Sumário
1 O chamado à santidade e a justiça original
2 A justiça de Deus
3 A justificação na teologia de São Paulo
3.1 Lei e pecado, justificação e fé
3.2 Os efeitos da justificação
4 Elementos do desenvolvimento da justificação na história da teologia
5 A justificação na teologia de Lutero
6 A resposta do Concílio de Trento
7 Avanços ecumênicos
8 Atualização desde América Latina
9 Referências bibliográficas
1 O chamado à santidade e a justiça original
“Deus nos escolheu nele [Jesus Cristo] antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, diante de seus olhos. No seu amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo […] “(Ef 1: 4-5). Desde toda a eternidade, o plano amoroso de Deus é compartilhar sua vida com a humanidade. Ele nos criou em Cristo e como seres livres, na esperança de que orientemos nossas vidas para a recepção dos dons de filiação e fraternidade que ele nos oferece, mas com o risco de nossa rejeição. Para estar plenamente em Sua presença, a qualidade da santidade é necessária e o estado de pureza é suposto.
Em sua grande benevolência e misericórdia, Deus assume a condição humana em seu Filho para se apropriar “do fracasso do pecado, da ruptura entre a realidade criada da história humana e o cumprimento ao qual está destinada, realizando assim sua verdadeira possibilidade de salvação “(COLZANI, 2001, 575). O cumprimento do projeto divino passa pelo sangue de Jesus Cristo (Ef 1,7) que traz a vitória sobre o pecado e culmina na recapitulação de todas as coisas nele (Efésios 1,10). Somos chamados a crescer na imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27; Rm 8,29) e tornar-nos santos como Deus é santo (Is 6,3 Mt 5,48). Estamos no processo de capacitação para entrar em comunhão com Deus na nova criação (Rm 5,1-5; 8,20-23).
O relato javista de Gn 2-3 comunica a ideia de que os primeiros seres humanos viviam em um “estado original” de justiça, no sentido de um estado de harmonia e paz entre eles, com a Terra e com Deus. Esta justiça foi perdida devido à sua decisão de desobedecer um mandamento divino, por querer se colocar no lugar de Deus. São Anselmo e São Tomás de Aquino comentam esta situação da perda da justiça original, denominada “pecado original” na linha de Santo Agostinho. Todos os outros pecados pessoais e sociais da história foram desencadeados a partir de Adão e Eva. Superando as leituras historicistas, a reflexão teológica contemporânea interpreta o “paraíso original” não como o estado das coisas no início da história humana, mas sim como a meta para a qual caminhamos, a plenitude escatológica da comunhão com Deus (Fl 3,7-11). O horizonte do futuro atrai a marcha da história. É uma expressão da permanência do amor fiel de Deus em cada momento, porque a verdade mais original é a graça e não o pecado (GONZÁLEZ FAUS, 1987, 114-117).
2 A justiça de Deus
A justiça divina é “um presente através do qual Deus tenta fazer a vida humana crescer em sintonia com a sua santidade. […] será apresentado como a capacidade de agir para a santificação do pecador “(COLZANI, 2001, 577).
No Antigo Testamento Deus se manifesta como justo em suas ações (Sl 145,17), e quer que seu povo pratique a justiça no sentido de garantir os direitos dos mais vulneráveis: os pobres, viúvas e órfãos, estrangeiros e outros (Sl 82,3; Dt 10,18, 24,17, é 1,17; Jr 22,3; Am 5,10.24; Zc 7,10). Também Deus é justo como juiz do pecado (Sl 51,5-6). Sua fidelidade à Aliança prevalece sobre o castigo, porque convida a conversão e oferece o dom da salvação. Deus é justo e misericordioso ao mesmo tempo, lento para a ira e cheio de amor e fidelidade (Ex 34,6; Sl 103,8; 145,8).
Jesus revela e estabelece a justiça de Deus na terra, inaugurando assim o tempo escatológico (Sl 72; Is 42.1-4; Ml 3.20). A justiça do Reino transcende os legalismos dos escribas e fariseus (Mt 5,20) e de todas as outras formas de justiça humana. Jesus dá plenitude aos mandatos da antiga Aliança, estabelecendo assim a nova Aliança no horizonte de uma nova ordem de relações humanas de acordo com o plano de Deus (Mt 5, 6; 6, 33). Isso vai além dos mandatos positivos para recorrer ao espírito que está em sua base e propor que sejam vividos radicalmente, levados a cabo para as últimas consequências.
Deus manifesta a sua justiça condescendente perdoando o seu povo todos os seus pecados. Sua justiça é a vitória sobre as forças do mal, salva e se desenvolve na dinâmica da gratuidade. Sua justiça nos reconstitui em nossa humanidade, nos recria e nos convida a “abandonar-nos confiando na vontade de Deus” (MV 20). Daí segue-se que “[1] a justificação é aquela ação que se manifesta e proclama a justiça de Deus, isto é, a sua vontade de benevolência e misericórdia como ela aparece na pessoa e na Páscoa de Cristo” (COLZANI 2001 , 120).
3 A justificação na teologia de São Paulo
3.1 3.1 Lei e pecado, justificação e fé
O tema da justificação (dikaiosyné) pela fé é fundamental na teologia de São Paulo, e se desenvolve de forma particular na carta aos romanos. Paulo se dirige a uma comunidade cristã estabelecida, cujos membros têm origens judaicas e gregas. Proclama a Boa Nova como “a força de Deus para a salvação de todos os que creem”, porque “revela a justiça de Deus” (Rm 1,16-17).
Paulo constata a realidade da universalidade do pecado (Rm 3,9-18), já que “todos pecaram e são privados da glória de Deus” (Rm 3,23). A criação também é escravizada na corrupção (Rm 8,21). A força de atração do pecado luta contra o nosso desejo de cumprir a vontade de Deus (Rm 7,14-23), e o pecado traz a morte (Rm 5,21), isto é, separa-nos de Deus.
A lei é boa em si mesma, uma vez que revela o que é a vontade de Deus e tem como objetivo proporcionar vida (Lv 18,5). Mas os seres humanos são fracos e falham em suas tentativas de cumprir plenamente a lei. A lei não tem capacidade para despertar a força interior para que eles obedeçam e tenham vida. “[…] ninguém será justificado diante dele porque cumpriu a lei, uma vez que a lei apenas fornece conhecimento do pecado” (Rm 3,20). Ao gerar a consciência do bem e do mal, a lei expõe a pessoa à tentação e sua própria impotência para mantê-la de forma constante. Através do pecado, a lei se torna um instrumento que escraviza mais pessoas para o mesmo pecado e traz a morte (Rm 7,7-20).
Com paixão, Paulo declara que “independentemente da lei, se manifestou a justiça de Deus falada pela lei e pelos profetas” (Rm 3,21). Através do sangue que Jesus derramou na cruz, há justificação ou absolvição diante de Deus: “Estes são justificados por Ele gratuitamente, em virtude da redenção feita em Cristo Jesus” (Rm 3,24; 5,9). Paulo contrasta a justiça de Deus em Cristo e a justiça que os judeus pensavam que poderiam conseguir por seus próprios esforços no cumprimento da lei. Não é uma declaração puramente jurídica por parte de Deus de nossa inocência, que permaneceria no plano externo, uma vez que somos constituídos como justos (Rm 5,19), transformados em uma nova criação (2Cor 5,17-21) . E esse é o poder do Evangelho.
Para que a oferta de Deus seja livremente aceita, é necessária a aceitação da fé: o reconhecimento de que a iniciativa vem de Deus e da necessidade de sua ajuda, bem como o compromisso integral da pessoa diante de Deus e do mundo inteiro A fé é um dom da graça de Deus, e não uma obra nossa. “Trata-se da justiça que Deus, através da fé em Jesus Cristo, concede a todos os que acreditam” (Rm 3,22). Somos justificados pela fé, com efeito já no presente (Rm 3,25-26). A fé em Cristo alcança o que a lei não poderia fazer (Rm 8,3), e assim a fé substitui o cumprimento da lei.
Para Paulo, Abraão é o protótipo da pessoa cuja fé “foi considerada como justiça” (Rm 4,3,9,22). Ele recebe essa justiça porque confiava na promessa divina, e não em virtude de sua circuncisão ou da lei. É por isso que ele é o pai de todos aqueles que acreditam e acreditarão (Rm 4, 10-16).
3.2 Os efeitos da justificação
Da inimizade, passamos a experimentar uma paz estável e uma esperança de confiança na plenitude da salvação: “uma vez que recebemos a justificação através da fé, estamos em paz com Deus […] e nos gloriamos na esperança de participar da glória de Deus “(Rm 5,1-2). A justificação nos liberta da lei, do pecado e da morte, para que possamos ter parte da ressurreição de Jesus, da vida eterna, sendo incorporados ao corpo de Cristo (Rm 5,21, 6,5, 7,4). Através do amor de Deus derramado em nossos corações, somos capacitados a viver de acordo com o Espírito Santo, a viver profundamente como filhos e filhas de Deus (Rm 5,5; 8; 9.14-17).
Nós e toda a criação gememos, desejando nossa libertação plena, e o próprio Espírito geme em dores de parto até a nova criação (Rm 8,19-27). Devemos encarnar o dom da justificação em nós mesmos e em toda a criação através de um lento processo de santificação, para que tudo seja levado à plenitude da salvação. A justificação possibilita as obras de amor que dão “frutos de santidade” (Rm 6,22; 12,9-13). A fé “age pela caridade” (Gl 5,6), e a caridade é “a lei em plenitude” (Rm 13,9).
4 Elementos do desenvolvimento da justificação na história da teologia
Santo Agostinho reconhece a nossa necessidade absoluta da graça de Deus para a remissão dos pecados, bem como para agir bem e resistir ao mal. A graça da justificação é dada pelo dom da caridade que “foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo” (Rm 5, 5), o que, por sua vez, nos permite amar. A graça de Deus é essencial em nossa possibilidade, vontade e ação para cumprir os mandamentos (Fl 2,13), e as ações de Deus se tornam nossas. A graça trabalha na nossa vontade de fazer o bem. Nosso livre-arbítrio é liberado internamente para se tornar liberdade e empoderamento para reconhecer e escolher o bem e se alegrar com isso. A justificação é entendida não como algo que é feito de uma vez por todas, mas como um processo crescente.
Santo Tomás de Aquino indica “os quatro elementos da justificação […] na infusão da graça, no dom da fé, no movimento para Deus e no distanciamento do pecado” (COLZANI, 2001, 591). A respeito desses dois últimos elementos, admite a possibilidade de que a liberdade humana participe do dom da justificação, através da “penitência, contrição e conversão” (COLZANI, 2001, 605). Vários detalhes da visão de Santo Agostinho e Santo Tomás serão retomados no Concílio de Trento.
5 A justificação na teologia de Lutero
Lutero elaborou sua teologia da justificação a partir de suas próprias experiências existenciais-espirituais e no contexto de sua denúncia de certas práticas na Igreja de seu tempo. Ele percebeu as indulgências e os estipêndios ligados às missas para os falecidos como uma maneira pelagiana de tentar comprar o céu, uma tentativa de “justificação pelas obras”.
Para Lutero, Deus revela o seu poder inclinando-se para as suas criaturas para salvá-las da miséria de seus pecados através do seu Filho crucificado. Suas promessas são confiáveis e, por isso, os fiéis podem ter uma certeza inabalável de serem salvos. Ao sermos alcançados por ele, recebemos sua justiça, sua salvação. Não podemos nos justificar por nossos próprios esforços. Lutero afirma a natureza forense da justificação: por causa de Cristo, Deus declara justo ao pecador arrependido. É em virtude da nossa união com Cristo que Deus nos imputa sua justiça, considerando que a justiça de seu Filho seja a nossa. Esta justiça permanece exterior ao crente porque depende da vontade de Deus, sem obrar nele uma transformação interior. Não é algo que alguém poderia possuir ou desenvolver. A pessoa cristã é ao mesmo tempo justa e pecadora (simil iustus et peccator), já que o pecado original é realmente o pecado e permanece na pessoa após o batismo.
Os seguidores de Lutero, por outro lado, colocaram em primeiro plano o caráter jurídico e substitutivo da justificação, considerando-a em termos de resgate pago por Cristo e não por nós os endividados. Neste esquema, nossa união com Cristo ocupa um segundo plano (WILLIAMS, 2004, 977).
Enfatizando o primado absoluto de Deus, Lutero entende a graça como o favor gratuito de Deus. imerecido. Ele também considera que somos escravizados ao pecado até tal ponto que perdemos completamente nossa liberdade em relação às coisas que levam à salvação e, por isso, opõe o conceito de livre arbítrio com seu servo arbítrio. Por estas razões exclui as boas obras de justificação. Não podemos cumprir a lei por meio de nossos próprios esforços, mas através da obediência de Cristo a lei foi cumprida para nosso benefício. O reformador rejeita qualquer noção de graça infusa de acordo com as categorias escolásticas, que impulsione as boas obras que nos mereçam a salvação e as incorporem ao que é entendido por justificação. Para ele “as obras da lei” não trazem méritos nem nos justificam (Gl 2,16; Rm 1,17).
Em vez disso, somos justificados pela fé (Rm 3,28; Ef 2,8-9). Ter fé é ter confiança em Cristo e em sua obra de reconciliação e deixá-lo fazer, esvaziando-nos de nós mesmos. Além disso, somente a fé (sola fide) nos traz salvação. Através da fé, apropriamo-nos da justiça que Deus nos dá. As obras seriam uma pretensão de auto-justificação, suplantando Deus. A iniciativa de justificação vem da decisão de Deus e não depende da nossa fé como tal. Nós apreendemos essa decisão de Deus na fé, porque a fé vem da justificação e nos faz agir consequentemente. Os momentos de justificação e santificação são distinguidos (WILLIAMS, 2004, 977). Com o termo sola fide “Lutero queria colocar a ênfases na fé mais do que nas obras, bem como entender a fé de forma pessoal, excluindo toda a função da Igreja” (COLZANI, 2001, 597).
Temendo a presunção ou a auto-suficiência que as obras podem gerar em uma pessoa, em um dos seus primeiros escritos, Lutero distingue as “obras da lei” (Rom 3,20) das “obras da fé” (Gl 5,6). Embora aquelas são suscitadas pela lei através do medo ou da promessa de bens temporais, estas são feitas por pessoas já justificadas pela fé, desde a liberdade e motivadas unicamente pelo amor de Deus, porque “a fé sem obras está morta” (Tg 2,26; LUTERO, s / f, 138).
6 A resposta do Concílio de Trento
O Concílio de Trento abordou várias questões doutrinárias para refutar os erros dos protestantes. O tema do pecado original foi abordado em um decreto próprio antes do tema da justificação, por ser visto como condicionante da mesma. Para Barbara Andrade poderia ter sido um único decreto, incorporando as afirmações sobre o pecado original no decreto sobre a justificação, e assim melhor evidenciar a prioridade da graça sobre o pecado (ANDRADE, 2004,151-153).
O Decreto sobre o pecado original, datado de 1546, é um texto sucinto. Entre outros pontos, ele esclarece que se perdoa o pecado original pela paixão e morte de Cristo, cujos méritos são aplicados às pessoas no batismo (DH 1513). O pecado original é realmente perdoado, e não se trata apenas de não o levar em consideração (DH 1515).
O Decreto sobre a Justificação, concluído em 1547 (DH 1520-1583), é o resultado de um trabalho profundo ao longo de sete meses que procurou expor “a verdadeira e sadia doutrina” (DH 1520) sobre este assunto, novamente para responder os erros dos reformadores e também para refutar qualquer vestígio de pelagianismo e semi-pelagianismo. No prólogo existem dezesseis capítulos expositivos, que são complementados por trinta e três cânones.
Ao compreender a graça em termos de uma relação vital entre Deus e a pessoa, e com o dinamismo salvífico, a necessidade de graça é afirmada em cada etapa do processo de justificação. Os capítulos 1-9 lidam com a primeira justificação na pessoa adulta, que é realizada após a evangelização e a recepção do batismo, com o dom da adoção filial. O ser humano é radicalmente incapaz de libertar-se de sua servidão ao pecado. Através do pecado, a vontade livre foi “atenuada nas suas forças” (DH 1521), mas não foi anulada. O dom da justificação nos leva do legado de Adão ao legado da graça de Cristo. Esta é completamente gratuita e nos convida a conversão.
É a partir da graça de Cristo que nosso livre arbítrio coopera para nos dispor para receber a sua justiça, para não pecar novamente. Nós somos justificados pela fé no sentido de que o ato de fé é o começo da salvação, o primeiro passo na preparação para receber a justificação. Seguem os atos de esperança e de um início do amor a Deus, numa sequência que também inclui o temor da justiça divina que leva à consideração da misericórdia divina, do ódio ao pecado e das ações de penitência. Mas a graça á qual esses atos correspondem é ainda exterior ao ser da pessoa pecadora (GROSSI, SESBOÜÉ, 2003b, 290). Tudo culmina na recepção do sacramento do batismo e no início de uma nova vida.
O momento da justificação é necessário quando o Espírito Santo derrama o amor divino em nossos corações (Rm 5, 5). A graça não é apenas o favor de Deus ou a imputação da justiça, mas é inerente à pessoa e a faz justa realmente. Essa justiça inerente “estabelece entre Cristo e os crentes uma unidade de tipo óntico, em virtude da qual somos perdoados e salvos” (COLZANI, 2001, 268). A tríade de atos de fé, esperança e amor do tempo da preparação para a justificação agora se tornam inerentes, isto é, dons infundidos, frutos de justificação. Da externalidade da graça antes da justificação, as inseparáveis virtudes teologais tornam-se o princípio imanente do nosso ser, e nos unem a Cristo fazendo-nos membros de seu corpo. Pelo impulso da caridade, não é possível que alguém seja justificado apenas pela fé, isto é, por uma fé que seria morta se não fosse animada pelas obras do amor.
É desde a justiça de Cristo que podemos exercer a nossa liberdade ao acolher e colaborar com a graça da justificação, pelo qual os pecados são perdoados e a pessoa é santificada e renovada interiormente. Você não pode dissociar esses dois aspectos da justificação. Pela graça de Cristo, a pessoa se torna uma nova criatura, verdadeiramente mudada: de injusta a justa, de inimiga a amiga.
A partir de uma “metafísica das causas” (GROSSI, SESBOÜÉ, 2003b, 291), são expostas todas as dimensões sob as quais se pode esclarecer que somente Deus é o autor da nossa justificação. A causa final disso é “a glória de Deus e de Cristo e a vida eterna”, e a causa eficiente “o Deus misericordioso, que gratuitamente lava e santifica (1Cor 6,11), selando e ungindo (2Cor 1,21s)” com o Espírito Santo de sua promessa, que é uma promessa de nossa herança “(Ef 1,13)” (DH 1528). A causa meritória é o Filho na sua paixão na cruz. A causa instrumental refere-se ao sacramento de nossa fé, isto é, ao batismo, a um ato eclesial que torna visível a realização do dom da justificação. Finalmente, a causa formal é a justiça de Deus, isto é, a mesma justiça com a qual ele nos torna justos, que se torna a “forma” de nossa justiça, personalizada em sua medida para cada indivíduo.
Para manter as proporções adequadas do temor de Deus e da virtude da esperança, ninguém deve se vangloriar da certeza da remissão de seus pecados por parte de Deus, nem tornar esta certeza da fé uma condição para a justificação em si mesma. Portanto, devemos evitar uma presunção imprudente sobre a predestinação divina e nossa perseverança final. Em vez disso, esperamos e confiamos humildemente na misericórdia de Deus.
Os capítulos 10 a 13 lidam com a vida da pessoa justificada. Profundamente renovado, cresce na justiça e na santificação através de uma cooperação de fé com as boas obras. Ninguém pode por a desculpa de ser justificado apenas pela fé para evitar a prática da justiça em um espírito generoso em relação ao próximo, nem a realização de outros mandamentos.
Os Capítulos 14-16 abordam a questão da recuperação da justificação e os frutos dela. Se, pelo pecado, se perde a justificação, pelo sacramento da penitência pode ser recuperada. Nossas boas obras são recompensadas por Deus no céu. “Merecem-nos” a vida eterna, porque, como Agostinho compreendeu, os dons divinos se tornam nossos méritos. O mérito é fruto não de obras humanas como tais, mas de justificação, “da influência de Cristo na nossa liberdade” (COLZANI 2001, 272).
O Decreto sobre a Justificação do Concílio de Trento oferece um ensinamento esclarecido e equilibrado sobre o assunto através da colheita de princípios fundamentais de certos textos bíblicos e da tradição teológica, e ficando acima de pontos controversos de escola. Em vez de se opor ao primado absoluto de Deus e à realidade da liberdade humana, consegue uni-las para o processo de justificação, elemento vital da nossa salvação.
7 Avanços ecuménicos
Na época da Reforma e da Contrarreforma, faltou um verdadeiro diálogo entre as duas partes sobre suas respectivas posições doutrinárias. Para os Reformadores, a doutrina da justificação foi o fundamento de toda a teologia e, portanto, a raiz de todos os outros conflitos. Um ambiente de reações reflexas prevaleceu diante de interpretações, muitas vezes inadequadas, sobre o que um ou outro disse, o que levou a condenações mútuas. Por exemplo, o Concílio de Trento atacou a “confiança vã” (DH 1533) daqueles que têm certeza absoluta de sua justificação. O Concílio, ao querer opor-se ao orgulho e à sobrevalorização das capacidades morais do ser humano, sem querer, coincidiu com Lutero. Não tinha entendido que para ele “a fé compreende a certeza absoluta de que Deus nos justifica, mas não a convicção pessoal de que nós responderemos positivamente à sua graça” (COLZANI, 2001, 272). Neste “diálogo dos surdos”, a reflexão teológica se estagnou durante séculos.
Após o Concílio Vaticano II, um árduo trabalho ecumênico começou a reexaminar as diferenças confessionais à luz dos estudos contemporâneos da Bíblia e da história da Igreja, deixando de lado os preconceitos. Alguns documentos regionais marcaram destaques ao longo do caminho. Novas expressões da fé comum foram buscadas, para superar controvérsias e formulações tradicionais tão carregadas com leituras parciais. A Declaração Conjunta sobre a Doutrina de Justificação (DJ), assinada pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e a Federação Luterana Mundial em Augsburg em 31 de outubro (Dia da Reforma) de 1999, é fruto desse trabalho “Era uma experiência peculiar de diálogo, em que cada um estava disposto a repensar as coisas a partir da riqueza do outro e, assim, se preparava para redescobrir aspectos de sua própria verdade que as circunstâncias históricas haviam ofuscado” (FERNÁNDEZ, 2010, 187-188).
A partir do desenvolvimento da mensagem bíblica, o documento articula “uma interpretação comum da nossa justificação pela graça de Deus através da fé em Cristo”, mesmo reconhecendo que “não abrange tudo o que ambas as igrejas ensinam sobre a justificação, limitando-se a reunir o consenso sobre as verdades básicas desta doutrina e demonstrar que as diferenças remanescentes em termos de sua explicação já não dão lugar a condenações doutrinárias “(DJ 5).
Uma declaração central sintetiza os principais temas da teologia da justificação: “Juntos confessamos”: Somente pela graça através da fé em Cristo e sua obra salvífica e não por algum mérito, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo que renova nossos corações, capacitando-nos e chamando-nos para boas obras “(DJ 15). Em todo o documento há muito cuidado para coletar adequadamente as preocupações essenciais de cada confissão. Por exemplo, afirma-se que a justificativa é um dom que não está condicionado a certas ações prévias por parte do ser humano (uma ênfase luterana) e que, ao mesmo tempo, essa justificativa se apropria do pecador para instituir uma nova vida nele (uma ênfase católica).
Afirma a legitimidade de uma pluralidade de linguagem e de acentos na interpretação de alguns aspectos da doutrina da justificação. Por exemplo, a cooperação humana ou a passividade na justificação; inclusão ou não da santificação na compreensão da justificação; “Justificação pela fé” ou “justificação pela graça”; se a concupiscência é pecado ou não; os papéis do cumprimento dos mandamentos e do mérito. Em alguns casos, é possível “traduzir a linguagem de uma confissão para a linguagem do outro”, por exemplo: “a fé protestante tem a mesma densidade teológica que a trilogia católica ‘ fé, esperança e caridade’ (VALLS, 1999, 570).
“Nosso consenso em relação aos postulados fundamentais da doutrina da justificação deve vir a influenciar a vida e o ensino de nossas igrejas. Lá será verificado “(DJ 43). As tarefas de continuar a aprofundar as diferenças que perduram e de acolher as consequências da Declaração na vida real de cada confissão são vitais em todo o empreendimento ecumênico de caminhar para além da divisão da igreja “em direção a essa unidade visível que é vontade de Cristo “(DJ 44).
8 Atualização desde América Latina
Dada a ênfase individualista que caracterizou a teologia da justificação tanto da reforma protestante quanto da católica, a teologia latino-americana ajuda a recuperar a inevitável perspectiva comunitária na relação de Deus com suas criaturas. O contexto de um continente tão prejudicado por estruturas sociais injustas exige repensar o tema da justificação, de modo que não se limite à piedade pessoal, íntimista, sem impacto coletivo.
A escolha divina não é de indivíduos isolados nem é algo abstrato. Deus escolhe um povo (Dt 14.2; 1Pd 2,9) para sua justificação e glorificação (Rm 8,28-30). Tanto Israel como o novo povo de Deus que são a comunidade cristã tomam consciência de sua escolha através da experiência da ação salvadora de Deus em sua história, motivada unicamente por seu amor gratuito. A Igreja é convidada a receber suas eleições com alegria e a enfocar a vida em Cristo, o que significa assumir a responsabilidade de lutar pela realização dos valores do Reino de Deus, numa transformação que humaniza a sociedade e no horizonte da esperança escatológica.
A teologia latino-americana contemporânea retoma a intuição agostiniana que compreende a justificação em termos da libertação de nossa liberdade sujeita ao egoísmo e suas consequentes atitudes e escolhas pecaminosas, e que percebe como a ação amorosa da graça de Deus em nossa liberdade a desencadeia e a estimula para entregar a vida por amor (Gl 5,1.13-14). O Espírito que nos traz liberdade (Rm 8,2; 2Cor 3,17) nos impulsiona com sua força dinâmica a sair de nós mesmos para os outros, que por sua vez revelam o rosto de Cristo. O estado ontológico de liberdade permite a liberdade em sentido ético (MIRANDA, 1991, 98). Nossa liberdade está sempre “situada”, afetada pelo ambiente vital do momento histórico. Em um contexto marcado por fortes desigualdades sociais que geram pobreza e violência, o amor ao próximo exige denúncia profética e um compromisso de lutar pela justiça, bem como promover ações de solidariedade com pessoas e grupos marginalizados (MIRANDA, 1991, 104-105 ).
Com uma eloquência renovada, vários autores latino-americanos teorizam, direta ou indiretamente, as interpelações perenes para realizar as obras de amor que são fruto da justificação pela fé, priorizando precisamente a prática da justiça do Reino de acordo com o discernimento dos sinais dos tempos. Por exemplo:
Movidos pelo Espírito que atua a partir das margens da Igreja e no reverso da história, acreditamos que as periferias são lugares teológicos […]. […] ratificamos nosso compromisso iniludível com as irmãs e irmãos nas periferias da sociedade, atormentados pela pobreza e várias formas de exclusão social, econômica, política e eclesial, que chama urgentemente a luta pela sua maior inclusão e integração (I ENCONTRO IBEROAMERICANO DE TEOLOGIA, 2017)[1].
Eileen FitzGerald. Universidade Católica Boliviana “San Pablo” de Cochabamba (Bolívia). Original em espanhol.
9 Referências bibliográficas
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[1] A Declaração de Boston foi assinada por 36 teólogos e teólogas, incluindo a Virginia Azcuy, Víctor Codina, José Ignacio González Faus, Gustavo Gutiérrez, Maria Clara Lucchetti Bingemer, Juan Carlos Scannone, Pedro Trigo, Jon Sobrino, Roberto Tomichá e Olga Consuelo Vélez.