada cultura popular e, como coroação, que existam presbíteros e bispos de cada uma dessas culturas.

Para aqueles que somos cristãos, optar pelo pobre implica colocar-se no discipulado dos pobres com espírito[6], que são os pobres que se abriram para a revelação dos mistérios do Reino aos insignificantes e  vivem desde ela, o que implica relacionamentos com eles constantes, horizontais e mútuos, no cotidiano (DUSSEL, 1974, 181-197, GUTIERREZ, 1980, 156-181, CASTILLO, 1997, TRIGO, 2011, 145-183, FAUS, 1997, 223-242, LUCHETTI, 1992, 189199, GARCIA ROCA, 2008, 5-21, RAMOS, 1984, 144-149, RICHARD, 1987, 133-141, CODINA, 2010, 181-210).

Finalmente, insistimos em que devemos aspirar a que todos os pobres se capacitem e sejam produtivos; o Estado e o mercado devem se complementar como mecanismos de retribuição. Para que isso aconteça, o problema não é são as forças produtivas, mas as relações de produção e as relações sociais e políticas. Temos que resolver o duplo problema de como encontrar a vida para todos e como todos podem participar dando seu contributo para a sociedade da qual querem ser parte produtiva. O problema do trabalho para os pobres é a expressão mais aguda deste problema generalizado.

Somente se for aceito que outro mundo é possível e que é urgente avançar decisivamente para essa direção, transformando o que deve ser transformado da direção dominante desta figura histórica, será possível a vida das grandes maiorias em processo de proletarização e, mesmo a dos pobres, e a condição de vida qualitativamente humana dos outros[7].

Pedro Trigo, SJ. Universidad Andrés Bello. Caracas (Venezuela). Original em espanhol.

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[1] O Papa Francisco o diz muito graficamente: “Não se esqueçam da carne de Cristo que está na carne dos refugiados: sua carne é a carne de Cristo” (Para os participantes da plenária do Conselho Pontifício para os Migrantes e Itinerantes: 24 / 05/2013). Ou aos Superioras Gerais: “A pobreza é aprendida tocando a carne do Cristo pobre, nos humildes, nos pobres, nos doentes, nas crianças” (8/05/2013). “Você não pode falar sobre pobreza, pobreza abstrata, não existe! A pobreza é a carne de Jesus pobre, naquela criança com fome, que está doente, nas estruturas sociais injustas. Vá, olhe para lá a carne de Jesus (Encontro com alunos de escolas de jesuítas da Itália e Albânia: 7/6/2013). “Em cada irmão e irmã em dificuldade abraçamos a carne de Cristo que sofre. Hoje, neste lugar de luta contra a dependência química, gostaria de abraçar todos e cada um de vocês que são a carne de Cristo “(Visita ao Hospital São Francisco de Assis, Rio 24/7/2013). “Os conventos vazios não são seus, são para a carne de Cristo que são os refugiados” (Ao Centro Astalli em Roma para a assistência aos refugiados.10 / 09/2013). “Quanto sofrimento, quanta pobreza, quanta a dor de Jesus que sofre, que é pobre, que é expulso de seu país. É Jesus! Este é um mistério, mas é o nosso mistério cristão. Vamos ver Jesus sofrendo nos habitantes da amada Síria “(Para as instituições de caridade católicas que trabalham na crise síria: 05/05/2013).

[2] É a lógica do fordismo que, ao segmentar o processo de produção e fazê-lo em cadeia, conseguiu elevar exponencialmente a produtividade. Altos salários para trabalhadores e preços mais baixos, criaria potenciais consumidores, que expandiriam o sistema.

[3] Isto é o que o Papa Francisco reitera: “A caridade que deixa os pobres como estão, não é suficiente. A verdadeira misericórdia, aquela que Deus nos dá e nos ensina, pede justiça, pede aos pobres que encontrem seu caminho para  Pede  – e  nos pede a nós como Igreja, a nós, a cidade de Roma, às instituições -, pede que nenhum deles já tenha a necessidade de um refeitório de beneficência, uma acomodação temporária, um serviço de assistência legal para ver reconhecido seu próprio direito de viver e trabalhar, de ser plenamente pessoa “(Discurso aos refugiados em Astalli: 10/9/2013).

[4] É o que o Papa Francisco diz quando, depois de pintar com características dramáticas, a situação mundial, expressa: “Uma das causas desta situação, na minha opinião, reside na relação que estabelecemos com o dinheiro, aceitando sua predominância sobre nós e nossas sociedades. Para que a crise financeira que estamos atravessando nos faz esquecer que na sua origem existe uma profunda crise antropológica. A negação do primado do homem! Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (ver Ex 32, 15-34) encontrou uma versão nova e implacável no fetichismo do dinheiro e na ditadura da economia sem um rosto e um objetivo verdadeiramente humano “(Discurso na apresentação de suas credenciais de quatro embaixadores: 16/5/2013, e aos participantes na sessão plenária do Pontifício Conselho de Migrantes e Itinerantes, 24/05/2013, e a Conversa com estudantes de escolas jesuítas na Itália e Albânia: 7 / 06/2013).

[5] O documento mais autorizado e documentado e mais integral, que une, como propomos, a cultura da vida e o cuidado dos pobres é a encíclica Laudato Si do Papa Francisco (2015), um verdadeiro paradigma da tomada de posição cristã diante de uma problema crucial..

[6] Este tema é um tema recorrente nos discursos do papa Francisco. Por exemplo, “os pobres também são mestres privilegiados do nosso conhecimento de Deus; sua fragilidade e simplicidade expõem nosso egoísmo, certezas falsas, nossas pretensões de auto-suficiência e nos orientam para a experiência da proximidade e ternura de Deus, para receber em nossas vidas o amor dele, a misericórdia do Pai que, com discrição e confiança paciente, cuide de nós, de todos nós ” (10/9/2013).

[7] Esta é a tese de Laudato Si, que, como o Papa Francisco havia esclarecido, não é uma encíclica verde, mas uma encíclica social na qual a salvação é integral, mas na qual se mostra que a Terra não será salva se a humanidade como um todo não estiver disposta a salvar-se.

Justificação

Sumário

1 O chamado à santidade e a justiça original

2 A justiça de Deus

3 A justificação na teologia de São Paulo

3.1 Lei e pecado, justificação e fé

3.2 Os efeitos da justificação

4 Elementos do desenvolvimento da justificação na história da teologia

5 A justificação na teologia de Lutero

6 A resposta do Concílio de Trento

7 Avanços ecumênicos

8 Atualização desde América Latina

9 Referências bibliográficas

 1 O chamado à santidade e a justiça original

“Deus nos escolheu nele [Jesus Cristo]  antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, diante de seus olhos. No seu amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo  […] “(Ef 1: 4-5). Desde toda a eternidade, o plano amoroso de Deus é compartilhar sua vida com a humanidade. Ele nos criou em Cristo e como seres livres, na esperança de que orientemos nossas vidas para a recepção dos dons de filiação e fraternidade que ele nos oferece, mas com o risco de nossa rejeição. Para estar plenamente em Sua presença, a qualidade da santidade é necessária e o estado de pureza é suposto.

Em sua grande benevolência e misericórdia, Deus assume a condição humana em seu Filho para se apropriar “do fracasso do pecado, da ruptura entre a realidade criada da história humana e o cumprimento ao qual está destinada, realizando assim sua verdadeira possibilidade de salvação “(COLZANI, 2001, 575). O cumprimento do projeto divino passa pelo sangue de Jesus Cristo (Ef 1,7) que traz a vitória sobre o pecado e culmina na recapitulação de todas as coisas nele (Efésios 1,10). Somos chamados a crescer na imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27; Rm 8,29) e tornar-nos santos como Deus é santo (Is 6,3 Mt 5,48). Estamos no processo de capacitação para entrar em comunhão com Deus na nova criação (Rm 5,1-5; 8,20-23).

O relato javista de Gn 2-3 comunica a ideia de que os primeiros seres humanos viviam em um “estado original” de justiça, no sentido de um estado de harmonia e paz entre eles, com a Terra e com Deus. Esta justiça foi perdida devido à sua decisão de desobedecer um mandamento divino, por querer se colocar no lugar de Deus. São Anselmo e São Tomás de Aquino comentam esta situação da perda da justiça original, denominada “pecado original” na linha de Santo Agostinho. Todos os outros pecados pessoais e sociais da história foram desencadeados a partir de Adão e Eva. Superando as leituras historicistas, a reflexão teológica contemporânea interpreta o “paraíso original” não como o estado das coisas no início da história humana, mas sim como a meta para a qual caminhamos, a plenitude escatológica da comunhão com Deus (Fl 3,7-11). O horizonte do futuro atrai a marcha da história. É uma expressão da permanência do amor fiel de Deus em cada momento, porque a verdade mais original é a graça e não o pecado (GONZÁLEZ FAUS, 1987, 114-117).

2 A justiça de Deus

A justiça divina é “um presente através do qual Deus tenta fazer a vida humana crescer em sintonia com a sua santidade. […] será apresentado como a capacidade de agir para a santificação do pecador “(COLZANI, 2001, 577).

No Antigo Testamento Deus se manifesta como justo em suas ações (Sl 145,17), e quer que seu povo pratique a justiça no sentido de garantir os direitos dos mais vulneráveis: os pobres, viúvas e órfãos, estrangeiros e outros (Sl 82,3; Dt 10,18, 24,17, é 1,17; Jr 22,3; Am 5,10.24; Zc 7,10). Também Deus é justo como juiz do pecado (Sl 51,5-6). Sua fidelidade à Aliança prevalece sobre o castigo, porque convida a conversão e oferece o dom da salvação. Deus é justo e misericordioso ao mesmo tempo, lento para a ira e cheio de amor e fidelidade (Ex 34,6; Sl 103,8; 145,8).

Jesus revela e estabelece a justiça de Deus na terra, inaugurando assim o tempo escatológico (Sl 72; Is 42.1-4; Ml 3.20). A justiça do Reino transcende os legalismos dos escribas e fariseus (Mt 5,20) e de todas as outras formas de justiça humana. Jesus dá plenitude aos mandatos da antiga Aliança, estabelecendo assim a nova Aliança no horizonte de uma nova ordem de relações humanas de acordo com o plano de Deus (Mt 5, 6; 6, 33). Isso vai além dos mandatos positivos para recorrer ao espírito que está em sua base e propor que sejam vividos radicalmente, levados a cabo para as últimas consequências.

Deus manifesta a sua justiça condescendente perdoando o seu povo todos os seus pecados. Sua justiça é a vitória sobre as forças do mal, salva e se desenvolve na dinâmica da gratuidade. Sua justiça nos reconstitui em nossa humanidade, nos recria e nos convida a “abandonar-nos confiando na vontade de Deus” (MV 20). Daí segue-se que “[1] a justificação é aquela ação que se manifesta e proclama a justiça de Deus, isto é, a sua vontade de benevolência e misericórdia como ela aparece na pessoa e na Páscoa de Cristo” (COLZANI 2001 , 120).

3 A justificação na teologia de São Paulo

3.1 3.1 Lei e pecado, justificação e fé

O tema da justificação (dikaiosyné) pela fé é fundamental na teologia de São Paulo, e se desenvolve de forma particular na carta aos romanos. Paulo se dirige a uma comunidade cristã estabelecida, cujos membros têm origens judaicas e gregas. Proclama a Boa Nova como “a força de Deus para a salvação de todos os que creem”, porque “revela a justiça de Deus” (Rm 1,16-17).

Paulo constata a realidade da universalidade do pecado (Rm 3,9-18), já que “todos pecaram e são privados da glória de Deus” (Rm 3,23). A criação também é escravizada na corrupção (Rm 8,21). A força de atração do pecado luta contra o nosso desejo de cumprir a vontade de Deus (Rm 7,14-23), e o pecado traz a morte (Rm 5,21), isto é, separa-nos de Deus.

A lei é boa em si mesma, uma vez que revela o que é a vontade de Deus e tem como objetivo proporcionar vida (Lv 18,5). Mas os seres humanos são fracos e falham em suas tentativas de cumprir plenamente a lei. A lei não tem capacidade para despertar a força interior para que eles obedeçam e tenham vida. “[…] ninguém será justificado diante dele porque cumpriu a lei, uma vez que a lei apenas fornece conhecimento do pecado” (Rm 3,20). Ao gerar a consciência do bem e do mal, a lei expõe a pessoa à tentação e sua própria impotência para mantê-la de forma constante. Através do pecado, a lei se torna um instrumento que escraviza mais pessoas para o mesmo pecado e traz a morte (Rm 7,7-20).

Com paixão, Paulo declara que “independentemente da lei,  se manifestou a justiça de Deus falada pela lei e pelos profetas” (Rm 3,21). Através do sangue que Jesus derramou na cruz, há justificação ou absolvição diante de Deus: “Estes são justificados por Ele gratuitamente, em virtude da redenção feita em Cristo Jesus” (Rm 3,24; 5,9). Paulo contrasta a justiça de Deus em Cristo e a justiça que os judeus pensavam que poderiam conseguir por seus próprios esforços no cumprimento da lei. Não é uma declaração puramente jurídica por parte de Deus de nossa inocência, que permaneceria no plano externo, uma vez que somos constituídos como justos (Rm 5,19), transformados em uma nova criação (2Cor 5,17-21) . E esse é o poder do Evangelho.

Para que a oferta de Deus seja livremente aceita, é necessária a aceitação da fé: o reconhecimento de que a iniciativa vem de Deus e da necessidade de sua ajuda, bem como o compromisso integral da pessoa diante de Deus e do mundo inteiro A fé é um dom da graça de Deus, e não uma obra nossa. “Trata-se da justiça que Deus, através da fé em Jesus Cristo, concede a todos os que acreditam” (Rm 3,22). Somos justificados pela fé, com efeito já no presente (Rm 3,25-26). A fé em Cristo alcança o que a lei não poderia fazer (Rm 8,3), e assim a fé substitui o cumprimento da lei.

Para Paulo, Abraão é o protótipo da pessoa cuja fé “foi considerada como justiça” (Rm 4,3,9,22). Ele recebe essa justiça porque confiava na promessa divina, e não em virtude de sua circuncisão ou da lei. É por isso que ele é o pai de todos aqueles que acreditam e acreditarão (Rm 4, 10-16).

3.2 Os efeitos da justificação

Da inimizade, passamos a experimentar uma paz estável e uma esperança de confiança na plenitude da salvação: “uma vez que recebemos a justificação através da fé, estamos em paz com Deus […] e nos gloriamos na esperança de participar da glória de Deus “(Rm 5,1-2). A justificação nos liberta da lei, do pecado e da morte, para que possamos ter parte da ressurreição de Jesus, da vida eterna, sendo incorporados ao corpo de Cristo (Rm 5,21, 6,5, 7,4). Através do amor de Deus derramado em nossos corações, somos capacitados a viver de acordo com o Espírito Santo, a viver profundamente como filhos e filhas de Deus (Rm 5,5; 8; 9.14-17).

Nós e toda a criação gememos, desejando nossa libertação plena, e o próprio Espírito geme em dores de parto até a nova criação (Rm 8,19-27). Devemos encarnar o dom da justificação em nós mesmos e em toda a criação através de um lento processo de santificação, para que tudo seja levado à plenitude da salvação. A justificação possibilita as obras de amor que dão “frutos de santidade” (Rm 6,22; 12,9-13). A fé “age pela caridade” (Gl 5,6), e a caridade é “a lei em plenitude” (Rm 13,9).

4 Elementos do desenvolvimento da justificação na história da teologia

Santo Agostinho reconhece a nossa necessidade absoluta da graça de Deus para a remissão dos pecados, bem como para agir bem e resistir ao mal. A graça da justificação é dada pelo dom da caridade que “foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo” (Rm 5, 5), o que, por sua vez, nos permite amar. A graça de Deus é essencial em nossa possibilidade, vontade e ação para cumprir os mandamentos (Fl 2,13), e as ações de Deus se tornam nossas. A graça trabalha na nossa vontade de fazer o bem. Nosso livre-arbítrio é liberado internamente para se tornar liberdade e empoderamento para reconhecer e escolher o bem e se alegrar com isso. A justificação é entendida não como algo que é feito de uma vez por todas, mas como um processo crescente.

Santo Tomás de Aquino indica “os quatro elementos da justificação […] na infusão da graça, no dom da fé, no movimento para Deus e no distanciamento do pecado” (COLZANI, 2001, 591).  A respeito desses dois últimos elementos, admite a possibilidade de que a liberdade humana participe do dom da justificação, através da “penitência, contrição e conversão” (COLZANI, 2001, 605). Vários detalhes da visão de Santo Agostinho e Santo Tomás serão retomados no Concílio de Trento.

5 A justificação na teologia de Lutero

Lutero elaborou sua teologia da justificação a partir de suas próprias experiências existenciais-espirituais e no contexto de sua denúncia de certas práticas na Igreja de seu tempo. Ele percebeu as indulgências e os estipêndios ligados às missas para os falecidos como uma maneira pelagiana de tentar comprar o céu, uma tentativa de “justificação pelas obras”.

Para Lutero, Deus revela o seu poder inclinando-se para as suas criaturas para salvá-las da miséria de seus pecados através do seu Filho crucificado. Suas promessas são confiáveis e, por isso, os fiéis podem ter uma certeza inabalável de serem salvos. Ao sermos alcançados por ele, recebemos sua justiça, sua salvação. Não podemos nos justificar por nossos próprios esforços. Lutero afirma a natureza forense da justificação: por causa de Cristo, Deus declara justo ao pecador arrependido. É em virtude da nossa união com Cristo que Deus nos imputa sua justiça, considerando que a justiça de seu Filho seja a nossa. Esta justiça permanece exterior ao crente porque depende da vontade de Deus, sem obrar nele uma transformação interior. Não é algo que alguém poderia possuir ou desenvolver. A pessoa cristã é ao mesmo tempo justa e pecadora (simil iustus et peccator), já que o pecado original é realmente o pecado e permanece na pessoa após o batismo.

Os seguidores de Lutero, por outro lado, colocaram em primeiro plano o caráter jurídico e substitutivo da justificação, considerando-a em termos de resgate pago por Cristo e não por nós os endividados. Neste esquema, nossa união com Cristo ocupa um segundo plano (WILLIAMS, 2004, 977).

Enfatizando o primado absoluto de Deus, Lutero entende a graça como o favor gratuito de Deus. imerecido. Ele também considera que somos escravizados ao pecado até tal ponto que perdemos completamente nossa liberdade em relação às coisas que levam à salvação e, por isso, opõe o conceito de livre arbítrio com seu servo arbítrio. Por estas razões exclui as boas obras de justificação. Não podemos cumprir a lei por meio de nossos próprios esforços, mas através da obediência de Cristo a lei foi cumprida para nosso benefício. O reformador rejeita qualquer noção de graça infusa de acordo com as categorias escolásticas, que impulsione as boas obras que nos mereçam a salvação e as incorporem ao que é entendido por justificação. Para ele “as obras da lei” não trazem méritos nem nos justificam (Gl 2,16; Rm 1,17).

Em vez disso, somos justificados pela fé (Rm 3,28; Ef 2,8-9). Ter fé é ter confiança em Cristo e em sua obra de reconciliação e deixá-lo fazer, esvaziando-nos de nós mesmos. Além disso, somente a fé (sola fide) nos traz salvação. Através da fé, apropriamo-nos da justiça que Deus nos dá. As obras seriam uma pretensão de auto-justificação, suplantando Deus. A iniciativa de justificação vem da decisão de Deus e não depende da nossa fé como tal. Nós apreendemos essa decisão de Deus na fé, porque a fé vem da justificação e nos faz agir consequentemente. Os momentos de justificação e santificação são distinguidos (WILLIAMS, 2004, 977). Com o termo sola fide “Lutero queria colocar a ênfases na fé mais do que nas obras, bem como entender a fé de forma pessoal, excluindo toda a função da Igreja” (COLZANI, 2001, 597).

Temendo a presunção ou a auto-suficiência que as obras podem gerar em uma pessoa, em um dos seus primeiros escritos, Lutero distingue as “obras da lei” (Rom 3,20) das “obras da fé” (Gl 5,6). Embora aquelas são suscitadas pela lei através do medo ou da promessa de bens temporais, estas são feitas por pessoas já justificadas pela fé, desde a liberdade e motivadas unicamente pelo amor de Deus, porque “a fé sem obras está morta” (Tg 2,26; LUTERO, s / f, 138).

6 A resposta do Concílio de Trento

O Concílio de Trento abordou várias questões doutrinárias para refutar os erros dos protestantes. O tema do pecado original foi abordado em um decreto próprio antes do tema da justificação, por ser visto como condicionante da mesma. Para Barbara Andrade poderia ter sido um único decreto, incorporando as afirmações sobre o pecado original no decreto sobre a justificação, e assim melhor evidenciar a prioridade da graça sobre o pecado (ANDRADE, 2004,151-153).

O Decreto sobre o pecado original, datado de 1546, é um texto sucinto. Entre outros pontos, ele esclarece que se perdoa o pecado original pela paixão e morte de Cristo, cujos méritos são aplicados às pessoas no batismo (DH 1513). O pecado original é realmente perdoado, e não se trata apenas de não o levar em consideração (DH 1515).

O Decreto sobre a Justificação, concluído em 1547 (DH 1520-1583), é o resultado de um trabalho profundo ao longo de sete meses que procurou expor “a verdadeira e sadia doutrina” (DH 1520) sobre este assunto, novamente para responder os erros dos reformadores e também para refutar qualquer vestígio de pelagianismo e semi-pelagianismo. No prólogo existem dezesseis capítulos expositivos, que são complementados por trinta e três cânones.

Ao compreender a graça em termos de uma relação vital entre Deus e a pessoa, e com o dinamismo salvífico, a necessidade de graça é afirmada em cada etapa do processo de justificação. Os capítulos 1-9 lidam com a primeira justificação na pessoa adulta, que é realizada após a evangelização e a recepção do batismo, com o dom da adoção filial. O ser humano é radicalmente incapaz de libertar-se de sua servidão ao pecado. Através do pecado, a vontade livre foi “atenuada nas suas forças” (DH 1521), mas não foi anulada. O dom da justificação nos leva do legado de Adão ao legado da graça de Cristo. Esta é completamente gratuita e nos convida a conversão.

É a partir da graça de Cristo que nosso livre arbítrio coopera para nos dispor para receber a sua justiça, para não pecar novamente. Nós somos justificados pela fé no sentido de que o ato de fé é o começo da salvação, o primeiro passo na preparação para receber a justificação. Seguem os atos de esperança e de um início do amor a Deus, numa sequência que também inclui o temor da justiça divina que leva à consideração da misericórdia divina, do ódio ao pecado e das ações de penitência. Mas a graça á qual esses atos correspondem é ainda exterior ao ser da pessoa pecadora (GROSSI, SESBOÜÉ, 2003b, 290). Tudo culmina na recepção do sacramento do batismo e no início de uma nova vida.

O momento da justificação é necessário quando o Espírito Santo derrama o amor divino em nossos corações (Rm 5, 5). A graça não é apenas o favor de Deus ou a imputação da justiça, mas é inerente à pessoa e a faz justa realmente. Essa justiça inerente “estabelece entre Cristo e os crentes uma unidade de tipo óntico, em virtude da qual somos perdoados e salvos” (COLZANI, 2001, 268). A tríade de atos de fé, esperança e amor do tempo da preparação para a justificação agora se tornam inerentes, isto é, dons infundidos, frutos de justificação. Da externalidade da graça antes da justificação, as inseparáveis virtudes teologais tornam-se o princípio imanente do nosso ser, e nos unem a Cristo fazendo-nos membros de seu corpo. Pelo impulso da caridade, não é possível que alguém seja justificado apenas pela fé, isto é, por uma fé que seria morta se não fosse animada pelas obras do amor.

É desde a justiça de Cristo que podemos exercer a nossa liberdade ao acolher e colaborar com a graça da justificação, pelo qual os pecados são perdoados e a pessoa é santificada e renovada interiormente. Você não pode dissociar esses dois aspectos da justificação. Pela graça de Cristo, a pessoa se torna uma nova criatura, verdadeiramente mudada: de injusta a justa, de inimiga a amiga.

A partir de uma “metafísica das causas” (GROSSI, SESBOÜÉ, 2003b, 291), são expostas todas as dimensões sob as quais se pode esclarecer que somente Deus é o autor da nossa justificação. A causa final disso é “a glória de Deus e de Cristo e a vida eterna”, e a causa eficiente “o Deus misericordioso, que gratuitamente lava e santifica (1Cor 6,11), selando e ungindo (2Cor 1,21s)” com o Espírito Santo de sua promessa, que é uma promessa de nossa herança “(Ef 1,13)” (DH 1528). A causa meritória é o Filho na sua paixão na cruz. A causa instrumental refere-se ao sacramento de nossa fé, isto é, ao batismo, a um ato eclesial que torna visível a realização do dom da justificação. Finalmente, a causa formal é a justiça de Deus, isto é, a mesma justiça com a qual ele nos torna justos, que se torna a “forma” de nossa justiça, personalizada em sua medida para cada indivíduo.

Para manter as proporções adequadas do temor de Deus e da virtude da esperança, ninguém deve se vangloriar da certeza da remissão de seus pecados por parte de Deus, nem tornar esta certeza da fé uma condição para a justificação em si mesma. Portanto, devemos evitar uma presunção imprudente sobre a predestinação divina e nossa perseverança final. Em vez disso, esperamos e confiamos humildemente na misericórdia de Deus.

Os capítulos 10 a 13 lidam com a vida da pessoa justificada. Profundamente renovado, cresce na justiça e na santificação através de uma cooperação de fé com as boas obras. Ninguém pode por a desculpa de ser justificado apenas pela fé para evitar a prática da justiça em um espírito generoso em relação ao próximo, nem a realização de outros mandamentos.

Os Capítulos 14-16 abordam a questão da recuperação da justificação e os frutos dela. Se, pelo pecado, se perde a justificação, pelo sacramento da penitência pode ser recuperada. Nossas boas obras são recompensadas por Deus no céu. “Merecem-nos” a vida eterna, porque, como Agostinho compreendeu, os dons divinos se tornam nossos méritos. O mérito é fruto não de obras humanas como tais, mas de justificação, “da influência de Cristo na nossa liberdade” (COLZANI 2001, 272).

O Decreto sobre a Justificação do Concílio de Trento oferece um ensinamento esclarecido e equilibrado sobre o assunto através da colheita de princípios fundamentais de certos textos bíblicos e da tradição teológica, e ficando acima de pontos controversos de escola. Em vez de se opor ao primado absoluto de Deus e à realidade da liberdade humana, consegue uni-las para o processo de justificação, elemento vital da nossa salvação.

7 Avanços ecuménicos

Na época da Reforma e da Contrarreforma, faltou um verdadeiro diálogo entre as duas partes sobre suas respectivas posições doutrinárias. Para os Reformadores, a doutrina da justificação foi o fundamento de toda a teologia e, portanto, a raiz de todos os outros conflitos. Um ambiente de reações reflexas prevaleceu diante de interpretações, muitas vezes inadequadas, sobre o que um ou outro disse, o que levou a condenações mútuas. Por exemplo, o Concílio de Trento atacou a “confiança vã” (DH 1533) daqueles que têm certeza absoluta de sua justificação. O Concílio, ao querer opor-se ao orgulho e à sobrevalorização das capacidades morais do ser humano, sem querer, coincidiu com Lutero. Não tinha entendido que para ele “a fé compreende a certeza absoluta de que Deus nos justifica, mas não a convicção pessoal de que nós responderemos positivamente à sua graça” (COLZANI, 2001, 272). Neste “diálogo dos surdos”, a reflexão teológica se estagnou durante séculos.

Após o Concílio Vaticano II, um árduo trabalho ecumênico começou a reexaminar as diferenças confessionais à luz dos estudos contemporâneos da Bíblia e da história da Igreja, deixando de lado os preconceitos. Alguns documentos regionais marcaram destaques ao longo do caminho. Novas expressões da fé comum foram buscadas, para superar controvérsias e formulações tradicionais tão carregadas com leituras parciais. A Declaração Conjunta sobre a Doutrina de Justificação (DJ), assinada pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e a Federação Luterana Mundial em Augsburg em 31 de outubro (Dia da Reforma) de 1999, é fruto desse trabalho “Era uma experiência peculiar de diálogo, em que cada um estava disposto a repensar as coisas a partir da riqueza do outro e, assim, se preparava para redescobrir aspectos de sua própria verdade que as circunstâncias históricas haviam ofuscado” (FERNÁNDEZ, 2010, 187-188).

A partir do desenvolvimento da mensagem bíblica, o documento articula “uma interpretação comum da nossa justificação pela graça de Deus através da fé em Cristo”, mesmo reconhecendo que “não abrange tudo o que ambas as igrejas ensinam sobre a justificação, limitando-se a reunir o consenso sobre as verdades básicas desta doutrina e demonstrar que as diferenças remanescentes em termos de sua explicação já não dão lugar a condenações doutrinárias “(DJ 5).

Uma declaração central sintetiza os principais temas da teologia da justificação: “Juntos confessamos”: Somente pela graça através da fé em Cristo e sua obra salvífica e não por algum mérito, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo que renova nossos corações, capacitando-nos e chamando-nos para boas obras “(DJ 15). Em todo o documento há muito cuidado para coletar adequadamente as preocupações essenciais de cada confissão. Por exemplo, afirma-se que a justificativa é um dom que não está condicionado a certas ações prévias por parte do ser humano (uma ênfase luterana) e que, ao mesmo tempo, essa justificativa se apropria do pecador para instituir uma nova vida nele (uma ênfase católica).

Afirma a legitimidade de uma pluralidade de linguagem e de acentos na interpretação de alguns aspectos da doutrina da justificação. Por exemplo, a cooperação humana ou a passividade na justificação; inclusão ou não da santificação na compreensão da justificação; “Justificação pela fé” ou “justificação pela graça”; se a concupiscência é pecado ou não; os papéis do cumprimento dos mandamentos e do mérito. Em alguns casos, é possível “traduzir a linguagem de uma confissão para a linguagem do outro”, por exemplo: “a fé protestante tem a mesma densidade teológica que a trilogia católica ‘ fé, esperança e caridade’ (VALLS, 1999, 570).

“Nosso consenso em relação aos postulados fundamentais da doutrina da justificação deve vir a influenciar a vida e o ensino de nossas igrejas. Lá será verificado “(DJ 43). As tarefas de continuar a aprofundar as diferenças que perduram e de acolher as consequências da Declaração na vida real de cada confissão são vitais em todo o empreendimento ecumênico de caminhar para além da divisão da igreja “em direção a essa unidade visível que é vontade de Cristo “(DJ 44).

8 Atualização desde América Latina

Dada a ênfase individualista que caracterizou a teologia da justificação tanto da reforma protestante quanto da católica, a teologia latino-americana ajuda a recuperar a inevitável perspectiva comunitária na relação de Deus com suas criaturas. O contexto de um continente tão prejudicado por estruturas sociais injustas exige repensar o tema da justificação, de modo que não se limite à piedade pessoal, íntimista, sem impacto coletivo.

A escolha divina não é de indivíduos isolados nem é algo abstrato. Deus escolhe um povo (Dt 14.2; 1Pd 2,9) para sua justificação e glorificação (Rm 8,28-30). Tanto Israel como o novo povo de Deus que são a comunidade cristã tomam consciência de sua escolha através da experiência da ação salvadora de Deus em sua história, motivada unicamente por seu amor gratuito. A Igreja é convidada a receber suas eleições com alegria e a enfocar a vida em Cristo, o que significa assumir a responsabilidade de lutar pela realização dos valores do Reino de Deus, numa transformação que humaniza a sociedade e no horizonte da esperança escatológica.

 A teologia latino-americana contemporânea retoma a intuição agostiniana que compreende a justificação em termos da libertação de nossa liberdade sujeita ao egoísmo e suas consequentes atitudes e escolhas pecaminosas, e que percebe como a ação amorosa da graça de Deus em nossa liberdade a desencadeia e a estimula para entregar a vida por amor (Gl 5,1.13-14). O Espírito que nos traz liberdade (Rm 8,2; 2Cor 3,17) nos impulsiona com sua força dinâmica a sair de nós mesmos para os outros, que por sua vez revelam o rosto de Cristo. O estado ontológico de liberdade permite a liberdade em sentido ético (MIRANDA, 1991, 98). Nossa liberdade está sempre “situada”, afetada pelo ambiente vital do momento histórico. Em um contexto marcado por fortes desigualdades sociais que geram pobreza e violência, o amor ao próximo exige denúncia profética e um compromisso de lutar pela justiça, bem como promover ações de solidariedade com pessoas e grupos marginalizados (MIRANDA, 1991, 104-105 ).

Com uma eloquência renovada, vários autores latino-americanos teorizam, direta ou indiretamente, as interpelações perenes para realizar as obras de amor que são fruto da justificação pela fé, priorizando precisamente a prática da justiça do Reino de acordo com o discernimento dos sinais dos tempos. Por exemplo:

Movidos pelo Espírito que atua a partir das margens da Igreja e no reverso da história, acreditamos que as periferias são lugares teológicos […]. […] ratificamos nosso compromisso iniludível com as irmãs e irmãos nas periferias da sociedade, atormentados pela pobreza e várias formas de exclusão social, econômica, política e eclesial, que chama urgentemente a luta pela sua maior inclusão e integração (I ENCONTRO IBEROAMERICANO DE TEOLOGIA, 2017)[1].

Eileen FitzGerald. Universidade Católica Boliviana “San Pablo” de Cochabamba (Bolívia). Original em espanhol.

9 Referências bibliográficas

ANDRADE, B. Pecado original ¿o gracia del perdón? Salamanca: Secretariado Trinitario, 2004.

COLZANI, G. Antropología teológica: el hombre, paradoja y misterio. Salamanca: Secretariado Trinitario, 2001.

CONSEJO PONTIFICIO PARA LA PROMOCIÓN DE LA UNIDAD DE LOS CRISTIANOS; FEDERACIÓN LUTERANA MUNDIAL. Declaración conjunta sobre la doctrina de la justificación (31 oct.1999). Disponible en: <http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/chrstuni/documents/rc_pc_chrstuni_doc_31101999_cath-luth-joint-declaration_sp.html>. Acceso en: 17 abril 2017.

MIRANDA, M. F. Libertados para a práxis da justiça: a teologia da graça no atual contexto latino-americano. São Paulo: Loyola, 1991.

DENZINGER, H.; HUNERMANN, P. El Magisterio de la Iglesia. Barcelona: Herder, 1999.

FITZMYER, J. A. Carta a los Romanos. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. Nuevo comentario bíblico San Jerónimo: Nuevo Testamento y artículos temáticos. Estella (Navarra): Verbo Divino, 2004, p. 361-418.

FERNÁNDEZ, V. M. Gracia: nociones básicas para pensar la vida nueva. Buenos Aires: Ágape, 2010.

FRANCISCO, Misericordiae vultus: bula de convocación del jubileo extraordinario de la misericordia (11 abril 2015). Disponible en: https://w2.vatican.va/content/francesco/es/apost_letters/documents/papa-francesco_bolla_20150411_misericordiae-vultus.html. Acceso en: 15 abril 2016.

GONZÁLEZ FAUS, J. I. Proyecto de hermano: visión creyente del hombre. Santander: Sal Terrae, 1987.

GROSSI, V.; SESBOÜÉ, B. Graça e justificação: do testemunho da Escritura ao fim da Idade Média. In: SESBOÜÉ, B. ET AL. (DIR.). O homem e sua salvação (séculos V-XVII). São Paulo: Loyola, 2003, 229-274.

______. Graça e justificação: do concílio de Trento à época contemporânea. In: ______, ______, 275-311.

I ENCUENTRO IBEROAMERICANO DE TEOLOGÍA. Declaración de Boston. Boston College, 6-10 feb. 2017. Disponible en: https://www.bc.edu/schools/stm/formacion-continua/encuentro-ibero-americano/declaracionBoston.html. Acceso en: 30 abril 2017.

LUTERO, M. Comentarios de Martín Lutero vol. 1: carta del apóstol Pablo a los romanos. Sevilla: CLIE, s/f.

VALL, H. Comentario al documento “Declaración conjunta sobre la doctrina de la justificación”. In: Diálogo Ecuménico t. XXXIV, n. 109-110, p. 565-572, 1999.

WILLIAMS, R. Justificação. In: LACOSTE, J-Y. (DIR.). Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Loyola/Paulinas, 2004, p. 974-980.

 

[1] A Declaração de Boston foi assinada por 36 teólogos e teólogas, incluindo a Virginia Azcuy, Víctor    Codina, José Ignacio González Faus, Gustavo Gutiérrez, Maria Clara Lucchetti Bingemer, Juan Carlos Scannone, Pedro Trigo, Jon Sobrino, Roberto Tomichá e Olga Consuelo Vélez.

Maria na Bíblia

Sumário

1 Maria na Bíblia

1.1 Antigo Testamento

1.2 Novo testamento

1.2.1 Identidade de Maria de Nazaré

1.2.2 Carta de Paulo

1.2.3 Evangelho de Marcos

1.2.4 Evangelho de Mateus

1.2.5 Evangelho de Lucas

1.2.6 Evangelho de João

1.2.7 Apocalipse

2 Referência

1 Maria na Bíblia 

Os dados bíblicos sobre Maria estão inseridos na história da salvação, no anúncio do mistério de Cristo e na perspectiva de cada escrito. Embora não haja “biografia” sobre a vida de Maria, sua presença nas Escrituras tem um significado teológico por causa do lugar que ela ocupa no núcleo do evento de Cristo que a transcende. A exegese moderna enfatiza que o mistério de Maria significa a síntese de toda a revelação precedente sobre o povo de Deus, de todas as pessoas da aliança, que tem seu ponto culminante em Cristo. “Ela é o ícone de todo o mistério cristão” (FORTE, 1993, 112).

1.1 Antigo Testamento

O que o AT nos fala sobre a Virgem Maria? A exegese e a teologia, juntamente com o Magistério e a Tradição da Igreja, referem-se ao papel da Virgem Maria na história da salvação. Colocam-na em sua prefiguração no AT e depois em sua missão como mãe da Igreja e de Cristo. Existem várias opiniões de exegetas sobre a presença de Maria no AT (POZO, 1974, 126). Alguns falam de sua ausência ou de aparições muito fugazes sob a forma de revelações ou profecias e outros afirmam que está presente em toda a Bíblia (CAROL, 1964, p. 55). De acordo com São Agostinho: “O NT está escondido no Antigo e o AT é revelado no Novo” (São Agostinho: “No Vetere Testamento Novum Latet, e em Novo Vetus patet”. Quatest. Em Hept, II 73: ML 34.623). A Constituição Lumen Gentium, nº55 do Concílio Vaticano II, afirma:

“A Sagrada Escritura do Antigo e Novo Testamento e a venerável Tradição mostram de modo progressivamente mais claro e como que nos põem diante dos olhos o papel da Mãe do Salvador na economia da salvação. Os livros do Antigo Testamento descrevem a história da salvação na qual se vai preparando lentamente a vinda de Cristo ao mundo. Esses antigos documentos, tais como são lidos na Igreja e interpretados à luz da plena revelação ulterior, vão pondo cada vez mais em evidência a figura duma mulher, a Mãe do Redentor. A esta luz, Maria encontra-se já profeticamente delineada na promessa da vitória sobre a serpente (cfr. Gn 3,15), feita aos primeiros pais caídos no pecado. Ela é, igualmente, a Virgem que conceberá e dará à luz um Filho, cujo nome será Emanuel (cfr. Is 7,14; cfr. Mq 5, 2-3; Mt 1, 22-23).”

O teólogo C. Pozo classifica os escritos em três tipos:

a) textos com verdadeiro sentido mariológico: Gênesis, 3,15; Isaías 7,14 e Miqueias 5,2-3. Gênesis 3,15: tem um sentido messiânico em que triunfa a linhagem de uma Mulher que esmaga a cabeça da serpente que simboliza o mal. O verbo ‘ipsa’ usado pela Vulgata o confirma: “Ela vai esmagar sua cabeça”. Os teólogos afirmam que, nos versículos Gn 3, 15, é Eva no sentido literal, mas é Maria em um sentido literal profundo e completo. O texto de Isaías 7:14 é messiânico e mariológico “uma donzela está grávida e vai dar à luz um filho e a chamará de Emanuel.” Isaías usa a expressão ‘Almah‘ para se referir à mãe de Emanuel; a tradução literal : donzela, jovem adolescente, virgem. Mateus ratifica-o em Mt 1,22-23, indicando que esta profecia é cumprida na concepção virginal de Jesus. Lucas também cita a Is 7,14 e 9,5 na anunciação (Lc 1,31-32) O texto de Miqueias 5,1 ss está intimamente relacionado com Is 7,14; há um paralelismo entre Almah e Emanuel. Esta profecia completa a predição de Isaías, afirmando que a “almah” dará à luz a Emanuel em Belém de Efratá.

b) Textos com sentido mariológico discutido: Jr 31,22; Sl 45, Cântico dos cânticos 5,2b. 6. Embora os textos tenham uma tradição mariológica, eles contêm infidelidades e outras situações irregulares.

c) Textos marianos por acomodação: o texto de Jt 15,9, onde na figura de Judite é visto um tipo de Maria no sentido técnico da palavra. Em Pr 8 e Ecle 24,11, se sugere a presença de Maria no plano divino da salvação formado desde a eternidade , (POZO, 1974, 127).

Autores como Laurentin e Bertetto falam de um triplo anúncio a Maria na literatura do Antigo Testamento e isso se reflete no NT. O triplo anúncio é equivalente a uma tripla preparação: moral, tipológica e profética (PONCE CUELLAR, 2001, 52).

1. 2 Novo Testamento

Quando Maria aparece nos vinte e sete escritos que compõem o cânon NT? O primeiro texto que a menciona é o de São Paulo na carta aos Gálatas no ano 53-57 dC, depois o Evangelho de Marcos ao redor do ano 64 dC, o de Mateus entre 70-80 dC, o de Lucas, autor também dos Atos dos Apóstolos, cerca de 70 dC. O Evangelho de João e o livro de Apocalipse no capítulo 12, entre 90 e 100 dC.

1.2.1 Identidade de Maria de Nazaré

María, Miryam[1], é uma mulher judaica de uma cidade pobre chamada Nazaré, a quem ela pertence e faz parte de sua história. Ela foi instruída por Deus na “escola da vida”, onde aprendeu a humildade, sabedoria e amor que ela transmitiu a Jesus. Ela era sua melhor professora e, ao mesmo tempo, sua discípula. Sua pobreza pode ser descrita como “confiança e abandono no Deus de Jesus”, em quem ele colocou todo o seu amor, fé e lhe deu esperança na vida cotidiana entre alegria e dores (BOFF, 2009, 102). O primeiro escrito sobre a mulher que interveio no mistério da encarnação foi de Paulo em Gl 4,4. Nos Evangelhos de Mateus, Marcos Lucas e no livro dos Atos dos Apóstolos, Maria é chamada pelo seu nome. No evangelho de São João, se fala da mãe de Jesus, ou sua mãe, sem dizer o nome dela. Os outros livros a mencionam indiretamente, apontando que Jesus é o Filho de Davi, que somos Filhos da Promessa, da Jerusalém acima, que o Pai nos enviou seu Filho, nascido de mulher e é reconhecida na Mulher coroada com estrelas do Apocalipse (Ap 12). Os Evangelhos sinópticos apresentam a figura de Maria em referência a Jesus em momentos diferentes. Na genealogia (Mt 1,16, Lc 3,23), na sua concepção virginal (Lc 1,26-38); na visita de Maria a Isabel e no Magnificat (Lc 2, 39-56). Em seu nascimento (Mt 1, 25; Lc 2,1-20), na apresentação no templo (Lc 2,21-38); na fuga e retorno do Egito (Mt 2,1-23). No relacionamento com parentes e discípulos (Mc 3,3-35; 6,1-3; Mt 12,46-50; 13,53-58; Lc 8,19-21; 4,16; 22-30).

1.2.2 Carta de Paulo

A carta de Paulo aos Gálatas está localizada ao redor do ano 49 ou entre 53-57 dC e é o primeiro testemunho mariano no NT sobre a Virgem, a mulher mediadora da encarnação (Gl 4, 4). É o germe da doutrina mariana. Destaca o dom singular que Deus fez a Maria como Mãe do Senhor e nela o respeito e a estima pela mulher, dando-lhe um lugar proeminente na história da humanidade. Confirma o modo de Deus de fazer parte da história, desde dentro, mergulhando nos fatos e eventos da vida. O mesmo Deus que formou parte de um povo (Rm 1,3), que falou através dos profetas “muitas vezes e de muitas formas” (Hb 1,1) dentro do espaço tempo. Quando o Pai envia seu Filho para que seja parte de nossa história, os tempos do plano divino atingem sua plenitude. Cristo é o ponto ômega e nesta cimeira há uma mulher, Maria, nela e dela, se formou o corpo de seu Filho (Hb 2,14 Rm 9,5). Através da maternidade que significa nascer como qualquer ser humano, o Filho do Pai preexistente ao mundo se enraíza no tronco da humanidade, fazendo-nos filhos no Filho.

1.2.3 Evangelho de Marcos

 

Este evangelho apresenta a imagem mais antiga de Maria. Recolhe as catequeses e a pregação de São Pedro. Ele começa a falar sobre João Batista e Jesus adulto que é batizado no Jordão. É a imagem da tradição pré-evangélica que se remonta ao próprio Jesus e é apenas esboçada, apresentando claramente suas características essenciais. É a mãe ignorada, de um Messias ignorado ou de um “judeu marginal”, segundo Meier, e uma mãe vituperada de quem é vituperado (MEIER, 1993). Mas, para Jesus, o Filho de Deus, ela é abençoada por ter acreditado nele e, por essa razão, ela é mãe pela fé mais do que pelo seu sangue, dos seus discípulos, isto é, da sua Igreja. Este evangelista apresenta Jesus o Filho de Deus, que é a Boa Nova e essa proclamação de fé provoca aceitação ou rejeição. Com a pergunta: quem é minha mãe e meus irmãos? (Mc 4,33) anuncia a formação de uma nova família, (GARCIA PAREDES, 2005, 16-27), não mais relacionada com o sangue, mas com o espiritual, “porque quem faz a vontade do meu Pai Celestial, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe “(Mc 3,35).

1.2.4 Evangelho de Mateus 

O profeta Miqueias, citado pelo Evangelista Mateus (Mt 2,6), anunciou que de Belém: “sairia um chefe, o pastor do meu povo, Israel” (Mq 5,1). Jesus será o “novo Moisés” que libertará da escravidão através de um novo êxodo, assumindo o exílio, a perseguição para levar o povo a uma libertação nova e definitiva (Mt 2,13 ff.; Ex 2,1-9; 4,19-23). Uma Virgem que está grávida será a Mãe do Salvador, do Messias, (Filho de Deus e filho de Davi). A Virgem Maria é a esposa de José, filho de Davi. Ela é parte de um povo que aguarda o Messias e terá o apoio de José, porque precisa dele para que seu Filho possa ter um lar. Ele vive o conflito de aceitá-la como esposa ou repudia-la em segredo e o resolve depois de ouvir o anjo nos sonhos. É necessário que ao fiat de Deus (Is 7,14) lhe corresponde o fiat do ser humano. Quando José dá o seu fiat, “acordando  José do sono, ele fez como o anjo do Senhor o ordenara” (Mt 1,24), o cumprimento da Palavra atinge a plenitude, o conflito é resolvido (GARCIA PAREDES, 2005, 56 ). E Jose, legal e humanamente, assume a condição paternal de Jesus, recebendo Maria como sua esposa, pela qual Jesus é “filho de Davi”. Jose aceita Maria e ao “filho de Maria” gerado pelo Espírito Santo, o Emanuel (Mt 1,20). Ele testemunha que Jesus é o Filho de Deus e o sim de Maria é completado com seu sim, constituindo a família de Jesus, onde ele terá sua primeira experiência de vida comunitária, communio e aprenderá a se relacionar com ambos. A virgindade de Maria é uma característica mariana que está em estreita ligação com a filiação e a origem divina do Messias. Este nasce de Maria sem a mediação do homem e pela obra do Espírito Santo, segundo afirma Mateus.

1.2.5 Evangelho de Lucas 

O evangelista Lucas narra a origem de Jesus e a origem da Igreja destacando a presença de Maria nos mistérios da Encarnação e de Pentecostes. A concepção virginal de Maria é descrita aqui através da Epifania de Deus na Arca da Aliança (Êxodo 40,35). A nuvem de Deus aparece sobre os dois e suas consequências são análogas. A Arca está cheia de Glória, Maria está cheia da presença de um ser que merece o nome de Santo e de Filho de Deus.

A figura de Maria é apresentada como uma testemunha privilegiada não só da vida de Jesus, mas também do significado teológico dessa vida. Ele é uma testemunha do que acontece porque ele “manteve todas essas coisas e meditou-as em seu coração” (2,19); “Sua Mãe cuidadosamente guardou todas as coisas em seu coração” (2,51). Uma Mãe que cuida com amor e está atenta ao seu Filho. Ela sai e visita Isabel expressando com alegria a ação de Deus em sua vida no Magnificat. No momento do nascimento, ela dá à luz ao Pastor, num contexto pastoril e os primeiros que o reconhecem são os pastores que vão ver a Criança e sua Mãe (2,6-20). Eles são, juntamente com “uma nuvem de testemunhas”, aqueles que testemunham a historicidade do evento. E é o Espírito Santo que, através de Maria (a Filha de Sião, a Arca da Nova Aliança), testemunha a Jesus e realiza a tarefa de ensinar aos crentes em Jesus Cristo “todas as coisas”. Maria então desaparecerá. discretamente para dar a palavra ao seu Filho quando ele – aos 12 anos de idade em seu Bar-Mitzvah, no Templo de Jerusalém – se torna um mestre adulto da sabedoria de seu povo e se torna capaz de dar testemunho válido de si mesmo e do Pai. Ele fará o mesmo nos Atos dos Apóstolos, quando seus discípulos, com a presença do Espírito Santo no dia de Pentecostes, se tornem mestres da Nova Lei do Espírito e servos da Palavra (TEPEDINO, 1994). Com a força e o poder do alto, darão testemunho da paixão e ressurreição, quer dizer, da identidade messiânica e divina de Jesus.

1.2.6. Evangelho de João

João apresenta Maria como a “mãe de Jesus”, no contexto das bodas em Caná (Jo 2,1-2) e ao pé da cruz (Jo 19,25-27). Seu próprio Filho a chamou de “mulher”, gu / nai, revelando sua identidade mais profunda, o seu ser “mulher” antes que sua maternidade[2]. Estudiosos da obra de João têm visto uma continuidade entre o quarto Evangelho e o Apocalipse identificando com a mesma função à mulher, gunh / no parto em Apocalipse 12 com Maria, a mãe de Jesus, embora não seja nomeada  como tal. A forma como é apresentada revela essa continuidade porque tanto em João 2,4; 19:26 e Ap 12, essa mulher, gu / nai gunh / está em referência a Cristo e à sua maternidade biológica e espiritual que é fecunda ao abraçar aos “novos filhos” que lhe dá o seu Filho. Neste sentido, é figura da Igreja e é apresentada em Jo 2,4; 19.26 com os discípulos que representam a comunidade dos seguidores de Jesus. O fato de que não aparece sozinha com Jesus significa que sua missão é em referência a Jesus e à comunidade, ali será compreendida a sua maternidade por ser mulher. Então se pode dizer que o quarto Evangelho e o Apocalipse têm um profundo conteúdo eclesial e mariano, ao apresentar a Maria e aos personagens, homens e mulheres, que representam a comunidade. Ambas as interpretações, eclesiológica e mariana, foram analisadas a partir dos grandes períodos da tradição cristã, que são a época patrística e a medieval.

Maria nas bodas de Cana, se compadece com as necessidades dos noivos (Jo 2,3) e começa o diálogo fazendo de mediadora entre Jesus e os serventes. Sua função é facilitar o contato dos homens e mulheres com Cristo, colaborando na consciência de sua verdadeira identidade. Suas palavras e gestos: “façam tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5) ajudam a revelar a divindade de Jesus, seu ser Filho unigênito do Pai  através de um sinal. A boda evoca imagens da era messiânica (ou seja, a nova criação) como o vinho e os alimentos deliciosos (cf. Os 2,19-20; Is 25,6-8; Jr 2,2; Cântico dos cânticos). Por sua mediação cautelosa é realizado o sinal, onde Jesus manifesta a sua glória (v. 11), destacando a dimensão cristológica do relato.

As últimas palavras de Maria em Cana (Jo 2,5) têm continuidade em Jo 19,26-27, quando ouviu que Jesus lhe diz: “Mulher, eis aí o teu filho”.  Então ele disse ao discípulo: “Eis aí tua mãe”. E a partir dessa hora,” o discípulo a recebeu em sua casa “. A expressão” mulher “, gu / nai e não” mãe “, é considerada uma evocação simbólica de Eva em Gênesis 3, a mulher do protoevangelho, de acordo com as obras de Braum e Feuillet.

As palavras “Mulher, eis aí o teu filho” (v. 26), recordam as fórmulas de adoção, embora Brown diga que é mais apropriado falar de uma “fórmula de revelação” (Cf. Jo 1,21; 36, 1,47), isto é, revela o conteúdo que a nova relação deve ter, a nova maternidade de Maria que ela recebe como o “testamento de seu Filho desde a cruz”

De acordo com Brown, a expressão “Eis aí tua mãe” (v. 27) mostra que, a partir de agora, a mãe e o discípulo estarão em uma nova relação querida por Jesus no contexto do evento messiânico e eclesiológico da cruz (BROWN, 2002). Ela representa de forma especial o resto de Israel que aguarda e recebe a salvação messiânica, expressa em Jo 1,31.41.45.49. Está aberta à salvação, assim como o discípulo amado que confia e se abre para receber em sua casa aos que procuram a salvação e a permanecer lá. Também está associada à imagem da Igreja, “Filha de Sião”, a Virgem de Israel (Is 60.4-5; 31.3-14; Br 4,36-37; 5,5) que chama seus filhos / filhas desde o exílio para formar um novo povo. O evangelista aplica-o a Maria e ao discípulo ao pé da cruz: “Levanta em redor os teus olhos, e vê; todos estes já se ajuntaram, e vêm a ti; teus filhos e filhas virão de longe…” (Is 60,4), maternidade messiânica e escatológica. Também está associado a Eva, como em Cana, (Gn 2,20), mãe por excelência.

Sua maternidade corporal é prolongada em maternidade espiritual para com os crentes e para com a Igreja, de tal forma que “para nos tornarmos filhos de Deus, devemos nos tornar filhos de Maria e filhos da Igreja”. Seu único Filho é Jesus, mas nós nos conformamos com ele se nos tornarmos filhos de Deus e filhos de Maria “(DE LA POTTERIE, 1993, 262ss).

Além das interpretações de que o discípulo amado (Jo 13:23) seja o filho de Zebedeu, ou que ele seja um discípulo com um relacionamento especial, de preferência com Jesus, seu papel é mediar a mensagem da salvação. É o amigo (15,13-15) a quem Jesus confia e expressa seu amor ao extremo (13,1) em sua hora, dando o maior que ele tem neste mundo, a mulher que o deu à luz. Ele é capaz de confiar em sua mãe, porque ele é um homem de fé, que não precisa de provas.

“E a partir daquela hora” (v. 27), tem dois significados, o de recebê-la naquele momento, na “hora” de Jesus, que chegou, a sua morte na cruz (Jo 12,23; 13,1 ; 17,1). O resultado do “levantamento de Jesus na Cruz” é que a mãe e o discípulo se tornam um (Jo 12,32), se fundamentam umas relações sólidas de amor entre Maria, Jesus e o discípulo, que serão a base da unidade da Igreja. Na hora de Jesus e da mulher (Jo 16,21), seu próprio Filho anuncia uma tarefa maior, como presente por seu grande amor: o ventre vazio será preenchido com novos filhos, ao aceitar ser a “mãe” do discípulo. Ele a recebe “em sua própria casa” (v. 27), isto é, ele acolhe pela fé em sua intimidade à mãe de Jesus, agora sua mãe, e a faz sua nesse momento com disponibilidade total. A única missão que o discípulo recebe é ter Maria como mãe. Sua primeira tarefa é ser o filho de Maria. É mais importante ser crente do que apóstolo, uma vez que a missão será confiada mais tarde, após a ressurreição (Jo 20,21, 21,20-23). Ao se tornar o filho de Maria, ele se torna o filho da Igreja, um verdadeiro crente na Igreja.

E Maria é mãe assim que Jesus vive no discípulo que crê e recebeu a vida eterna. De acordo com Brown, Jesus coloca Maria e seu discípulo amado em relação de mãe e filho e, assim, constitui uma comunidade de discípulos que são mãe e irmão para ele, a comunidade que preserva o Evangelho. É por isso que suas últimas palavras são: “tudo está cumprido” (v. 30) para entregar seu Espírito à comunidade dos crentes que ele formou. “Uma mulher e um homem estavam no pé da cruz, como modelos de humanidade redimida, sua verdadeira família de discípulos” (BROWN, 2002, 473).

1.2.7 Apocalipse

O correlativo de Maria-mulher-mãe-igreja também é observado na imagem “mulher celestial” (Ap 12, 1-6). A maternidade de Maria faz dela que seja mulher, gu / nai e que se identifique com a comunidade escatológica e fecunda. Então, a denominação de mulher, gu / nai e mãe mh / thr aparece em toda a sua dimensão, em Apocalipse 12. A Igreja, refletindo-se em Maria, descobrirá sua identidade e seu papel como portadora e geradora de Cristo na história, é por isso que a Igreja pode ser chamada de “mulher”, gu / nai. A mulher-povo de Deus, que se apresenta, é revestida por Deus, com cuidado amoroso, particular, com todo o melhor que Ele tem. Ela está revestida de sol, com a lua debaixo de seus pés, ela é colocada acima das vicissitudes do tempo em que a aliança é feita, porque lhe compete essa realização que Deus efetuará no final da evolução do tempo. No nível escatológico, significa a Jerusalém celestial, onde a mulher-povo de Deus, Sião escatológica, está localizada com uma tripla acentuação efetiva: tem a coroa, sinal do prêmio escatológico; de estrelas, sinal de transcendência divina referente à Igreja; e há doze, indicando o nível escatológico da Jerusalém celestial. Brilha com uma luz que lhe é dada, não é própria, senão graças à glória de Deus que a reveste. Enquanto o mal (Diabo, Satanás – ver Jo 16,11; Ap 12), que foi derrotado na cruz, continua a perseguir os homens e mulheres que compõem o novo povo de Deus, a igreja-mulher com “dores messiânicos”, de parto (Ap 12,1-6), vai gerando novos filhos e filhas em Cristo, que querem ser devorados / devoradas pelo “dragão”. Mas a Divina Providência não abandona à mulher-igreja, no deserto, (2Re 17,1-7; Os 2,16-18), lugar onde ela permanece fiel à aliança, porque Deus cuida dela e alimenta e protege seus filhos e filhas no caminho da terra prometida. Podemos dizer que, por causa da cruz e do momento da cruz, uma nova família de Jesus foi criada. Sua mãe, modelo de fé e o discípulo que Jesus amava, tornaram-se um, aceitando a maternidade incondicionalmente. Ela será a mãe da vida de seu Filho em todos os membros da Igreja. Desta forma, é um símbolo ideal no qual se reconhece a maternidade da Igreja portadora e geradora da vida na história, até a sua realização escatológica.

María del Pilar Silveira. Faculdade de Teologia da Universidade Católica Andrés Bello, Caracas, Venezuela. Texto original em espanhol.

2 Referências

BOFF, C., O cotidiano de Maria de Nazaré 2da. Ed. Säo Paulo: editora salesiana, 2009.

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Para saber más

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[1] É a forma hebraica, a de raiz egípcia era Mir-yam, “Amado de Javé” (Mri = amada + Yam = Yahweh). Mariam no aramaico comum, simplesmente significava “Senhora”.

[2] Deve-se acrescentar que o nome próprio da mãe de Jesus nunca aparece neste Evangelho: Maria, Maria / m. É uma omissão que não é explicada, uma vez que o autor nomeia outras 15 “Marias” como a irmã de Marta, a Magdalena, a esposa de Cléofas.

Mística e psicanálise

Sumário

1 A experiência mística

2 Freud e a experiência mística

3 O fundamento materno da experiência mística

4 A experiência mística como forma substitutiva de satisfação sexual

5 A experiência mística como vivência regressiva de tipo psicótico

6 Referências bibliográficas

1 A experiência mística

A experiência mística pode ser definida como uma vivência de ultrapassagem dos limites do eu acompanhada do sentimento gozoso de comunhão com o todo circundante identificado ao divino. Noutras palavras, trata-se de uma experiência extática de transposição dos limites entre o eu e o não-eu e de união amorosa com Deus, com o qual se faz uma coisa só.

Em “As variedades da experiência religiosa”, William James (1842-1910), o “pai” da psicologia da religião, se debruçou sobre a experiência mística, enumerando as suas características. Estas, em sua opinião, são quatro: a inefabilidade, a qualidade noética, a transitoriedade e a passividade. A experiência mística excede o que se consegue pôr em palavras; implica em alguma forma de iluminação intelectual; é fugaz, momentânea, passageira; e supõe, naquele que a vivencia, uma atitude de entrega.

2 Freud e a experiência mística

Embora fosse ateu, Sigmund Freud (1856-1939), o criador da psicanálise, foi um homem fascinado pelo estudo da religião. Os dogmas, a moral, a liturgia, a igreja, a mística – nada disso ficou de fora do seu escrutínio do fenômeno religioso.

A interpretação freudiana da experiência mística pode ser encontrada no comentário feito por Freud, em O mal-estar na civilização, do chamado “sentimento oceânico”. Por “sentimento oceânico”, entende-se um sentimento de profunda união com o mundo circundante, como se não houvesse fronteiras entre o si mesmo e o todo.

De acordo com Freud, o sentimento oceânico é apenas o sentimento primitivo do eu conservado na idade adulta. De fato, o bebê não distingue entre o seu corpo e o seio materno, o próprio eu e os objetos, o interior e o exterior, o dentro e o fora. Originalmente, o eu do bebê abarca tudo; mais tarde, é que ele separa de si o mundo exterior. Algo desse sentimento do eu primário pode, contudo, ser conservado, em algum registro, mesmo na idade adulta, podendo-se regredir a essa organização.

Ao analisar o sentimento oceânico, Freud não insistiu particularmente no caráter materno do mesmo. Mas apontou nessa direção quando observou que esse sentimento é herdeiro da indiferenciação entre o corpo do bebê e o seio da mãe.

3 O fundamento materno da experiência mística

Com o seu comentário do sentimento oceânico, Freud inaugurou uma tradição em psicologia da religião que concebe a relação da criança com a figura materna como o fundamento psicológico da experiência mística.

A rigor, psicologicamente falando, as figuras materna e paterna contribuem ambas para a construção da imagem de Deus e para o tipo de relação que com ele se estabelece. Com efeito, enquanto objeto mental, Deus não surge no psiquismo do sujeito de um modo espontâneo, direto, natural, instintivo. A ideia de Deus não brota no espírito da criança por geração espontânea. O relacionamento do ser humano com Deus, o Outro, é condicionado pelo seu relacionamento com os outros, a começar pelos pais. A relação primitiva da criança com os pais é o suporte básico da configuração da imagem de Deus. A gênese da representação que o ser humano faz de Deus é, pois, mediada pelas figuras materna e paterna.

A religião possui, por conseguinte, dois polos fundamentais, dois eixos estruturantes: o materno e o paterno. As figuras da mãe e do pai plasmam, de um modo igualmente importante, o sentimento religioso e a imagem de Deus no coração do ser humano. Os eixos materno e paterno da experiência humana de Deus são correlativos, respectivamente, das vertentes mística e profética da religiosidade.

A relação da criança com a mãe é a condição de possibilidade da vertente mística da religiosidade. Na configuração da experiência religiosa, o eixo materno contribui com as bases psicológicas do anelo místico. A dimensão materna responde, pois, pelo desejo de Deus, constituindo-se na infraestrutura psíquica da dimensão amorosa da experiência de Deus. A relação unitiva da criança com a mãe é o “leito”, por assim dizer, da experiência mística.

Mediante o símbolo paterno, por sua vez, é que Deus ganha um nome, uma forma e uma representação. O paterno tem a ver também com a dimensão normativa da religiosidade. A transformação da realidade histórica circundante em Reino de Deus corresponde, pois, ao polo paterno da experiência religiosa.

4 A experiência mística como forma substitutiva de satisfação sexual

A interpretação psicanalítica da experiência mística, ao mesmo tempo em que revela os fundamentos psicológicos da mesma, levanta também importantes questionamentos sobre a sua natureza. Duas questões se destacam. A primeira é o parecer de que o gozo místico seria apenas uma forma substitutiva de prazer sexual. De fato, não poucos místicos utilizam uma linguagem nupcial, quando não francamente erótica, para descrever a sua experiência de união amorosa com o divino. A segunda é o ponto de vista de que a experiência mística seria uma vivência regressiva de tipo psicótico, uma espécie de restabelecimento da relação dual com a mãe. Ambas as questões, como se vê, colocam sob suspeita a autenticidade da experiência mística.

Para começar, o que dizer da opinião de que o êxtase místico equivale a um orgasmo substituto? A esse respeito, há, pelo menos, três reações possíveis.

A primeira delas rejeita a interpretação sexual da experiência mística, argumentando que o recurso pelos místicos ao vocabulário erótico tem um caráter meramente linguístico, metafórico. James representa esse ponto de vista. Segundo o professor de Harvard, a linguagem da experiência religiosa, na falta de melhor alternativa, recorre, de fato, ao vocabulário erótico, nupcial, amoroso. Mas lança mão igualmente da linguagem do comer, do beber e mesmo da função respiratória. Ninguém jamais sustentou, porém, que a experiência espiritual fosse uma aberração da função digestiva ou uma perversão da função respiratória. A linguagem religiosa apenas se veste com os pobres símbolos que a vida comum oferece, explica o pai da psicologia da religião.

Uma segunda possibilidade consiste em admitir, sim, a natureza sexual da experiência mística, recusando, porém, a conclusão de que isso desqualifica a vivência em questão. Admitir a natureza libidinal do amor que os seres humanos devotam a Deus significa apenas dizer que os homens amam a Deus com o amor que têm para amar. Não há uma forma VIP de amor, diferente do amor sensual, separado, mais digno, sublime, e que esteja à nossa disposição quando se trata de amar a Deus. Reconhecer, pois, o caráter sexual de um êxtase místico não significa desqualificá-lo, mas, longe disso, humanizá-lo. É esse, por exemplo, o parecer de Paul Tillich (1886-1965), teólogo luterano, de Antoine Vergote (1921-2013), padre diocesano e célebre psicólogo da religião, e de Carlos Domínguez Morano (1946-), padre jesuíta e psicanalista, autor, entre muitos outros livros, de Experiencia mística y psicoanálisis.

Uma terceira posição, por fim, é aquela de Jacques Lacan (1901-1981). Para ele, a experiência mística não é sexual; ela está além – ou, talvez, aquém – do sexual. O psicanalista francês distingue entre duas formas de gozo. Uma delas coincide com o que se entende habitualmente por “prazer” ou “satisfação”; a outra, porém, tem outro alcance. Assim, por um lado, há o chamado “gozo fálico”; mas há também um Outro gozo, para além do falo: o chamado “gozo do Outro”.

O gozo fálico é o gozo a que o sujeito é introduzido pela operação da metáfora paterna. Trata-se de um gozo de natureza sexual. O gozo fálico é o gozo do significante, ou seja, é uma forma de gozo que se situa na ordem da linguagem, pertencendo ao registro do simbólico. O gozo do Outro, por sua vez, é um gozo anterior à castração simbólica. Ele não é, propriamente falando, sexuado. Escapa ao significante, está fora da linguagem, pertencendo, assim, ao domínio do real.

O gozo fálico é um gozo mediado, limitado, circunscrito às zonas erógenas, parcial, insatisfatório. Trata-se de um gozo mortificado, desnaturalizado. Ele se encontra no campo do dizível. Já o gozo do Outro é o gozo do corpo em sua pulsação animal. Trata-se de um gozo originário, mítico. Trata-se de um gozo imediato, ilimitado, transbordante, excessivo, enigmático. Ele pertence ao inefável.

Dito isso, localizemos alguns sujeitos. O homem está fechado na modalidade fálica de gozar. O gozo fálico é um gozo masculino. O psicótico, em decorrência da forclusão do Nome-do-Pai, não tem acesso ao gozo fálico, mas goza fora do significante. A mulher, por sua vez, é não-toda inscrita na ordem fálica. Em parte, ela está nessa ordem; mas, por outro lado, não. A mulher tem, portanto, acesso a uma forma suplementar de gozo. O místico, enfim, como a mulher, frequenta a região do gozo do Outro.

Nessa medida, para Lacan, o gozo místico não é sexual. Não se trata, diz ele, na mística, de uma questão de sexo, de um substituto do orgasmo, mas de um gozo que está para além – ou aquém – do sexual.

5 A experiência mística como vivência regressiva de tipo psicótico

A experiência mística pode ser encarada como aquilo que há de mais adiantado em matéria de progresso espiritual, o ponto culminante de uma escalada, o termo de um longo processo de crescimento. Para muitos psicanalistas, no entanto, a experiência mística é exatamente o contrário disso: trata-se de um fenômeno psicopatológico de caráter regressivo; trata-se de uma reedição da relação fusional com a mãe que faz pensar na psicose. Coloca-se, pois, a segunda questão acima anunciada: a suspeita sobre o caráter psicótico da experiência mística.

Em resposta a essa objeção, vários autores insistiram na diferença entre a mística e a psicose, oferecendo, mais do que isso, critérios para discernir – ou fazer um diagnóstico diferencial – entre uma coisa e outra. A seguir, listamos 16 diferenças entre a mística e a psicose ou, o que dá no mesmo, 16 indicadores da autenticidade de uma experiência mística. Comecemos pela dinâmica da relação do místico – ou do psicótico, pseudomístico – com Deus – ou com aquilo que chama de “Deus”.

[1] Para o pseudomístico, Deus é, sobretudo, um objeto de cuja posse ele goza. Tendo feito de Deus um objeto para a satisfação do seu desejo, o falso místico, por assim dizer, “devora-o”. O místico autêntico, de sua parte, reconhece a Deus como um outro livre e independente; não o trata como um objeto supostamente capaz de satisfazer o seu desejo.

[2] O falso místico estabelece com Deus uma relação de tipo fusional. Ele tende a perder-se, dissolver-se, eliminar o seu próprio eu na relação com o divino. O verdadeiro místico, por sua vez, preserva a sua condição de ser separado e, a partir dela, estabelece um vínculo amoroso com Deus, reconhecido como alteridade. O seu eu e o divino não se fundem numa coisa só, mas permanecem distintos.

[3] O pseudomístico exige a presença ininterrupta de Deus, o objeto do seu desejo, e requer a permanência constante do gozo da fusão. Ele não tolera a ausência de Deus, não suporta a falta do objeto divino, não admite a distância daquele que o satisfaz, não assume, enfim, a sua condição de ser separado. O místico autêntico, de sua parte, aceita com serenidade as aparentes ausências de Deus e, por conseguinte, a inevitável alternância entre união e separação, presença e ausência, consolação e desolação, palavra e silêncio, luz e trevas, companhia e solidão, plenitude e vazio, gozo e aridez, terra fértil e deserto etc.

Reunindo esses três primeiros pontos, podemos, então, afirmar que, para o falso místico, Deus é um objeto de cuja posse ele goza, com o qual deseja fundir-se e cuja ausência não tolera. Para o verdadeiro místico, por sua vez, Deus é um outro livre e independente, com quem ele deseja unir-se amorosamente e cujas aparentes ausências aceita com serenidade.

Em linhas gerais, essa é a diferença fundamental no modo como um e outro se relacionam com o divino. É fácil perceber que o verdadeiro místico se posiciona a partir da sua castração simbólica, isto é, da sua condição de ser em falta, ao passo que o psicótico, pseudomístico, se caracteriza pela rejeição dessa mesma castração. Feita essa descrição de caráter geral, passemos a algumas outras diferenças de tipo mais específico.

[4] Uma experiência mística se dá a partir da iniciativa do eu do místico, que se dispõe a ela, e, numa certa medida, acontece sob o seu controle. Sendo em parte deliberado, o arrebatamento místico é reversível. A separação da realidade externa é temporária, permanecendo, até certo ponto, sob o domínio de quem faz a experiência. Um surto psicótico, por sua vez, é algo incontrolável, involuntário, que se impõe de forma invasiva. Não está em poder do indivíduo psicótico retornar ao seu estado habitual tão logo o deseje.

É verdade que o místico não é capaz de produzir a experiência de união com Deus a seu bel-prazer. Está, porém, em suas mãos a iniciativa de dispor-se para que ela aconteça; e as técnicas de meditação servem exatamente para isso. Uma vivência psicótica, por sua vez, captura a pessoa que passa por ela de uma forma totalizante. Como um tsunami psicológico, ela arrasta o sujeito, não lhe deixando alternativa. Não há, pois, controle algum; a passividade é completa.

[5] A duração de uma vivência mística costuma ser curta. Como vimos, segundo James, a transitoriedade é uma das principais características da experiência mística. Contrastando com essa brevidade, uma vivência de caráter mórbido não raro tem uma duração prolongada. Ela não apenas costuma durar muito, mas pode simplesmente não passar, configurando-se como um quadro permanente e irreversível.

[6] No que concerne aos fenômenos extraordinários, as alucinações auditivas são típicas dos surtos psicóticos, tendo mesmo um caráter central na psicose paranoica. Numa experiência mística, porém, havendo algum fenômeno dessa natureza, ele costuma ser de natureza visual, não auditiva. No terreno da mística, os elementos visuais prevalecem sobre os acústicos, ao contrário do que acontece no campo da psicose, onde as alucinações auditivas são mais frequentes.

Além disso, as visões místicas costumam envolver figuras de caráter benevolente, ao invés de representações agressivas, terroríficas, paranoides, como sói acontecer na psicose. As alucinações psicóticas costumam ser bizarras e têm um caráter desorganizado, diferentemente do que habitualmente ocorre em se tratando de uma vivência mística.

Acrescente-se ainda que, nas experiências místicas, quando há visões, vozes etc., estas são percebidas como algo de natureza mental, psicológica, ao passo que, tratando-se de uma vivência psicótica, os elementos sensoriais presentes são percebidos como algo real, mesmo corpóreo.

[7] A pessoa que faz uma experiência mística acredita no conteúdo da sua vivência, mas sem excluir a possibilidade da dúvida. Quando as crenças em jogo têm um caráter indubitável, a elas se aderindo com certeza absoluta, trata-se, com mais probabilidade, de um fenômeno psicopatológico.

[8] Tanto a mística quanto a psicose têm a ver com a feminilidade. Os místicos, de sua parte, normalmente são mulheres ou homens identificados femininamente. De fato, não é possível manter um papel viril diante de Deus. Na união mística, o “homem” da relação, por assim dizer, é sempre o divino; o místico, seja ele do sexo masculino ou feminino, faz as vezes de “mulher”. A psicose, por sua vez, é caracterizada pelo fenômeno do “empuxo à mulher”, possuindo relações estreitas com o transexualismo. Essa atração que a identidade feminina exerce sobre o psicótico parece decorrer de uma identificação precoce e maciça do sujeito à mãe. Há, contudo, uma diferença crucial no modo como o santo e o louco identificam-se ao feminino: o místico feminiliza a sua alma, metaforicamente; o psicótico feminiliza o próprio corpo, de uma forma literal.

[9] A qualidade dos sentimentos que acompanham uma e outra experiência também é diferente. Experiências místicas deixam atrás de si um rasto de sentimentos positivos, sobretudo, uma profunda sensação de paz; vivências psicopatológicas, por sua vez, estão associadas a sentimentos negativos.

[10] Embora viva uma profunda experiência de imersão em Deus, o místico conserva o seu eu e a sua identidade. Mais do que isso, a experiência mística costuma proporcionar ao sujeito um enriquecimento da sua personalidade, tendo, pois, um caráter integrador. A regressão psicótica, de sua parte, tem um efeito desintegrador sobre a personalidade do indivíduo, resultando num estado de desorganização psíquica. Ela tem um caráter caótico e confusional, provocando danos irreparáveis ao senso de identidade e ao eu do sujeito.

Noutras palavras, tratando-se da identidade da pessoa, as experiências místicas integram, organizam, estabilizam, promovem, enriquecem, fortalecem, fazem crescer. Vivências psicopatológicas, por sua vez, desintegram, desorganizam, desestabilizam, destroem, empobrecem, debilitam, põem a perder. Aquelas são humanizantes; estas, desestruturantes.

[11] Um místico autêntico costuma ser um indivíduo bem sucedido socialmente, ele mantém o laço social. Suficientemente adaptado, capaz de cultivar vínculos afetivos e se relacionar positivamente com os outros, ele é uma pessoa inserida na comunidade dos homens, mostrando-se capaz de amar e trabalhar. Um psicótico, por sua vez, normalmente é desajustado do ponto de vista social.

Essa distinção se harmoniza com o fato de que o conteúdo de uma experiência mística costuma enquadrar-se numa doutrina religiosa compartilhada, enquanto que o conteúdo de uma vivência psicopatológica frequentemente tem um caráter bizarro.

[12] Com frequência, uma pessoa que faz uma experiência mística procura compartilhar as suas vivências com os outros. O místico costuma escrever as suas experiências ou relatá-las para uma outra pessoa, demandando, assim, o testemunho de um terceiro. No caso de um fenômeno psicopatológico, o sujeito não apresenta a mesma demanda, mostrando-se, ao contrário, desconfiado e reservado quando se trata de dar informações sobre ela.

[13] Um verdadeiro místico mantém o vínculo com a realidade e dá mostras de habilidade quando se trata de agir eficazmente sobre ela. Um místico autêntico costuma apresentar uma notável capacidade de ação e um admirável espírito prático; não raro, é capaz de conceber e realizar grandes empresas. Um psicótico, de sua parte, costuma virar as costas ao mundo real, mostrando-se um tanto canhestro quando se trata de agir sobre ele.

[14] Por fim, talvez o critério mais importante para se avaliar a autenticidade de uma vivência mística sejam os seus efeitos sobre a pessoa em questão: “É pelo fruto que se conhece a árvore” (Mt 12,33; cf. Mt 7,16.20). Apreciar o valor de uma experiência com base nas suas consequências é um procedimento recomendado por Santo Inácio de Loyola (1491-1556). James, ao seu modo, também adotou esse critério.

O verdadeiro misticismo estimula o crescimento no bem e a elevação ética da pessoa. Quando a experiência de Deus é verdadeira, ela tende a ser transformante; ela tende a mudar grandemente a pessoa que faz a vivência – e a mudá-la para melhor. A autenticidade de uma experiência mística pode, pois, ser estimada pelos seus resultados.

[15] Nomeadamente, o verdadeiro misticismo fomenta o altruísmo, a abertura para os outros, a saída de si mesmo e o crescimento da capacidade de amar. Numa regressão de tipo psicótico, trata-se de um restabelecimento do narcisismo primário, o que se traduz no fechamento do indivíduo em si próprio. O psicótico se fecha, pois, egocentricamente sobre si mesmo, ao contrário do místico autêntico, que se sente impelido em direção do outro. A dinâmica do misticismo é centrífuga; a da psicose, centrípeta.

[16] Para concluir, acrescente-se que as experiências místicas não costumam estar associadas a outros elementos de caráter mórbido. Uma vivência psicopatológica, por sua vez, normalmente não é um fenômeno isolado, mas vem acompanhada de outros sintomas indicadores de transtorno mental.

Por tudo o que ficou dito, como se vê, pode-se levantar graves e fundadas suspeitas sobre o valor da experiência mística, e é importante conhecê-las e tomá-las a sério. Mas há também critérios satisfatórios para identificar o verdadeiro misticismo, o que nos impede de descartar as vivências místicas como fenômenos puramente patológicos.

Ricardo Torri de Araújo, SJ. PUC Rio (Brasil). Texto original em português.

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Células-Tronco

Sumário

1 O que são células-tronco?

1.1 Células-tronco totipotentes

1.2 Células-tronco pluripotentes

1.3 Células-tronco multipotentes

2 Células-tronco embrionárias e a questão ética

3 Células-tronco adultas

4 Clonagem

5 Células-tronco na América Latina

6 Conclusão

7 Referências bibliográficas

1 O que são células-tronco?

Atualmente, ao falar de células-tronco, torna-se quase impossível ter acesso a tudo o que se escreveu e se escreve sobre elas. E quando se fala em pesquisas com tais células entra-se em um campo extremamente complexo. No entanto, ao definir o que sejam, há bastante consenso. Por isso, pode-se dizer que as células-tronco são células indiferenciadas, isto é, não especializadas e que apresentam duas características:

1) a capacidade de autorrenovação ilimitada ou prolongada, isto é, de reproduzir-se por muito tempo sem diferenciar-se; e 2) a capacidade de originar células progenitoras de trânsito, com capacidade proliferadora limitada, das quais descendem populações de células altamente diferenciadas (nervosas, musculares, hemáticas etc.). (LEONE; PRIVITERA, 2004, p.165)

Podem ser definidas, também, com outras palavras: “células-tronco são células que têm a capacidade de se autorrenovarem (self renewing) e de se dividirem (self replicate) indefinidamente, in vivo ou in vitro, dando origem a células especializadas” (BARTH, 2006, p.26). Portanto, a autorrenovação é a capacidade que as células-tronco têm de proliferar, gerando células idênticas à original (outras células-tronco). E o potencial de diferenciação é a capacidade que elas têm de, em condições favoráveis, gerar células especializadas e de diferentes tecidos.

De acordo com seu potencial de diferenciação, as células-tronco são classificadas em três níveis: células totipotentes, pluripotentes e multipotentes.

1.1 Células-tronco totipotentes

Células-tronco totipotentes são o único tipo capaz de originar um organismo completo, uma vez que têm a capacidade de gerar todos os tipos de células e tecidos do corpo, incluindo tecidos embrionários e extraembrionários (como a placenta, por exemplo). Os únicos exemplos de células-tronco totipotentes são o óvulo fecundado (zigoto) e as primeiras células provenientes do zigoto, até a fase de 16 células da mórula inicial, um estágio bem precoce do desenvolvimento embrionário, antes do estágio de blastocisto.

 1.2 Células-tronco pluripotentes

As células-tronco pluripotentes têm a capacidade de gerar células dos três folhetos embrionários (tecidos primordiais do estágio inicial do desenvolvimento embrionário, que darão origem a todos os outros tecidos do organismo. São chamados de ectoderma, mesoderma e endoderma). Em oposição às células-tronco totipotentes, as células pluripotentes não podem originar um indivíduo como um todo, porque não conseguem gerar tecidos extraembrionários. O maior exemplo de células-tronco pluripotentes são as células da massa celular interna do blastocisto, as chamadas células-tronco embrionárias.

Recentemente, cientistas desenvolveram uma técnica para reprogramar geneticamente células adultas – diferenciadas – para um estado pluripotente. As células geradas por essa técnica são chamadas de células-tronco de pluripotência induzida (iPS, da sigla em inglês induced pluripotent stem cells) e apresentam características muito parecidas com as células-tronco pluripotentes extraídas de embriões.

 1.3 Células-tronco multipotentes

As células-tronco multipotentes têm a capacidade de gerar um número limitado de células especializadas. Elas são encontradas em quase todo o corpo, sendo capazes de gerar células dos tecidos de que são provenientes. São responsáveis, também, pela constante renovação celular que ocorre em nossos órgãos. As células da medula óssea, as células-tronco neurais do cérebro, as células do sangue do cordão umbilical e as células mesenquimais são exemplos de células-tronco multipotentes.

2 Células-tronco embrionárias e a questão ética

As células-tronco embrionárias são retiradas do próprio embrião para serem usadas em pesquisa. O fato de o embrião, até o 14º dia, se dividido em partes, poder dar origem a indivíduos geneticamente iguais, levou um bom número de cientistas a adotar o termo pré-embrião, justificando que não estamos diante de um ser humano e sim de um aglomerado de células, e, portanto, nesse caso, pode-se usá-lo como fonte de pesquisa.

No Brasil, em 24 de março de 2005 o Senado Federal aprovou a lei de número 11.105, que no seu artigo 5º afirma que “é permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento” (Lei de Biossegurança). A lei afirma que devem ser embriões inviáveis, congelados há três anos ou mais. É necessário, ainda, o consentimento dos genitores e as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas devem submeter seus projetos aos comitês de ética em pesquisa. Essa posição do Senado brasileiro nasce da visão reducionista que afirma que até o 14º dia não existe vida humana no embrião e isso torna “possível a sua utilização em pesquisa e na derivação de células-tronco” (BARTH, 2006, p.167). Atualmente, no mundo, são muitos os países que aceitam e legitimam a pesquisa com células-tronco embrionárias.

No entanto “a tentativa de estabelecer este termo e esta fase de desenvolvimento para o embrião recebeu tal crítica que hoje poucos ainda utilizam este termo” (BARTH, 2006, p.157). Com isso, fica claro que “nenhum manual moderno de embriologia humana fala de pré-embrião” (CIPRIANI, 2007, p.29).

Para a biologia, atualmente, é consenso que “logo após a fecundação, no genoma daquelas poucas células existe o programa de um indivíduo humano no início de sua viagem extraordinária intra e extrauterina que o tornará um indivíduo adulto” (CIPRIANI, 2007, p.29).

Na compreensão da Igreja, está definido que após a fecundação não se está diante de uma pessoa, pois tornar-se pessoa acontece mais tarde. No entanto, se está diante de um ser humano. É neste sentido que a Igreja afirma que “desde o momento da concepção, a vida de todo o ser humano deve ser respeitada de modo absoluto, porque o homem é, na terra, a única criatura que Deus ‘quis por si mesma’” (CDF, 1987, n.5, p.14). E o mesmo documento, mais adiante, afirma que “o ser humano deve ser respeitado como pessoa, desde o primeiro instante de sua existência” (n. I, 1, p.16), destacando que no zigoto, que é constituído da fusão dos núcleos dos gametas masculino e feminino, “derivante da fecundação já está constituída a identidade biológica de um novo indivíduo humano” (n. I, 1, p.17). Há os que afirmam que o fruto da concepção, pelo menos até certo número de dias, não pode ainda ser considerado uma vida humana pessoal. Na realidade, porém, “a partir do momento em que o óvulo é fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é a do pai nem a da mãe, mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por conta própria”. (JOÃO PAULO II, 1995, n.60)

 Neste sentido pode-se afirmar que

o organismo humano não é só um amontoado de células, mas um conjunto auto-organizado de células que tem a capacidade de se desenvolver, e manifestar plenamente o ser humano que está presente a partir da fecundação. Este princípio interno faz com que este embrião atinja a sua maturidade humana. A vida pré-natal é vida plenamente humana em todas as fases do seu desenvolvimento. A lei ontogenética impõe uma gradual diferenciação e organização, mas existe uma unicidade que garante ser sempre o mesmo ser humano que se desenvolve, desde a concepção, passando por diversos estágios, até chegar à maturidade de pessoa humana. (BARTH, 2006, p.163)

Por isso, do ponto de vista ético, na posição da Igreja Católica, qualquer intervenção que visa produzir ou utilizar embriões humanos para preparação e utilização de células-tronco, lesionando “grave e irremediavelmente o embrião humano, interrompendo a sua evolução, é um ato gravemente imoral e, portanto, gravemente ilícito” (PONTIFÍCIA ACADEMIA PRO VITA, 2000, p.15). A Igreja deixa clara a sua posição em relação ao embrião quando afirma que “o ser humano deve ser respeitado e tratado como pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde aquele mesmo momento devem ser-lhe reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais, antes de tudo, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida” (CDF, 1987, n. I, 1, p.18).

No início de 2008, no Brasil, a discussão sobre o assunto tornou-se acirrada por causa da ação de inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança, que permitia a pesquisa com células-tronco embrionárias. A votação realizada no STF (Supremo Tribunal Federal) deu ganho de causa à continuação com tais pesquisas.

Os partidários de tais pesquisas afirmam que o embrião não é vida humana. Segundo eles, depois de três anos de congelamento tais embriões são inviáveis, podendo ser usados em pesquisa, e tal procedimento se justifica porque estas células podem ser fonte de possível cura de muitas doenças degenerativas do ser humano. O uso das células-tronco embrionárias requer a sua retirada em embriões com poucos dias de vida, sacrificando-os. Esse procedimento cria uma situação extremamente delicada e difícil do ponto de vista ético.

Ora, tanto os tratados de biologia, quanto os de medicina, afirmam que a vida humana começa a partir da fecundação, e, a seguir, o crescimento do embrião é autônomo, constante e progressivo.

Do ponto de vista filosófico, afirmar que a vida humana começa a partir de certo número de dias é uma posição arbitrária estabelecida a partir de razões subjetivas. É preciso partir do critério de fundamento, fato objetivo que afirma que a vida humana inicia com a fecundação. Neste sentido, é importante ter presente que “o início da vida humana não pode ser fixado por uma convenção num certo estágio do desenvolvimento do embrião; na realidade, ela começa já no primeiro estágio do desenvolvimento do próprio embrião” (PONTIFÍCIA ACADEMIA PRO VITA, 2001, p.4). Por isso, ao se trabalhar com o embrião entendido como ser humano, é preciso conceder-lhe um status moralmente relevante assegurando-lhe direitos individuais que impedem que seja destruído ou que seja posto em risco. Na verdade, o fato de pertencer à espécie humana envolve por si só um direito particular à proteção que transcende o aplicado aos animais. Quem não respeita os embriões individualmente, mas os protege como material biológico especial que merece respeito em função do seu uso para pesquisa, viola

o status moralmente relevante de um ser humano. Mas não será o problema mais amplo? A Igreja Católica sustenta que um embrião tem de ser tratado “como uma pessoa”. Esta formulação é bem cuidadosa, pois não afirma simplesmente que os embriões sejam idênticos a pessoas. A Igreja alega que não podemos distinguir “seres humanos” de “pessoas” atribuindo-lhes dois níveis diferentes, porque o desenvolvimento de um ser humano é um processo contínuo e unificado. Podem-se estabelecer diferenciações nesse processo, mas não decompô-lo em diferentes fases. Com efeito, seriam imprevisíveis as consequências para a sociedade humana da distinção entre seres humanos com base no estágio de desenvolvimento. A inseparabilidade dos seres humanos vem também da reflexão que, nessa condição, não podemos definir os outros como humanos ou não se eles existem como tal. A consequência da inseparabilidade de um ser humano e de seu desenvolvimento é um status moralmente relevante que garante ao embrião uma proteção plenamente válida da vida. Isso não permite que sejam usados para pesquisa, que os trata como matéria prima. Se esse status é respeitado, a vida, como o direito mais fundamental, não pode ser ponderada em comparação com outros bens de elevado status. (MIETH, 2003, p.173)

Portanto, segundo a ética, especialmente a ética cristã, não se pode aceitar a pesquisa com células-tronco embrionárias, porque os fins não justificam os meios, e nesse caso, o bem que se quer atingir, que é a cura de doenças de pessoas adultas, passa pela eliminação de seres humanos. Por isso, “um fim bom não faz boa uma ação que, em si mesma, é má” (PONTIFÍCIA ACADEMIA PRO VITA, 2000, p.15).

Ao mesmo tempo, não se pode desconsiderar o fato que a ciência evolui continuamente, e nos últimos anos houve grande avanço no trato com o embrião humano. Existem diversas pesquisas publicadas mostrando que, hoje, é tecnicamente possível extrair apenas uma célula do embrião humano e a partir dela começar a sua multiplicação indefinidamente. A grande vantagem desta técnica, do ponto de vista ético, é que o embrião não é destruído. Citemos a notícia que afirma: “uma empresa americana de Massachusetts disse ter desenvolvido uma forma de produzir células-tronco embrionárias humanas sem danificar o embrião original, numa descoberta que poderia eliminar as objeções éticas a esse tipo promissor de pesquisa” (O GLOBO ON-LINE, 24/08/2006). Não vamos, aqui, entrar em detalhes das questões técnicas deste tipo de procedimento, que resolveria as questões éticas levantadas pelas pesquisas com embriões humanos.

3 Células-tronco adultas

As células-tronco adultas são retiradas de determinado tecido do organismo do ser humano, para aproveitamento no próprio indivíduo ou em outros. Até há alguns anos atrás, se sabia que essas células existem em muitos tecidos adultos e são capazes de dar origem somente a células desse mesmo tecido. No entanto, a ciência avançou muito na pesquisa com estas células e recentemente “descobriram-se, também, em vários tecidos humanos células estaminais pluripotenciais, isto é, células capazes de dar origem a outros tipos de células, na sua maioria hemáticas, musculares e nervosas” (PONTIFÍCIA ACADEMIA PRO VITA, 2000, p.9-10). Por causa disso, recentemente diversos cientistas que fazem pesquisas com células-tronco embrionárias mudaram de posição, porque duas descobertas mostraram que é possível reprogramar células adultas para que sejam pluripotentes.

Ora, o progresso e os resultados alcançados com células-tronco adultas, além de sua plasticidade, apresentam “uma ampla possibilidade de prestações, presumivelmente não distintas das utilizações das células estaminais embrionárias, visto que a plasticidade depende em grande parte de uma informação genética, que pode ser reprogramada” (PONTIFÍCIA ACADEMIA PRO VITA, 2000, p.12).

No entanto, não se pode ser ingênuo e acreditar que a questão ética pese tanto a ponto de as pesquisas com células-tronco embrionárias serem abandonadas. O que realmente está acontecendo é uma espécie de guerra econômica. Já foi investido muito dinheiro na construção de laboratórios para pesquisa com células-tronco embrionárias e não se volta atrás, mesmo porque este tipo de pesquisa é mais complexo e requer uma tecnologia mais apurada. É preciso ter presente que “as empresas não produzem altruisticamente linhas celulares para doá-las para pesquisas ou para fins terapêuticos. Tudo é patenteado e vendido” (BARTH, 2006, 242). Fala-se que, em um futuro não muito distante, a utilização das células-tronco adultas será um procedimento bastante acessível, exigindo uma tecnologia menos complexa e, portanto, com menor custo. Este tipo de procedimento não interessa aos grandes laboratórios que detêm a alta tecnologia. Eles investem grande capital com o objetivo de manter o monopólio das pesquisas e, também, obter grandes lucros.

As pesquisas com células-tronco adultas têm dado bons resultados e não apresentam problemas éticos, pois não requerem a eliminação da vida humana e são encorajadas pela Igreja.

4 Clonagem

Outra área da pesquisa com células-tronco que se abre para a ciência é a produção de embriões pelo método da clonagem. A vantagem da clonagem, segundo os cientistas, é o fato de evitar o problema da rejeição, pois o clone é produzido a partir de células retiradas do próprio indivíduo. Ao falar em clonagem, estamos diante de duas possibilidades: a chamada clonagem terapêutica, que visa produzir clones para retirar as células-tronco em função de usá-las em terapia com o próprio indivíduo, e a chamada clonagem reprodutiva, que teria como objetivo produzir clones para se desenvolverem como seres humanos. Este segundo tipo de clonagem encontra grande resistência da maioria dos cientistas, pois seria apenas uma curiosidade científica e uma monstruosidade. Nesse sentido, é importante que se diga que a clonagem humana é, “no seu método, a mais despótica e, ao mesmo tempo, na finalidade, a mais escravizadora forma de manipulação genética” (JONAS, 1997, p.136). Um moralista brasileiro, que também é formado em zootecnia, afirma que “a clonagem humana reprodutiva tornou-se uma das formas mais radicais de manipulação genética; insere-se no projeto do eugenismo e, portanto, está sujeita a todas as observações éticas e jurídicas que a condenam amplamente” (COELHO, 2015, p.50). Certamente este é o melhor livro em português que trata da questão da manipulação genética humana e suas implicações ético-sociais. A clonagem terapêutica tem a aceitação de grande número de cientistas. Há quem afirme que precisamos “usufruir os potenciais de aplicações médicas da clonagem terapêutica. Vamos utilizar de forma responsável os novos poderes da clonagem, com fins exclusivamente terapêuticos” (PEREIRA, 2007, p.88). No entanto, com a clonagem humana “não se controla somente o processo, mas todo o patrimônio genético do indivíduo clonado é selecionado e decidido por artesãos humanos. Um grande passo para a eugenia que não acontece pela causalidade da natureza, mas por uma deliberada decisão e manipulação humana” (COELHO, 2015, p.51-52).

Os que defendem a clonagem terapêutica afirmam que se trata de produzir, de uma célula, várias outras células, isto é, uma simples multiplicação celular. Na verdade, “a partir do momento em que qualquer célula passa a dar origem a uma ‘unidade vital auto-organizada’, estamos na presença de uma nova individualidade biológica” (BARTH, 2006, p.105). Portanto, também a clonagem terapêutica, do ponto de vista ético, cai no mesmo problema, isto é, produzir embriões como fonte de células-tronco que depois são destruídos e eliminados.

5 A pesquisa sobre células-tronco na América Latina

Considerando-se o tema das pesquisas com células-tronco e o seu uso na busca da cura de doenças, pode-se dizer que não só na América Latina, mas em todo o mundo, as questões que se levantam são praticamente as mesmas. Isto tanto do ponto de vista ético, quanto terapêutico e social.  Mesmo porque tudo o que se faz em qualquer parte do mundo, especialmente o que surge de novidade, é imediatamente publicado e amplamente divulgado. Devemos destacar, mais uma vez, que os melhores resultados em pesquisa com células-tronco e sua aplicação terapêutica em humanos têm sido alcançados com o uso das células-tronco adultas. As notícias que surgem nos mostram isso, como é o caso da reportagem que afirma que

milhões de diabéticos poderão esquecer em breve a injeção de insulina se for confirmado o resultado bem-sucedido do primeiro implante de células-tronco no pâncreas, feito por médicos argentinos que se dedicam à procura de uma cura para a doença. Trata-se de um método inédito livre de riscos de rejeição, sem intermediação prolongada e que pode ser realizado por qualquer especialista médico com destreza e experiência em cateterismos, explicou o cardiologista argentino Roberto Fernández Viña. (AVALOS, AFP, 21/01/205)

 Podemos indicar também esta outra notícia, que afirma:

na Colômbia, paraplégico volta a andar após transplante de células-tronco. O senador colombiano Jairo Clopatofsky, 44 anos e paraplégico há 24, disse nesta terça-feira que começou a dar seus primeiros passos ao lado de seu filho de oito meses. Há um ano, o político se submeteu a um transplante de células-tronco. (Efe, Bogotá, 18/07/2006)

Existem textos publicados no Brasil e que também estão disponíveis, on-line, em revistas latino-americanas. Indicamos o artigo “Implicações bioéticas na pesquisa com células-tronco embrionárias” (BARBOSA et al., 2013). Recomendamos, também, conhecer a pesquisa do Dr. Bratt, professor do programa de terapia com células-tronco da Universidade Federal de Zulia (Venezuela) e pioneiro na América Latina na utilização da terapia com células-tronco autólogas da medula óssea no tratamento de doenças degenerativas como Parkinson, diabetes, artrose e traumatismo raquimedular.

Em relação à legislação, comparando-se a lei de biossegurança brasileira com  a dos países vizinhos, pode-se dizer que o Uruguai é o país que mais se aproxima da legislação do Brasil. Naquele país existe permissão para pesquisa, porém não determina nenhuma restrição em relação aos embriões excedentes. A Argentina, mesmo tendo uma bioética muito avançada, também não tem legislação sobre a destruição dos embriões excedentes. O Paraguai não tem legislação (cf. BARROS, 2011, p.270-275, livro on-line).

5 Conclusão

Podemos concluir que toda vez que uma sociedade aceita que a vida humana seja negociada, comprada, vendida ou destruída, tal sociedade marcha perigosamente para a discriminação de seus membros, abrindo uma perspectiva eugênica. Dar poder jurídico a quem tem mais poder é deixar que tais sujeitos decidam quem deve viver e quem deve morrer. Além do mais, a lei e o direito surgiram para organizar as relações na sociedade, e em função de quem tem menos poder e menos condições, de quem é mais vulnerável. A lei surgiu para defender os mais fracos, e nesse caso o embrião é o mais indefeso e vulnerável dos seres humanos. A perspectiva jurídica é um dos aspectos da sociedade, que é composta por outras áreas como a antropologia, a sociologia, a filosofia etc., e especialmente a bioética, que também tem uma palavra a dizer sobre a vida humana. É preciso “revitalizar a linguagem originária da bioética, que não é predominantemente a do direito, do que se exige dos outros, mas a do dever, do que se cumpre em relação aos outros: ‘que devo fazer?’ é a interrogação que inaugura a bioética em face do ‘que posso fazer?’ a que a tecnociência responde” (NEVES, 2000, p.218).

Para o ser humano que é ético, a sua vida tem um valor que está acima dos demais seres da natureza, e para o cristão, além do valor ético, o homem (varão e mulher) foi criado à imagem e semelhança de Deus e, portanto, a vida deve sempre ser respeitada desde a sua origem até o seu final, e nunca ser usada como um meio a ser destruído em benefício de outrem, quem quer que seja.

Celito Moro. Faculdade Palotina, Santa Maria (Brasil). Texto original em português.

Referências bibliográficas

BARBOSA, A. S. et al. Acta bioethica. Santiago,  v.19, n.1 jun. 2013. Disponível  em: http://dx.doi.org/10.4067/S1726-569X2013000100009. Acesso em: 15 mai 2018.

BARROS, R. F. Destino dos embriões excedentes: um estudo dessa problemática nos países do Mercosul. Livro On-line, 2011.

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PEREIRA, L. V. Clonagem, da ovelha Dolly às células-tronco. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2007.

PONTIFÍCIA ACADEMIA PRO VITA. Declaração sobre a produção e o uso científico e terapêutico das células estaminais embrionárias humanas. Cittá del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2000.

______. Por ocasião da recente publicação de um artigo sobre a indústria da clonagem. L’Osservatore Romano (edição em Português), 8 dez 2001, p.4.

Sites consultados:

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EFE em Bogotá. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u14875.shtml

O GLOBO ON-LINE, Disponível em: https://esclerosemultipla.wordpress.com/2006/08/24/celulas-tronco-sem-destruir-embrioes/

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, Lei de Biossegurança, lei n. 11.105. Disponível em: www.planalto.ov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/…/lei/11105.htm

Epistemologia teológica

Sumário

1 Introdução

2 Teologia, revelação e fé

3 O conhecimento teológico

3.1 Historicidade

3.2 Eclesialidade

3.3 Contextualidade

3.4 Interdisciplinaridade

3.5 Primazia epistemológica da práxis.

4 Balanço

5 Referências

1 Introdução

A indagação epistemológica sobre a teologia, como questão teológica específica, é um problema moderno. Esta questão esteve certamente presente em épocas anteriores; basta lembrar, por exemplo, as posturas clássicas de Tomás de Aquino e Duns Escoto. No entanto, foi na modernidade ocidental, por causa da configuração secular da filosofia, da ciência e da sociedade, que se legitimaram os questionamentos a respeito da solidez dos fundamentos, do rigor dos procedimentos e da utilidade das abordagens da disciplina teológica. Neste cenário, era imperativo para o teólogo procurar entender, não só os objetos de sua disciplina, mas também determinar a especificidade do conhecimento teológico em si. Este campo de reflexão, precisamente, é conhecido como epistemologia teológica.

Assim entendida, do ponto de vista da sua realização, a epistemologia teológica é uma tarefa da segunda ordem, uma vez que supõe a realização concreta do teologizar, vivência que procura compreender. Do ponto de vista de seu impacto, no entanto, é uma questão de primeiro nível, pois afeta a perspectiva e o modo como devem ser abordados os temas próprios da disciplina. Neste sentido, a consideração epistemológica é de grande importância na teologia, porque um verdadeiro avanço neste campo do saber supõe mais uma revisão dos fundamentos que uma ampliação dos objetos.

Neste contexto, nos ocuparemos a seguir da noção de teologia a partir da qual se define a consideração propriamente teológica do conhecimento (2) e das características do conhecimento teológico, conforme se concretizam e enriquecem nas teologias da América Latina (3).

2 Teologia, revelação e fé

Concebemos a teologia como a reflexão sistemática, crítica e propositiva da vivência de revelação e fé. Como esta vivência é o solo nutrício do conhecimento teológico, seu objeto e sua perspectiva, correspondem ao teólogo – independentemente do objeto imediato de estudo (Bíblia, doutrinas, ação) – desvendar o acontecer da auto-doação amorosa e salvadora de Deus (revelação) e construir os caminhos para configurar a vida desde o seguimento de Jesus (fé).

As notas com as quais qualificamos a reflexão indicam, por outro lado, a honestidade intelectual exigida à teologia como uma disciplina acadêmica que, a partir de um horizonte crente irredutível, busca legitimidade e fecundidade na diversidade dos saberes, na facticidade da existência e na concretização da práxis. Assim, é sistemática porque excede e qualifica o estágio da opinião e do bom senso, graças à implementação de procedimentos e categorias acadêmicas; é crítica porque examina constantemente a solidez de seus fundamentos, procedimentos e teorias, e porque interroga as práticas eclesiais e sociais à luz do caráter libertador do amor evangélico; e é propositiva porque, além da recuperação lúcida do passado, procura descobrir na situação atual uma direção pela qual se possa caminhar de forma responsável, vivendo para o futuro.

De acordo com o que foi dito, em teologia não se procede a partir de uma noção genérica de Deus, mas da experiência e do testemunho dos acontecimentos em que Deus se deu a conhecer. Também não exige a neutralidade do pensador, mas seu compromisso de orientar a vida nos caminhos abertos por tais acontecimentos. Precisamente por isso, para a epistemologia teológica, é muito importante especificar a compreensão da revelação (ver Revelação) e a fé que está na base do conhecimento teológico.

Na tradição judaico-cristã, a revelação é entendida como a auto-doação de Deus na história (DV, 2). Destaca-se, portanto, que Deus não comunica nada além de si mesmo e que ele não o faz de maneira mítica, intemporal ou intimista, mas nas coordenadas e limitações históricas em que acontece a vida e se marcam as possibilidades do ser humano. Contrariamente ao que se pode pensar, isso não submete o caráter absoluto do criador à finitude da criatura; mas manifesta o modo de ser de Deus que, como uma doação radical, atende às limitações da condição humana e, assumindo-a, abre-a às suas inusitadas possibilidades originais. Afirmamos, então, que a revelação ocorre na experiência histórica, isto é, nos acontecimentos (fatos) interpretados à luz de um projeto de sentido (palavras). Sem a palavra, o fato seria mergulhado na escuridão do sentido; sem o fato, a palavra sucumbiria ao vazio do referente.

A fé, por sua vez, não consiste exclusivamente ou principalmente na aceitação e proclamação de verdades e mandatos, mas em um ato de confiança que configura a existência e o compromisso histórico com o próximo, o mundo e Deus. Ter fé, neste sentido, é apropriar-se de uma atitude global em relação à vida que ofereça uma orientação básica à práxis e se concretiza nela (GUTIÉRREZ, 2006).

A revelação – como auto-doação histórica de Deus – e a fé – como auto-doação histórica do ser humano a partir de Deus – são dimensões correlativas irredutíveis do mistério do amor salvífico que tematiza a reflexão teológica. Uma vez que esta correlação não pode ser reduzida a um esquema consecutivo em que a fé segue à revelação, preferimos escrevê-la em uma única palavra: revelação-fé.

O relato fundacional da teologia, de acordo com o que foi dito, está no mistério da revelação-fé que, para além da simples etimologia, pode ser proposto como seu objeto e, como tal, indica o modo de proceder neste campo do conhecimento.

3 O conhecimento teológico

Explicaremos a seguir algumas características do conhecimento teológico que se deduzem da centralidade da revelação-fé e que foram especialmente enfatizadas nas teologias latino-americanas.

3.1 Historicidade

Em primeiro lugar, se o objeto fontal da teologia acontece na história, é claro que o conhecimento teológico deve ser fundamentalmente histórico. Com isso, indicamos:

  • Que todos os enunciados teológicos estão referidos não a princípios metafísicos, imutáveis e evidentes, mas a acontecimentos da história da salvação que sustentam seu significado e sinalizam seu sentido.
  • Que na teologia os julgamentos contra-fáticos sobre a práxis também têm força fática, isto é, além de se pronunciar sobre acontecimentos do passado, procuram um impacto nos acontecimentos presentes e futuros. Ao lado do referente histórico, então, há uma responsabilidade histórica.
  • Que a teologia tem história e que suas elaborações não podem ser compreendidas à margem das possibilidades e exigências de cada época em que tentou apropriar-se reflexivamente da experiência crente.
  • Que toda realização histórica – teórica ou prática, eclesial ou secular – é provisória diante da plenitude escatológica do Reino. Desta forma, evitam-se ideologias, fetichismos e idolatrias (GUTIÉRREZ, 2006).

Por outro lado, o caráter histórico implica que o conhecimento teológico é dinâmico. De fato, se a fé é realmente compromisso vital e, como tal, assume formas diferentes ao longo da história, a inteligência que a acompanha deve ser continuamente renovada (GUTIÉRREZ, 2006), para não ocultar ou distorcer o que pretende compreender.

Assim, a partir de vários campos do conhecimento, mostrou-se que o progresso epistemológico não acontece sob a dinâmica verdadeiro-falso-verdadeiro; mas que o movimento responde melhor ao esquema suficiente-insuficiente-suficiente. Em outras palavras, um modelo interpretativo que parece dar conta de uma esfera da realidade, é insuficiente diante de dimensões inexploradas dos fenômenos ou questionamentos não resolvidos de modelos alternativos. Esta insuficiência leva, não sem resistências, ao surgimento de novos modelos que acabam por impor-se ao ganhar em suficiência explicativa. Os modelos se deslocam e se criticam uns aos outros, mas dificilmente se cancelam entre eles. Pelo contrário, eles coexistem regularmente e até cooperam na compreensão e afetação da realidade. A história da teologia é, além disso, testemunha eloquente dessa dinâmica.

3.2 Eclesialidade  

A segunda característica do conhecimento teológico, que já descrevemos como histórica, é a eclesialidade. Com isso não propomos a dependência da instituição eclesial, mas seu caráter eminentemente comunitário. De fato, dado que a teologia está inevitavelmente ligada à revelação-fé e que esta tem um caráter comunitário irredutível, é compreensível que o conhecimento teológico se direcione a lugares constitutivos, enunciativos e reguladores (PARRA, 2003) que lhe permitem nutrir-se da experiência comunitária e estar ao seu serviço.

O lugar constitutivo é a Sagrada Escritura, que, como sedimentação escrita do acontecimento histórico da revelação, serve como testemunho primigênio deste acontecimento, permite o acesso à experiência das primeiras comunidades e opera como esperança normativa e critério corretivo para todas as comunidades na sua práxis de seguimento.

O lugar enunciativo é a Tradição que, como dinâmica vital da comunidade eclesial que configurou sua identidade – celebrativa, doutrinal, normativa, organizacional – é reconhecida por essa comunidade como testemunho da revelação em seu processo de compreensão histórica.

O lugar regulador é o Magistério, um ministério pastoral ao serviço da comunidade que, no meio da pluralidade irredutível de experiências e interpretações, deve trabalhar para a unidade dos crentes, a fidelidade às fontes originais e a relevância nas situações históricas.

Esses referentes epistêmicos, tradicionalmente conhecidos como lugares teológicos, devem ser entendidos em constante interação recíproca, em abertura de diálogo com outros lugares fontais para o pensar humano e sempre em função da vida das comunidades reais que leem a Bíblia, enriquecem a Tradição e sustentam o Magistério.

3.3 Contextualidade

A terceira nota do conhecimento teológico é a contextualidade. Que a teologia seja contextual não é uma novidade radical em nosso tempo e em nosso continente, mas uma condição irredutível das teologias de todos os tempos e de todos os lugares (BEVANS, 2005). Além disso, é claro, das teologias da Bíblia, da Tradição e do Magistério. O que é novo, inegavelmente como aporte da teologia latino-americana, é a aceitação cada vez mais pacífica dessa contextualidade na elaboração e na consideração de toda interpretação teológica. Na verdade, nenhuma construção teológica está fora do contexto a partir do qual foi elaborada; embora também seja verdade que a mente do teólogo pode estar em um contexto diferente daquele no qual transcorre sua vida fática e a de seus contemporâneos.

Assumir a contextualidade como um imperativo para a teologia implica reconhecer que sua elaboração é determinada por fatores externos e internos. Os primeiros correspondem à experiência humana presente (BEVANS, 2005), ou seja, um conjunto de realidades objetivas atravessadas, necessariamente, pela vivência que delas fazem os sujeitos. Esses fatores são, em primeiro lugar, a situação sociocultural, ou seja, tanto as estruturas organizacionais das sociedades quanto o conjunto de sentidos e valores que determinam seu modo de vida; e, em segundo lugar, os esquemas interpretativos da realidade, a rede de perguntas e respostas que são consideradas legítimas para aceder à compreensão da natureza, das sociedades e das culturas.

Os fatores internos, por sua vez, correspondem a elementos fundamentais da confissão de fé, cuja inteligibilidade é possível dentro da comunidade de fé a partir da qual eles são recebidos e a partir da qual eles são enunciados. Nesse sentido, são princípios mais teologais do que teorias teológicas. Entre eles podemos destacar, por exemplo, a natureza encarnada do cristianismo, o caráter sacramental da criação e o evento histórico da revelação (BEVANS, 2005).

Com base nesses princípios, podemos argumentar que o caráter contextual do saber teológico não é um esnobismo dos teólogos ou uma concessão às pressões externas à comunidade crente ou à disciplina. Trata-se, mais do que isso, de um imperativo para todo pensamento que se pretenda realmente fundado na fé que proclama Jesus Cristo como Deus encarnado, a realidade como um sacramento e a história como um cenário de revelação-fé.

Consequentemente, a teologia pode lidar com problemas associados aos fatores externos a partir da perspectiva dos internos, pois os critérios últimos da leitura teológica vêm dos princípios teologais e não do próprio contexto. Também pode, claro, aprofundar na compreensão desses princípios e em sua fecundidade a partir das oportunidades e recursos oferecidos pelos fatores externos. Além disso, a correlação de ambos os fatores permite que o teólogo enfrente o falso dilema entre fidelidade ao Evangelho e pertença à situação.

3.4 Interdisciplinaridade

A quarta nota do conhecimento teológico é a interdisciplinaridade, entendida como a aposta epistemológica em favor da interação integradora das disciplinas, que se impõe quando o conhecimento sobre um problema socialmente relevante é incerto, quando se contesta a natureza concreta dos problemas e quando há muito em jogo para aqueles afetados pelos problemas e aqueles envolvidos em enfrentá-los (TD-Net). Dada essa complexidade dos problemas, se evidencia o risco de simplificações e a insuficiência de uma disciplina isolada para dar conta da realidade em suas diferentes esferas.

Essa interação envolve perguntar sobre o valor real da estruturação disciplinar do conhecimento e do ensino, tanto no campo teórico ou técnico como no terreno comum e prévio às disciplinas, ali onde se põem em jogo cotidianamente os interesses, os fins e as ações dos sujeitos que produzem, ensinam, aprendem e aplicam conhecimentos. Esta interação supõe, além disso, que procuremos um confronto complexo, não simplificado, dos problemas que são, em si mesmos, complexos em sua gênese histórica, em sua  articulação estrutural e no seu impacto vital.

A maior dificuldade para a interdisciplinaridade na e a partir da teologia é a forma de sua implementação, uma vez que é necessário encontrar modalidades criativas que permitam ao teólogo trabalhar com as ciências sem renunciar ao que é próprio do seu saber. Do interior de nossa tradição teológica podemos encontrar recursos para enfrentar esta situação. Referimos-nos aos princípios teologais da encarnação do Verbo e à natureza comunitária da divindade. De fato, tanto a teoria das duas naturezas como a pericorese (compenetração intra-trinitária das pessoas divinas) podem nos ajudar a realizar a busca de uma “troca orgânica” como dinâmica de interação entre as disciplinas científicas e o conhecimento teológico (PARRA, 2003).

Por troca orgânica, entendemos uma interação que parte do pressuposto da unidade e não da separação originária, tanto na realidade como no pensamento. Isto teria, em princípio, duas implicações:

  • A primeira, acolher as esferas do real como “totalidades concretas” que nos são dadas de forma sintética e não analítica. Assim, o pensamento analítico não perde de vista que o ponto de partida é sintético e, portanto, também deve sê-lo o ponto de chegada.
  • A segunda, que a teologia não busca irromper como estranha nas ciências, seus métodos e categorias, ou vice-versa; mas explicitar que os princípios teologais estão intrinsecamente presentes na natureza, na sociedade e na cultura, e que a consistência e autonomia da práxis secular e dos saberes científicos não constituem um obstáculo à compreensão teologal da realidade.

3.5 Primazia epistemológica da práxis.

Como quinta característica, encontramos a correlação intrínseca entre teoria e práxis. Na tradição teológica latino-americana, é superada a relação extrínseca que propõe duas realidades autossuficientes que ocasionalmente se encontram quando a teoria trata de alguma práxis ou a práxis busca a iluminação em alguma teoria. Afirma-se, melhor, uma correlação intrínseca segundo a qual a teoria é uma nota fundamental da práxis e a práxis é um momento constitutivo da teoria (DE AQUINO, 2010). Em outras palavras, não há práxis sem intelecção e não há intelecção sem práxis.

Esta correlação, tão negligenciada na história da teologia, parece clara na cosmovisão bíblica. É claro que, na Escritura, não encontramos uma teoria epistemológica; no entanto, nas narrativas se descreve o modo pelo qual é possível conhecer a Deus ou saber que ele é conhecido. Os dois processos têm um marcado acento afetivo e práxico que se efetua e dinamiza na história. A partir do componente afetivo, se compreende o conhecimento de Deus sob a dinâmica de “reconhecimento” daquele com quem já se tem uma relação na própria história (Lc 24,35; Jo 20,16). A partir do práxico, se sustenta que a Deus o conhecemos graças às suas ações: “Nisto, você saberá que eu sou o Senhor” (Ex 6,7). A verificação do conhecimento que o homem tem de Deus, por sua vez, não depende da clareza e distinção de suas ideias sobre ele, mas da correspondência entre sua práxis vital e sua confissão de fé: “Aquele que não ama não conhece Deus “(1Jo 4,8).

De acordo com isso, na teologia afirmamos uma primazia epistemológica da práxis (DE AQUINO, 2010). Desta forma, é acolhida a especificidade da realidade a ser inteligida, a experiência da revelação-fé, que não é de natureza teórica, mas vital; é indicado o modo como deve ser inteligida esta realidade, sob a premissa de que a maneira de entender uma questão depende da maneira como ela se manifesta; e se estabelece o princípio da construção e verificação das teorias teológicas cujo valor reside na capacidade de deixar-se interrogar pelas práticas e na capacidade de orientá-las, uma vez que estas são as que revelam as autênticas convicções dos agentes. Este é o significado profundo do primado da práxis na teologia latino-americana: não se despreza o valor dos textos e das doutrinas, mas se assume a vida concreta como o solo nutrício e destino destas e daqueles.

É necessário esclarecer, no entanto, que com a categoria práxis nos referimos a toda atividade humana e não apenas àquela diretamente encaminhara às transformações socioeconômicas. Isso não impede afirmar que a teologia sempre tem um propósito emancipador, um pretexto de libertação evangélica, efetiva e integral (GUTIÉRREZ, 2006). E isso não por não sucumbir às pressões externas da sociologia do conhecimento, mas por assumir com autenticidade as dinâmicas constitutivas de nosso relato fundante da revelação-fé. De fato, em nossa tradição, a revelação de Deus é movida pelo desejo de salvação e não pela necessidade de adoração; e a fé se define mais pelo que dizemos com o que fazemos do que pelo que dizemos sobre o que cremos. Em outras palavras, a certeza do caráter salvífico da auto-doação de Deus na história exige um modo de libertação dos entendimentos históricos dessa auto-doação. Portanto, conhecer em teologia não é apenas interpretar as experiências de libertação que são narradas na Bíblia e sistematizadas nas doutrinas, mas gerar as condições para vivenciá-las, sempre de novo, na cotidianidade dos crentes.

5 Balanço

Procuramos nos introduzir na epistemologia teológica e sua crítica à solidez dos fundamentos, ao rigor dos procedimentos e à fecundidade dos achados próprios da teologia. Para isso, depois de propor uma noção heurística desta disciplina, enunciamos algumas características do conhecimento teológico que pretende ser construído no solo nutrício da revelação-fé. De acordo com o que foi dito, cabe ao teólogo integrar criativamente os elementos constituintes de sua confissão crente e os recursos fornecidos pela razão secular, em sua tarefa inesgotável de reconstruir criticamente os significados do passado e construir responsavelmente os sentidos para o presente e o futuro da comunidade humana e cristã.

Olvani F. Sánchez Hernández. Pontifícia Universidade Javeriana (Colômbia). Texto original em espanhol.

5 Referências

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VIDAL, José. “Teoría del conocimiento teológico.” En: IZQUIERDO, Cesar (ed.). Teología fundamental: temas y propuestas para el nuevo milenio. Bilbao: DDB, 1999.

Consciência

Sumário

1 “Consciência de si” e “consciência”

1.1 Perspectiva psicológica

1.2 Perspectiva ética

1.3 Perspectiva teológica

2 Perspectiva bíblica

2.1 Antigo Testamento

2.2 Novo Testamento

3 Perspectiva histórica

4 Desenvolvimento e maturidade da consciência

5 Consciência em uma chave personalista, comunitária e profética

5.1 Consciência moral autônoma e autotranscendente

5.2 Consciência moral comunitária e eclesial

5.3 Consciência moral profética e libertadora

6 Encontro de moralidade e espiritualidade na consciência

7 Referências bibliográficas

Na experiência da consciência, a pessoa livre percebe sua capacidade de discernir entre o bem e o mal para decidir de forma responsável. Na consciência cristã se juntam a experiência moral humana da responsabilidade e a experiência espiritual cristã de viver a fé e caminhar no Espírito.

1 “Consciência de si” e “consciência”

“Consciência de si” (em inglês consciousness, em alemão Bewusstsein) e “consciência” (inglês, Conscience, alemão, Gewissen) referem-se à etimologia latina da conscientia: cum scientia, simul scire e à grega de syn-eidesis : “conhecer-com” ou conhecimento autorreflexo, concomitante ao conhecimento de algo ou de alguém. A “consciência de si” é dita em um sentido fisiológico e psicológico de estar em um estado consciente, desperto e capaz de reconhecer-se em suas ações e no meio ambiente. “Consciência” se diz, em sentido moral ou religioso, da apreensão responsável do valor moral e espiritual. Desde os tempos antigos, em culturas distantes uma da outra no espaço e no tempo, há expressões da vida diária sobre a satisfação pelo bem e remorso pelo mal, como mostram, por exemplo, essas inscrições: “O coração é testemunha; você não deve agir contra ele” (cultura egípcia); “Um Deus invisível habita dentro de nós” (cultura hindu); “O melhor de cada humano, seu coração bom e firme, para ter Deus em seu coração” (cultura náuatle).

1.1 Perspectiva psicológica

Na consciência psicológica, a pessoa, que não é uma coisa a mais entre as coisas, percebe seus próprios estados anímicos e retorna reflexivamente sobre si mesma, reconhecendo-se conscientemente como sujeito de sua vida psíquica no mundo, no tempo e em relação a outras pessoas.

1.2 Perspectiva ética

A consciência moral percebe o chamado para realizar os valores morais e cumprir as normas; julga, exercendo com prudência a razão prática, sobre o que deve ou não ser feito para realizar esses valores e aplicar as normas nas circunstâncias concretas da vida diária. Sócrates se refere à voz do daimon que o aconselha. Sêneca a chama de “observador vigilante do bem e do mal no nosso interior”. Confúcio disse que sempre viveu “ouvindo a voz do céu”. Para Kant é o “tribunal da justiça no interior do homem”. Considerada a partir do objeto do juízo, a consciência é verdadeira ou errônea. Considerada a partir do sujeito, é sincera ou insincera. Somos chamados a seguir o chamado da consciência e, ao mesmo tempo, reconhecer a possibilidade do erro e a necessidade de formar ou corrigir a consciência. A consciência antecedente convida a fazer o bem e a evitar o mal. A consciência consequente confirma a satisfação pelo bem feito e reprova o mal cometido.

1.3 Perspectiva teológica

A consciência moral crente é identificada com a fé que internaliza o chamado divino e expressa a resposta responsável para viver praticando o amor da caridade (ágape) com a ajuda da graça. A consciência é voz, luz e força para responder à realidade a partir da fé; capacita, guia e apoia o julgamento prudencial e a decisão responsável (CURRAN, 2004, p.7). É voz que chama a deixar-se conduzir pelo Espírito. É luz que acompanha os processos de discernimento e deliberação sobre valores, normas e circunstâncias. É força para decidir e curar, ou reconciliar depois de reconhecer os erros na decisão.

2 Perspectiva bíblica

2.1 Antigo Testamento

Na Bíblia hebraica, “coração e entranhas” são metáforas da consciência. Na profundidade da interioridade, a fé reconhece se “o coração não a reprova” (Jó 27,6). Davi “sentiu bater-lhe o coração” de remorso por um comportamento injusto (1Sm 24,6; 2Sm 24,10). O salmista arrependido clama: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova em mim um espírito reto (…) um coração arrependido e humilhado, não o desprezas, ó Deus” (Sl 51,12-18). Aí Deus promete gravar sua palavra: “Porei a minha lei no seu interior, e a escreverei no seu coração” (Jr 31,33, cf. Dt 4,39). Jeremias anuncia que “o pecado está gravado na tábua do coração” (Jr 17,1). Jó se defende: “meu coração não me reprova nenhum de meus dias” (Jó 27,6). A promessa do Espírito é: “Eu lhes darei um coração novo e lhes infundirei um espírito novo. Arrancarei o coração de pedra e lhes darei um coração de carne” (Ez 11,19; 18,31; 36,26). O Criador, que “vê o coração” (1Sm 16,7), é o “Deus justo que sonda o coração e as entranhas” (Sl 7,10; Sl 139,1-7; cf. Sl 26,2; Jr 11,20; 17,10; 20,12).

2.2 Novo Testamento

Jesus prega a disposição interior do bom coração, em vez da exterioridade da consciência moral farisaica (Mt 15,7-20, Lc 11,37-42). “O que sai de dentro do coração humano é o que mancha” (Mc 7,21-23). “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro que está em seu coração” (Lc 6,45). Chegou o tempo a viver com um coração novo: Deus o transformará, derramando sem limites seu Espírito (Lc 4,14-21; Jo 7,39, cf. Jl, 3,1-2). Paulo integrou a tradição helênica sobre a consciência (syneidesis) com a presença interior e ativa do Espírito. “Aqueles que se deixam guiar pela sabedoria do Espírito tendem ao que é próprio do Espírito” (Rm 8,5), que ilumina o discernimento (Rm 14,16-23; 1Tm 1,5; 1Cor 2,6-16).

A autonomia da consciência moral do homem consiste em ser uma lei (nomos) para si mesmo (autos): uma lei não escrita, gravada nos corações (Rm 2,14-15), que se explicita na consciência moral cristã como autonomia teonômica, que coincide com o sentido de viver e caminhar no Espírito. Paulo levanta as questões morais para uma fé e consciência adultas, em contraste com o modo de agir da criança por medo de castigo ou esperança de recompensa (Rm 14,1-4), e enfatiza a coerência da ação com a própria convicção, acentuando o aspecto comunitário e a repercussão de nossa maneira de agir em outros membros da comunidade (Rm 14,12). Nesse texto, a palavra-chave é “convicção interna de fé” (pistis).

Paulo integrou a noção popular e filosófica de consciência (syneidesis) na era helênica com a da fé cristã, centrada na atividade do Espírito que ilumina o discernimento e fortalece a decisão. Mas o direito e o dever de agir em consciência se conjugam com o respeito pela consciência dos outros (1Cor 8,1-13 e 10,23-33).

A consciência é a voz, guia e força do Espírito: uma voz que não vem de fora, mas é ouvida na interioridade; guia para discernir com prudência. “Bem-aventurado aquele que examina as coisas e faz um juízo (…) o que não vem da convicção é pecado” (Rm 14,23); força para decidir de forma responsável, denunciar profeticamente e testemunhar bravamente (Mt 10,19-20).

3 Perspectiva histórica

A tradição patrística pregava a resposta fiel ao chamado de uma consciência que era, ao mesmo tempo, humana ou natural e cristã ou espiritual; mas os latinos acentuaram mais as imagens da consciência como tribunal, juiz ou testemunho interior, enquanto os gregos preferiam a comparação com o pedagogo, guia e acompanhante.

A tradição monástica e mística cultivou o discernimento segundo a consciência que se deixa guiar pelo Espírito; mas, nas controvérsias medievais sobre fé e razão, discorre, por razões diferentes, sobre a moral vivida a partir da fé pelo caminho ascético-místico e a moral pensada nas disputas escolásticas. O exemplo disso é a controvérsia sobre os aspectos subjetivo e objetivo da consciência (Bernardo vs. Abelardo), que desembocou na síntese tomista de uma consciência iluminada pela lei nova e interior do Espírito, para viver a primeira virtude teologal da caridade, através do discernimento prático de acordo com a primeira virtude cardinal da prudência.

A tradição escolástica distinguiu a consciência como capacidade de discernir o bem e o mal (synderesis) e como aplicação concreta (syneidesis, conscientia). Tomás de Aquino (In 2 Sent., disp. 24, q.2, a.4) expôs isso em forma silogística: a premissa maior, fruto da synderesis; a menor, da ratio, que determina o motivo de tal ação ser má; a conclusão, fruto do julgamento da conscientia.

Na época dos manuais de teologia moral, a partir do séc. XVII, tendeu-se a reduzir o papel da consciência para aplicar princípios de forma dedutiva, com clareza e certeza para impor normas e censurar falhas.

Nas controvérsias sobre sistemas morais laxistas, rigoristas ou equilibrados (probabilismo, probabiliorismo, equiprobabilismo) para superar dúvidas no julgamento e na decisão moral, a consciência parecia ser reduzida a um instrumento para captar a lei moral e aplicá-la. Este enfoque começou no século XIV (Ockham), pela mentalidade voluntarista, legalista e extrinsecista, que via a consciência como um simples árbitro do encontro entre lei objetiva e decisão subjetiva.

Os debates do séc. XX, sobre a ética da situação, provocaram a reação autoritária do magistério eclesiástico, mas redescobriram o discernimento espiritual, esquecido após o divórcio entre teologia moral e teologia mística.

O Concílio Vaticano II reafirmou a tradição do discernimento e assumiu a autonomia de uma consciência madura, que não deve ser confundida com um superego ou um impulso inconsciente freudiano (Gaudium et spes n.16-17, Dignitatis humanae, n.3 e 14).

O desenvolvimento renovador da moral teológica pós-conciliar avançou paralelamente à crise de consciência suscitada pela rejeição de métodos anticoncepcionais considerados “não naturais” na encíclica Humanae vitae. Muitos dos bispos e teólogos questionaram a ênfase excessiva no relacionamento entre o magistério eclesiástico e a consciência obediente (HÄRING, 1981; MCCORMICK, 1989, p.38-41). Mas essa crise favoreceu a reflexão sobre a função da consciência capaz de dissentir de forma responsável: não dissentir “da” igreja, mas dissentir “na” igreja, sentindo-se igreja, para colaborar dessa maneira com a evolução da compreensão da fé e de sua prática. Por outro lado, desenvolveu-se, nas décadas seguintes, uma reação oposta, de tendência restauracionista, para retornar ao modo de entender a consciência na teologia pós-tridentina, como foi exposto pelo esquema De ordine morali, escrito pela comissão preparatória, mas rejeitado pelo Concílio.

A encíclica de João Paulo II, Veritatis Splendor (VS, 1993), estava preocupada em evitar a crescente oposição entre as abordagens renovadoras, que buscavam recuperar a melhor tradição da consciência (cf. VS n.38, 41, 42) e as tendências antirrenovadoras, que enfatizavam o autoritarismo do magistério eclesiástico (ver VS n.53, 59, 82). Mas, afetada pelo medo do relativismo e do subjetivismo dessas duas décadas, essa encíclica colocou, de fato, um freio à renovação pós-conciliar, criticando as correntes teológicas dessa linha (VS n.4, 5, 67, 90, 115). As exortações pós-sinodais do Papa Francisco (Evangelii gaudiumEG e Amoris laetitiaAL) recuperaram a mudança de paradigma pós-conciliar reafirmando uma moral de discernimento (AL n.300-312), que fala mais de graça do que de lei (EG n.38), focada na caridade e na misericórdia (EG n.37), respeitando a gradualidade e as limitações no crescimento e maturação da consciência (EG n.44-45), acompanhando o discernimento e ajudando a formar as consciências, mas sem pretender substituí-las (AL n.37) nem proibi-las de pensar, decidir e amar por e a partir de si mesmas.

4 Desenvolvimento e maturidade da consciência

A psicologia evolutiva e a psicopedagogia (Piaget, Kohlberg) exploraram o desenvolvimento da consciência moral no indivíduo. A antropologia cultural, a sociologia e a psicanálise (Durkheim, Freud) estudaram a evolução do sentido moral na diversidade de épocas e culturas. Essas abordagens sugeriram estágios de crescimento, tanto na consciência individual como na história da espécie: prenomia, tabus, condicionamentos heteronômicos, subjetividade autonômica, reciprocidade e objetividade universalizadoras. Mas, tanto biográfica quanto historicamente, a complexidade dos avanços e retrocessos impede a organização desses estágios de crescimento de acordo com uma sequência ideal homogênea. Em vez disso, eles expressam a aspiração à maturidade de uma consciência moral vista a partir do auge de reflexões atuais. A psicoterapia aplicada à espiritualidade apresentou o desenvolvimento para a maturação em “cinco níveis de consciência”; 1) sensorial (um ego indiferenciado e dependente); 2) individual (um ego autocentrado independente); 3) pessoal (um sujeito interdependente, um “nós”); 4) cósmica (interdependente com solidariedade universal); e 5) eterna (em comunhão com o absoluto) (SÁNCHEZ-RIVERA, 1981).

Essas propostas diversas sobre a gênese e o desenvolvimento da consciência convergem em uma noção dinâmica e holística de consciência moral, que concebe a tarefa e o método de educá-la. Em vez de reduzir a consciência moral a reconhecer mandatos ou proibições e recompensar o cumprimento ou reprovar a infração, ela se revela como a semente da capacidade de captar valores morais pessoais e transcendentes. Se a voz da consciência diz: torne-se o que você é e está chamado a ser, a educação moral terá de facilitar o dinamismo do crescimento humano para compreender e responder aos valores pessoais, espirituais e totais como, por exemplo, amar e se deixar amar, perdoar e se deixar perdoar, agradecer e se deixar agradecer.

5 A consciência em uma chave pessoal, comunitária e profética

A teologia moral pós-tridentina, até meados do séc. XX, além de continuar distanciando-se da teologia espiritual, também permaneceu isolada das correntes filosóficas da consciência na modernidade e na pós-modernidade, não dialogando com o pensamento moderno sobre a autoconsciência (Descartes), nem com a autonomia, a categorização e a universalidade da moral crítica (Kant); nem com as suspeitas pós-modernas contra a consciência (Nietsche e Freud); nem com a abordagem sobre a voz da consciência na fenomenologia existencial e hermenêutica (Sartre, Heidegger). Esses esquecimentos e distanciamentos foram recuperados nas reflexões sobre a consciência feitas por aqueles que têm relido a tradição bíblica, espiritual e o melhor de Santo Tomás e Kant, articulando-a com as contribuições da fenomenologia existencial (Rahner, Fuchs, Lonergan), a antropologia hermenêutica (Ricoeur) e as teorias críticas da sociedade (Metz, Gutiérrez, Boff), dando origem à abordagem personalista, comunitária e libertadora para a qual se encaminha o atual modo de entender a consciência. Esta concepção de consciência amadureceu ao longo das controvérsias pós-conciliares: moral da fé vs. autonomia (GAZIAUX, 1995), o magistério eclesiástico vs. assentimento e dissenso individual (MIETH, 1994) e sobre as teorias da libertação (VIDAL, 2000).

5.1 Consciência moral autônoma e autotranscendente

A consciência é expressão do melhor de si mesmo no núcleo íntimo da pessoa, chave de sua dignidade. Para a teologia, a consciência somos nós mesmos, ultimamente vinculados a Deus pela fé em atitude de escuta. Para a antropologia moral, a consciência é a voz da autenticidade que nos chama a sermos nós mesmos. A voz que escutamos como chamado à autenticidade de nossa autonomia é, em última análise, voz de Deus (teonomia), mas de um Deus que, por seu Espírito, está em nossa intimidade, não para se impor de maneira heterônoma, mas para fazer com que sejamos autônomos (autonomia teonômica) (CAFFARENA, 1983, p.244). Se a consciência moral capta o bem e o mal nos atos livres como imperativo de autorrealização, a questão radical de “quem eu quero ser” será mais importante do que a pergunta “o que devo fazer”; ao optar em consciência pelo bem, eu me escolho como um projeto de personalização e humanização (LÓPEZ AZPITARTE, 1994, p.52-54).

A consciência, à escuta do chamado do Espírito que a capacita para responder, é a percepção pessoal da resposta apropriada. A profundidade na resposta seria a opção fundamental, e a falha na resposta seria o pecado. A consciência é o centro da nossa interioridade, o pano de fundo dos julgamentos e decisões que exercitam a prudência. É assim que o senso de consciência esteve intimamente relacionado com o fato de perceber explicitamente suas próprias atitudes básicas e opções fundamentais, chave para a coerência e continuidade da vida moral do sujeito. “O sujeito autenticamente pessoal, convertido intelectual, moral, emocional e religiosamente, atua no mais alto nível de consciência existencial, moral e responsável” (LONERGAN, 1973, p.5).

5.2 Consciência moral comunitária e eclesial  

Outro significado do prefixo con de “cons-ciência”, sugere o aspecto social do discernimento moral. Embora o último passo de um processo de discernimento seja um juízo e decisão, cuja responsabilidade é pessoal e intransferível, a contribuição comunitária é inevitável ao longo do caminho para a tomada de decisões, assim como na formação da consciência. As faces do poliedro da consciência que discerne são: a) atitudes básicas, b) dados sobre as circunstâncias, c) interpretação-reflexão, d) contraste-conselho, e e) decisão pessoal, prudente e responsável (MASIÁ, 2015).

Nos passos prévios à decisão, o ponto de vista comunitário desempenha um papel importante.

a) A comunidade eclesial ajuda a configurar atitudes básicas da fé, influenciando a maneira de perceber a realidade, gerando hábitos de pensar, valorizar e agir, influenciando, assim, nos juízos morais e nas decisões. Aquele que crê foi educado em uma tradição na qual recebeu algumas orientações e critérios. As normas transmitidas tradicionalmente são referência importante; mas não excluem a necessidade de pensar e decidir por si mesmo. A comunidade ajuda a formar a consciência e a acompanha no discernimento, mas não a substitui.

b) A consciência não funciona bem sem bons dados de experiência de vida e das ciências. Ao manter os mesmos valores e princípios, diferentes conclusões podem ser deduzidas de acordo com a mudança nos dados. Somente com dados não podemos discernir, mas sem eles não podemos fazer um bom discernimento. A comunidade de informação e comunicação, tanto dentro como fora da Igreja, ajuda a garantir esses dados.

c) A partir das atitudes básicas diante dos valores e com dados suficientes, um julgamento deve ser emitido em cada caso. Aqui entra em jogo o papel de um pensar honesto que pergunta, analisa os dados, interpreta e não cessa de buscar criativa e criticamente as respostas. Esse pensar não evita nem substitui a fé, nem a ciência ou a experiência.

d) Não estamos sozinhos diante da urgência da decisão. Precisamos da ajuda de outras pessoas para contrastar as interpretações. Diversas comunidades de pessoas podem ajudar: por exemplo, a comunidade de pesquisadores científicos; a comunidade do diálogo de pensamento; a comunidade de relações humanas dentro de uma sociedade plural; as comunidades que compartilham convicções religiosas etc. No âmbito destas ajudas, se enquadra o papel orientador destas últimas – que nunca deve ser dominante ou autoritário – a partir das respectivas tradições comunitárias, culturais ou religiosas. Ajuda-nos a corrigir a passagem do tempo e a relação com as outras pessoas.

Os debates, no final do século passado, na Igreja, sobre o sentir e dissentir ajudaram a amadurecer a consciência eclesial, para além das velhas oposições entre consciência individual e  magistério eclesiástico, na compreensão do papel do acompanhamento pastoral como auxílio ao discernimento da consciência, mas sem substituí-la para decidir em seu lugar. É papel da comunidade eclesial ajudar a educar o juízo moral e a formação da consciência dos fiéis. Como portadora de uma tradição em questões morais, a Igreja acumulou, ao longo dos séculos, uma riqueza de sabedoria prática que fornece importantes orientações na hora de discernir. A consciência as respeitará de forma crítica, mas sem considerá-las como um armazém de respostas pré-fabricadas. A comunidade de fé torna-se o lugar onde seus membros podem dialogar, estudar e discernir em comum os problemas morais. O papel da igreja, mais do que o de legislar, é o de iluminar, a partir de uma dimensão elevada, com propostas de valores. Às vezes, terá que assumir uma posição oficial sobre problemas concretos, cumprindo, perante a sociedade, uma função que pode ser, de acordo com os casos, terapêutica ou profética. Quanto mais concretos forem os problemas, menos radicalmente assertivas poderão ser as tomadas de posição. Respeitar essas tomadas de posição oficiais da igreja não significa segui-las cegamente, como se elas eximissem de pensar e decidir conscientemente.

e) Uma decisão responsável (que não é o mesmo que correta ou com cem por cento de certeza) seria a que levasse devidamente em consideração as quatro etapas anteriores. Talvez, depois de algum tempo, analisemos a decisão e descubramos que estava errada; mas isso não significa que tenha sido irresponsável. Nesse sentido, foi uma decisão eticamente correta. A consciência antecedente terá que pressupor atitudes básicas de resposta aos valores, antes do mencionado processo de informar-se, pensar e debater. Durante o processo, a consciência também deve ser uma consciência acompanhada comunitária e eclesialmente. Depois de passar pelo processo, é necessário responsabilidade para adotar resoluções prudentes conscientes, que não precisam depender cem por cento de certezas, nem podem ser impostas a outras pessoas. Quando queremos conjugar o respeito às pessoas com a fidelidade às normas, os conflitos são inevitáveis. Nessas ocasiões, a sabedoria prática deve intervir como mediadora. “A sabedoria prática”, diz Ricoeur, “consiste em inventar as condutas que melhor satisfaçam às exceções exigidas pela nossa solicitude para com as pessoas, traindo o menos possível as normas” (RICOEUR, 1990, p.312).

5.3 Consciência moral profética e libertadora

A teologia da libertação tem revalorizado o papel profético e libertador da consciência, ao mesmo tempo em que promove o chamado à a comunidade crente para converter-se em voz dos sem voz e consciência social que denuncie a manipulação ideológica das consciências, a opressão e exclusão das pessoas, além fomentar a conscientização sobre tal situação. O clamor do povo injustiçado (Ex 3,7), as denúncias de injustiça pelos profetas (Am 5,18-24) e a mensagem evangélica de proximidade e misericórdia (Lc 10 e Mt 25) se atualizam no contexto de teologias libertadoras como responsabilidade da consciência profética, para reconhecer as injustiças sistêmicas e males estruturais que exigem ser denunciados pela comunidade solidária com as vítimas. Esta consciência profética chama não só aliviar a dor e a pobreza, mas a quebrar as suas causas sociais, estruturais, políticas e econômicas. Essa consciência atualiza, a partir da fé, o amor ao próximo na luta contra toda violência, racismo, exclusão, discriminação etc. Não o faz pedindo paternalmente que se inclua o pobre no sistema, mas exigindo a mudança do sistema que exclui o pobre. Esta consciência ouve Deus escutando o clamor do pobre, o que a levará a orientar seu discernimento e motivará suas decisões.

6 Encontro de moralidade e espiritualidade na consciência

A teologia mística de Boaventura viu na consciência, capaz de captar o bem, um movimento amoroso da vontade, ao invés de um julgamento cognitivo. Mas a conjugação da deliberação ética e do discernimento espiritual enfraqueceu-se à medida que se acentuava a desconexão entre a moralidade e a espiritualidade. Do séc. XVII ao séc. XIX cresceu a distância entre moral de preceitos e espiritualidade dos conselhos evangélicos. Em meados do século XX, chegam com atraso as tentativas de recuperar o diálogo da moral teológica com a espiritualidade. A recuperação da tradição bíblica de discernimento e da tradição filosófica reflexiva ajudam a relacionar, ao mesmo tempo em que as diferenciam, as funções respectivas da experiência moral e da experiência religiosa.

A voz da consciência, que dita o que deve ser feito ou não ser feito, “sai das profundezas de mim mesmo (…) é o clamor da realidade no caminho do absoluto (ZUBIRI, 2007, p.101-104). A experiência metafísico-religiosa da religação e a experiência moral da obrigação são diversas, mas relacionadas. “Estamos obrigados a algo porque anteriormente estamos religados ao poder que nos faz ser”. (ZUBIRI, 2007, p.93). A experiência da religação é o fundamento da consciência moral da obrigação. O fenômeno da consciência não se reduz a uma obrigação moral. A consciência não se reduz a um fenômeno moral. Nela, duas experiências diferentes, a moral e a religiosa, estão intimamente relacionadas. “A voz da consciência é (…) a palpitação e a batida da divindade no seio do espírito humano” (ZUBIRI, 1997, p.66-67). A experiência filosófico-religiosa da “religação” fundamenta a experiência moral da obrigação. “Deus está manifesto nas profundezas de cada homem (…) na voz absoluta da consciência” (ZUBIRI, 1997, p.72-73). A dimensão religiosa da realidade pessoal se desvela na consciência, lugar de encontro de moralidade e espiritualidade.

Juan Masiá, SJ. Universidad Católica Santo Tomás, Osaka (Japão).

 7 Referências bibliográficas

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 Para saber mais

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O movimento de Jesus

Sumário

1 Definição

2 Fontes

3 Fases da pesquisa

4 Contexto histórico

5 Jesus antes da sua atividade pública

6 Soberania de Deus

7 Organização do MJ

8 Consequências da soberania divina

8.1 Espiritualidade

8.2 Curas

8.3 Economia

8.4 Poder

9 O julgamento de Jesus

10 Referências bibliográficas

1 Definição

O termo “movimento de Jesus” (MJ) se estabeleceu na pesquisa bíblica principalmente a partir de impulsos oriundos da sociologia e da antropologia cultural. O conceito expressa um movimento religioso no judaísmo, que tinha como referência central a pessoa de Jesus de Nazaré e a proclamação da soberania de Deus. Ainda que possa ser distinguido de outros movimentos ou grupos judaicos, a atividade do MJ não estava em contraposição ao judaísmo. Jesus não se entendeu como fundador de uma nova religião. A separação do judaísmo e o desenvolvimento do cristianismo tiveram sua origem em acontecimentos pós-pascais.

A definição de MJ pode variar, assim como a sua delimitação temporal. Além do período da atividade pública de Jesus, é possível incluir os primeiros anos da protocomunidade de Jerusalém e da atividade de grupos missionários itinerantes. Aqui restringiremos o MJ ao período da atividade pública de Jesus até a sua morte. Não é possível determinar com exatidão o período e a duração dessa atividade. Indicações dos evangelhos, como ocorrência de estações de ano e da festa da páscoa, apontam para um período entre um e três anos.

2 Fontes

A proclamação e as ações relacionadas ao MJ são testemunhadas quase que exclusivamente nos evangelhos. Nas cartas paulinas, são exíguas as referências diretas a palavras ou a ações jesuânicas. A mesma situação se repete nos demais livros do Novo Testamento. Na obra do historiador judeu Flávio Josefo há observações sobre Jesus. Algumas podem ser acréscimos posteriores, mas é possível que alguma referência básica provenha do autor. Embora raras, também se encontram alusões em documentos romanos do início do segundo século (Tácito, Suetônio e Plínio, o Jovem). Em todo caso, a existência histórica de Jesus de Nazaré pode ser atestada a partir de escritos bíblicos e de fontes não cristãs.

A despeito de constituírem fontes primordiais para a pesquisa, os evangelhos não foram elaborados como biografia ou registro histórico da atividade do MJ. Evangelhos são narrativas que surgiram como recurso precípuo para a missão e a catequese cristã. Marcos foi, muito provavelmente, o primeiro evangelho a ser redigido. Se a datação, por volta do ano 70 dC, for adequada, há que se contar com um intervalo de cerca de 40 anos entre a morte de Jesus e a redação desse evangelho. Neste período, as narrativas foram transmitidas de forma oral e em pequenos relatos escritos. No processo de transmissão e de redação dos evangelhos podem ocorrer modificações nas narrativas. A exegese é a área da pesquisa que se ocupa com a crítica histórica e literária dos textos bíblicos.

 3 Fases da pesquisa

É comum sistematizar a pesquisa do Jesus histórico, respectivamente do MJ, em três grandes fases. As categorizações, entretanto, não conseguem expressar a multiplicidade de abordagens e, na maioria dos casos, ficam restritas ao contexto europeu e norte-americano. Aproximações latino-americanas, africanas ou asiáticas normalmente não são consideradas. Também não se levam em conta as leituras populares, que pressupõem pesquisa e construção de representações do MJ.

Apesar do enfoque científico anglo-saxão, as sistematizações das fases da pesquisa demonstram que toda tentativa de reconstruir uma imagem do MJ é parcial e subjetiva. Isto explica o fato de Jesus já ter sido caracterizado, entre outras designações, como messias sofredor, mestre da sabedoria, guia ético, profeta apocalíptico, líder carismático, judeu marginal, taumaturgo, reformador social. As apresentações variam de acordo com o método, o contexto, o interesse e a parcialidade de quem investiga. Os próprios relatos bíblicos não estão imunes ao desenvolvimento teológico, além de não noticiarem toda a atividade do MJ, mas somente aquilo que foi considerado mais significativo. Neste sentido, a pesquisa histórica se caracteriza mais pela probabilidade do que pela certeza. Não se pode afirmar: “assim aconteceu”; mas somente dizer: “assim pode ter acontecido”.

 4 Contexto histórico

O cenário da atividade do MJ era a Terra de Israel. A administração romana utilizava o termo Palestina, enquanto em escritos judaicos encontra-se a designação Judeia. A maioria da população, estimada em um milhão de habitantes, vivia em pequenas cidades e aldeias, que tinham entre 500 e 2.000 habitantes. A base da economia era a agricultura familiar. Na região costeira e em torno do lago de Genesaré, também chamado de mar da Galileia ou mar de Tiberíades, a pescaria era uma importante atividade econômica.

A Terra de Israel estava ocupada militarmente pelo Império Romano desde 63 aC. Esse Império, cuja capital era Roma, abrangia territórios em três continentes: Europa, Ásia Menor e África. O extenso domínio estava baseado em um poderoso aparato militar. A assim chamada paz romana – período de relativa estabilidade nos territórios dominados e nas fronteiras do Império – era mantida com o rigor da espada. Os romanos permitiam que a administração local fosse conduzida por reis vassalares, denominados sócios ou clientes. Herodes, o Grande, governava a Palestina quando Jesus nasceu (Mt 2,1). Muito hábil, ele conseguia manter boas relações com os imperadores romanos. Internamente, preservava a ordem com força militar e rede de espionagem bem organizada. Revoltas eram combatidas com rigor e violência. Após a sua morte, a Terra de Israel foi dividida entre três filhos: Arquelau (regiões da Judeia, Idumeia e Samaria), Herodes Antipas (Galileia e Pereia) e Filipe (Transjordânia do Norte).

Por causa da notável crueldade, Arquelau foi chamado a Roma e destituído do cargo. Sua área de domínio foi entregue a procuradores romanos. Dos sete procuradores que governaram a Judeia entre os anos 6 e 41 dC, Pilatos é o único do qual temos algumas informações. O MJ de Jesus atuava sobretudo na pequena região da Galileia, comandada por Herodes Antipas (Mc 6,14; Lc 3,1). Para a época, estima-se que a região tivesse em torno de 200.000 habitantes. Mesmo que não fosse tão cruel como o irmão, Antipas não hesitava em tirar do caminho quem o incomodasse (Mc 6,16). Grupos revoltosos ou de oposição eram aniquilados logo em seu nascedouro. O fato de evitar as grandes cidades poderia ser uma medida de prevenção do MJ diante de ameaças deste soberano (Lc 13,31).

5 Jesus antes da sua atividade pública

De acordo com o evangelista Lucas, a família de Jesus morava em Nazaré e foi para Belém por ocasião de um censo (Lc 2,1-7). O evangelho de Mateus, que não menciona o censo, dá a entender que a família de Jesus morava em Belém e se estabeleceu em Nazaré somente após a fuga para o Egito (Mt 2,19-23). Ambos informam que Jesus nasceu em Belém (Lc 2,1-7; Mt 2,19-23). O cristianismo assumiu esta tradição e a cultiva até hoje, mas boa parte da pesquisa bíblica aposta em Nazaré como local de nascimento. Seja como for, Jesus cresceu e provavelmente passou a maior parte da sua vida em Nazaré. Por isto foi chamado de Nazareno e Jesus de Nazaré (Mc 10,47; Lc 24,19; Mt 21,11; At 10,38). Como o pai, ele exerceu o ofício de carpinteiro (Mc 6,3). Entre as funções de um carpinteiro, na época, contavam a construção de casas e estruturas de madeira, a fabricação de peças de mobiliário, ferramentas e arados.

A atividade pública de Jesus inicia após contato com João Batista. João pregava o arrependimento e batizava junto ao rio Jordão (Mt 13,1-12). Jesus se submeteu ao batismo e, algum tempo depois, passou a se dedicar ao anúncio do reino de Deus (Mc 1,9-11). De acordo com Lucas, ele teria mais ou menos 30 anos de idade (Lc 3,21-23). É possível que Jesus tivesse passado algum tempo com o Batista, mas não há indicação clara a respeito. João tinha um círculo de adeptos e era muito conhecido, a ponto de Jesus ter sido visto como o João Batista redivivo (Mt 9,14; Mc 6,14ss; Lc 9,7ss).

 6 Soberania de Deus

A atividade do MJ foi caracterizada pela proclamação do reino de Deus, termo que é mencionado mais de 100 vezes nos evangelhos. Mateus utiliza como correspondência a expressão “reino dos céus”. Reino de Deus é a tradução mais comum para o sintagma grego basileia to theou, mas também se pode usar as expressões “soberania de Deus” ou “domínio de Deus”. Estas alternativas são até mais adequadas, pois possuem menor conotação geográfico-espacial e maior amplitude temporal. Soberania de Deus inclui a dimensão futura e também possibilita falar de sua realização no presente. A soberania de Deus acontece ali onde Deus exerce o domínio, onde pessoas se sujeitam à sua vontade. Assim, o “reino de Deus” pode ser anunciado como muito próximo (Mc 1,15), como realidade já manifesta (Lc 11,20) ou que ainda está por vir (Mt 6,10; Lc 13,29). Jesus possivelmente entendeu a soberania de Deus como uma grandeza dinâmica, na qual o presente e o futuro estão unidos, da mesma maneira que a semente está ligada à planta (Mt 13,31-33).

A expectativa do estabelecimento pleno do domínio de Deus era elemento fundamental da escatologia judaica. Ao anunciar a vinda eminente do reinado de Deus, o MJ falava de um ideal conhecido. As concepções não eram uniformes, porém havia pontos de confluência, especialmente no tocante à expectativa de que o estabelecimento pleno da soberania divina traria um tempo de paz integral, alegria e abundância. Nesse tempo, Deus colocará fim ao domínio estrangeiro e regerá seu povo com paz e justiça. A dominação de Deus será completa e infinita sobre toda a criação.

A concretização do domínio de Deus era, em boa parte, vinculada à ação de um messias. A palavra messias significa “ungido”. Inicialmente, a unção fazia parte do cerimonial de entronização de reis e servia como legitimação para o exercício do poder (1Sm 10,1; 2Sm 5,3). Em algumas tradições, o termo messias (ungido) também aparece ligado a sacerdotes (Ex 29,1-7; Zc 6,13). Nos últimos séculos antes da era comum, o termo messias ganhou conotação de uma figura salvífica escatológica. Com a vinda do messias iniciaria o tempo da salvação. “Cristo” é a palavra grega que corresponde ao hebraico “messias” (Jo 1,41). Quando Pedro declara que Jesus é o Cristo (Mc 8,29), está dizendo que Jesus é o Messias, aquele que inicia o novo tempo. A rigor, a designação seria “Jesus, o Cristo” ou “Jesus, o Messias” (Mt 1,16; At 5,42).

 7 Organização do MJ

 O cerne do MJ estava constituído por um grupo itinerante, que andava por aldeias e pequenas cidades da Galileia proclamando a vinda da soberania de Deus. O número de doze discípulos é uma representação simbólica da reconstituição de Israel e não indica o número exato de seguidores de Jesus. O grupo itinerante era mais amplo, porém dificilmente superior a duas dezenas. Locomoção, hospedagem e alimentação não seriam viáveis com um grupo muito grande. A adesão poderia se dar pelo chamado de Jesus ou pela atitude voluntária das pessoas (Mc 1,16-20; 10,52; Lc 9,57; Jo 1,43).

A investigação sobre a participação feminina no MJ é dificultada pela linguagem androcêntrica, que silencia as mulheres ou as inclui nas referências a homens. Em textos antigos, uma alusão a pessoas no masculino poderia incluir ou não mulheres. Apesar disso, e da escassa base textual, é possível dizer que mulheres pertenceram ao MJ. Algumas mulheres citadas no relato da crucificação podem ser identificadas como seguidoras de Jesus desde a Galileia: Maria de Magdala; Maria, mãe de Tiago e José; Salomé (Mc 15,40s). Textos de tradições diferentes indicam que Maria de Magdala foi a primeira pessoa com a qual Jesus falou após ressurgir (Jo 20,14-18; Mt 28,1-10; Mc 16,9-11). Chama a atenção que esta informação é omitida pelo apóstolo Paulo (1Co 15,5-8).

As exigências da vida itinerante são extremas: abandono da família e do trabalho, renúncia a elementos básicos de subsistência e proteção (Mc 1,16-20; 2,13s; Lc 9,3). Esta condição, que pode ser resumida com a frase “tudo deixamos e te seguimos” (Mc 10,28), foi denominada de radicalismo itinerante. Talvez a ruptura não tenha sido tão radical como sugerem alguns estudos, mas é possível dizer que pessoas renunciaram, parcial ou completamente, a suas ocupações cotidianas para seguir Jesus. Ainda que nem sempre houvesse um local para ficar ou algo para comer (Mt 12,1; 21,18; Lc 9,58), a hospitalidade foi decisiva na atividade do MJ. Jesus e o seu grupo recebiam provisão e cuidado de uma rede de mecenas, constituída pelo círculo familiar e de amizades e também por simpatizantes. De acordo com Jo 12,6 e 13,29, o grupo itinerante tinha um caixa comum, possivelmente composto por doações (Lc 8,3).

Não seria adequado restringir o MJ ao grupo que deixou seus afazeres para seguir Jesus em suas andanças. Também em suas ligações cotidianas as pessoas são desafiadas a viver sob os princípios da soberania de Deus. Portanto, o MJ engloba o grupo itinerante e as pessoas que aderiam às convicções sobre o domínio de Deus, proclamadas por Jesus. O encontro com a mulher de origem siro-fenícia (Mc 7,24-30) revela certa resistência a pessoas que não pertenciam ao povo de Israel, mas não se pode dizer que eram excluídas. Talvez a posição de Jesus possa ter se modificado de uma perspectiva étnica restrita a Israel para uma visão mais abrangente (Mt 8,11).

8 Consequências da soberania divina

Como grandeza dinâmica, que abarca presente e futuro, o domínio de Deus traz implicações para as pessoas e a sociedade. Ele abrange todas as dimensões da vida e se manifesta, por exemplo, nos seguintes aspectos:

8.1 Espiritualidade

Em casas, nas sinagogas e no templo, através da leitura das escrituras sagradas, de orações e cânticos, o MJ se nutria e estimulava a vivência da espiritualidade. Espiritualidade é mais do que oração e contemplação. Ela é vivência da fé e envolve a dimensão pessoal, comunitária (no sentido de um grupo religioso) e social (todas as relações sociais). A oração é elemento característico da relação entre o povo e Deus e também marcou a atividade do MJ. Jesus se retirou para orar a sós (Mt 14,23; 26,39) e ensinou uma oração ao seu grupo (Mt 6,9-13; Lc 11,1-4). O Pai-Nosso é um resumo da prática e da pregação de Jesus. As três primeiras petições estabelecem as prerrogativas divinas: santificação do seu nome, estabelecimento do seu reino, cumprimento da sua vontade. Nas petições seguintes, a pessoa manifesta que não está sozinha, nem pede apenas para si: os pedidos estão no plural, indicando o caráter comunitário da fé.

 8.2 Curas

Curas e exorcismos desempenharam papel importante na atividade do MJ. A restauração da saúde e do convívio social eram interpretados como sinais de que o mal estava sendo vencido e que o domínio de Deus estava se estabelecendo (Lc 7,22; 11,20). Os evangelhos relatam que Jesus não utilizava curas e outros sinais como meio de propaganda, nem requeria o seguimento após uma cura. Em muitos casos, a pessoa é solicitada a ir para casa e não contar a ninguém (Mc 7,36; 8,26; Lc 14,4). A fé aparece como elemento central em relatos de cura (Mt 9,29; 15,28; Mc 5,34), mas nem todos eles dizem algo sobre a fé das pessoas doentes. Isto é indicativo que Jesus curava sem estabelecer condições. Curas e exorcismos eram demonstração de amor e compaixão (Mc 1,41).

8.3 Economia

Embora a proclamação da soberania de Deus seja dirigida a todas as pessoas, o MJ tinha uma vinculação especial com estratos mais empobrecidos e grupos à margem da sociedade (Mt 11,5; Lc 4,18-21; 6,20). Por oponentes, Jesus foi caracterizado como “amigo de publicanos e pecadores” (Mt 11,19; Lc 7,34). Possivelmente as pessoas discriminadas e menos privilegiadas mostravam mais receptividade à mensagem do MJ do que representantes do status quo religioso e político.

Discursos jesuânicos são marcados por críticas a pessoas ricas e à riqueza (Mc 10,23; Lc 6,24-26; 8,14; 12,13-21; 16,19-31). O dinheiro é um poder estranho e oposto ao domínio de Deus (Mt 6,24). Enquanto a economia dominante estava baseada na ganância e no acúmulo (Lc 12,13-21), o MJ prega o perdão das dívidas (Mt 18,23ss) e o desapego ao dinheiro (Mt 6,19-21). Pessoas pobres e famintas são chamadas de bem-aventuradas e recebem a promessa de que a fome será substituída pela satisfação no reino de Deus (Lc 6,20s). Além de assegurar que Deus acolhe as pessoas necessitadas, a promessa é também um apelo ético que motiva a partilha.

 8.4 Poder

As posições políticas do MJ geralmente se mostram de forma velada ou indireta. Isto tinha um motivo: crítica política, protestos ou ações revolucionárias eram duramente combatidos. A presença de um poder político estrangeiro contrariava a concepção da terra de Israel como propriedade divina (Lv 25,23). Assim, mesmo que não fosse diretamente tematizada, a expectativa de libertação do jugo romano estava implícita na proclamação da soberania de Deus. Sob esta perspectiva, a resposta de Jesus na questão do pagamento dos impostos (Mc 12,13-17) tem consequências políticas. A declaração “dai a César o que é de César” pode significar devolver todos os denários, o símbolo da dominação. “Dar a Deus o que é de Deus”, por outro lado, pode significar devolver a terra de Israel, o que equivale a uma rejeição do domínio romano. No julgamento de Jesus, a questão do imposto é associada com a acusação de agitação política (Lc 23,2ss).

Diferente de grupos que estavam dispostos a lutar em guerra santa para libertar Israel, o MJ manifesta uma convicção de renúncia à violência. Mas é possível que internamente houvesse opiniões e expectativas divergentes. Pelo menos no tocante ao papel do messias parece ter havido dissonância entre a perspectiva de Pedro e a compreensão de Jesus: o discípulo não esperava por um messias que pudesse sofrer (Mt 16,21ss).

A chegada da soberania de Deus transfigura os valores das relações de poder. Enquanto os “maiorais” abusam do poder e dele fazem uso para benefício pessoal, no reino de Deus o poder só existe como serviço às pessoas (Mc 10,42-45). O princípio do servir requer um movimento de dentro para fora. Quem aceita os princípios da soberania divina, assume uma nova forma de vida: “entre vós não é assim” (Mc 10,43). A ação das pessoas que se sujeitam ao domínio de Deus tem caráter exemplar e visa a uma mudança da situação. Mesmo assim, a ação humana não pode apressar a vinda do reino. A soberania de Deus se estabelecerá por definitivo no tempo que Ele mesmo determinar (Lc 17,20s).

9 O julgamento de Jesus 

No processo contra Jesus há a participação de diversos atores: autoridades judaicas, administração romana, pessoas do povo. Do ponto de vista técnico, o processo e a pena estavam adequados às normas do Império Romano. A crucificação era pena imposta a pessoas consideradas subversivas e condenadas por crime político. A acusação “Rei dos Judeus”, colocada sobre a cruz (Mc 15,26), indica que Jesus representava uma ameaça para a administração romana. Uma parcela do povo e das autoridades judaicas empenhou-se na sua condenação. Jesus entrou em conflito com autoridades judaicas no tocante à interpretação da lei mosaica e na crítica ao templo (Mc 14,55ss). Mas as autoridades também devem ter considerado o fator político, visto que eram responsáveis por preservar a ordem e a estabilidade. A parcela da população que pediu a crucificação talvez fosse composta por habitantes de Jerusalém que não gostaram das palavras sobre o templo (Mc 13,1s). Muitas pessoas dependiam economicamente do templo e poderiam ver nisso uma ameaça à sua sobrevivência. Em todo caso, não se pode colocar a responsabilidade sobre o povo judeu. Pilatos, o procurador romano, tinha a última palavra. Ele decidiu pela crucificação por entender que Jesus subvertia a estabilidade política.

Emilio Voigt. Coordenador do Núcleo de Produção e Assessoria da IECLB – Porto Alegre (Brasil). Texto original português.

10 Referências bibliográficas

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VOIGT, E. Contexto e surgimento do movimento de Jesus: as razões do seguimento. São Paulo: Loyola, 2014.

História do cristianismo na América Latina: reflexões metodológicas

 

Sumário

1 Precisando conceitos

2 Especificidade do contexto Latino-americano

3 História religiosa e as múltiplas formas de Cristianismo

4 Nova categoria hermenêutica

5 Historiografia precursora

6 Periodização

7 Referências bibliográficas

1 Precisando conceitos

Falar em História do Cristianismo na América Latina implica, antes de tudo, precisar alguns conceitos básicos: o que se entende por Cristianismo e o que implica o contexto Latino-americano.

Dos tempos da descoberta da América (1492) até a terceira década do século XIX, propor uma História do Cristianismo na Hispano-américa significava fazer referimento quase que exclusivamente à História da Igreja Católica no Novo Mundo. Somente no final do século XX começaram a aparecer os primeiros trabalhos históricos sistemáticos sobre o Cristianismo na América Latina. Mesmo assim, a maioria dos autores que abordou o tema em seus manuais tratou o Cristianismo como sinônimo de “Igreja Católica Apostólica Romana” e compreendeu a América Latina como um continente eminentemente “cristão”. Por outro lado, também os autores que tiveram uma pretensão mais ecumênica, trataram o protestantismo histórico (luteranos, calvinistas, metodistas, batistas), o anglicanismo e o pentecostalismo como apêndices à história do catolicismo na América Latina. Por isso, a história do Cristianismo na América Latina ainda carece de uma tratativa que considere a história ecumênica da “Igreja”, de acordo com o seu conceito mais próprio, isto é, como fruto do chamado de Jesus Cristo, confessado pelos cristãos, como filho de Deus. Neste sentido, mais do que instituição humana, o conceito eclesiológico de Igreja deveria ser tratado como movimento histórico do corpo místico de Cristo, comunidade dos santos, povo de Deus, mediatizada pelos sinais históricos como a evangelização pelos sacramentos do batismo, da eucaristia, do matrimônio, da confissão, pela ordenação presbiteral; pela oração e pelas devoções, pelas vocações, pela cruz, sofrimentos e perseguições. Esta eclesiologia abriria espaço a uma historiografia ecumênica.

As definições de “cristianismo” nos diferentes estudos historiográficos apresentam significativas variações. Para uns, cristianismo identificaria uma corrente de pensamento, de conduta, de educação, de ordenamento social, jurídico e político, cuja raiz estaria na vivência de fé na Igreja. No seu sentido mais amplo, seria a repercussão da tradição cristã em todos os âmbitos da vida, assim como foi considerada numa determinada época.

Latino-américa, por sua vez, é um conceito cultural, não geográfico. Foi cunhado na França, no século XIX, para designar o âmbito dos países americanos que se iam configurando constantemente com a civilização latina, por intervenção de espanhóis, portugueses, franceses e italianos. Com frequência, a historiografia usa o conceito de Ibero-américa para designar os países ao sul dos Estados Unidos. Já o conceito de América Latina é mais amplo, uma vez que poderia incluir as antigas possessões espanholas que hoje têm tradições inglesa, francesa e holandesa. Todavia, este mesmo conceito tem uma unilateralidade importante, pois exclui os elementos culturais indígenas e africanos e, de certa forma, perpetua a ideia conceitual do estado de dependência cultural do hemisfério meridional da América com relação à Europa.

2 Especificidade do contexto Latino-americano

Um segundo elemento importante a ser considerado numa história do Cristianismo é o seu contexto, ou seja, a América Latina, enquanto continente multifacetário. A América Latina, longe de apresentar-se unitária, como o nome parece sugerir a primeira vista, apresenta-se fundamentalmente dividida linguística e culturalmente entre as culturas hispânica e aquela portuguesa. Além disto, a América Latina foi palco de ações do sistema colonial europeu, do imperialismo europeu e norte-americano, de revoluções, ideologias e teologias.

3 História religiosa e as múltiplas formas de Cristianismo

No estudo do Cristianismo, especificamente na América Latina, há uma questão de perspectiva que não pode ser desconsiderada: deve-se pensar a uma história religiosa ou a uma história não-religiosa do cristianismo na América Latina? No caso de uma história religiosa, o acento recairia nas relações da Igreja ou das Igrejas com os Estados. Por outro lado, é importante não esquecer que o cristianismo latino-americano historicamente apresentou-se sob múltiplas facetas de pensamento, de espiritualidade. Cada uma delas expressa uma época determinada, uma forma específica de viver o cristianismo, onde a principal ênfase estaria na relação do pensamento cristão com a cultura. Algumas formas de cristianismo foram, até o presente, descartadas pelos estudiosos, por serem consideradas fruto do “sincretismo”, mas que deveriam ser consideradas num estudo global sobre o Cristianismo na América Latina.

4 Nova categoria hermenêutica

Até recentemente, o paradigma historiográfico que servia de base para a História do Cristianismo na América Latina fundava-se no modelo da “cristandade”. Segundo este modelo, a história seria fruto do enlace entre pessoas e instituições que formariam as relações entre a Igreja e o Estado, nas quais se buscavam mostrar como esta articulação, até certo ponto, favorecera a evangelização missionária no Novo Mundo. A partir do Concílio Vaticano II e, posteriormente, da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, em Medellín (Colômbia, 1968) e da Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, em Puebla (México, 1979), os teólogos ligados à Teologia de Libertação inseriram uma nova categoria hermenêutica, a qual serviu de base para a releitura da História do Cristianismo na América Latina: foi a categoria do “pobre”. Do ponto de vista sociológico, “pobre” faz referimento a uma classe social. Mas enquanto “sujeito histórico”, pobres são os miseráveis, os marginalizados, o indígena, o imigrante, os escravos; todo aquele que é despojado de seus direitos e dignidades mais fundamentais. Neste sentido, a História do Cristianismo a partir do olhar do vencido, do marginalizado, do pobre, (ver: A história dos vencidos: indígenas e afrodescendentes), amplia o campo historiográfico que, de outro modo, seria quase que restrito às relações da hierarquia e de poderes das instituições. Sem desconhecer os devidos contextos históricos, a historiografia do Cristianismo na América Latina deve integrar o homem latino-americano, dependente, dominado e oprimido, segundo os elementos característicos de uma sociedade cuja perda da autonomia, a destruição das unidades étnicas e a submissão forçada, formam parte essencial para a compreensão dos processos que dificultam, ou inviabilizam por completo, o desenvolvimento tecno-científico, e levam à perda de controle do próprio destino sócio-político.

5 Historiografia precursora

Até os inícios da década de 60, a historiografia sobre o Cristianismo na América Latina era restrita quase que integralmente à consideração da História Eclesiástica latino-americana. A investigação, e de consequência também a periodização, dependia por completo da História da Igreja nas diversas unidades nacionais. Não faltaram inciativas de historiografias mais globais, como a de Houtart, que, entre 1958 e 1962, inicia a publicação dos Estudios religiosos do FERES (Federacíon Internacional de los Institutos Católicos de Investigaciones Sociales e Socio-religiosas), em Friburgo e Bogotá. Embora houvesse a tentativa de formular um novo paradigma para a historiografia sobre a História do Cristianismo na América Latina (no primeiro tomo abordava a evangelização na América Latina; e no terceiro, a Igreja na crise da independência), o Brasil ficava fora da investigação. As diferenças culturais e linguísticas entre o Brasil e os demais países hispano-americanos mantiveram as investigações sobre o Cristianismo no âmbito da implantação da Igreja e por vias completamente paralelas até os anos 70. Em geral, as obras que foram sendo publicadas naquela década, inclusive a Historia de la Iglesia de la America española, dos jesuítas Lopetegui, Zubillaga e Egaña (1965-1966), eram circunscritas à América hispânica. Por isso, a lógica hermenêutica ainda continuava sendo baseada nas histórias diocesanas regionais e na cronologia hispânica, como por exemplo, para o período colonial: de Fernando V a Felipe II (1508-1556); de Felipe II a Carlos II (1556-1700); e de Carlos II a Fernando VII (1700-1833). Muito embora, já começassem a surgir tentativas de “sínteses”, como no caso de Egaña (cujos títulos eram: “Acción santificadora de la Iglesia”, “Acción cultural de la Iglesia” e “Acción artística de la Iglesia”. Como se nota, o âmbito ainda continuava na História da Igreja.

Enrique Dussel (1972) publicou a sua Historia de la Iglesia en América latina, introduzindo no subtítulo Medio milenio de coloniaje y liberación (1492-1992). Contudo, o Brasil era tratado apenas marginalmente e o protestantismo aparecia apenas nos apêndices V e VI. Todavia, Dussel e Hoornaert (1974), no Brasil, foram os primeiros a inserir em suas sínteses as questões levantadas pelo Concílio Vaticano II e pela Conferência de Medellín. Ambos influenciaram as pesquisas e publicações da Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA).

Depois de Kenneth Scott Latourette, com a History of the expasion of Christianity (1939 e 1943 para a América Latina), foi o historiador cubano Justo González, com a sua Historia de las missiones (1970) o primeiro a apresentar uma síntese sobre a difusão do cristianismo e do protestantismo na América Latina. Para o Caribe, Justo apresentou, em 1969, uma história ecumênica do “desenvolvimento da cristandade”, analisando, segundo as categorias de crescimento e relevância da Igreja, a sua relação com os problemas sociais e políticos da América Latina. Neste sentido, três anos antes, Lloyd Mecham publicara Church and state in Latin America. A history of politico-eclesiastical relations (1966), que já considerava a presença protestante em suas análises.

Por fim, os grandes manuais como a New Catholic Encyclopedia (t. VIII, 1967) e o Manual de Historia de la Iglesia, de H. Jedin, que dedica várias secções à América Latina (1966-1979), incluem o Cristianismo na América, mas na sua relação com a Igreja (com exceção da parte tratada por F. Zubillaga (1967-1979). No âmbito protestante, destaca-se o manual dirigido por Kurt Dietrisch Schmidt e Ernst Wolf, Die Kirche in ihrer Geschichte, que analisa o desenvolvimento do protestantismo juntamente com aquele do catolicismo, incluindo também uma secção para o Brasil.

6 Periodização

A periodização da História do Cristianismo na América Latina se apresenta de difícil determinação. Primeiro, porque a História latino-americana não se enquadra na tradicional classificação de antiga, média, moderna e contemporânea (apesar dos inúmeros inconvenientes que tal classificação possa suscitar). Tampouco ajuda à definição dos períodos o artifício de equivalência entre as culturas superiores americanas e a História antiga, o período colonial e a idade média, o período da ilustração e o período do renascimento europeu, ou ainda o período das independências, da formação dos estados nacionais e da penetração do protestantismo no século XIX e o período contemporâneo. Tais comparações não resistem a uma análise mais profunda dos respectivos contextos. O período colonial, que desde o século XVI foi profundamente marcado pelo espírito barroco e pelas resoluções do Concílio de Trento, não pode ser equiparado ao medievo europeu. Da mesma forma, o fenômeno da expansão do protestantismo não é comparável à época da Reforma na Europa. Isto significa que não existem modelos prévios de periodização para a História do Cristianismo na América Latina. O que os pesquisadores têm proposto são tentativas, mais ou menos abrangentes, de uma periodização com base na cronologia da História da Igreja Católica na América Latina, além de separarem (com algumas exceções) os modelos referentes à América de língua hispânica e ao Brasil.

Um exemplo de periodização, proposto por E. Dussel (1972), se articula como segue:

  1. A cristandade das Índias Ocidentais (1492-1808)

1.1. Primeira etapa. Os primeiros passos (1492-1519)

1.2. Segunda etapa. As missões de Nova Espanha e Peru (1519-1551)

1.3. Terceira etapa. A organização fortalecimento da Igreja (1551-1620)

1.4. Quarta etapa. Os conflitos entre a Igreja missionária e a civilização hispânica (1620-1700)

1.5. Quinta etapa. A decadência borbônica (1700-1808)

  1. Agonia da Cristandade colonial (1808-1962)

2.1. Sexta etapa. A crise das guerras da independência (1808-1825)

2.2. Sétima etapa. A crise se aprofunda (1825-1850)

2.3. Oitava etapa. A ruptura se produz! (1850-1930)

2.4. Nona etapa. Renascimento das elites latino-americanas, em um projeto de nova cristandade (1930-1962)

  1. Aurora de uma nova época (a partir de 1962)

3.1. A crise latino-americana da libertação.

3.2. Descrição dos acontecimentos recentes[1]

Naturalmente, este modelo não se encaixa perfeitamente para o Brasil, que começou o seu movimento missionário bem mais tarde. Além disto, somente com a criação do Arcebispado de Salvador da Bahia, em 1676, e com a ereção da última diocese no período colonial, em 1745, Mariana (MG), é que se pode considerar a organização e consolidação da Igreja Brasileira. Por fim, também quanto ao Brasil, foi a dinastia dos Bragança que esteve no poder em Portugal de 1640 a 1810.

Por isso, E. Hoornaert, em Para uma História da Igreja no Brasil (1973), propõe outra periodização que leva em consideração a especificidade da história brasileira.

  1. A cristandade brasileira (1500-1808)

1.1. A Evangelização

1.1.1. 1500-1614: Período transoceânico ou das costas

1.1.2. 1614-1700: Colonização do interior do país através das rotas fluviais

1.1.3. 1700-1750: Descobrimento das “minas gerais” (os ricos depósitos existentes no Estado federal do mesmo nome) e o começo do “Grande Brasil”

1.1.4. 1750-1808: Reação do pacto colonial de Portugal e do Brasil ante os novos fatos criados pela Paz de Utrecht (1713)

1.2. A organização (ordens, episcopado, clero, seculares)

1.3. A vida cotidiana (clero, tipologia do catolicismo)

  1. A Igreja e o novo Estado (1808-1930)

2.1. A emancipação política e a Igreja

2.2. A formação do novo Estado e da Igreja

2.3. A reorganização da Igreja diante do Estado liberal e sua crise

  1. Para uma Igreja Latino-americana (a partir de 1930)

3.1. O laicato e o problema social (1930-1962)

3.2. A Igreja do Vaticano II, do CELAM e da Libertação

Como se pode notar, a periodização proposta por Hoornaert se adapta à História da Igreja Católica no Brasil e, ao menos no momento da sua proposição (1973), não considerava o tema dos protestantes no Brasil.

Há ainda outras tentativas, como a do historiador uruguaio Methol (1968). O seu modelo, que inclui a história brasileira, se articula sob três eixos:

  1. A cristandade indígena (1492-1808)
  2. A primeira emancipação e a anarquia da Igreja (1808-1831)
  3. A Igreja entre restauração e secularização (1831-1962)

Embora se tenham feito enormes avanços nas pesquisas, no estágio atual da periodização para a História do Cristianismo na América Latina, observa-se que ainda não se alcançou uma periodização unitária plenamente satisfatória. Cada modelo apresenta vantagens e desvantagens. Com certeza, a superação da bipartição história colonial e história da América Latina e a aceitação por parte dos pesquisadores do princípio de mútua relação entre ambas já está levando a sínteses mais abrangentes.

Uma proposta, neste sentido, é a do manual de Hans-Jürgen Prien, La Historia del Cristianismo en América Latina (1985), o qual articula a sua periodização histórica da seguinte maneira:

  1. Desenvolvimento do cristianismo latino-americano sob o signo do modelo de “cristandade”
  2. Crise da “cristandade” latino-americana na época o Iluminismo e a emancipação política
  3. Igreja e Sociedade entre a restauração e a secularização. Questionamento e supressão do modelo tradicional da “cristandade” latino-americana em virtude do liberalismo e do protestantismo
  4. O cristianismo na época do ecumenismo e da crise dos Estados Nacionais no conflito do desenvolvimento

Consequentemente, seja por qual periodização se opte (com as relativas vantagens e desvantagens), certamente não podemos entender as raízes e as profundas mudanças pelas quais passou o Cristianismo na América Latina e, especificamente no Brasil, se não considerarmos alguns fatores fundamentais, que por si mesmos já indicam um esboço de periodização.

Para Enrique Dussel, os períodos históricos podem ser considerados como momentos internos das épocas, cujos limites seriam marcados pelas mudanças dos blocos históricos de poder. Já Ondina E. González e Justo González no seu livro, Cristianismo na América Latina. Uma história (2010), incluem um período para o Catolicismo depois do Vaticano II e outro para o pentecostalismo e os movimentos autóctones.

Neste sentido, poderíamos pensar a História do Cristianismo na América Latina genericamente dividida da seguinte forma:

1a. época – Da “descoberta” até meados do século XVI. Abrangeria o tempo de implantação da presença hispano-lusitana, o processo de colonização e de expansão missionária.

2a. época – Abrangeria o período temporal desde meados do século XVI até 1620. Além de continuar com o processo anterior, esta época trataria da implantação das estruturas da Igreja colonial e todas as formas de religiosidade cristã na neste período colonial. Especialmente importante seria o Concílio de Lima (1551), a fundação da Diocese da Bahia, a chegada dos jesuítas ao Brasil (1549). E, finalmente, a estrutura organizacional da Igreja colonial já formada.

3a. época – Iniciaria em 1620, estendendo-se até 1700 (*1777). Seria o período do “Cristianismo Barroco”, que se concluiria com a crise da sucessão dinástica, com a substituição dos Habsburgos pelos Bourbons, na Espanha. Este período seria marcado por uma reorganização da sociedade colonial, incluindo a Ilustração na América Latina. No caso brasileiro, o eixo cronológico se estenderia até o final do período pombalino (*1777). As reformas pombalinas mudaram a configuração político-social do Brasil, com os consequentes reflexos na vida eclesial do catolicismo brasileiro.

4a. época – Abarcaria o período cronológico entre 1780 a 1914. Este longo período abrangeria o tempo de crise do período colonial (1807-1830), as guerras de emancipação (1830-1880) e a reorganização dos estados nacionais na América Latina. Seria momento que ocorreria a definitiva cisão entre um cristianismo marcado por uma Igreja de tipo patronal e a época da emancipação da oligarquia criolla. No Brasil, a “questão religiosa” levará à separação entre Igreja e Estado, e à “romanização do catolicismo”. Entre 1880 e 1914, teríamos o fenômeno do imperialismo, acompanhado pelo positivismo, e pela expansão protestante. O Cristianismo será marcado pela luta entre conservadores e velhos liberais em busca de uma nova ordem estatal. Chegam à América Latina os ecos de um liberalismo “tardio” e do cientificismo. O estado liberal fará o “encameramento” dos bens eclesiásticos. O protestantismo terá um discurso muito semelhante ao catolicismo romanizado. Instalação das congregações religiosas modernas e abertura de colégios protestantes.

5a. época – De 1914 até o presente. Abrangeria o período entre as duas grandes guerras. Na América Latina, o cristianismo seria fortemente marcado pelos movimentos populistas. A Igreja Católica abriria maior espaço aos movimentos leigos e a inserção na vida civil. O protestantismo, por sua vez, proporá um modelo de vida eclesial em que a América Latina será considerada como território de evangelização, iniciando a sua expansão. Foram importantes para esta penetração os Congressos do Panamá (1916), Montevidéu (1925) e Havana (1929). O Concílio Vaticano II e os seus ecos, com as Conferências de Medellín, Puebla e Santo Domingo. Ainda faz parte deste período a renovação do cristianismo com relação aos projetos desenvolvimentistas dos estados (1955-1965); o choque com os governos ditatoriais e com a Doutrina de Segurança Nacional (1965-1980); a opção preferencial pelos pobres, a crise provocada pela Teologia de Libertação; e a participação das igrejas nas várias vertentes das ideologias socialistas. Um último elemento muito importante para a História do Cristianismo seria o desenvolvimento das múltiplas manifestações do Cristianismo pentecostal/evangélico e os movimentos autóctones. O cristianismo “sincrético”.

Esta tentativa de periodização exemplifica a complexidade e a abrangência de uma História do Cristianismo na América Latina.

Luiz Fernando Medeiros Rodrigues, SJ. Unisinos, São Leopoldo (Brasil). Original em português

7 Referências Bibliográficas

DREHER, Martin N. A Igreja Latino-Americana no Contexto Mundial. 3a. Ed. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

DUSSEL, Enrique. Historia de la Iglesia en América latina. Medio milenio de coloniaje y liberación (1492-1992). 2ª ed. Nova Terra: Barcelona, 1972.

EGAÑA, Antonio de. Historia de la Iglesia en la América española desde el descubrimiento hasta comienzos del siglo XIX. Hemisferio Sur. Madrid: BAC, 1966.

GONZÁLEZ, Justo L. Historia de las missiones. Bueno Aires: Methopress, 1970.

GONZÁLEZ, Ondina E.- GONZÁLEZ, Justo. Cristianismo na América Latina. Uma história. São Paulo: Editora Vida Nova, 2010.

HOORNAERT, Eduardo. “Para uma história da Igreja no Brasil”. In: REB, mar. 33 (1973): 117-138.

HOUTART, François. La Iglesia latino-americana en la hora del concilio. FERES: Fibourg/Bogotá, 1963.

JEDIN, Hubert. Manual de Historia de la Iglesia. (Biblioteca Herder, 10 T.). Barcelona: Ed. Herder, 1966-1987.

LATOURETTE, Kenneth Scott. A history of the expansion of cristianity. vols. III,V. New York: Harper & Bros, 1939, 1943.

LOPETEGUI, Léon-ZUBILLAGA, Félix. Historia de la Iglesia en la America española. Desde el descubrimiento hasta comienzos del siglo XIX. México. América Centra. Antillas. (Biblioteca de Autores Cristianos). Madrid: BAC, 1965.

MECHAM, John Lloyd. Church and State in Latin America: A History of. Politico-Ecclesiastical Relations. 2 ed. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1966.

METHOL, Ferré. Las épocas. La Iglesia en la historia latino-americana. IN: Víspera II, 6 (1968): 68-86.

PRIEN, Hans-Jürgen. La Historia del Cristianismo en America Latina. S. Leopoldo/Salamanca: Sinodal/Sígueme, 1985.

SCHMIDT, Kurt Dietrisch-WOLF, Wolf, Die Kirche in ihrer Geschichte. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1967.

[1] E. Dussel foi sistematicamente desenvolvendo e acrescentando novos elementos ao seu trabalho original de 1992. Na edição de 1992, encontra-se ainda um item a mais: A Igreja, os regimes de segurança nacional e o processo de redemocratização, de Sucre a Santo Domingo.