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O método da ciência litúrgica e sacramental

Sumário

Introdução

1 A inteligência da fé a partir dos “ritos e preces”

2 Modelos paradigmáticos da ciência litúrgica e sacramental

3 Perspectivas de uma nova relação

Referências

Introdução

A reflexão sobre o método da ciência litúrgica e sacramental (CLS), especialmente nos últimos dois séculos no contexto cultural ocidental, traz como qualquer outro campo do conhecimento e da condição da razão científica o acúmulo de dados, a construção de paradigmas, a provisoriedade, a especialização de âmbitos, a delimitação metodológica, as abordagens diferenciadas e a possibilidade de absolutizar o que não passa somente de um aspecto histórico, ritual, semântico, linguístico, fenomenológico, especulativo-teológico e pastoral.

O interesse pela reflexão sobre a ação litúrgica sacramental coincide, pode-se afirmar, com a própria exigência evangélica de dar razão inteligentemente das “mirabilia Dei” acontecidas de uma vez por todas no mistério pascal de Jesus Cristo. De fato, a comunidade cristã, desde o seu início, de vários modos, celebrou, acreditou e viveu essa realidade plena de fé. Em seguida, tal ritualidade foi explicitada através das categorias helenísticas pelos padres da Igreja, na era patrística. Na Idade Média, constatou-se o distanciamento entre teologia-liturgia-sacramentos por meio de categorias alegóricas e escolásticas, enquanto que o período pós-tridentino foi fortemente caracterizado pelo momento disciplinar da contrarreforma, pela crise da teologia escolástica, pelo crescimento do interesse pelos estudos históricos, pelo progressivo abandono da interpretação alegórica da liturgia e pela necessidade de responder às críticas dos reformadores protestantes.

Nos séculos XVII-XVIII, a liturgia se descobrirá com uma excessiva atenção ao aspecto rubricístico-jurídico e, nesse contexto, aparece o interesse e o surgimento da ciência litúrgica (CL), sobretudo na primeira metade do século XIX, na Alemanha, motivado, por um lado, pela “Katholische Tübinger Schule” e a Neoescolástica de endereço tomista, e por outro, pela perspectiva eclesiológica e a renovação da teologia dos sacramentos através da ação ritual a partir do evento cristológico. Isso desencadeará, paulatinamente, um novo processo no modo de pensar a realidade litúrgico-sacramental. Daí surgirão a reflexão e o amadurecimento de algumas constantes que se tornarão um verdadeiro mutirão de ideias, sobretudo na Europa, e que será chamado de Movimento Litúrgico. Para Ubbiali (1993), tal movimento reagirá à falta de atenção que o manual de sacramentária reservava à práxis litúrgica, e aprofundará a relação entre a teologialiturgia-sacramentos, adquirindo consistência e qualidade às intuições e respostas à “Questão litúrgica” e que, com o aprofundamento de conceitos fundamentais como participação ativa, pensamento total, mistério do culto, conhecimento simbólico, contribuirá fortemente para a reflexão antes, durante e depois do Concílio Vaticano II.

1 A inteligibilidade da fé a partir dos “ritos e preces” (MEDEIROS, 2011, p. 15-42)

A Teologia dos sacramentos, já antes do evento conciliar do Vaticano II, enucleou alguns eixos da inteligência desses sacramentos, sobretudo nos âmbitos da eclesiologia e da antropologia. Em primeiro lugar, a eclesiologia foi norteada a partir da perspectiva de Rahner (1965). Em tal ótica, a Igreja é lida como o símbolo permanente da ação salvífica divina, a realidade histórica visível na qual Deus se doa a si mesmo. No âmbito antropológico, a atenção ao humano é certamente a primeira intenção de subtrair o sacramento ao distanciamento em relação à cultura moderna. Nesse sentido, tal reflexão produziu uma nítida decisão de ampliar a dimensão antropológica do sacramento e acrescentou, desse modo uma posição própria para completar o discurso teológico já estruturado e unificado em chave sacramentária. Especificamente na sequência: a cristologia (Jesus Cristo sacramento priomordial), a eclesiologia (a Igreja sacramento fundamental, ou radical), a sacramentologia (os sete sacramentos), se acrescentou ainda a antropologia (a pessoa e o mundo, sacramento natural).

A vertente propriamente científica da liturgia, por sua vez, pode-se dizer que encontrou em Guardini (1921) um dos principais expoentes na primeira hora do Movimento Litúrgico. Ele foi o primeiro a tratar da questão epistemológica, concluindo que a ciência litúrgica exigia dois níveis complementares, qualificados por ele como investigação histórica e investigação sistemática. Segundo ele, a investigação histórica aconteceria em nível diacrônico-evolutivo e teria por objeto o estudo do devir do culto, sem o qual cairíamos em afirmações gratuitas. E a investigação sistemática, em nível sincrônico, teria por objeto o estudo da Igreja, como sujeito do culto, e de seus elementos vinculantes e permanentes. Sem a reflexão sistemática, a história perder-se-ia em dados desunidos.

Atualmente, podemos resumir basicamente em três grandes tendências metodológicas para o aprofundamento epistemológico da liturgia, como áreas de onde se podem haurir seu especificum como ciência estruturada, com métodos e leis próprias: a sistemática, a histórica e a pastoral.

Por conseguinte, pode-se dizer que essas três direções estão presentes simultaneamente na reflexão da pesquisa da liturgia, com seus legítimos representantes, na busca de uma maior consistência epistemológica e que é testemunhada por uma pluralidade de teologias litúrgicas e sacramentais contemporâneas. Todavia, o princípio norteador deve ter presente que o intellectus fidei sempre esteve, desde o início, em relação com a ação litúrgica da Igreja. Consequentemente, a reflexão teológica nunca pode ignorar a ordem sacramental instituída pelo próprio Cristo e, por outro lado, a ação litúrgica nunca pode ser considerada de forma genérica, deixando de lado o mistério da fé (Sacramentum caritatis, n. 34).

Inegavelmente, a teologia sacramentária e a teologia litúrgica se aproximaram, nas últimas décadas, tendo como “locus” comum a atenção ao rito, colocando a questão do símbolo no seu contexto próprio: a ação ritual. Portanto, a perspectiva lógica para refletir sobre a questão do símbolo em chave hermenêutica para a compreensão dos sacramentos se torna a ação ritual. Com certeza, a CLS considera que um dos frutos mais significativos do Movimento Litúrgico foi perceber que o rito é a forma na qual o sacramento acontece. Aqui se dá o “locus” do encontro com o Senhor, da profissão de fé, da sinergia, da visibilidade, da invisibilidade e a fonte da teologia como momento de investigação racional da fé à luz do que hodiernamente é denominado da nova fronteira da “questão litúrgica”, segundo a contribuição de Grillo na sua “liturgia fundamental: introdução à teologia da ação ritual” (2022a).

Por consequência, o conceito de forma entra na teologia contemporânea como uma categoria nova, inaugurando, no sentido moderno da palavra, a compreensão da CL e do processo de reforma litúrgica implementado ao longo do século XX, como afirma J. Ratzinger (2019). Tal conceito é capaz de estabelecer conexões com áreas diversas que formam o todo da reflexão litúrgica e sacramental.

Desse modo, a reflexão da CLS contemporânea, paulatinamente, está superando categorias não apropriadas na definição e compreensão da ação litúrgico-sacramental da Igreja e, ao mesmo tempo, colocando à prova as categorias (rito, forma, linguagens, mistagogia) em vista de uma reelaboração do saber unitário e com uma sólida aliança entra uma sacramentaria que descobre o gênero ritual e os novos ordines litúrgicos.

2 Modelos paradigmáticos da Ciência litúrgica e sacramental (MEDEIROS, 2014, p. 145-168)

Podemos colher, a partir de algumas propostas de modelos ou paradigmas contextualizados, o horizonte dos estudos sobre a CLS nas últimas décadas. Por isso mesmo, propomo-nos percorrer a evolução do tema em estudo no contexto alemão, francófono, espanhol, anglófono e brasileiro.

2.1 Contexto alemão

Foi muito significativa, para o estudo sobre a CLS, a contribuição de Guardini (1921) sobre o método sistemático da ciência litúrgica. De fato, ele entrevê a liturgia consonante e integrada à teologia, visto que aquela está relacionada à vida sobrenatural, ela torna-se competente através da ação do Espírito Santo e é orientada pelo Magistério. Além do mais, o aspecto teológico da liturgia deve ser sempre presente em qualquer tipo de estudo sistemático que se realize. Para Guardini, a liturgia enquanto teologia possui um método próprio que a diferencia não somente das outras ciências, como também dentro do âmbito teológico, e não pode nem sequer ser considerada como parte da teologia pastoral que se elabora e se desenvolve a partir da práxis e que entra num estudo sistemático da liturgia. Podemos dizer que, para Guardini, a liturgia é teologia e por isso que essa perspectiva de ver e conhecer colhe o conteúdo da fé na manifestação cultual da vida da Igreja.

Outrossim, Casel (1941) afirma que a obra da salvação de Cristo Jesus, presente na celebração litúrgica, não é somente um dogma para ser acreditado, mas é “atuação da fé” segundo uma determinada forma simbolicamente sacramental, ou seja, faz-se teologia no sentido próprio quando se procura aprofundar o conhecimento dessa obra de salvação através do símbolo ritual. Não é um conhecimento abstrato, mas o aprofundamento daquela “realidade salvífica” presente no momento litúrgico, isto é, como salvação em perspectiva simbólico-ritual.  Assim sendo, para Casel existe a teologia litúrgica somente quando o dado da fé assume a dimensão de concreta comunicação do mistério de Cristo à Igreja, quando há o diálogo sobre “Deus a partir de Deus”.

A teologia litúrgico-sacramental, em âmbito alemão, buscou também o contato com as ciências humanas, impostando melhor o seu discurso, à procura de uma categorização mais científica. Avaliando a ciência litúrgica, vinte anos depois do Concílio Vaticano II, Häussling (1982) analisa as vicissitudes pelas quais ela passou, principalmente em confronto com as ciências humanas, com o ateísmo, com a realidade ecumênica e com os desafios das liturgias juvenis. Além disso, Gärtner e Merz (1984) procuram emitir os princípios para um método integrativo da CL, partindo dos paradigmas tradicionais, mas dialogando com as ciências humanas, valorizando o aspecto da experiência, em vista de um método empírico-crítico da CL. Por sua vez, Stenzel aprofunda o tema em referência, discorrendo sobre a liturgia como lugar teológico.

Por outro lado, Häussling (1982) constata que a liturgia tem necessidade de diálogo com as outras disciplinas teológicas, como a dogmática, a exegese e a teologia moral. Para ele, outra causa para a falta de consideração da liturgia, em campo teológico, é uma falsa ideia daquilo que seja liturgia, agora reformada e compreensível. Ademais, Lehmann (1980) escreve sobre a celebração enquanto expressão da fé e considera que os “loci theologici” são o resultado de uma metodologia escolástica, e que a ciência teológica, com o passar dos anos, perdeu a sua ligação com a liturgia da Igreja. Lehmann alinha-se na posição daqueles teólogos que veem tal colaboração estreitamente ligada à teologia prática homilética, teologia pastoral, pedagogia religiosa e catequética, e em relação à teologia dos sacramentos, principalmente em relação à perspectiva dogmática e à teologia moral, ao direito dos Sacramentos e ao ecumenismo. Já Vorgrimler (1992) defende a liturgia como argumento da dogmática. E interroga-se sobre algumas questões referentes à liturgia com o intento de envidar esforços para uma maior cooperação entre liturgia e dogmática.

A teoria sobre os sacramentos, na Alemanha, ganhou terreno nos anos setenta do século passado, conforme Seils (1994), a tal ponto ser forma de uso corrente. Nesse sentido, a sacramentaria encontrou uma nova inspiração e conheceu uma profunda mudança, e isto parecia justificado pela nova atenção ampliada da compreensão da sacramentalidade. Tais transformações podem ser reconduzidas substancialmente à teologia “Igreja-sacramento” que marcou o ocaso da metodologia manualística, incapaz de mostrar a convivência dos sinais eficazes da graça ao mistério da redenção. Na leitura de Bozzolo (1999), as correntes que se tornaram mais significativas na ótica de um aprofundamento da identidade simbólica iam em três direções: o sacramento como símbolo na perspectiva antropológica de abertura ao sentido da existência (Ratzinger (1966) e Kasper (1969); o sacramento como “práxis da esperança”, isto é, como símbolo nas dinâmicas sociais e culturais (Schupp (1974), Schaeffler (1991), Schneider (1979) e Vorgrimler (1992)); o sacramento como símbolo comunicativo na vida da Igreja (Hünermann (1982) (Ganoczy (1984) e Lies (1990).

Segundo Gerhards (2002), as pesquisas recentes postulam cada vez mais a questão do método, levando em conta os desafios à ciência litúrgica advindos do próprio contexto cultural e eclesial hodiernos e que envolvem a comunidade eclesial na sua compreensão e participação litúrgicas, a questão ecumênica, a questão histórico-genético-ritual da liturgia, a questão da ritualidade, da própria liturgia teológica ou da teologia da liturgia, da pastoral litúrgica e das ciências humanas. Assim sendo, no contexto alemão, não há uma única ciência litúrgica, mas diversas tendências com a pesquisa na área da filologia-histórica, da teologia sistemática ou da antropologia e da dimensão prática.

Uma observação que se pode salientar, nesse contexto, é o fato da ausência de uma literatura sobre o rito. Tal ausência pode ser considerada talvez pela menor incidência do debate litúrgico, talvez pelo fato de se terem dedicado ao símbolo, que tem parentesco com o rito. Certamente tal reflexão teria oferecido elementos significativos e uma reorientação da sacramentalização ocorrida em ambiente alemão.

2.2 Contexto francófono

Na França, a teologia pós-conciliar foi marcada por um diálogo intenso com a teologia alemã. Todavia, registra também sua marca original, qual seja a profunda renovação patrística e litúrgica, um fecundíssimo diálogo ecumênico, quer com os fiéis da Reforma quer com os ortodoxos. A preocupação teológica francesa, mais propriamente, voltou-se para as questões cristológicas, da teologia da redenção e do próprio projeto teológico destinado a entabular as questões emergentes com a cultura moderna e da pós-modernidade.

Segundo Winling (1989), a teologia católica francesa tem um perfil que a distingue das de outras áreas. A França caracterizou-se como centro de pesquisa e ensino para as congregações religiosas, o diálogo com pensadores representantes de várias correntes e o repensamento de uma espiritualidade adulta para os leigos da Ação Católica. É digno de se sublinhar o diálogo com a filosofia que, contudo, não se deve entender como serviço desta em relação à elaboração de uma teologia sistemática, mas como fermentação da teologia a partir de numerosos temas e problemáticas típicas da filosofia francesa que produz “la théologie herméneutique, la théologie de l’alterité de Dieu, la théologie pratique”, em autores como Duquoc, Chauvet, Moingt que, influenciados pelo pensamento de Lévinas (1961), falam de Deus, não em termos ontológicos, mas em termos de “alteridade”, tendo presente a estreita ligação que subsiste entre teologia trinitária e a teologia da cruz.

Em campo especificamente teológico-litúrgico, temos o surgimento do Institut Supérieur de Liturgie, em outubro de 1956, sendo o seu primeiro Diretor, padre B. Botte e, encarregado dos estudos, padre J.-M Gy. Podemos dizer que o Institut viveu intensamente duas nítidas fases: de 1956-1968 e, depois, de 1968 até hoje. A primeira, caracterizada por um método mais histórico-positivo; a segunda, marcada pelo colóquio organizado pelo Centre National de Pastorale liturgique, realizado em Lovaina, em junho de 1967, com o tema Liturgie et sciences humaines, que foi o marco decisivo para esse segundo momento de existência do Institut. A partir daí, as novas ciências como sociologia, psicologia e semiologia tornaram-se indispensáveis para o estudo da liturgia.

Neste clima de diálogo entre ciências humanas e liturgia é que encontramos Chauvet, desde 1972 na docência no Institut Supérieur de Liturgie, bem como em outros centros de estudos parisienses. A interrogação mais profunda não é mais: como celebrar os sacramentos? Mas para que existem os sacramentos? Podemos dizer que tanto Chauvet, como vários outros estudiosos, tais como Gy, Didier, Bouyer, Dye, Hameline, Vergote, Dalmais, Lukken, contribuíram para a renovação da liturgia e da teologia sacramental em diálogo com as ciências humanas.

Do ponto de vista da teologia sacramentária, pode-se considerar três etapas significativas: na primeira etapa, nos anos 1960, nasceria a pesquisa entre sacramentária e antropologia ao redor da revista La Maison-Dieu, através de uma integração ao debate litúrgico dos resultados das ciências humanas, principalmente a sociologia da assembleia, a antropologia do símbolo e do rito, a semiótica, a história e a psicanálise. Na segunda etapa, nos anos 1970, apareceram vários esforços de síntese, sobretudo os trabalhos de Vergote, Didier – esse último teve o mérito de assumir o ponto de vista decisivamente antropológico, considerando o sacramento sobre a base da ritualidade e do símbolo. E por último, a contribuição de Chauvet (1979), que estuda a liturgia a partir da dimensão antropológica do símbolo. Por considerar que a teologia clássica da eficácia dos sacramentos não é mais relevante para o homem de hoje, ele se propõe a encarar sua realidade numa perspectiva simbólica, criando assim as condições para uma nova compreensão da teologia sacramental.

A proposta de Chauvet aceita plenamente a contribuição das ciências humanas: do uso da filosofia da linguagem à inversão da relação entre sujeito e objeto, o que revoluciona completamente as concepções antropológicas anteriores. Refere-se a toda a problemática da relação entre o homem/mulher e a realidade: seja qual for o modo de encarar a questão, as coisas são significativas na medida em que entram em comunicação com a própria condição existencial e a colocam diretamente em questão. Se a vida é um problema para o fiel, se nada é simples para ele, isso acontece porque nada é imediato: o reino do homem/mulher é o da mediação. A reflexão teológica, que tem os sacramentos como objeto de estudo, não deve mais considerá-los como objetos-intermediários, que atuariam como ponte entre o sujeito crente e o Deus transcendente, mas como um ato de linguagem eclesial, em que a condição se realiza, da fé que aí se exprime.

A posição epistemológica de Chauvet, no que diz respeito à configuração do sacramental, encontra um terreno comum nos novos cenários epistêmicos de vários países europeus, mas, ao mesmo tempo, a novidade de sua abordagem também suscitou críticas. De um modo geral, na reflexão de Chauvet vemos, sem dúvida, um esforço para ir além da compreensão do extrinsicismo entre signum et res do ponto de vista do simbólico e na superação do que poderia parecer coisificador ou mágico em benefício de uma compreensão real da relação sacramento-celebração, onde o crente tem um lugar indispensável, como elemento constitutivo, com a sua participação, superando a separação que pode existir entre experiência e ação celebrativa.

Recentemente, Belli com o resultado de sua pesquisa sobre o “Interesse da fenomenologia francesa para a teologia dos sacramentos” (2013) aprofunda a crise ontológica e epistemológica da teologia sacramentaria no século XX, apresenta uma reflexão hermenêutica analítica sobre a “Questão litúrgica”, a resposta dada pelo Movimento Litúrgico e com a contribuição da teologia sacramentaria. De modo que a “quaestio sacramentis” é profundamente repensada e exposta a novos questionamentos. O êxito de tal análise abre para a contribuição recente da fenomenologia francesa para o estudo sobre os sacramentos na ótica de três autores: J.-L. Marion, M. Henry e E. Falque. Sem dúvida, a pesquisa de Belli (2013) oferece uma contribuição na determinação metodológica interdisciplinar do trabalho de reflexão sobre o sacramento na mediação entre teologia e filosofia, litúrgico-sacramental.

2.3 Contexto espanhol

A respeito da relação entre liturgia e teologia neste contexto cultural, o primeiro estudo a ser elencado é de 1966, durante o II Congresso Litúrgico de Montserrat, no qual Vilanova (1966) profere uma conferência sobre os cinquenta anos da teologia da liturgia. Vilanova faz uma retrospectiva da teologia da liturgia, tomando em consideração, principalmente, a orientação dada nesse campo pelos pioneiros do Movimento Litúrgico, tais como: Festugière, Beauduin, Cabrol, Gomà, Brinktrine, Oppenheim, Cappuyns, Dalmais, Pinto, Parscher.

Na fase pós-conciliar, López Martín (1982) reflete sobre a relação entre liturgia e fé, em particular a liturgia como transmissora da fé, e estabelece campos nos quais delineia uma situação ainda não muito clara a respeito de tal relação. O primeiro é o da compreensão teológica da mesma liturgia, o segundo é o lugar da liturgia na estruturação da teologia e o terceiro é o da implicação mútua entre a liturgia e a catequese na ordem da pedagogia da fé. Além disso, Fernández (1985) esboça, de forma didática, a distinção entre o que é liturgia daquilo que é teologia litúrgica. O autor prossegue afirmando que os sacramentos, antes de serem reflexão, são ações litúrgicas. Com tal afirmação, Fernández abre a sua seção de sacramentologia fundamental na revista Phase e indica com clareza qual seria a orientação prevalente da pesquisa sacramental em âmbito espanhol. Na Espanha, segundo Bozzolo (1999), mais do que em outras áreas culturais, o contato entre a sacramentária sistemática e a disciplina litúrgica se fez tão estreito a tal ponto de não se ter mais condições quase de distinguir o específico das competências. Pode-se acrescentar que, entre os anos 1991-1995, apareceram ao menos cinco tratados de sacramentária fundamental.

O Instituto de Liturgia do Centro de Barcelona teve um papel importante no cenário da liturgia pós-conciliar e, portanto, na esfera CLS. É emblemática, nesse contexto, a colaboração de Borobio (1978), que, embora situando-se num horizonte rahneriano, assume, de fato, as teses decisivas numa perspectiva antropológica e ritual proposta pelos autores franceses. O seu programa encontra expressão não somente nas suas publicações pessoais, mas também na obra La celebración en la Iglesia. v. I (1985), coordenado por ele, e que tem como objetivo superar a tradicional separação entre liturgia e sacramento. O que surpreende, nessa obra, é o fato da pacífica convivência de modelos tão heterogêneos, ou seja, o antropológico com referência ao símbolo e o rito, considerando os sacramentos como expressão simbólica da salvação nas situações fundamentais da vida e aquele modelo dos discípulos de Rahner, que atribui a sacramentalidade a Cristo, à Igreja, ao homem/mulher e ao mundo para depois passar para uma sacramentalidade concentrada nos sete sacramentos. E o que prevalece não é um projeto sistemático entre a liturgia e os sacramentos, tomando em consideração o sacramento a partir da celebração, mas da teoria do sacramento de fundo rahneriano.

2.4 Contexto anglófono

A relação entre a teologia e a liturgia é aprofundada, seja em campo católico seja naquele evangélico. Todavia, a reflexão tem seguido e reagido ao que acontece, principalmente no continente europeu. Assim, não temos substancialmente uma proposta que saia dos parâmetros até agora apresentados.

Taft (1982) apresenta num artigo a síntese de sua conferência na University of Notre-Dame – USA sobre a Liturgy as Teology. O autor considera seja a não comum avaliação da liturgia como ciência teológica seja que a liturgia é um objeto de investigação teológica. Semelhantemente, Lacugna retoma a questão se a Liturgia pode se tornar uma fonte para a teologia. E Driscoll (1994), por outro lado, procura estabelecer uma nova relação entre liturgia e teologia fundamental. Ele considera que nessa relação existem caminhos de possíveis trabalhos em parte já estabelecidos, especialmente a partir da teologia litúrgica de Marsili (1974).

Igualmente, Irwin (1994) elabora uma proposta de teologia litúrgica e apresenta algumas observações sobre o método usado na teologia litúrgica contemporânea. Para ele, o método do ato litúrgico deveria ter articulação com a Palavra, o símbolo, a eucologia e a arte litúrgica. Ele discute a contribuição com a qual a teologia que deriva da liturgia pode realizar uma discussão contemporânea sobre a natureza da teologia. A proposta de Irwin constitui o aprofundamento, em vista da compreensão global da liturgia, a partir de uma liturgia primeira e uma liturgia segunda, ou seja, uma componente, sempre teológico-litúrgica, que nasce da relação das duas acima relacionadas, e que ele chama de teologia terceira, isto é, uma teologia que diga respeito à vida, à espiritualidade, à moral, em relação aos mistérios de Deus e do Evangelho, mas experienciados e celebrados na liturgia. Esta terceira liturgia está em relação intrínseca com a “lex orandi, lex credendi” e traz uma perspectiva doxológica.

Em síntese, podemos aceitar a ponto de vista de O’Connell (1965), que considera que a pesquisa americana pós-conciliar foi caracterizada, por um lado, pela discussão conciliar e a recepção da Sacrosanctum concilium, e por outro lado, pela tradução das obras de Rahner e Schillebeeckx. Na América do Norte, sobretudo, o ponto de partida para repensar a nova sacramentária foi o abandono da síntese clássica do De sacramentis in genere e a introdução da perspectiva personalista e existencialista, centrada na noção de Cristo-sacramento e de Igreja-sacramento. Todavia nos anos 1980-1990 houve um excesso de novos dados, segundo Levesque (1995), impossibilitando desse modo uma síntese a tal ponto de Hellwig (1978) afirmar que a teologia sacramentária, em sentido estrito, tenha desaparecido. Na análise de Bozzolo (1999), inclusive, se detecta uma literatura difusa sobre o conceito do símbolo, assumido como conceito idôneo para a interpretação da realidade sacramental. Todavia, em relação à pesquisa teórica, parece prevalecer a intenção prático-pastoral e a escolha de uma “divulgação teológica” dos conceitos que veiculavam na Europa.

2.5 Contexto brasileiro

A reflexão litúrgica pós-conciliar no Brasil é nitidamente marcada pelas seguintes características: dependência da teologia europeia, nas suas vertentes, mas principalmente a centro-europeia; profundamente marcada pela situação sociocultural em que vive o povo latino-americano; orientada pastoralmente pelas conferências episcopais do continente, de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida; por um grande número de jovens igrejas; pelos desafios das minorias étnicas, de modo particular, negros e indígenas; uma teologia voltada para os desafios pastorais, mais do que envolvida com a fundamentação teórica universitária, não obstante a pesquisa constante e crescente no contexto latino-americano, uma teologia que vive do momento, da criatividade, ansiosa para responder aos desafios urgentes das comunidades e da inculturação litúrgico-sacramental.

Do ponto de vista teológico-litúrgico, muito se deve à criação do Centro de Liturgia, em São Paulo, em 1987 (Adão, 2008). Através dele, constituiu-se posteriormente a Associação de Professores de Liturgia do Brasil, em 1987. Daí partiu, mas não somente, uma reflexão litúrgica marcadamente pastoral, com grande espírito de animação e de criatividade em todos os campos da pastoral litúrgica.

Indubitavelmente, do ponto de vista do aprofundamento da CL, o trabalho de Ione Buyst é deveras significativo. De fato, a atividade litúrgico-pastoral de Buyst teve como meta principal a participação do povo na preparação e na celebração de uma liturgia popular, orante, e que fosse expressão de uma fé engajada na transformação do continente latino-americano, bem como na busca ecumênica da paz mundial, na busca de uma pedagogia ativa, que envolvesse a participação dos envolvidos e com uma metodologia científica que partisse da realidade litúrgica e articulasse teoria e prática, teologia e pastoral.

Além disso, ela procurou responder a dois motivos fundamentais: primeiro, a peculiaridade das liturgias celebradas, que formam o objeto real da CL e que são uma expressão da peculiaridade da Igreja neste continente – a mudança no objeto real exige novos métodos de abordagem e de análise. De fato, a liturgia como “cume e fonte” de toda a vida eclesial (SC n.10) acompanha as mudanças que ocorrem no modo de ser ou de conceber a Igreja neste continente. Buyst (1989) escreve que a Igreja latino-americana é a que se expressou e tentou definir a si mesma e a sua missão através das assembleias da conferência episcopal latino-americana, que marcaram profundamente a vida eclesial pós-conciliar nesse continente. Para o autor, o modelo eclesial latino-americano é caracterizado pela perspectiva de que a Igreja nasce das bases populares, suscitada pela força do Espírito Santo. A irrupção dos pobres na Igreja, o vertiginoso crescimento do número de comunidades eclesiais, seu dinamismo e vitalidade são considerados obra do Espírito Santo e não apenas do esforço evangelizador da Igreja-instituição por ordem de Cristo, ou seja, a eclesiologia da libertação não se baseia somente na cristologia, mas principalmente numa pneumatologia (Buyst, 1989).

Dessa nova prática litúrgica, emergente na Igreja dos pobres e veiculada na evangelização, na catequese e na pregação, foi surgindo uma nova teologia litúrgica, que deverá ser retomada, avaliada e fundamentada ou rejeitada por uma teologia litúrgica elaborada cientificamente a partir desta teologia primeira vivida nas comunidades. Alguns tópicos já começam a despontar: o sujeito privilegiado, convocado por Deus para a assembleia litúrgica, é o povo pobre e oprimido, reunido em comunidades; o mesmo povo é também o primeiro destinatário da Boa-nova, o evangelho anunciado na liturgia; o grito e o lamento do povo, expressos na oração dos fiéis, têm força junto a Deus, que ouve o seu clamor e desce para fazer justiça e libertar; a liturgia é a ação comunitária: toda a comunidade é povo sacerdotal, participante do sacerdócio de Jesus Cristo; o Cristo, que está presente na assembleia litúrgica, é o Cristo que se identifica com os pobres; tem compaixão do povo, para ver e ouvir seus problemas, hoje como ontem.

A publicação do Manual de Liturgia promovido pelo CELAM, A celebração do mistério pascal (2004-2007), em quatro volumes, manifesta o grau de amadurecimento teológico-litúrgico-sacramental no continente e é elaborado a partir da dimensão celebrativa do mistério pascal de Cristo, enriquecido pelo mosaico de culturas, etnias e tradições religiosas presentes na América Latina e Caribe, além de considerar a expressão simbólica do corpo, a dança e a dramatização na liturgia. Tal obra, pioneira neste âmbito, postula ainda um maior aprofundamento dos temas abordados numa ótica antropológica, no sentido de uma educação ao rito e por meio do rito e a partir não somente dos atos verbais, mas também não verbais, qual forma mistagógica para uma contribuição ao intellectus ritus.

Nesse sentido, Taborda enriquece o debate teológico-litúrgico brasileiro com a reflexão sobre uma “abordagem mistagógica dos sacramentos” (2004). Tal consideração é motivada pela necessidade postulada também pela cultura da pós-modernidade, da atenção ao progredir da celebração à teologia, o que leva a reconhecer a liturgia como lugar teológico. Em si, o caminho não é novo, tendo sido trilhado por muitos, a começar pelos Padres da Igreja. No entanto, o que nos apraz sublinhar é o fato de que o teólogo jesuíta trabalha a liturgia como lugar da expressão da fé, em que a revelação se torna acessível a nós. A fonte da teologia é a fé da Igreja, não só a explicitada em dogmas e outras verbalizações, mas também a fé vivida concretamente em ações, obras, símbolos, ritos. Essas expressões de fé ou lugares teológicos constituem a teologia primeira, a teologia no frescor de sua expressão mais legítima e viva. Nela se fundem e se unem intrinsecamente a teologia e a vida. O que os teólogos e o magistério fazem é teologia segunda. Tais condições levam o autor a trabalhar a questão sacramental do batismo e da eucaristia numa abordagem mistagógica, como resposta a desafios hodiernos (Taborda, 2004).

2.6 Contexto italiano

As contribuições significativas na área italiana retomam a riqueza do Movimento Litúrgico como também a renovação teológico-litúrgica desencadeada pelo Concílio Vaticano II. Dentre os nomes, podemos citar nas últimas quatro décadas: de Cipriano Vagaggini a Zeno Carra, de Salvador Marsili a Ubaldo Cortoni, de Pelagio Visentin a Pierpaolo Caspani, de Emanuel Caronti a Manuel Belli, de A. M. Triacca a Elena Massimi, de Aldo Terrin a Giorgio Bonaccorso, de Silvano Maggiani a Loris Della Pietra, de Roberto Tagliaferri a Andrea Grillo.

O contexto italiano é, sem dúvida, privilegiado, no sentido que contou com muitos e bons liturgistas pioneiros do Movimento Litúrgico. Encontrou no Centro di Azione Liturgica o instrumento importante para a difusão da reforma litúrgica em contexto de pastoral litúrgica. Outrossim, o próprio Pontifício Instituto de Liturgia de Santo Anselmo, inaugurado em Roma, em 1961, com a finalidade de formar no empenho da CL, foi um parceiro competente e audacioso, oferecendo novos horizontes a serem percorridos. Outra referência significativa foi a criação da Associazione di Professori di Liturgia, que através de seus temas de estudos tem procurado responder aos desafios da liturgia em chave pastoral e teológica. E mais recentemente, a criação do Instituto de Pastoral Litúrgica de Santa Justina, em Pádua, que se dedica ao estudo da pastoral, com uma atenção significativa na vertente antropológica, tem qualificado qualitativamente o debate litúrgico-sacramental.

A contribuição de vários mestres marca a consistência da reflexão teológica nesse contexto. Vagaggini (41965) e Marsili (1971), que aprofundam o lugar da liturgia na estruturação dos estudos teológicos e como locus theologicus. Visentin (1971), que afirma que nem sempre a própria liturgia soube tirar proveito de seu status de locus theologicus e reivindica que hoje não se pode fazer ciência teológica como um compartimento fechado, algo só para especialistas em ambiente somente intraeclesial. Ele fala também de uma dimensão litúrgica da teologia dogmática. Analogamente, a contribuição de Triacca (1986) é caracterizada por aquela preocupação de colher a realidade integral salvífica: mysterium-actio-vita. De fato, Triacca passa através da compreensão da dimensão diaconal da teologia, numa linha de redescoberta da função do próprio ato litúrgico.

Tagliaferri (1996), por outro lado, centra a sua pesquisa como fenomenologia do rito cristão, o pesquisador relê a Sacrosanctum Concilium e constata que o objeto da ciência litúrgica é o rito. Se dedica à formulação de uma proposta denominada por ele como “progetto di una scienza liturgica, na qual ele procura fundar o seu trabalho, considerando que o objeto da CL, indagado no seu aspecto de mediação, pareça, portanto, ser o rito, que se inscreve no fundamental dinamismo sacramental de Cristo e da Igreja, mas que mantém uma própria configuração antropológico-cultural. Podemos destacar, na pesquisa de CLS em Tagliaferri, que a liturgia é um rito cristão, mantendo sua própria originalidade. Esse rito deve trazer as marcas de todos os outros ritos, ou seja, deve ser simbólico e lúdico, se quiser permanecer na esfera ritual, e ter a possibilidade de transgredir o primeiro sentido; o rito, como tal, não perturba em nada o encontro com Cristo; pelo contrário, exprime as suas infinitas riquezas, precisamente pelo seu incontornável envolvimento antropológico; no final, revela-se a possibilidade mais autêntica oferecida ao homem para entrar no mistério.

Por outro lado, Bonaccorso (1996) realiza sua abordagem epistemológica litúrgica referente ao tempo, à linguagem e à ação ritual, em que a liturgia é considerada em sua estrutura expressiva e comunicativa, segundo a dimensão sacramentalmente unida ao conceito de sinal. Esse autor está, portanto, atento ao universo da linguagem semiótica.

Porém, é Grillo (1995) quem lança luz sobre o fato de que o ritus sempre foi necessário para a fides – enquanto o intellectus fidei se desenvolveu desde o início na reflexão da Igreja, o intellectus ritus se manifesta como um novo tipo de discurso, que pela teologia hodierna ainda é visto com desconfiança e temor, pois só fez emergir suas exigências no século passado e se impôs à atenção e à prática eclesial nos últimos cinquenta anos. Na esfera eclesial, houve uma verdadeira marginalização do rito, mesmo com atitudes de pressuposição, afastamento e reintegração. A necessidade de reintegrar o rito no fundamento da fé visa reconstruir, pelo menos teoricamente, a experiência global da fé em todos os seus pressupostos, que necessariamente, embora nunca exclusivamente, incluem também experiências rituais específicas.

Mais recentemente, Della Pietra (2012) examinou a questão do rituum forma litúrgico como fonte da vida cristã e destacou a possibilidade de reflexão para a implementação de uma verdadeira “reforma”. De fato, no percurso histórico da reflexão teológica e da prática celebrativa, a mudança no conceito de forma inovou radicalmente a compreensão do sacramento e sua eficácia estruturalmente ligada ao seu aspecto ritual: essa nova percepção, que reabilita significativamente o rituum forma, não pode mais ser negligenciada ou levada ao esquecimento pela teologia dos sacramentos, pela experiência espiritual, pela pastoral ordinária e extraordinária e pela relação mútua entre as disciplinas teológicas.

Tal enquadramento conceitual foi empregado também nas pesquisas seja de Paranhos (2017) seja de Buziani (2021), resultando o reconhecimento da correlação intrínseca entre teologia sacramental, liturgia e ciências humanas. Sem uma renovação corajosa da CLS, a reforma litúrgica perde seu significado e se fecha sobre si mesma, deixando espaço às nostalgias e às improvisações, conforme sublinha de forma inequívoca na sua reflexão sobre a forma celebrativa e a forma teológica.

Em sua recente publicação, Eucaristia, azione rituale, forme storiche e essenza sistematica, Grillo (2019) propõe um Manual no qual coloca a atenção na ação ritual originária, através da interpretação sistemática do significado e do desenvolvimento histórico, paralelo e enraizado, entre as ações e as suas interpretações. Tal cruzamento de níveis permite restituir hoje, de modo coerente, uma inteligência da fé implicada e alimentada pelo fenômeno eucarístico. Ela reconhece a realidade da inteligência ritual da fé de que a eucaristia é fonte, precisamente operando per ritus et preces. Nesse sentido, a proposta do Manual de Grillo (2019) faz um salto qualitativo passando de uma rígida separação entre o significado teológico e cerimonial do rito, em âmbito eucarístico, a uma construção de uma teologia do rito e à descoberta da ação ritual, restituindo, desse modo, o valor de forma do sacramento.

3 Perspectivas de uma nova relação (MEDEIROS, 2019, p. 598-603)

As abordagens atuais e abertas para uma nova relação entre liturgia e teologia sacramental, entre ação ritual e sentido da fé, entre liturgia e vida da Igreja, entre a fenomenologia e a liturgia marcam, sem dúvida, um cenário de mudança paradigmática, ou seja, a passagem epistemológica de uma perspectiva teológico-litúrgica-sacramental em geral signi et causae para uma nova abordagem em geral symboli et ritus, como convergência iniciada pelo Movimento Litúrgico, aprofundado pela Sacrosanctum Concilium e que vem amadurecendo nas últimas duas décadas em relação à CLS.

A releitura recente sobre a relação entre liturgia e rito nos levou a tomar consciência da questão do pressuposto do rito pela teologia clássica, de um afastamento do rito pela teologia moderna e de uma reintegração do rito por parte da teologia contemporânea para a recuperação do pressuposto imediato no que diz respeito à mediação teológica.

Com efeito, deve-se admitir que entre o gênero do ritus e o gênero do signi não há uma alternativa substancial autêntica, mas apenas uma diferença conceitual: essa diferença, porém, constitui uma passagem obrigatória e nada opcional ou acessória para a teologia contemporânea. Portanto, se um dos novos aspectos da compreensão dos sacramentos é a possibilidade de compreendê-los no rito, é necessário esclarecer melhor quais consequências essa difícil evolução pode ter para a teologia.

Certamente, a nova prática ritual inaugurada pela reforma litúrgica, fundada por uma nova teologia sistemática sacramental, ao mesmo tempo é o princípio de uma nova elaboração sistemática, com o entrelaçamento entre teoria e práxis, iluminado pela consciência da “revolução linguística” que nos permite aprofundar o valor último da sistematização da participação ativa.

A mudança paradigmática que essa transformação trouxe para a sensibilidade teológica contemporânea, que ainda não integramos no nosso pensar litúrgico-sacramental, levou, no entanto, à passagem para a nova consideração do sacramento na esfera do rito, como forma de reapropriação da teologia por um dos pressupostos da experiência cristã do Deus de Jesus Cristo, e não mais a abordagem de CLS tradicional, que colocava o sacramento somente na esfera do sinal-significado. O limite dessa tradição era a compreensão do sacramento de que o “rito podia ser decodificado e transcrito em uma linguagem discursiva, o que permite sua compreensão mais facilmente” (GRILLO, 2022b). Portanto, se um dos novos aspectos da compreensão dos sacramentos é a possibilidade de recompreendê-los na esfera do rito, é justamente porque os sacramentos não são sinais a serem lidos, mas ações a serem realizadas, e cabe precisamente à teologia fazer do momento ritual uma interação decisiva da relação entre Deus e a humanidade, entre graça e história, entre misericórdia e prática ética, entre revelação e fé.

Conclusão

Podemos dizer que, dentre as diversas abordagens de CLS consideradas acima, certamente para o contexto latino-americano, se tornam significativas e estimulam as pesquisas os enfoques entrevistos pelas obras de: Maggiani (2002), na sua proposta de leitura de um Ordo litúrgico a partir de uma leitura linear, da análise performativa e da análise simbólico-funcional através das quais o texto litúrgico não existe somente enquanto “texto”, mas é um texto caracterizado para “a ação”, isto é, o texto escrito é para ser traduzido “em ação”. O Manual de Liturgia, v. II: A celebração do Mistério Pascal, do CELAM (2007), com vários colaboradores, valoriza a forma ritual do sacramento e a proposta de Buyst (1989) com o seu itinerário de como estudar liturgia. Taborda (2004), a partir da celebração à teologia dos sacramentos com uma abordagem mistagógica, responde aos desafios pós-modernos sem a eles submeter-se, mas trabalha com a grande narrativa da história da salvação, da valorização do sagrado, da tradição eclesial e para o encontro com o mistério nos sinais sacramentais. Grillo na sua proposta recente de um Manual sobre Eucaristia, a partir da ação ritual (2019), inaugura um novo período objetivando um cenário unitário entre ação litúrgica e sacramental.

O itinerário percorrido, de modo diacrônico e sincrônico, nos fez tocar a provisoriedade do método. A liturgia e os sacramentos são meios. Não fim. Desse modo, a CLS se orienta para uma meta enquanto os sacramentos vivem da/na fonte, como os peixes no rio, que é a própria celebração. E a celebração será sempre meio, através da qual os fiéis celebram, vivem e pensam essencialmente os mistérios de salvação de Cristo na actuosa participatio.

Damásio Medeiros – Unisal-Pio XI, São Paulo. Texto recebido em 20/05/2022; aprovado em 25/09/2022; postado em 30/12/2022. Texto original em português.

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O livro do Profeta Joel

Sumário

Introdução

1 Elementos gerais

2 A dinâmica literária

3 A temática do “Dia do Senhor”

Conclusão

Referências

Introdução

Uma aproximação atenta ao livro do profeta Joel permite, quase de imediato, a percepção da centralidade temática do “Dia do Senhor” (yôm YHWH), haja vista que esta locução no genitivo aparece nos seus quatro capítulos (Jl 1,15; 2,1.11; 3,4; 4,14).

Se, por um lado, o anúncio da vinda desse dia, no livro, pode ser apresentado como se fosse uma “antologia sobre a temática”, por outro lado, e talvez por isso, quer ambientar e preparar o ouvinte-leitor para que entreveja, dentro da sequência canônica dos Doze Profetas (hebraica e cristã), a lógica desse anúncio que, igualmente, ocorre em Am 5,18-20. Ab 15; Sf 1,7.14-18; Ml 3,23 (também em Is 13,2-16; Ez 13,2-16).

Um dos problemas relevantes sobre o livro do profeta Joel, que deve ser abordado com a devida cautela, diz respeito à questão da sua formação, subdivisão e unidade literária. Em geral, a temática do “Dia do Senhor”, fundamental para essa questão, é oferecida em duas direções, mas, nas introduções e comentários, sobressai a dicotomia no tocante à estruturação do livro.

Na primeira direção, o anúncio desse dia é concebido como um “castigo” divino que recai sobre Judá-Jerusalém. Na segunda, é tratado como uma ação favorável, pois o Senhor volta atrás na sua decisão e “restaura” Judá-Jerusalém, concedendo as chuvas que trazem a fartura dos frutos da terra e, principalmente, livrando o povo dos seus inimigos em função da glória do seu Nome. Por esse movimento, o livro é comumente subdividido em duas partes, atribuídas, inclusive, a duas mãos diferentes: Jl 1–2 trataria do “castigo” e Jl 3–4 da “restauração”.

Existem, contudo, bons argumentos para se propor uma leitura e análise do livro em chave unitária, exatamente pela temática do “Dia do Senhor”, permitindo a superação da dicotomia. O principal critério é a ausência de um pecado, explícito ou implícito, dado que rompe com o esquema: pecado – castigo – pedido de perdão – restauração (FERNANDES, 2014, p. 77-80).

Ao se superar essa dicotomia, a mensagem, por sua índole literária e teológica, aparece mais facilmente conjugada e permite admitir que a vinda do “Dia do Senhor” seja reconhecida como uma causa capaz de produzir um duplo efeito. Para o povo, incitado pelo profeta, se colocar nas mãos do Senhor será salvífico, enquanto para os ímpios será punitivo, devido às maldades que praticaram. A distinção, dentro dessa lógica, pode ser percebida observando que o livro foi iniciado com relatos de penúrias, possui uma promessa universal em Jl 3,1-5 e é finalizado com a reversão da situação.

A clareza da função do “Dia do Senhor” e do “povo numeroso e poderoso”, que a ela está vinculada (Jl 2,2), confirma a apresentação desse dia como uma causa de duplo efeito: um juízo de condenação para os ímpios e, simultaneamente, um juízo de salvação para os justos. O efeito terrificante estampado sobre a face dos povos pode testemunhar esse duplo efeito (Jl 2,6). Leve-se em devida consideração que o oráculo de juízo, expresso numa palavra profética, deve manifestar em sua natureza a revelação de uma verdade sobre uma realidade concreta, quanto ao bem ou ao mal, através de uma dúvida, acusação ou louvor (MONLOUBOU; DUBUIT, 1987, p. 476-477).

1 Elementos gerais

Do ponto de vista canônico, o livro do profeta Joel encontra-se na segunda posição, tanto na Bíblia hebraica como na Vulgata (Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias), ordem que foi seguida nas edições cristãs. Já a Septuaginta (LXX) apresenta diferenças na sequência dos Doze Profetas (Oseias, Amós, Miqueias, Joel, Abdias, Jonas, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias).

Ao se assumir uma ou outra ordem canônica dos livros como relevante para a leitura em sequência, a compreensão da mensagem contida nos Doze Profetas, que estavam escritos em um único rolo na Bíblia hebraica antes da invenção da imprensa, de algum modo apresentará diferentes resultados sobre a lógica da temática do “Dia do Senhor”. A razão tem a ver com a aceitação de que essa temática, de índole escatológica, é um importante elemento tanto para a formação do livro de Joel como para esse corpus profético (FERNANDES, 2014, p. 17-19).

Nada se sabe a respeito da autoria do livro do profeta Joel e se mais de uma mão, apesar da sua brevidade, agiu no seu processo de formação. Ao lado disso, existe a possibilidade de se admitir a não existência da figura histórica do profeta e que o livro teria sido elaborado para fechar esse corpus, podendo, então, ser classificado como uma “profecia literária”. O principal argumento, a favor dessa perspectiva, recai sobre as referências intertextuais e, em particular, pela elaboração antológica da temática do “Dia do Senhor” (ZENGER, 2005, p. 803-805).

O plano de leitura do livro, em sua forma final, exige atenção maior que o plano que os estudiosos tentam identificar com a sua reconstrução redacional ou composicional. O fato de o título de Joel não oferecer referência temporal e a nominal ficar restrita à do profeta e de seu pai (“Palavra do Senhor que veio a Joel, filho de Fatuel”) é um elemento particular.

Quem escreveu quis deixar esta profecia em aberto no tempo, para servir à comunidade de fé diante de situações que exigiam um consciente apelo ao Senhor. Jl 1,2-3 retrata isso, pois aí se encontra a preocupação com a transmissão às futuras gerações dos fatos, que não devem ser imediatamente identificados com as carestias, mas partindo delas alcançar o que é capaz de determinar a vida pessoal e comunitária: a presença do Senhor e sua disposição para agir.

A exata situação na qual a profecia de Joel se posiciona vai além do que cada estudioso possa tentar interpretar. Se, de um lado, não é plausível duvidar de que um processo redacional esteja por detrás do escrito, de outro lado, é igualmente verdade que a tentativa de individuar as suas etapas não pode ser feita com total clareza e objetividade. São hipóteses disputantes e caso se alcance um parecer equânime, este só serve se contribui para a compreensão do todo. Não são as partes que determinam o todo, mas é a intenção do conjunto que determina o sentido das partes, pois o resultado final é a razão pela qual essas existem e não vice-versa.

No que diz respeito à estrutura, é comum dividir o livro em duas partes. A primeira corresponde a Jl 1–2 e apresenta as calamidades e carestias, ocasionadas por diversos fatores, com a promessa de reversão. A segunda corresponde a Jl 3–4 e apresenta um horizonte futuro de grandes proporções. Contudo, a dúvida nodal entre os estudiosos surge na proposta da cisão dessas duas partes. Se o critério for a forma a divisão seria Jl 1,1–2,17; 2,18–4,21; mas se for o conteúdo seria Jl 1,1–2,27; 3,1–4,21 (Jl 2,18 é o eco de 2,17 e prepara a mudança de sorte da terra e do povo que se inicia em Jl 2,19). Não é uma cisão, mas uma lógica sequência com a súplica sacerdotal, que se aproxima da forma eloquente utilizada por Moisés (Nm 14,13-19).

No lugar de admitir cesuras, para identificar as partes, seria melhor considerar os temas contidos em Jl 1–2 que ajudam a compreender Jl 4, pois estão em correspondência, permitindo evitar a dicotomia no que diz respeito à mensagem veiculada no anúncio do “Dia do Senhor”, a fim de perceber a sua progressão, pela qual se pode admitir a promessa do dom universal do Espírito em Jl 3,1-5 como uma ponte temática (FERNANDES, 2014, p. 86). Então, tão certo como a vinda do “Dia do Senhor” será a efusão do “Espírito do Senhor” sobre toda a carne.

2 A dinâmica literária

Quem “foi” o profeta Joel? Existiu? Quando atuou? Que problemas enfrentou? O que quis transmitir? Perguntas válidas, mas que se chocam com a possibilidade de o livro ser, como dito acima, uma “profecia literária”. Ainda que essa hipótese possa ser plausível, subjaz ao escrito a ação de “um profeta” que fica evidenciada pelos vários traços da sua personalidade e no que significa o seu nome: Joel = “o Senhor é Deus”, inverso do nome Elias = “Deus é Senhor”.

À diferença dos títulos que aparecem em Os 1,1; Am 1,1; Mq 1,1; Sf 1,1, em Joel não há referência a algum monarca e, nesse sentido, está mais próximo a Ab 1; Jn 1,1; Na 1,1; Hb 1,1; Ml 1,1. No caso de Ag 1,1 e Zc 1,1, a referência é Dario, rei persa e sucessor de Ciro. Apesar disso, o livro se refere a um profeta que soube se posicionar com firmeza e interpelar as “autoridades” ou os líderes de então: anciãos (Jl 1,2.16; 2,16) e sacerdotes (Jl 1,9.13; 2,17).

Diante das catástrofes causadas por uma diferenciada invasão de gafanhotos (Jl 1,4), de inimigos ferozes como leão (Jl 1,6-7), da seca (Jl 1,12-13) e do fogo (Jl 1,19), o profeta não só se lamentou, mas se dirigiu aos que se embriagavam (Jl 1,5), à comunidade vista como uma virgem viúva (Jl 1,8), aos agricultores (Jl 1,11), e, em particular, a Senhor, citando a flora e a fauna que também sofreram as consequências dos infortúnios (Jl 1,19-20). A falta de víveres não afetou somente os diferentes grupos de pessoas, mas privou o templo das ofertas (Jl 1,13).

O resultado foi o desaparecimento em cadeia, com a falta dos frutos da terra, da alegria e do júbilo que afetou o templo (Jl 1,16). No lugar, o profeta, tinha, diante de si, uma comunidade apática e sem perspectiva. A primeira tentativa de superação deu-se na ordem penitencial dirigida a todos, motivada pelo primeiro anúncio do “Dia do Senhor” (Jl 1,13-15). Ao lado dessa ordem, o profeta clamou o Senhor, evocando o grito dos animais (Jl 1,19-20). Ninguém ficou de fora (como em Jn 3,7, animais e humanos assumiram gestos penitenciais).

Do primeiro anúncio do “Dia do Senhor” (Jl 1,15), o profeta passou ao segundo anúncio, bem mais elaborado em forma poética e que recapitula os temas catastróficos (Jl 2,1-11). No lugar de uma palavra de condenação para Judá-Jerusalém, se está diante de uma provocante sacudida de ânimo, evidenciando a presença do Senhor e seu total controle sobre a realidade. Há, sob o comando do Senhor, um exército invencível, organizado e obediente às suas ordens.

Diante desse novo anúncio, encontra-se outro chamado à conversão mais pungente e pautado na exigência da sinceridade (Jl 2,12-17). À ação do povo correspondeu a reação do Senhor (Jl 2,18), pela qual declarou o fim das penúrias e a libertação da opressão inimiga (Jl 2,19-20). Por meio dessa resposta favorável, verdadeira bênção, anunciou-se a restauração pela fecundidade do solo através das chuvas, trazendo a abundância dos bens agrícolas e dos pastos para os animais. É o fim dos infortúnios que atesta a presença e ação do Senhor, Deus único no meio do seu povo, pelas quais findam as carestias, a vergonha e o opróbio (Jl 2,21-27).

Até aqui, nota-se a sequência: constatação da penúria – súplica motivada pelo anúncio do “Dia do Senhor” – resposta favorável da parte do Senhor – reversão da situação pelas bênçãos. Nessa sequência, surge o terceiro anúncio do “Dia do Senhor” (Jl 3,4). As novas intervenções divinas, que são anunciadas, ocorrerão de acordo com uma efetiva disposição vinculada aos fatos narrados precedentemente e servirão, de igual modo, para fundamentar os novos fatos que se seguirão a partir de Jl 4,1.

Percebe-se que Jl 3,1-5 contém promessas favoráveis do Senhor em tom universal, pois está disposto a salvar todos os que a ele se dirigirem, invocando o seu nome, elemento que faz lembrar o significado do nome do profeta: “o Senhor é Deus”. Enquanto Jl 3,1-2.5 enquadra o terceiro anúncio, Jl 3,3-4 atesta a participação da criação como prelúdio da manifestação do “Dia do Senhor”, ampliando a grande descrição bélica desse dia que foi feita em Jl 2,1-11.

Assim, o vínculo entre o “Dia do Senhor” e o dom universal do “Espírito do Senhor” oferece a passagem necessária para Jl 4,1-21. O ponto de partida é uma promessa pautada no gênero literário denominado “contenda”, “disputa” ou “litígio” (b) contra todos os povos e nações que fizeram o mal a Israel, denominado pelo próprio Senhor: “meu povo e minha herança”. Os crimes que foram cometidos contra Israel serão devidamente punidos (Jl 4,1-3).

Se em Jl 1,6 encontra-se a informação genérica a respeito de um povo potente e numeroso, predador como o leão, em contrapartida, Jl 4,4-8 revela, nominalmente, cinco povos de forma direta e ironicamente envolvidos no mal praticado contra Israel e que se tornaram dignos de castigo: Tiro, Sidônia, Filisteus, Egito e Edom; e dois de modo indireto: gregos e sabeus. O uso insistente de gôyim (nações estrangeiras) alarga a decisão do Senhor, abarcando todos os que serão sentenciados com base na “lei do talião”, usada também em contexto bélico (Jl 4,9-14).

Todavia, não aparece claramente que o Senhor, no dia do seu julgamento, iria impregnar o vale de Josafá como os gafanhotos impregnam os campos, invadindo o território como um exército inimigo, nada deixando subsistir; mas, como acontece durante uma forte seca, tudo ficará desolado como um deserto. Ao lado disso, não se explica por que somente em Sião uma fonte afluirá e irrigará os sulcos de Judá-Jerusalém (Jl 4,18). Se este parecer procede, um passo é dado a favor da ligação de todas as catástrofes presentes em Jl 1,4-20 com as que aparecem citadas em Jl 4,1-17, pelo alcance abrangente do “Dia do Senhor”. Nota-se, então, que este dia começa a figurar em primeira ordem, explicando as catástrofes e não sendo explicado por elas.

Enfim, através de uma fórmula temporal, “Naquele dia” (Jl 4,18), abre-se a última seção do livro. Esta fórmula introduz uma nova temática e sintetiza a quantidade e a qualidade que se espera em nível de bênção, anunciando uma contrastante cena oposta à aridez (Jl 4,18), pois se devolve à terra a sua fértil condição (Jl 2,3). A palavra final do Senhor elucida a razão da sua ação (Jl 4,21), condensa tudo o que já foi descrito no livro, mas deixa, mais uma vez, em suspense a execução dos fatos para um futuro indeterminado, exatamente como o profeta exortou no início como um empenho comum em função das futuras gerações (Jl 1,2-3).

3 A temática do “Dia do Senhor”

As calamidades, a queixa feita ao Senhor, a súplica do profeta, os chamados à conversão, o pedido de piedade, a restauração da bênção, o dom do Espírito, a vitória sobre as nações hostis e o restabelecimento da sorte do povo eleito em Sião são temas interligados ao “Dia do Senhor” e são os argumentos que dão unidade e sentido teocêntrico à profecia de Joel. Por meio desses, mostra-se a presença e a ação soberana do Senhor sobre a criação e os rumos da história tanto do povo eleito como das demais nações.

No contexto das catástrofes que assolaram o povo eleito, está o suspiro do profeta pelo “Dia do Senhor” visto como uma ação devastadora do Onipotente (Jl 1,15). Antes da solução chegar, a nova fala do Senhor, após sua queixa (Jl 1,6) com uma nova ordem para a comunidade, é uma explícita “Palavra do Senhor” sobre o “Dia do Senhor” (Jl 2,1). Assim, a profecia joeliana oferece o mapa da situação catastrófica: o lamento do Senhor por sua terra e o anúncio do seu “Dia”, que ganhará corpo num oráculo de juízo capaz de produzir um duplo efeito (Jl 2,1-11). Desses três elementos, passa-se à solução, que tem o seu início na descrição e na atuação do “povo numeroso e poderoso” que é “poderoso agente da sua palavra” (Jl 2,2.11).

Então, presença e ação divinas estão inerentes à expressão “Dia do Senhor” e elas são declaradas na profecia num ponto central, no momento em que o Senhor ordena ao povo o que ele deve fazer: “E agora, oráculo do Senhor, voltai-vos a mim de todo o coração com jejum, lágrima e lamento” (Jl 2,12).

No “retorno” (šûb), assumido e obedecido na direção do Senhor, o povo estará dando o passo decisivo para ver o “retorno” benéfico do Senhor na sua direção (Jl 2,18-27). Jl 2,13-14 confirma Jl 2,12 com um ato de fé do profeta que sabe quem é o Senhor e que ele se comisera pelo seu povo. Se, num contexto de pecado, o coração contrito e humilhado é o gesto que o Senhor não despreza no penitente arrependido (Sl 51,17; Jn 3,10), muito mais comiseração usará no momento em que o seu povo se apresenta com os gestos penitenciais que se identificam com a crise que tirou os meios da sua subsistência e que tanto o faz sofrer. Visto que não há nada a oferecer, o povo é chamado, pelo profeta, a oferecer-se e o seu próprio sofrimento.

O sentido do “quem sabe” (Jl 2,14) não está em contradição com a ortodoxia anunciada em Ex 34,6-7. Não é uma dúvida do profeta Joel, mas é o reflexo que confirma a ação divina pelo seu poder universal e que também se encontrou nos lábios do rei de Nínive, atitude que atribulou o profeta Jonas (Jn 3,9). Ao contrário, Joel, ao usar “compassivo” (niḥān), expandiu os atributos divinos, pois ele estava certo de que o Senhor concederia os seus benefícios.

À diferença da crise pessoal que se abateu sobre Jonas, porque sabia que anunciava uma palavra falida sobre a destruição de Nínive, Joel sabia de não falir, pois o Senhor responde desde Sião aos apelos de piedade, está atento ao sofrimento do seu povo e disposto a mostrar sua soberania universal na decisão de castigar as nações que lhe foram hostis.

Onde a crise tirou os meios de subsistência e privou o templo de suas ofertas, a ordem “retornai a mim de todo o coração” é a solução (Jl 2,12). O retorno exigido não é o ato formal de um simples rito de lamentação, mas é a exigência da firme disposição de se voltar para o Senhor com os gestos compatíveis aos efeitos produzidos pelas crises que se abateram sobre toda a comunidade (Jl 1,4-20; em Am 4,6-12, é o Senhor quem reclama a falta da conversão).

A convocação cultual em Sião em Jl 2,15-17 não contradiz a ordem precedente dada aos sacerdotes em Jl 1,13-14, e não significaria, necessariamente, que uma primeira tentativa cultual teria falido por falta de obediência. A missão teofânica, atribuída ao “Dia do Senhor”, ultrapassa em benefícios os males causados pelas carestias, pois os planos do Senhor são grandes e inauditos (Jl 3,1-5).

Essa missão, na verdade, corresponde a dois objetivos interligados aos apelos do Senhor e do profeta que tem um nome duplamente teofórico (yô + ’el): a) mostrar o que de fato depende da comunidade: a solução da penúria deve envolver o íntimo do povo eleito, impulsionando-o à ação; b) mostrar o que independe da comunidade: a generosidade do Senhor, o dom do Espírito e a justiça que faz à sua terra e aos seus habitantes, revertendo a situação das carestias e trazendo de volta para Jerusalém os seus filhos dispersos pelas nações.

O conteúdo da súplica sacerdotal (Jl 2,17) não foi: tem piedade do teu povo que está sem comida e sem água (Jl 1,4-20); mas ela se liga à lamentação do Senhor, que sintetiza os males e as necessidades do povo na terra eleita. A resposta do Senhor revela que Ele é pleno de zelo por sua terra (Jl 1,6-7), tem compaixão do seu povo (Jl 2,18) e não deseja que sofra o opróbrio entre as nações opressoras (Jl 2,19.26-27).

Por detrás deste dúplice movimento está o local do encontro, o templo em Sião, monte santo epônimo do Sinai, onde o povo recebera a Lei como dom. Sião, abatido pelas carestias (Jl 1,9.13.16), é o prodigioso local para o qual o profeta Joel, como outrora Moisés, encaminha o coração do povo. O profeta estava seguro de que em Sião os sinais teofânicos do Sinai se renovariam e os traços usados para descrever a vinda do “Dia do Senhor” confirmam a sua certeza (Jl 2,1-11; 3,4; 4,15).

Em Sião, onde está o templo santo, o povo experimentará a presença e a ação do Senhor mudando a sua sorte (Jl 2,12). O Senhor, que toma as decisões desde Sião, lembra igualmente da promessa que jurou a Abraão (Gn 22,1-14), ratificada na decisão de libertar o povo do Egito por meio de Moisés (Ex 3,7-12) e que defendeu ao longo da história, quando esteve ameaçada por inimigos externos e internos (Sl 145). É do seu monte santo que o Senhor se mostra, continuamente, compassivo e providente (Gn 22,8.14).

Como a vocação de Moisés no Sinai foi uma resposta do Senhor ao clamor do povo oprimido no Egito, confirmando a eleição e as promessas feitas em Abraão (Gn 12,1-3), também em Joel não se deixam dúvidas de que o Senhor, pelo anúncio e chegada do seu “dia” em Sião (Jl 2,1-11), já se dispôs a intervir sobre a nefasta situação como justo juiz e o faz atuando concretamente diante de todos os males que o seu povo está sofrendo.

Na base do anúncio joeliano está a certeza do amor-compaixão do Senhor (Ex 34,6; Sl 103) e a força das bênçãos prometidas (Dt 28,1-14). Por isso, Jl 2,1-11.12-17 expressa o status particular que o povo eleito possui para implorar, através da ação sacerdotal, a benevolência do Senhor diante dos males que colocam em risco a sua existência na sua terra eleita (Jl 1,4-20), pois envolvem as promessas patriarcais, reafirmadas a Moisés, aos libertos do Egito e a Josué.

O povo sofrido e abatido é, então, o destinatário direto do anúncio que Joel faz do “Dia do Senhor”. É a esse povo que interessa ouvir a resposta divina à sua súplica, indicando que o tempo da carestia terminará e que a bênção trará de volta não apenas os frutos e dons necessários (Jl 2,18-27), mas devolverá o que de melhor o próprio Senhor pode e quer receber no seu templo como oferta: o retorno, como um verdadeiro resgate, dos filhos e filhas traficados e humilhados pelo leão inimigo e opressor (Jl 1,6-7; 4,2.6-7).

A preocupação quanto ao sarcasmo das nações na súplica dos sacerdotes mostra que não estava em jogo só a subsistência do povo, mas a glória e o poder do Senhor diante das nações hostis (Jl 2,6.17). Por esta preocupação se entende por que o “Dia do Senhor” atinge com força as nações as quais o Senhor decidiu convocar ao julgamento. Sobre elas pesam vários crimes que clamam pela sua justiça (Jl 4,21; Sl 72,13-14; Ab 10.14). Assim, ao invés de dizerem, “onde está o seu Deus” (Jl 2,17), as nações reconhecerão a presença, o agir portentoso e favorável do Senhor no meio do seu povo (Jl 2,27).

A convocação dos povos e nações opressoras para um ajuste de contas se dará através de um julgamento atuado num contexto bélico (Jl 4,9-13). A glória do povo eleito renovar-se-á por estar debaixo da potente proteção do Senhor. Isto confirma o que Ele decidira, quando prometeu que a vergonha do seu povo seria eliminada para sempre (Jl 2,19.26-27), pois o inimigo, em forma de prolepse, aparece antecipadamente destruído entre os dois mares, onde se sentirá o cheiro de sua morte (Jl 2,20).

Por isto, para as nações envolvidas e destinadas ao julgamento, a profecia de Joel não sugere que elas possam ou tenham tomado alguma precaução, a fim de saírem ilesas desse “dia”. A elas cabe a punição por seus crimes e ao povo eleito cabe saber e constatar que o Senhor, mudando a sorte de Judá-Jerusalém, preparava a restauração da sua glória em Sião.

Então, o evento libertador ligado ao “Dia do Senhor” adquire um objetivo didático. O conteúdo a ser transmitido às futuras gerações identifica-se não com as catástrofes, mas com a renovação dos gestos salvíficos operados pelo Senhor (Jl 1,2-3; Ex 10,1-2). É uma ação pedagógica. Por isso, reduzir tal conteúdo somente às crises sofridas não condiz com a índole unitária da profecia de Joel e com a lógica da intenção reparadora e restauradora do “Dia do Senhor” também dirigida aos inimigos (Jl 2,19.26). A formação da consciência individual e coletiva a ser transmitida em Judá-Jerusalém de geração em geração confirma isso (Jl 4,20).

Conclusão

A grande ação-reação na profecia coube ao protagonismo do Senhor. Da penúria e apatia do povo à súplica sacerdotal se passa ao salto de qualidade manifestada na decisão e na posição divina que ocorrerá de Jl 2,19 a 4,21. A reversão do quadro de penúria, pelo pedido de piedade (Jl 2,15-17), foi muito além de qualquer expectativa, porque o Senhor, benigno e gracioso, nunca se deixa vencer em generosidade junto àqueles que ouvem sua voz, seus apelos e lhe obedecem (Jl 3,1-2; 4,16-18).

Se Jl 2,11 deixou em aberto uma importante questão a respeito do “Dia do Senhor”, “e quem o suportará?”, a resposta que o livro propõe se desenvolve a partir de Jl 2,12.

Se o anúncio do “Dia do Senhor” é a ocasião que o próprio Senhor estabeleceu para que a sua justiça se fizesse sentir pela ação do “povo numeroso e poderoso” (Jl 2,2), de igual modo será o Senhor a determinar a sorte final do seu povo.

No agir obediencial desse povo, se advoga a favor das intenções do Senhor, que apontam numa única direção: o fim da vergonha do seu povo (Jl 2,19.26-27). Os que o Senhor salvará suportarão, pela confiança nele depositada, a chegada deste dia implacável sobre o inimigo.

No agir do Senhor, então, se percebe que o foco central é a restauração da sorte de Judá-Jerusalém. Esta possui uma certeza: “o Senhor, desde Sião, faz sentir a sua voz e se moverão os céus e a terra, mas o Senhor é refúgio para o seu povo e fortaleza para os filhos de Israel” (Jl 4,16; cf. Jl 3,5). Isto certifica e comprova que o ataque em Jl 2,1-11 não poderia ter tido como alvo central uma Jerusalém já castigada por tantas catástrofes e que, no fundo, necessitava urgentemente da ação do seu resgatador, o único capaz de ocasionar a sua salvação.

Portanto, a lógica do “Dia do Senhor”, na profecia de Joel, está apoiada na sua unidade do livro como temática e como mensagem de esperança salvífica e restauradora no Senhor que reside, atua e salva os seus eleitos desde Sião, onde se ergue Jerusalém com o seu templo. Uma situação catastrófica conseguindo uma solução em tão larga escala, e terminando com uma promessa em aberto (Jl 4,21), induz à certeza de que nada mais de mal e de terrível poderá acontecer ao povo eleito. Essa é a ideia de fundo que se encontra desenvolvida de modo favorável ou criticada pelos profetas que usaram a expressão “Dia do Senhor” e que vem depois de Joel segundo a ordem canônica no corpus dos Doze Profetas.

Leonardo Agostini Fernandes (PUC-Rio). Texto original português. Enviado: 14/07/2022. Aprovado: 20/09/2022. Publicado: 28/12/2022.

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Mística Contemporânea

Sumário

Introdução

Conclusão

Referências

Introdução

A época em que vivemos é nomeada de diferentes modos: modernidade, modernidade tardia, hipermodernidade, pós-modernidade, entre outras. Tal como diz a V Conferência do Episcopado Latino-americano, em Aparecida, 2007, não se trata apenas de uma época de mudanças, mas de uma “mudança de época”.

Um dos impactos mais profundos que essa mudança de época apresenta, sem dúvida, é o que incide sobre a religião. Se no iluminismo a razão humana começa a ganhar destaque e passa a ser o princípio fundamental que rege a vida humana e se constitui como cânon inapelável da verdade, hoje a configuração da existência é outra. A crise da modernidade vai ser sucedida por um novo estado de coisas que o conhecimento humano está longe de haver assimilado exaustivamente. No século XX esse novo processo aparece com mais clareza. E no que já se viveu do século XXI, alguns elementos se confirmaram e houve igualmente o surgimento de novas perspectivas.

O Cristianismo histórico, religião até aqui indiscutivelmente majoritária e hegemônica no hemisfério ocidental, verá surgir bem perto de si e mesmo em suas fileiras fenômenos como o teísmo, o secularismo, o ateísmo e o agnosticismo. Suas fileiras começarão a ser drenadas por novos cristianismos de características mais extrinsecistas e catárticas que trazem consigo novas concepções de mundo, incidindo não apenas na pertença religiosa em geral, mas na configuração social e política dos estados que se autocompreendiam como laicos.

A razão iluminista, potente e soberana, questiona todo o sistema de compreensão e entendimento que antes imperava. Já não mais autocompreendida como império da razão, nossa época assiste à fragmentação das grandes narrativas e utopias e é obrigada a repensar e ressignificar todos ou quase todos os conceitos que antes lhe davam sustentação teórica.

O século XX é chamado século sem Deus, Nele até as divindades são efêmeras e fugazes, identificando-se com objetos de consumo. Esse estado de coisas se prolonga no século XXI, intensificando alguns de seus aspectos: a fragmentação, a diversidade, a fluidez das relações e das identidades. Nesse contexto, as experiências “religiosas”, no entanto, continuam a multiplicar-se, desconhecendo, porém, muitas vezes os limites das instituições propriamente ditas.

Assim, as experiências ditas místicas, entendidas como de união com o mistério e o divino, e mesmo as correntes e escolas místicas continuam a acontecer na contemporaneidade. Trazem, porém, uma nova configuração, rompendo espaços, fronteiras e realizando sínteses novas e inusitadas. Os estudos da mística voltam novamente a acontecer, mas não se restringem aos limites das igrejas ou das religiões institucionais. Acontecem em uma transdisciplinaridade sempre mais acentuada, correspondente à pluralidade religiosa que marca hoje a relação do ser humano com a transcendência.

A mística hoje é objeto de busca e de estudo por pesquisadores de várias áreas; teólogos ou cientistas da religião; estudiosos oriundos de outras áreas, como a literatura, a filosofia, a antropologia; leitores mais ou menos letrados ou mesmo não crentes de todos os cortes e configurações institucionais. Talvez isso se deva à perda de importância no espaço público, por parte da Igreja instituição, que fez a atenção à mística “migrar” de dentro de seus limites para outras áreas exteriores a ela. Já em 2012, o teólogo estadunidense Roger Haight, em entrevista a Junges e Dalla Rosa, na revista do Instituto Humanitas da Unisinos, declarava que a Igreja perdeu relevância pública, o que estimulou o “surgimento da espiritualidade em contraposição à religião porque a Igreja não é mais vista como uma fonte de espiritualidade humanística” (JUNGES; DALLA ROSA, 2012, p. 18-21). Evidentemente Haight pensava aqui na Igreja Católica Romana, da qual faz parte, inclusive enquanto religioso jesuíta. Mas o mesmo se poderia dizer de outras igrejas cristãs históricas. Em uma época como a nossa, os vestígios de Deus são quase invisíveis e as religiões parecem tomar uma forma nebulosa e “vaga”.  Isso não impede, porém, que as experiências místicas continuam a acontecer forte e inesperadamente, ainda que com diferentes sínteses em relação a épocas anteriores

Para entender, portanto, a mística na contemporaneidade examinaremos algumas circunstâncias que cercam a vida dos místicos que viveram e vivem nesta mesma época.  Não pretendemos nem poderíamos esgotar aqui todos os homens e mulheres que fazem em sua vida a experiência interior profunda e inefável de sentir-se unidos ao mistério por uma iniciativa que muitas vezes não saberiam dizer de onde vem, mas com respeito à qual têm uma certeza: não vem deles mesmos nem por eles mesmos foi produzida.

Os místicos e as místicas contemporâneos não serão mais encontrados principalmente dentro dos espaços sagrados, entendendo-se por tais os claustros, os conventos, as igrejas, as ordens religiosas. Sua existência será descoberta nas fábricas, em meio ao barulhento e estressante ritmo das máquinas e das indústrias. Ou nas ruas com os mais pobres e excluídos do progresso. Ou na prisão, devido a sua atividade e a seu compromisso, considerados perigosos pelas autoridades estabelecidas. Ou no inferno dos lagers e gulags de todas as origens e formatos ideológicos, sendo ali levados por seu comportamento fora dos padrões considerados “normais” ou por posições tomadas em defesa dos mais fracos e vulneráveis e contrapoderes opressores. Poderão ser encontrados igualmente em meio a comunidades e pessoas de outras religiões, comungando em tudo de sua vida, embora professando interiormente uma fé diferente. Ou ainda em meio ao cosmos e à natureza, reinventando uma nova forma de relação entre e com todos os outros seres vivos, vivendo sua condição de criatura de uma nova maneira.

O que nos diz que esses homens e mulheres são “místicos” e não apenas ativistas políticos, pessoas éticas e honestas que se comprometem com as mais importantes lutas da humanidade como tantos outros que não identificam a transcendência em suas experiencias e práticas? Pode-se identificá-los por sua experiência radical do Sentido Último da vida e da realidade ao qual a teologia nomearia de Deus, mas que em seus lábios pode tomar outros nomes como justiça, equidade, consciência ecológica, liberdade.

Uma das características da mística na contemporaneidade, portanto, é o fato da existência de uma sensibilidade que busca a experiência direta com o mistério da Realidade última. E essa busca de experiência direta já não apresenta contornos institucionais nítidos, mas, pelo contrário, aponta para uma tendência transreligiosa, em que o contato buscado se dá com o fundo mais profundo, o segredo último da realidade, que nós chamamos de Deus e que os estudiosos das religiões identificam como o denominador comum, o núcleo de todas as religiões (DUCQUOC, 2002, p. 125).

Os estudiosos da religião hoje identificam uma clara e inegável insatisfação com a religião predominante e institucionalizada. As experiências que surgem tomam sempre mais a forma de uma busca mais pessoal e experiencial do divino (HEISSIG, 2005, p. 246). O risco dessa escolha é a superficialidade que pode ocorrer ao pretender fazer voo livre, independentemente de qualquer instância ou instituição. Desligada de qualquer espessura ou opacidade, a busca espiritual pode perder-se ou dissolver-se em uma pluralidade mal compreendida, onde não há enraizamento ou identificação com o que quer que seja.

Por outro lado, há que reconhecer o aspecto extremamente positivo que aí reside: a comprovação da liberdade de Deus, que não se deixa aprisionar por nenhuma instituição, código ou sistema, ainda que religiosos. A experiência mística em nossa época não esperou a reforma das Igrejas ou instituições religiosas para efetuar sua própria busca. Tampouco a bênção da academia. Os místicos contemporâneos entrecruzam vocabulários, conceitos e símbolos de todas as procedências e cidadanias – inclusive religiosas e eclesiais – a fim de dizer sua busca de Deus sem pedir permissão aos representantes acadêmicos, religiosos ou eclesiásticos (MARDONES, 2005, p. 201-202).

No entanto, se acontece em forte independência das instituições eclesiais ou religiosas, também é fato que a mística na contemporaneidade se caracteriza pela vinculação indissolúvel com a ética e tudo o que dela deriva, a saber: a ação transformadora no mundo, o compromisso político, as pautas e lutas da humanidade no momento histórico que lhes é dado viver, a valorização da experiência e da emoção e não apenas da razão, o cuidado da criação, o elogio das diferenças como as de gênero, raça, etnia, o diálogo com outras experiências religiosas. Em suma, a mística na contemporaneidade, se parece distante de um religioso institucional e situado, mostra uma profunda aliança com o mundo, sobretudo naquilo que apresenta de conflitivo e vulnerável.

Os místicos contemporâneos buscam sim uma experiência profunda de união com o divino. Porém, esse divino não é por eles e elas encontrado “fora” das coisas deste mundo. Mística, ética e prática estabelecem claramente diversos tipos de intersecção. Pois, se o Sentido último da existência – ao qual chamamos Deus – sujeito maior da mística, se deixa encontrar em todas as coisas; se no mundo, tal como ele é, é possível experimentar sua presença inefável, então o agir humano na realidade está definitivamente “consagrado” e é parte integrante da esfera do sagrado e do divino. E isso dentro mesmo de sua condição de profano e secular, e não dela abdicando ou escapando.

Em meio a essa secularidade atravessada por uma sempre maior diversidade, um fio condutor assinala um consenso axial: todos os místicos, de qualquer gênero, tempo ou espaço, são pessoas apaixonadas. O divino entra em suas vidas com a força e a violência de uma tremenda paixão e toma-os por inteiro, subjugando-os com o imperativo de seu amor. Na relação com esse divino experimentam gozo e dor, ausência e presença, cada um em seu estilo próprio e original. Mas todos e todas, sem exceção, tiveram certeza de que estavam no interior da experiência do mistério mais profundo e santo, Aquele que as religiões procuraram nomear e as ideologias conceituar, mas que sempre escapa a toda tentativa humana de circunscrevê-lo e captá-lo por inteiro. E essa experiência invadiu-os e tomou-os para sempre.

. Lendo os escritos desses “amantes de Deus” (MEROZ, 1982, p. 27-49), sobretudo aqueles mais autobiográficos, que contêm o relato de suas experiências, possível perceber neles o rosto divino que se delineia. Embora alguns deles ou delas sejam pensadores de alta relevância, ao escrever sobre suas experiências, o pensamento vai precedido pela paixão. A pergunta por Deus e a sede por sua presença surgem no mais profundo de seu interior a partir da percepção da dor pela injustiça existente no mundo e pelo desamparo no sofrimento. Trata-se da “história da paixão do mundo que no fundo é também paixão de Deus e por graça do mesmo, origina a paixão por Deus”.

Tal percepção da dor no e do mundo conduzem além da discussão entre teísmo ou ateísmo. Ante o sofrimento humano, esbarra-se na universal questão da teodiceia, ou seja, na dificuldade de acreditar na existência de um Deus todo-poderoso e cheio de bondade que “a tudo rege magnificamente” e que parece não responder aos clamores dos infelizes. A indignação, a ira que clama, a voz que se levanta, dão testemunho da nostalgia do “inteiramente Outro”. É, como diz Max Horkheimer, “a nostalgia de que o assassino não deveria triunfar sobre sua vítima inocente.” Sem a paixão pela justiça no mundo e por aquele que, em última instância, é seu fiador, não pode haver um desejo por uma experiência do Sentido maior da vida e um sofrimento consciente por causa da injustiça.

A partir daí surgem as vocações proféticas e místicas que acolhem e tomam sobre si o sofrimento das vítimas assumindo sua defesa. Neste ponto, transforma-se, igualmente, o pensar humano sobre o mundo. Este mundo, tal como é em realidade, não pode mais ser definido como um espelho da divindade. O espelho está quebrado. E defini-lo em termos de perfeição e harmonia implica idolatria. Isto significa na prática: se o ser humano se desabitua às perguntas absolutas sobre o sentido último e a justiça, acabará dando-se por satisfeito e habituando-se à deficiência das circunstâncias. A mística contemporânea é caracterizada por uma insatisfação e um inconformismo com as situações injustas e opressoras, justamente porque desfiguram o mundo tão amado pelo Amado que apaixona os homens e mulheres de hoje.

A mística contemporânea busca e encontra na injustiça, no sofrimento humano e nas situações insuportáveis deste mundo o marco da pergunta pelo sentido último da vida como justiça, e, no fundo de sua experiência de união inefável, se sente convocada para uma prática solidária. Neste caminho de solidariedade prática, os místicos contemporâneos se destacarão como os que escolhem não eludir o sofrimento e com ele lidar desde o exterior, mas o atravessam desde dentro, não desejando estar separados da dor que atinge seus semelhantes a fim de, com eles e elas e como eles e elas, revelar o sentido da vida humana a partir do padecido em suas próprias existências e entranhas.

A mesma mística contemporânea igualmente rompe fronteiras por muito tempo estabelecidas, inclusive eclesiais e religiosas. Os místicos contemporâneos então serão encontrados em profundo diálogo com outras denominações e confissões religiosas, inclusive participando de seus rituais e mesmo de seus processos de iniciação, a fim de conhecê-las por dentro. São conhecidos os casos de Henri Le Saux (LE SAUX, 1986), de Christian de Chergé (BINGEMER, 2018) e outros. Assim também crescem as experiências de dupla pertença religiosa no mundo inteiro, inclusive na América Latina, onde religiosos católicos são ao mesmo tempo filhos de santo no Candomblé e onde, no dizer de Gilbraz Aragão, a dança dos orixás e o canto dos santos muitas vezes se encontram e realizam uma nova síntese (ARAGÃO, 1997)

Isso nos faz chegar à definição da mística contemporânea como experiência do amor – e da comunhão por ele gerada – como única realidade digna de fé. (COMTE SPONVILLE, 2016). O amor deixa os amantes expostos ante uma ausência de seguranças absolutas, caminhando entre o ser e o não ser, entre palavra e silêncio, entre presença e ausência. Na experiência do amor, os amantes recebem um novo ser que lhes é dado pelo tu amado. Ou seja, a força do amor está limitada ao acontecimento do amor em si mesmo. Daí derivam sua suprema força e sua debilidade e amorosa impotência. O amor não pode se impor a não ser com e como amor. Diante do mal em ação e da injustiça que mutila e agride, não pode revidar. Só pode sofrer e compadecer-se. Diante da diferença da fé e da religião do outro, não pode fazer outra coisa a não ser entrar em comunhão e compartilhar interiormente dando testemunho visível e palpável de tal experiência. Por aí passam alguns dos principais caminhos de encontro com Deus na contemporaneidade.

Os místicos e espirituais experimentam, então, que o amor é vulnerável e passível de ser afetado pelo amor que convida à comunhão, que faz o místico ou a mística abrir-se ao que não é ele e se deixar ferir pela solidariedade suprema e radical com a alteridade humana, sobretudo quando a mesma sofre situações de intolerância, opressão e perseguição. Assim fazendo, a mística contemporânea responde à pergunta posta pelo pensamento judaico no pós-holocausto; à pergunta das vítimas de todas as guerras “unilaterais” e sem sentido; de todas as intolerâncias religiosas; à pergunta cristã latino-americana que brota e se faz ouvir a partir dos pobres da terra e das vítimas da opressão. Como falar de Deus a partir do sofrimento do inocente? (GUTIERREZ, 1987).

Os místicos contemporâneos, que viveram e vivem a experiência teopática, da passividade configurada pelo amor divino e pela união com o mistério, são mediadores adequados para dizer no mundo de hoje quem é Deus e anunciá-lo em meio a um mundo secular e plural que deseja e busca a Transcendência, o Espírito, mas parece haver perdido o rumo da linguagem sobre seu mistério. Seu testemunho é uma forma de mediação pela qual o divino hoje tenta dizer-se e expressar-se (PIERRON, 2006, p. 30).

O século XX, chamado século sem Deus, não está vazio da presença divina e continua seduzindo e apaixonando homens e mulheres que buscam sua experiência e ao fazê-la, dela dão testemunho na praça pública. Mas, talvez, esta presença se faça visível de outra maneira.

A mística contemporânea, com suas características de não institucionalidade, de transdenominacionalidade, de trânsito inter-religioso, traz profundas interpelações à teologia. Vemo-nos diante da relação entre a teologia e a espiritualidade considerada em sua bidirecionalidade, isto é: da relação que a teologia mantém com a espiritualidade e da relação que esta mantém com aquela. Esta relação mútua constitui um ponto crítico, pois na verdade a relação entre a teologia e a espiritualidade sempre foi crucial.

A retrospectiva histórica da relação entre teologia e espiritualidade apontaria o quanto e o tanto das variadas formas que esta relação assumiu em diferentes épocas, tradições e escolas. Do relato dessa relação aparecem, ao longo da história da teologia cristã, dois polos extremos. De um lado, aparece a hipótese de que o discurso teológico açambarca de tal maneira o discurso espiritual que, ou bem o suprime, assumindo-o em sua própria discursividade, ou bem o comprime, reduzindo-o a uma das muitas possíveis teologias existentes no genitivo, às vezes adjetivas e pouco substanciais.

Na verdade, a teologia cristã nasceu como hermenêutica da Santidade. Da Santidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo manifestada na humanidade chamada a participar dessa santidade, portanto como experiência da Santidade de Deus que santifica o ser humano e o faz ingressar e progredir em um conhecimento amoroso sempre maior do mistério divino. Os raciocínios aparentemente abstratos das especulações trinitárias jamais visaram outra coisa senão afirmar contundentemente a realidade da salvação e da santificação humanas, realizada pela autocomunicação de Deus. A teologia nasceu então de uma experiência iniciática e mistagógica e a serviço dessa experiência, crendo e afirmando que a experiência precede a razão e a experiência de Deus, portanto, precede qualquer tentativa de pensamento ou discurso organizado sobre o mesmo Deus.

Aqui procuramos demonstrar como a mística contemporânea é aberta e plural e como pode acontecer em meio a elementos e coisas que tradicionalmente foram classificados como alheios à sua identidade. Se voltamos nosso olhar mais especificamente para a mística cristã, de tão rica tradição e história, veremos que na verdade a mística contemporânea redescobre dentro de si mesma elementos que são parte constitutiva de sua identidade desde as origens.

A mística cristã é uma experiência do Espírito Santo que ensina e profere apenas duas palavras: Abba, Pai, e Senhor Jesus. O místico e a mística cristãos são, portanto, guiados e conduzidos pelo Espírito Santo para experimentar e seguir a carne do Filho e seu percurso terrestre e histórico para finalmente receber a revelação de sua Ressurreição dentre os mortos que é a realização maior da vida plena e eterna. Por ter em seu centro o mistério da encarnação, a mística cristã nunca pôde nem deveu afastar-se do mundo e dos seres humanos que o povoam. E a experiência mística dentro do cristianismo é, pois, inseparável desse mundo e da carne que o habita. Em suma, da vida que pulsa sob suas mais diversas formas.

O que caracteriza a mística cristã, portanto, não é nem jamais foi a sublimidade imaterial, porque o Espírito não se opõe ao mundo, mas o vivifica. O Espírito não foge do mundo, mas desce por sobre as realidades a fim de impregná-las de sua Santidade. O Espírito, portanto, não se refugia no intimismo, mas abre o interior daquele que faz a experiência de Deus, – de quem Ele sonda as profundezas (1 Cor 2,10) – para expandir-se e dilatar-se. Aquele que, segundo Agostinho, tem como nome próprio a palavra Dom, manifesta o seu poder na capacidade que dá aos crentes de seguir Jesus, saindo de si mesmos para a doação ao outro (VAZQUEZ, 2016).

É nesse sentido que a experiência mística tem a forma da experiência ética. A sua intencionalidade e o seu fundo mais profundo visam ao amor, à bondade e à justiça, e não, em primeiro lugar, à beleza ou à verdade. Não porque estas sejam secundárias, mas porque no ser humano devem ser segundas em relação ao amor que é, inseparavelmente, amor a Deus e amor ao próximo.

A vida no Espírito, portanto, é e sempre foi vivência de amor e expressão do amor, compromisso com as obras do amor, portanto, é ao mesmo tempo, experiência espiritual e ética. A mística contemporânea, com sua abertura à secularidade e à pluralidade e à diversidade, traz essa primordialidade do amor entendido como compromisso histórico e transformador e solidariedade universal para o centro do viver e do pensar. Pode parecer incrível – e de certa maneira o é – que em uma cultura que parece desejar exilar o transcendente para fora do cotidiano ou reduzi-lo a um objeto de consumo, seja justamente a mística que possa contribuir para resgatar a espessura da vida humana e das experiências humanas mais profundas em toda a sua força. Trata-se de um desmentido radical e definitivo às acusações que punham sob suspeita a mística como alienação ou fuga da realidade. A mística contemporânea resgata para sempre essa aliança da mística com a realidade e a responsabilidade humana para com ela.

O crescimento em importância da mística em todas as suas formas e filiações, mesmo em suas formas seculares e por assim dizer desinstitucionalizadas, mesmo em suas formas sincréticas ou plurirreligiosas ou multifacetadas, constitui algo de extrema importância em nossa conturbada contemporaneidade. O caminho da mística hoje – incluída aí a mística cristã – é um caminho contracultural, em que a humanização do ser humano e a experiência que lhe dá sentido à vida se dão, por assim dizer, na contramão da sociedade onde vive e do que nela é veiculado como proposta passível de conduzir à felicidade. A mística contemporânea, nesse sentido, é uma instância crítica da sociedade contemporânea.

Em uma cultura de prazer e sensações sedutoras e seduzidas, a experiência mística leva a sair de si e deixar-se afetar pelo outro, sua diferença, sua alteridade, sua necessidade. Este caminho ao encontro da alteridade do rosto do outro implica um profundo e radical desprendimento e uma rigorosa ascese, implicando acolher a dor alheia e fazê-la sua, ser um espaço onde a dor possa abrigar-se, um bálsamo para as feridas daqueles que sofrem. Assim expressou seu mais profundo desejo a jovem Etty Hillesum, mística judia que viveu os horrores do holocausto, sendo assassinada nas câmaras de gás de Auschwitz: “desejaria ser um bálsamo para todas as feridas” (HILLESUM, 2008).

Seduzido por Deus, o místico não se refugia em catarses exteriorizantes e na maior parte das vezes, estéreis, mas entra sem defesas e sem volta em uma aventura em que esta sedução o levará até à perda de si mesmo na comunhão radical com a dor do outro, acolhida e padecida em carne própria. Aqui se poderia citar outros místicos contemporâneos além de Etty Hillesum. Por exemplo, a judia que se tornou carmelita Edith Stein, o arcebispo salvadorenho Oscar Romero, o monge trapista Christian de Chergé, a filósofa francesa de origem judaica Simone Weil, o padre jesuíta operário Egide van Broeckhoeven, o bispo catalão radicado no Araguaia, Pedro Casaldáliga e inúmeros outros e outras.

Em uma cultura consumista, a propaganda assegura que o máximo de felicidade consiste em ter, sempre, cada vez mais, descartando e substituindo o mais rapidamente possível tudo aquilo que se possui – de objetos a pessoas – aumentando a volatilidade e a velocidade da frenética deglutição dos bens e valores. Frente a isto, a experiência mística propõe a experiência do dom, da entrega, do cuidado pelo outro, sobretudo por aquele e aquela que estão mais desprovidos de qualquer amparo e se encontram infelizes e abandonados. E tudo isso em meio à mais absoluta gratuidade.

Em uma cultura que proclama a liberdade entendida como autonomia que a ninguém presta contas e se rege segundo seus desejos mais imediatos, cultivando a soberba de tudo poder, mesmo à custa daquilo que é dos outros, de direito e de fato, a experiência mística é por excelência receptiva e passiva, e, sobretudo, consciente de sua impotência. Experiência teopática, que acolhe e recebe o que é dado, padecendo em si a presença e a ação de Deus sem nada poder fazer para produzi-la, a mística faz o elogio da humildade e da passividade, da ação não agente que, no dizer da mística Simone Weil, é a atitude primordial de todo ser humano.

Em uma cultura em que o poder é glorificado, a experiência mística ensina que o ser humano é paciente mesmo quando agente (RAHNER, 1989, p. 37-59), porque é incapaz de dar-se o ser que faz existir e configura a identidade humana.

Em uma cultura onde a aspiração máxima é devorar avidamente tudo o que se apresenta, consumindo sem digerir, passando em seguida ao consumo de outra coisa ou de outra pessoa, a experiência mística ensina que a realização humana reside no desejo de dar-se, despossuir-se e entregar-se para ser consumido, para servir em tudo às necessidades dos outros, para distribuir-se eucaristicamente em alimento para todos (Cf. CAVANAUGH, 2008).

Em uma cultura injusta, quando os recursos são distribuídos segundo a manipulação egoísta e totalitária de alguns em detrimento de outros; onde o bem-estar de alguns é conseguido à custa da perda e do empobrecimento progressivo e sistemático de muitos, a experiência mística ensina a praticar a justiça e viver segundo seus parâmetros. Não, porém, de uma justiça retributiva, que dá a cada um o que merece, mas, à imitação do próprio Deus, de uma justiça restaurativa, que dá ao outro aquilo de que ele precisa e necessita para viver. E para que essa justiça se faça, o místico paga o preço com sua própria pessoa, expondo-se e arriscando-se para que outros possam ter mais vida e vida em abundância.

Em uma cultura na qual o planeta é agredido e sugados seus recursos; quando o corpo vivo da mãe e irmã terra se esteriliza e a ordem do universo se desordena pela inescrupulosa exploração da criação em nome da ganância e da exploração, a mística aponta para uma experiência de comunhão com essa mesma terra, tratando-a com o carinho de um esposo devotado, como Thomas Merton ou celebrando nela uma grande eucaristia como Teilhard de Chardin.

Em uma cultura onde reina a injustiça, a experiência mística ensina a não querer estar do lado dos vencedores, mas dos vencidos; a não desejar desfrutar das benesses do progresso enquanto há tantos que não têm acesso a elas. Leva a solidarizar-se com as vítimas da injustiça partilhando sua condição e sofrendo a mesma injustiça em sua própria pessoa.

Em uma cultura onde a violência impera e faz vítimas fatais todo dia e a toda hora, a experiência mística contemporânea ensina que o único lugar para estar é junto às vítimas, pois qualquer outra opção seria reforçar a posição dos algozes e carrascos. Antes, aquele ou aquela que experimentou a presença potente e amorosa de Deus como mistério santo, atravessa a violência e assume sobre si mesmo as consequências desta mesma violência, procurando construir uma paz que não é simplesmente ausência de guerras, mas amor ativo e redentor que a tudo restaura e renova a face da terra.

Conclusão

O que aqui foi dito da mística contemporânea se aplica diretamente ao cristianismo, mas não só. Como foi afirmado desde o início, a experiência mística na contemporaneidade não se dá apenas dentro das instituições e das igrejas, mesmo das instituições religiosas. Ela acontece em todo lugar onde homens e mulheres saem de si e ultrapassam os próprios limites para praticar o amor e transformar o mundo guiados por uma experiência de transcendência. Alguns e algumas vivem esse êxodo em seu cotidiano simples e sem muita visibilidade. Outros acedem à praça pública, expondo-se e arriscando a própria segurança e a própria vida.

Dentro ou fora da Igreja e das instituições religiosas, nelas comprometidos radicalmente ou às margens de suas fronteiras, os místicos nos ensinam que experimentar o mistério de Deus no meio do mundo conduz a uma paixão ardente por este mesmo mundo e a trabalhar sem cessar por sua redenção e transformação. Seja qual for seu estado de vida, sua condição social, suas capacidades intelectuais, os místicos e as místicas contemporâneos recolhem-se à câmara nupcial onde a experiência do amor acontece com plenitude e delícia para mergulhar de cheio na realidade desfigurada do mundo em que vivem, buscando configurá-la segundo o mistério do amor que experimentam como dom e graça.

Maria Clara Bingemer. PUC Rio. Texto enviado em 25/09/2022, aprovado em 25/10/2022 e postado em 30/12/2022.

Referências

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As origens do messianismo davídico na Bíblia

Sumário

Introdução

1 Messianismo: semântica e modalidades

2 Messianismo pré-exílico: ponto de partida de uma longa tradição

3 Messianismo pós-exílico: uma tradição em contínuo desdobramento

Referências

Introdução

Dentre os temas complexos dos estudos bíblicos, encontra-se o messianismo. Muito se escreveu e, ainda, se escreverá sobre ele. Na raiz do problema, está a impossibilidade de se resgatar o passado de Israel e recuperar sua história, no sentido moderno, de modo a se obter evidências seguras. Os textos bíblicos, no seu conjunto, são de caráter narrativo-teológico. Estão enraizados em contextos histórico-geográficos bem precisos, e respondem às muitas crises de fé do povo de Israel, para as quais pretendem oferecer uma chave de compreensão. A teologia narrativa, com a qual são revestidos, preocupa-se com o presente e se reporta ao passado na estrita medida em que se pode conectar ao momento dos narradores, em vista de descortinar um futuro. Portanto, seria equivocada a pretensão de reconstruir a história de Israel, com textos cuja pretensão única foi a de narrar a história de YHWH com seu povo. Igualmente, quando se trata do messianismo.

A complexidade agrava-se, ainda mais, quando se sabe que muitos estudiosos se deixam enredar por suas opções religiosas e ideológicas, defendidas a ferro e fogo. Passando à margem de uma leitura honesta do texto bíblico, com os métodos apropriados, cultivam posturas intolerantes e belicosas, quando se esperava que buscassem consensos, na pluralidade de abordagens, por se trabalhar a mesma tradição escriturístico-teológica.

Nosso objetivo consiste em mostrar como as narrativas histórico-bíblicas, de modo especial a Historiografia Deuteronomista, descrevem o nascimento do messianismo davídico, que foi tomando corpo na tradição histórica e profética de Israel, bem como, nos salmos, até o ponto de, no pós-exílio, não mais se esperar um rei pessoal, e sim um davidida escatológico e, mais difusamente, um tempo messiânico.

O messianismo desdobrou-se de variadas formas, “mas reteve ao mesmo tempo alguns traços característicos comuns” (SOUSA, 2009, p. 10). Entre eles: os messias apresentam-se como libertadores, enviados por YHWH, com uma missão junto ao povo; uma de suas principais tarefas consiste em restaurar o Reino de Davi, nos limites geográficos e com a grandeza de outrora; reerguerão o Templo de Jerusalém; restabelecerão a unidade das tribos dispersas pelo exílio babilônico e, por fim, farão com que a Torá recupere sua centralidade na vida do povo por se tratar do querer de YHWH (SILVA; SILVA, 2017, p. 252). Cada messias tem a pretensão de ser “o” Messias!

O messianismo bíblico assumiu duas distintas conotações. Antes do exílio, refere-se ao rei em exercício ou, caso se tratasse de um rei ímpio, do rei justo esperado. Quando Jeremias denuncia a impiedade do rei Joaquim (609-597 aC), em seu horizonte está o desejo de que lhe suceda um rei justo (Jr 22,13-19). Depois do exílio babilônico, em face da impossibilidade de se restaurar a dinastia davídica, dificultada pelos dominadores persas, as esperanças messiânicas serão sempre mais postergadas, até assumirem dimensões escatológicas. Assim se deve entender que “as sementes do messianismo estavam presentes no pensamento israelita desde tempos muito mais primitivos, embora não tenham brotado e florescido antes do período pós-exílico” (BARTON, 2005, p. 387).

Nosso percurso se deterá nos albores do pós-exílio, quando os retornados da Babilônia fazem um discreto ensaio de confiar a liderança dos judaítas, em fase de reconstrução das instituições de Israel, a um davidida nascido entre os exilados. Muita água passou debaixo da ponte, na sequência da história, dando origem a uma enorme gama de tradições messiânicas, tanto em Qumran, no judaísmo rabínico, na diáspora alexandrina, bem como no âmbito do que se convencionou chamar Novo Testamento, com a figura de Jesus de Nazaré transformado por seus discípulos em Messias: Jesus Cristo (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008).

Os ideais messiânicos, dos mais diferentes naipes, ultrapassam o mundo da tradição bíblica e se fazem presentes, de maneira tácita, nas esperanças cultivadas pelos seres humanos. Aqui e acolá, surgem personalidades, mormente políticas e religiosas, em quem são depositadas expectativas de coloração messiânica, como acontecia, outrora, com o esperado messias, tanto no pré quanto no pós-exílio. A leitura discernida dos textos bíblico-messiânicos recomenda-se, quando se trata de avaliar os candidatos a messias de todos os tempos, com aspirações de salvadores, quais enviados da divindade para iniciar um novo tempo, como se fora uma era escatológica. Os tempos de crise são propícios para o surgimento de messias, em contexto de anseios de salvação presentes nos corações humanos, encarnados em lutas sociopolíticas de libertação, com motivações religiosas ou não, às vezes, de cunho nacionalista. Nesse sentido, pode-se falar de um messianismo de cunho ateu, por vezes não menos militante que os messianismos de caráter religioso.

O pano de fundo dos messianismos apresenta-se como uma utopia, nunca totalmente alcançada, por se descortinarem sempre novos horizontes na medida em que se vai progredindo. Seria razoável dizer que nenhum ser humano ou comunidade seria capaz de viver, com dignidade, se abrisse mão de cultivar ideais messiânicos ao logo da caminhada. A experiência bíblico-cristã constitui-se num excelente paradigma!

1 Messianismo: semântica e modalidades

A palavra messianismo, que não ocorre no texto bíblico, reporta-se à raiz verbal hebraica mashah, com o significado de ungir. No âmbito da Bíblia, aponta para quem foi escolhido por Deus – hamashiah – para assumir tarefas bem concretas e especiais, em consonância com a prática das monarquias no Antigo Oriente Próximo, adaptada ao javismo israelita. “Mesmo sendo devedor de religiões anteriores, como egípcia, babilônica e zoroastrismo, o messianismo, no antigo Israel, adquiriu contornos únicos e definidos” (SILVA; SILVA, 2017, p. 250).

O messianismo não está tão presente no Antigo Testamento como acontece no Novo Testamento.

No Antigo Testamento, encontram-se trinta e nove usos da palavra mashiah. Na maioria das vezes, designam o rei. Não se deve admirar que se encontrem essencialmente no livro de Samuel (quinze ocorrências), onde a unção dispensada pelo profeta sucessivamente a Saul, depois a Davi, tem sua importância por se tratar da consagração dos primeiros reis. Para o Segundo Isaías (45,12), o “ungido” é um soberano estrangeiro, o conquistador persa Ciro, que permite aos exilados de Judá voltarem a Jerusalém. (HADAS-LEBEL, 2006, p. 53)

O rei, de modo muito particular, recebe a unção como forma de consagração para a tarefa que lhe compete. “A unção é um rito religioso. Está acompanhada de uma vinda do Espírito. Diríamos que ela confere uma graça”, eis porque “o rei, pessoa consagrada, participa assim da santidade de Deus. Ele é inviolável” (DE VAUX, 1982, p. 161). Pode-se dizer que todo rei, por ser ungido, ao subir ao trono, torna-se messias, considerando-se a etimologia da palavra. Todos quantos recebem a unção são revestidos de identidade messiânica! Entretanto, a unção dos reis, no contexto bíblico, tem relevância especial. Fala-se da unção de Saul (1Sm 10,1; 24,7), Davi (1Sm 16,12-13), Salomão (1Rs 1,34-40), Hazael (1Rs 19,15), Jeú (1Rs 19,16; 2Rs 9,6), Joás (2Rs 11,12) e Joacaz (2Rs 23,30) (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 23).

Quando desaparece a monarquia em Israel, os sumos-sacerdotes recebem a unção; mais tarde, todos os sacerdotes (DE LA POTTERIE, 1977, col. 1049). Quanto aos profetas, só se fala de Elias recebendo a ordem divina de ungir Eliseu como seu sucessor (1Rs 19,16). Sir 48,8 recorda esse fato, ao exaltar o profeta Elias: “ungiste reis como vingadores e profetas para suceder-te”. Por sua vez, Is 61,1 – “YHWH me ungiu” – alude à unção do profeta anônimo do exílio, no início do ministério. Todavia, se trata de unção com caráter simbólico-espiritual, não propriamente física. “O Messias aparece na maioria dos casos como um rei, geralmente de ascendência davídica, com influência na esfera política e religiosa (indissoluvelmente unidas)”; no Antigo Testamento, a palavra jamais é usada “como título para referir-se a ‘um rei salvador dos últimos tempos’” (SICRE, 1995, p. 17,18).

O rito da unção dos novos reis indica o poder que YHWH lhes concede em vista de uma missão (1Sm 10,1-10; 16,13). Pode, igualmente, ser entendido como uma forma de adoção – “Tu és meu filho, eu hoje te gerei” (Sl 2,7) –, que os reveste de grandeza especial e de inviolabilidade (1Cr 16,22; 2Cr 6,42; Sl 105[104],15), a ponto de poderem ser considerados presença de Deus ou, pelo menos, seu lugar-tenente no meio do povo.

O sentido específico do vocábulo messianismo aponta para a expectativa da chegada do Messias (em grego, christós; em português, ungido) que, revestido de autoridade divina, apresenta-se como portador de salvação histórica para o povo, em tempos difíceis de opressão. Portanto, tem conotações positivas de esperança ao descortinar um tempo alvissareiro, no qual terão fim a dor, o sofrimento e toda sorte de violência, pela intervenção divina por meio do ungido por YHWH. “No sentido judaico estrito, o messianismo é a expectativa de um descendente do rei Davi (um davidida) para o final dos tempos” (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 13).

No Antigo Testamento, o vocábulo messias ocorre, mormente, em 1 e 2Sm (15 vezes), referido à unção dos primeiros reis de Israel, Saul e Davi. Is 45,1 aplica-o a Ciro, conquistador persa que haveria de permitir o retorno dos israelitas exilados a Jerusalém. Lv 4,3.5.16; 6,15 refere-se ao sumo-sacerdote como messias. Em Hab 3,13 e Sl 28,8, trata-se do povo de Israel. As alusões ao messias davídico, em Sl 2,2; 18[17],51; 20[19],7; 105[104],15, apontam para a esperança colocada em um rei humano, sem conotação escatológica. Em momento algum se pensa em uma figura que descortinaria uma era de salvação, como ocorrerá nas expectativas messiânicas forjadas ao longo da história do judaísmo. Embora servindo-se de mediações humanas, em última análise, YHWH apresenta-se como o autor da salvação em benefício do seu povo. Se algo aconteceu ou acontecerá, a ele se deve atribuir a autoria. YHWH apresenta-se como o realizador da salvação-libertação, não o messias, embora esse possa ser o anunciador da obra divina.

Num sentido aberto, o messianismo relaciona-se com a escatologia, a consumação dos tempos, onde a figura do Messias assume um lugar secundário num “messianismo sem messias”, por se visar um tempo novo na caminhada da humanidade, para além dos tormentos do presente. “‘Messianismo’ se tornou desse modo um conceito geral para muitas representações escatológicas e apocalípticas que tinham diferentes origens e funções” (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 18).

No âmbito da tradição bíblica, o Messias assumiu três modalidades: rei, profeta e Filho do Homem, cada qual sublinhando um elemento de sua ação e de sua identidade. O messias rei foca a dimensão político-social (Is 11,1-9). O messias profeta tem uma palavra da parte de YHWH, no sentido de chamar o povo à conversão e dispô-lo para agir em conformidade com o querer divino (Jr 7,1-15). O Filho do Homem assume uma dimensão celeste, pois desce do céu para instaurar o projeto de Deus na história (Dn 7,13-14).

2 Messianismo pré-exílico: ponto de partida de uma longa tradição

Na origem do messianismo bíblico está a ideia do messias rei, ligada à casa de Davi, cuja eternidade foi garantida por YWHW: “a tua casa e a tua realeza subsistirão para sempre diante de ti, e o seu trono se estabelecerá para sempre” (2Sm 7,16). De fato, “no Antigo Testamento, a ideologia régia é a principal responsável pela posterior elaboração da expectativa messiânica” (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 33). “Se Israel não tivesse tido reis, nunca teria chegado a formular a ideia messiânica. Ainda que tivesse havido reis, sem a figura de Davi e a promessa de uma dinastia eterna tampouco teria surgido o messianismo em Israel” (SICRE, 1995, p. 18).

Davi foi ungido por Samuel, em conformidade com o mandado divino: “YHWH disse-lhe: ‘Levanta-te e unge-o: é ele!’ Samuel apanhou o vaso de azeite e ungiu-o na presença dos seus irmãos. O espírito de YHWH precipitou-se sobre Davi a partir desse dia e também depois” (1Sm 16,13). Davi era ainda menino, sem qualquer peso social. Mais tarde, as tribos de Israel, reunidas em Hebron, “ungiram Davi como rei em Israel” (2Sm 5,5) de modo a confirmar o gesto de Samuel.

Todavia, alusões à realeza em Israel poderiam já ocorrer em Gn 49,10, mesmo sem a ocorrência da palavra messias: “o cetro não se afastará de Judá, nem o bastão de chefe de entre seus pés”, e Nm 24,7.17: “um herói surge na sua descendência, e domina sobre muitos povos. Seu rei é maior que Agag, seu reinado se exalta. […] Um astro procedente de Jacó se torna chefe, um cetro se levanta, procedente de Israel” (COPPENS, 1967, p. 153-179). No período dos juízes, Abimelec foi “proclamado rei perto do carvalho da estela que está em Siquém” (Jz 9,6), numa tentativa de introduzir um novo modelo de liderança das tribos. Seu irmão Joatão denunciou a loucura da opção por meio de uma fábula (Jz 9,7-15) que descreve uma assembleia de árvores para escolher quem haveria de liderá-las (Jz 9,16-21). Uma escolha equivocada tem sérias consequências!

As lideranças das tribos pressionaram Samuel para lhes conceder um rei, quiçá descontentes com a maneira precária como se exercia a liderança entre elas: “agora, portanto, constitui sobre nós um rei, que exerça a justiça entre nós, como acontece em todas as nações” (1Sm 8,5). O pedido e a motivação desagradaram a Samuel (1Sm 8,6). Por um lado, YHWH era o rei de Israel; por outro, Israel não era um povo como os outros e sim o povo escolhido por Deus. Pedir um rei significava rebelar-se contra YHWH e recusar a se deixar guiar por ele. Todavia, uma ordem divina orientou Samuel a atender o pedido do povo. YHWH revelou o verdadeiro sentido do que se passava: “não é a ti que eles rejeitam, mas é a mim que rejeitam, porque não querem mais que eu reine sobre eles” (1Sm 7,7).

YHWH consente em atender o desejo do povo. Entretanto, ordena a Samuel: “mas, solenemente, lembra-lhes e explica-lhes o direito do rei (mishpat hamelek) que reinará sobre eles” (1Sm 8,9). Samuel o faz, descrevendo o rei com tintas carregadas (1Sm 8,11-17) e alertando para a inconveniência de terem se colocado na contramão de YHWH, o verdadeiro Rei de Israel. “Então, naquele dia, clamareis contra o rei que vós mesmos tiverdes escolhido, mas YHWH não vos responderá naquele dia” (1Sm 8,18). Mesmo assim, o povo permaneceu irredutível no seu intento.

YHWH ordena, então, a Samuel: “escuta a voz deles e faze reinar sobre eles um rei” (1Sm 8,22). Começa, pois, uma nova etapa na vida do povo de Israel, com a novidade de terem um rei (melek) à sua frente, de modo a obscurecer a liderança divina. “De agora em diante, será o rei quem marchará à vossa frente” (1Sm 12,2). Em outras palavras, um messias seria o rei de Israel. Davi se refere a Saul como messias (1Sm 24,7.11; 26,16); e pune com morte o estrangeiro amalecita que deu o golpe de misericórdia no moribundo Saul, “ungido de YHWH”, a pedido dele mesmo (2Sm 1,14.16). Abisai propõe a pena de morte para Semei, que amaldiçoou Davi, o “ungido de YHWH” (2Sm 16,5-14; 19,22). O título é aplicado a Davi, também, com a expressão “ungido do Deus de Jacó” (2Sm 23,1).

A unção de Saul, o primeiro rei, aconteceu por iniciativa de Samuel, orientado pela “palavra de YHWH”, como se o próprio YHWH o estivesse ungindo. Porém, o narrador não se refere a Saul como rei (melek), consequentemente ungido, e sim como comandante (nagid) (1Sm 9,27–10,1). Chamando-o de nagid, de certo modo, o narrador bíblico passa a impressão de não o considerar um autêntico “messias”, dignidade reservada a Davi. No período pré-monárquico, os líderes das tribos, chamados de juízes (sofetim), recebiam a vocação divina e passavam à ação sem o rito da unção.

Davi, por sua vez, foi ungido por Samuel quando ainda era criança, pois YHWH se arrependera de ter instituído Saul como rei (1Sm 15,11) e já havia encontrado “um homem conforme ao seu coração, e o instituiu como comandante (nagid) do seu povo” (1Sm 13,14). O pequeno Davi foi chamado às pressas, num momento em que cuidava do rebanho de seu pai, tendo sido rejeitados seus sete irmãos adultos (1Sm 16,10). Ao chegar, YHWH disse a Samuel: “levanta-te e unge-o, pois é ele!” Então, “Samuel apanhou o vaso de azeite e o ungiu na presença de seus irmãos. O espírito de YHWH precipitou-se sobre Davi a partir desse dia e também depois” (1Sm 16,12-13). No começo efetivo de sua missão, Davi, adulto, recebe uma segunda unção: “vieram os homens de Judá e ali ungiram Davi como rei (melek) sobre a casa de Judá” (2Sm 2,4). Recebe, ainda, uma terceira unção, que faz dele rei sobre todas as tribos de Israel: “todos os anciãos de Israel vieram, pois, até o rei (melek), em Hebron, e o rei Davi concluiu com eles um pacto em Hebron, na presença de YHWH, e eles ungiram Davi como rei em Israel” (2Sm 5,3).

O narrador bíblico considera Davi, de fato, o primeiro rei em Israel. A tríplice unção, não repetida para nenhum outro rei, aponta nessa direção. Por outro lado, a forma como descreve o personagem Saul, reduzindo-o em importância, dá a impressão de que, afinal, foi uma espécie de meio-termo entre os juízes e o rei Davi. A profecia de Natan (2Sm 7,4-17), anunciadora da perpetuidade da realeza em Israel, de fato, refere-se a Davi e à sua descendência, ao declarar: “quando os teus dias estiverem completos e vier a dormir com teus pais, farei permanecer a tua linha após ti, aquele que terá saído das tuas entranhas e firmarei a sua realeza” (2Sm 7,12).

A unção de Salomão, realizada num contexto de intriga palaciana, dá sequência à série de unção dos reis de Israel. O poder começou a escapar da mão de Davi, já “velho e com idade avançada” (1Rs 1,1). Dois partidos entram em conflito para tomá-lo. De um lado, está Adonias, filho do rei, que se gabava, juntamente com seus partidários, dizendo: “sou eu que vou reinar (malak)!” (1Rs 1,5). Doutro lado, o profeta Natã com Betsabeia, mãe de Salomão, articula-se para frustrar os planos de Adonias e obter o trono para Salomão. A artimanha consistiu em cobrar do decrépito Davi uma suposta promessa feita a Betsabeia: “teu filho Salomão reinará depois de mim e é ele quem se sentará no meu trono” (1Rs 1,19). Porém, nenhuma informação se dá ao leitor da existência de tal promessa e seu contexto. O rei deixa-se convencer, ordenando: “como te jurei por YHWH, Deus de Israel, que teu filho Salomão haveria de reinar (malak) depois de mim e se sentaria em meu lugar no trono, assim o farei hoje mesmo” (1Rs 1,30). Ato contínuo, determina a unção real de Salomão, a ser realizada pelo sacerdote Sadoc, acompanhado pelo profeta Natã e pelo general Banaías: “o sacerdote Sadoc apanhou na Tenda o chifre de óleo e ungiu Salomão. Soaram a trombeta e todo o povo gritou: ‘viva o rei Salomão’” (1Rs 1,39).

Tendo recebido o reino de mão beijada, Salomão se mostra extremamente ativo, seja eliminando os cabeças do partido contrário (1Rs 2,26-46a), de modo que “a realeza se consolidou em suas mãos” (1Rs 2,46b), seja dando mostras de esperteza política (1Rs 1,1–2,46), de ser amigo de Deus (1Rs 3,1-15; 8,14-61; 9,1-9), de ter senso de justiça (1Rs 3,16-28), de ser sábio (1Rs 5,9-14; 10,1-13), de ser exímio construtor (1 Rs 5,15–6,14) e de ser um rico comerciante (1Rs 10,14-29).

No entanto, um passo em falso levou-o à ruína. A grandeza de seu reino resultou de uma extensa política de alianças, que o texto bíblico indica quando se refere ao seu hiperbólico harém: “teve setecentas mulheres princesas e trezentas concubinas, e suas mulheres desviaram seu coração” (1Rs 11,3). Construiu templos para as divindades nacionais de suas mulheres e concubinas, chegando ao cúmulo de prestar-lhes culto (1Rs 11,5-8). YHWH irrita-se com tal desvio de conduta (1Rs 11,9-10) e decide: “vou tirar-te o reino e dá-lo a um de teus servos” (1Rs 11,11).

Tem, então, início a derrocada do Reino de Israel, já nos seus albores, por infidelidade de seu messias. O narrador bíblico conta com detalhes uma história que culminou na deportação do rei Joaquin (597 aC) para a Babilônia, juntamente com “todos os dignitários e todos os notáveis, dez mil exilados, e todos os ferreiros e artífices, só deixando a população mais pobre da terra” […] “todos os homens valentes, em número de sete mil, e todos os homens capazes de empunhar armas”, levando, também, “os tesouros do Templo de YHWH e os tesouros do palácio real, além de quebrar todos os objetos de ouro que Salomão, rei de Israel, havia fabricado para o Templo de YHWH, como YHWH havia anunciado” (2Rs 24,13-17). Um messias espúrio, Sedecias, foi colocado no lugar do rei exilado (2Rs 24,17).

Na sequência dos fatos, acontece uma segunda deportação (587 aC) – “Judá foi exilado para longe de sua terra” (2Rs 25,21b) –, no rastro do saque e da destruição do Templo de YHWH (2Rs 25,13-17) e da matança dos assessores da corte (2Rs 25,18-21a). Quanto ao rei Sedecias, imposto pelos dominadores, foi agarrado e levado a Rebla, onde estava o quartel general dos babilônios, à presença de Nabucodonosor, que o submeteu a julgamento. “Mandaram degolar os filhos de Sedecias na presença dele, depois Nabucodonosor furou os olhos de Sedecias, algemou-o e o conduziu para a Babilônia” (2Rs 25,6).

A narrativa que vai do Livro de Josué até o Segundo Livro dos Reis, conhecida como Historiografia Deuteronomista, conclui-se com uma cena intrigante. O rei babilônico Evil-Merodac, quando subiu ao trono, anistiou Joaquin, o rei de Israel exilado, tirando-o da prisão. “Falou-lhe benignamente e deu-lhe um trono mais alto que o dos outros reis que estavam com ele na Babilônia. Jeconias (Joaquin, 2Rs 24,6.8) deixou suas vestes de prisioneiro e passou a comer sempre na mesa do rei, por toda a vida. Seu sustento foi garantido constantemente pelo rei, dia após dia, enquanto viveu” (2Rs 25,29).

Joaquin, na convicção do povo, era o autêntico rei de Israel, o messias, por Sedecias carecer de legitimidade. Sua sobrevivência, em terras estrangeiras, apontava para a esperança da restauração da realeza davídica, na linha da profecia de Natã (2Sm 7,1-17), onde YHWH declara a eternidade da casa de Davi, v. 16: “a tua casa e a tua realeza subsistirão para sempre diante de ti, e o seu trono se estabelecerá para sempre” (Sl 18[17],51).

A esperança é simbolizada, na Historiografia Deuteronomista, com uma lâmpada (ner) que não deve se apagar. Tal lâmpada seria o rei, messias, de Israel (2Sm 21,17; 1Rs 11,36; 1Rs 15,4; 2Rs 8,19; cf. 2Cr 21,7; Sl 132[131],17). A sobrevivência de Joaquin pode ser entendida como a conservação da lampadazinha de Israel, que haveria de voltar a brilhar em todo seu esplendor. Afinal, a profecia de Natã comportava uma cláusula importante, no tocante à eventual infidelidade do rei-messias, válida tanto para Salomão quanto para seus sucessores: “se ele fizer o mal eu o corrigirei com varas e golpes humanos, porém não romperei minha aliança com ele. […] Tua casa e teu reino permanecerão para sempre na minha presença; teu trono durará eternamente” (2Sm 7,14-16; Sl 89[88],29-38) (ALVES, 2015, p. 67-84).

3 Messianismo pós-exílico: uma tradição em contínuo desdobramento

A profecia de Natã está na origem da continuidade do messianismo davídico no pós-exílio. A certeza de que a realeza correspondia ao projeto de YHWH motivou os israelitas a buscarem os meios de restaurá-la após a tragédia do exílio babilônico. “Se nunca tivesse havido monarquia em Israel, e se ela não tivesse assumido a alta posição ideológica que, com frequência, os profetas de fato criticavam, dificilmente o messianismo teria criado raízes” (BARTON, 2004, p. 389).

Uma esperança despontou no horizonte, quando o rei persa, Ciro, venceu os babilônios, em 539 aC, e, no ano seguinte, publicou o Édito em que permitia a volta dos exilados (Esd 1,1-11). Esse expediente corresponde ao modelo persa de dominação que consistia em captar a benevolência dos povos vassalos, agindo com violência apenas em caso de insubordinação.

Todavia, ao retornar à terra, não foi dado aos exilados o direito de restabelecer a realeza, com a indicação de um rei para o trono de Davi, de certo modo, vago desde a deportação de Joaquin. No relato bíblico, Ciro se reconhece encarregado pelo próprio YHWH para construir um templo ao “Deus de Israel” (Esd 1,3). Daí ter promovido uma coleta de fundos para levar a cabo a obra: “que todos os sobreviventes, em toda parte, a população dos lugares onde eles moram tragam uma ajuda em prata, ouro, bens, animais e donativos espontâneos para o Templo de Deus que está em Jerusalém” (Esd 1,4). Nada se diz a respeito de quem haverá de liderar o trabalho de reconstrução, com a possibilidade de ser considerado rei-messias. No entanto, a chama do messianismo permanece viva como brasas escondidas sob as cinzas.

O pós-exílio abre novas perspectivas para o messianismo em Israel (CARVALHO, 2000, p. 33-37). Os olhares se voltam para Zorobabel, neto de Joaquin, o rei que morreu no cativeiro. 1Cro 3,17-19 elenca, entre os “filhos de Jeconias, o cativo: Salatiel, seu filho”, pai de Fadaías, pai de Zorobabel. Todavia, a tradição mais difundida fala de Zorobabel, filho de Salatiel (Esd 3,2; Ag 1,1; Ne 12,1; Mt 1,12; Lc 3,27). A etimologia do nome, “broto de Babel”, dá a entender que nasceu durante o cativeiro na Babilônia. “Foi celebrado como o rei salvífico esperado” (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 45). De fato, tratava-se de um davidida autêntico, motivo pelo qual, “sem dúvida, os persas, segundo o seu costume, o constituíram governador” (VAN DEN BORN, 1977, col. 1580). Dt 17,14-20, a lei do rei, pode ser entendido como baliza para a ação do novo davidida a ocupar o trono, praticamente vacante desde o exílio de Joaquin. A submissão à Lei mosaica (Dt 17,18-20), em vista de se evitarem futuros desastres, haveria de ser a marca registrada do ethos do novo monarca de Israel (Ez 34,23-24; 37,24-25), sempre se recordando que YHWH haveria de ser o verdadeiro rei de Israel!

O profeta Ageu dá-se conta de que os olhares de YHWH se voltam para ele: “naquele dia, oráculo de YHWH dos Exércitos, eu tomarei Zorobabel, filho de Salatiel, meu servo, oráculo de YHWH, e farei de ti como um sinete (hotam). Porque foi a ti que eu escolhi, oráculo de YHWH dos Exércitos” (Ag 2,23). Cabia-lhe um papel indispensável na nova realidade política que estava para despontar em Israel, já que reunia em si duas qualidades essenciais: era membro da dinastia davídica, além de ser credenciado pelas autoridades persas. Uma esperança messiânica real se apodera do povo!

O profeta Zacarias aplica a Zorobabel o título de “rebento” (simhah), que “carregará insígnias reais, sentará em seu trono e dominará. Haverá um sacerdote à sua direita. Entre os dois haverá perfeita paz” (Zc 6,13) (RINALDI, 1966). Em Zc 3,8, o mesmo título já lhe havia sido atribuído: “eis que vou introduzir o meu servo ‘Rebento’”, cuja origem remonta a Jr 23,5: “eis que dias virão, oráculo e YHWH, em que suscitarei a Davi um rebento justo. Um rei reinará e agirá com inteligência e exercerá na terra o direito e a justiça”. Essa afirmação repete-se em Jr 33,15 (Is 4,2; 11,1). O rei-messias fará sua entrada triunfal em Jerusalém entre gritos de alegria, “justo e vitorioso, humilde, montado sobre um jumento, sobre um jumentinho, filho da jumenta” (Zc 9,9; Gn 49,11; Jz 5,10; 10,4; 12,14; 2Sm 19,27), com a tarefa de suplantar a guerra e “anunciar o shalom às nações”, em seu domínio que “irá de mar a mar e do rio às extremidades da terra” (Zc 9,10); em termos geográficos, o espaço que vai do mar Mediterrâneo ao rio Eufrates.

O profeta Ageu reconhece Zorobabel como “governador de Judá” (pehah yehudah – Ag 1,1.14; 2,2.21). Não poderia chamá-lo de rei (melek), pelas circunstâncias, apesar de desempenhar funções próprias de quem detém o poder real. A tarefa principal que lhe foi conferida, bem como a Josué, sumo-sacerdote, pelo oráculo do profeta Ageu, dizia respeito à reconstrução do Templo, reduzido a ruínas pelos babilônios (Ag 1,3-11). A ordem divina foi prontamente obedecida, de modo que “eles vieram e se entregaram ao trabalho no Templo de YHWH dos Exércitos, seu Deus” (Ag 1,14). A preocupação com a reconstrução do Templo tem a ver com um desejo dos retornados do exílio, com recomendações expressas da autoridade persa para fazê-lo (Esd 1,3-4), e com a pressão do sumo-sacerdote Josué, companheiro de Zorobabel. Porém, pode-se suspeitar tratar-se de uma estratégia de Zorobabel para engajar o povo numa tarefa comum, um grande mutirão, capaz de arrefecer os conflitos entre os que voltaram do exílio e queriam se impor e os que permaneceram na terra, padecendo as agruras de viver em meio a ruínas.

O tempo passou e não se conseguia restaurar a realeza nos moldes davídicos. Depois de Zorobabel, não houve quem assumisse a liderança de Judá enquanto descendente de Davi, dando ao cargo colorido real. Por sua vez, o Templo passou a ocupar o lugar outrora reservado ao palácio real. Em consequência, o sumo-sacerdote, bem como sua família, destacou-se sempre mais, de modo a relegar ao segundo plano a esperança, para breve, da ascensão de um davidida que se assentasse no trono vacante, desde que o último rei legítimo, Joaquin, fora levado à força para a Babilônia, onde morreu.

Com o exílio, a linha dos davididas foi interrompida, e a unção, por consequência, suspensa. Mas, apesar das experiências negativas com a monarquia, permaneceu a lembrança positiva, que foi reformada como uma boa expectativa do rei, a qual pareceu se realizar inicialmente sob Zorobabel, sendo em seguida frustrada e transformada numa expectativa indeterminada de um Davi redivivus. No início, essa expectativa não era messiânica, na medida em que não prognosticava nada senão que o sistema hierocrático pós-exílico seria sucedido pela tomada de poder de um davidida. (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 30)

Nascem daqui duas vertentes de esperança. Na vertente apocalíptica, passou-se a esperar a volta de Davi. Jr 30,8-9, uma glosa, aponta nessa direção: “neste dia – oráculo de YHWH dos Exércitos –, […] Israel e Judá servirão YHWH, seu Deus, e a Davi, o rei (melek) que suscitarei para eles”; bem como Ez 34,23-34: “suscitarei para eles um pastor que os apascentará, a saber, o meu servo Davi: ele os apascentará, ele lhes servirá de pastor. E eu, YHWH, serei o seu Deus e meu servo Davi será príncipe (nashi’) entre eles”; Os 3,5: “depois disso, os israelitas voltarão e procurarão YHWH, seu Deus, e a Davi, seu rei (melek). Voltarão tremendo a YHWH e a seus bens no fim dos dias”.

Na vertente escatológica, foi dada ao messias uma projeção para além do tempo e do espaço, ao se falar da situação dramática de “YHWH e seu messias”, às voltas com conspirações perpetradas pelos povos (Sl 2,2). YHWH, no entanto, mantém-se firme na proteção de seu eleito: “fui eu que consagrei o meu rei (melek), sobre Sião, minha montanha sagrada!” (Sl 2,6), na condição de filho (ben): “publicarei o decreto de YHWH, que me disse: ‘Tu és meu filho, eu hoje te gerei. Pede e te darei as nações como herança, os confins da terra como propriedade. Tu as quebrarás como um cetro de ferro. Como um vaso de oleiro as despedaçarás’” (Sl 2,7-9). O Sl 72[71], por sua vez, prospectando o futuro rei, pede a YHWH: “concede ao rei (melek) teu julgamento e a tua justiça ao filho do rei; que ele governe teu povo com justiça, e teus pobres conforme o direito […] com justiça, julgue os pobres do povo, salve os filhos do indigente e esmague seus opressores” (v. 1-3), de modo a serem evitados os equívocos dos reis de outrora. Em alusão a 2Sm 7,4-17, pede-se: “que seu nome permaneça para sempre, e sua fama dure sob o sol” (Sl 72[71], 17). O Sl 110[109] retoma o tema do messianismo, agora, com uma conotação sacerdotal, ao declarar: “tu és sacerdote (kohen) para sempre segundo a ordem de Melquisedeque” (v. 4). Esse, referido em Gn 14,18-20, apresenta-se como sacerdote sem genealogia, embora seja “sacerdote do Deus altíssimo”, bem como “rei de Salém” (Jerusalém?) (v. 18). Logo, o rei futuro não será da estirpe davídica, embora sua entronização seja “para sempre” e sua base de ação seja Jerusalém-Sião: “de Sião, YHWH estende teu cetro poderoso (mateh ‘oz) e dominas (radah) em meio aos teus inimigos” (v. 2). A referência ao rei-sacerdote Melquiseque, no Salmo, chama a atenção para as tarefas cultuais exercidas pelos reis de outrora (2Sm 6,17; 1Rs 8,62-63; 12,32-33; 2Rs 16,12-13).

Em virtude de sua posição especial diante de Iahweh […] decorrente da natureza sagrada de sua realeza; […] para o rei, não há como fugir à responsabilidade da mediação, não há como escolher não ser sacerdote ou não desempenhar deveres sacerdotais. (ROOKE, 2005, p. 201.206)

De certa forma, o messias davidida será um rei original, que descortinará um tempo novo para o Povo de Israel. O Sl 110[109],3 sublinha a vocação messiânica do novo rei, chamado para tal missão desde os albores de sua existência: “a ti o poder (hayil) desde o nascimento, as honras sagradas desde o seio (meroham), desde a aurora da tua juventude”.

Também, Is 8,23b–9,6 serve de chave para compreender o messianismo régio que surgiria das cinzas do exílio babilônico (VITÓRIO, 2015, p. 27-34). As expectativas recaem sobre um recém-nascido, a quem cabe dar continuidade à dinastia davidida: “um menino (yeled) nos nasceu, um filho (ben) nos foi dado. Ele recebeu o poder (misrah) sobre seus ombros” (Is 9,4), para reinar “sobre o trono de Davi e sobre o seu reino”, a fim de “firmá-lo e consolidá-lo sobre o direito e sobre a justiça” (9,6bc). Uma série de títulos capacitam-no para o exercício de sua missão: “conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno e príncipe da paz” (9,5b). Volta o tema da eternidade, na afirmação: “desde agora (me’atah) e para sempre (`ad `olam), o amor ciumento de YHWH dos Exércitos fará isso” (9,6d). “Num rei humano o profeta deposita sua esperança de que ele governe o povo de modo admirável, o acolha com afeto de pai, o defenda corajosamente, instaure uma época de paz e bem-estar” (SICRE DÍAZ, 2012, p. 432).

Is 11,1-9 pode ser lido na perspectiva dessa esperança messiânica, em face do fracasso dos reis de Israel, cuja linha sucessória foi suspensa por ocasião do exílio babilônico. “A esperança de restauração talvez tenha sido formulada durante o exílio ou nos anos finais do século VI, durante o governo de Zorobabel” (SICRE DÍAZ, 2012, p. 435). O profeta tem em mente a metáfora de uma árvore cujo tronco foi cortado, de modo a sobrar, apenas, um toco do qual nasce um pequeno broto. A declaração “um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes” (v. 1) liga o renascimento da realeza em Israel com o tronco davídico ancestral, embora sendo uma novidade. Na sequência, o profeta descreve a identidade carismática do rei-messias (v. 2-3a), seu modo de atuação (v. 3b-5), bem como o resultado em forma de uma sociedade onde a solidariedade seja a marca das relações interpessoais, na busca de entendimento entre partes contrapostas (v. 6-9a). Ação benéfica do rei-messias se difundirá para além dos limites de Israel e seu povo, para atingir a terra inteira: “a terra ficará cheia do conhecimento de YHWH, como as águas enchem o mar” (v. 9b). “Em nenhum destes textos se utiliza o termo Messias, mas as referências à casa de David e ao seu papel de liderança constituem sempre a pedra fundamental sobre a qual se edifica a esperança” (CARVALHO, 2000, p. 33).

A profecia isaiana refere-se, ainda, ao messianismo davídico: “o trono se firmará sobre a misericórdia, e sobre ele, na tenda de Davi, sentar-se-á um juiz (sofet) fiel, que buscará o direito e zelará pela justiça” (Is 16,5). Como se vê, o juiz exercerá as funções de um rei, “quando a opressão tiver cessado, a devastação tiver terminado e os que espezinham a terra tiverem desaparecido” (Is 16,4b). Is 32,1-5, ao declarar que “um rei reinará de acordo com a justiça”, pode ser lido numa perspectiva messiânica (BARTON, 2005, p. 389). Is 55,3b faz uma alusão à perpetuidade da dinastia davídica, conforme as promessas de 2Sm 7,4-17, a única referência no Dêutero-Isaías que jamais se refere à restauração da monarquia: “farei convosco uma aliança eterna (berit olam), assegurando-vos as graças prometidas a Davi”.

Às profecias de Isaías soma-se uma profecia de Miqueias que fala, igualmente, de um recém-nascido destinado a exercer funções régias (Mq 5,1-4a). Originário de Belém-Éfrata, como o rei Davi, terá a função de governar (masal) Israel (v.1). Vale notar que não terá raízes no davidismo de Jerusalém, já que provirá do interior, do “menor entre os clãs de Judá”. Por outro lado, não será conhecido como rei (melek) e sim como governante (mosel). Assim, ao mesmo tempo em que afirma a continuidade com a dinastia davídica, “suas origens são de tempos antigos, de dias imemoráveis” (v. 5b), referindo-se “ao momento histórico de Davi, distante já há vários séculos” (SICRE DÍAZ, 2012, p. 437), se estabelece uma ruptura para frisar a novidade de um novo começo, por se assemelhar a um pastor que cuida do seu rebanho: “ele se erguerá e apascentará o rebanho” (v. 3a). Será um rei-pastor! Como sempre aconteceu, em tudo, na história do Povo de Israel, o grande artífice da reviravolta histórica será o seu Deus, pois tudo sucederá “pela força (`oz) de YHWH, pela glória (ga`on) do nome de seu Deus” (v. 3,b). A profecia de Miqueias, portanto, “anuncia a vinda de um verdadeiro chefe e pastor, idêntico ao Davi idealizado e deformado pela tradição, transformado numa figura quase mítica, muito distante da realidade histórica” (SICRE DÍAZ, 2012, p. 437).

A profecia de Jeremias comporta oráculos alusivos a uma restauração atemporal da realeza em Israel, nos moldes davídicos. Jr 33,14-16 declara:

eis que virão dias, oráculo de YHWH, em que cumprirei a promessa que fiz à casa de Israel e à casa de Judá. Naqueles dias, naquele tempo, farei germinar para Davi um germe de justiça, que exercerá o direito e a justiça na terra. Naqueles dias, Judá será salvo e Jerusalém habitará em segurança. E este é o nome com que a chamarão “YHWH, nossa Justiça”.

Segue-se uma palavra calcada na profecia de Natã (2Sm 7,4-17): “porque assim disse YHWH: não faltará a Davi um descendente que se sente no trono da casa de Israel”. Jr 17,25 antevê que “entrarão pelas portas desta cidade reis e príncipes, que se sentarão sobre o trono de Davi”. Ou, então, Jr 33,22: “como o exército dos céus que não pode ser enumerado, como a areia do mar que não pode ser contada, assim multiplicarei a posteridade de Davi, meu servo”. Embora não seja possível precisar quando e quem, o refazimento da dinastia davídica torna-se inquestionável.

O profeta Ezequiel segue na mesma direção, quando, ao prospectar a reunificação dos reinos de Israel e de Judá, anuncia que “haverá um só rei para ambos” (Ez 37,22). E, mais, “o meu servo Davi será rei sobre eles, e haverá um só pastor para todos” (Ez 33,24), como fora dito, anteriormente, “suscitarei para eles um pastor que os apascentará, a saber, o meu servo Davi que os apascentará e lhes servirá de pastor. Eu, YHWH, serei o seu Deus e meu servo Davi será príncipe entre eles” (Ez 34,23-24). A imagem do pastor servirá para se compreender a relação do rei com o povo, a exemplo de como YHWH cuidou com carinho de Israel, golpeado pelo exílio e disperso entre os povos (Is 40,11; Jr 31,10; Ez 34,1-31). Imagem semelhante encontra-se em Jr 23,1-4; 31,10; 37,24, bem como no Sl 23[22]. Essa metáfora messiânica será retomada pelo evangelista João, ao falar de Jesus como pastor (Jo 10,1-21) que, pregado na cruz, foi declarado “o rei dos judeus” (Jo 18,33).

Conclusão

Esses e outros textos da tradição bíblica de Israel, alusivos a um rei-messias e sua ação na total fidelidade a YHWH, quando o trono de Davi estava vacante, passaram a não visar mais uma pessoa concreta e imediata.

Gradualmente, a crítica tecida – principalmente pelos profetas – aos reis desembocou em uma expectativa de uma figura idealizada de um rei vindouro. A concretude das concepções iniciais de monarquia passa então a se tornar cada vez mais utópica e investida de características sobrenaturais e sobre-humanas. (SOUZA, 2009, p. 10)

No início, o referencial era o rei efetivamente em exercício; já no pós-exílio, passou-se a focalizar um futuro monarca de tempos sempre mais distantes, até o final dos tempos. Com o passar do tempo, a vertente apocalítica e a vertente escatológica tomam corpo, já que não se vislumbra a possibilidade de, efetivamente, fazer subir ao trono de Jerusalém um autêntico descendente de Davi. Assim, o messianismo histórico do pré-exílio, paulatinamente, tornou-se messianismo escatológico no pós-exílio. Quando se fala de messianismo, em geral, pensa-se no messianismo escatológico que chega a se converter em tempos messiânicos, nos quais a figura-pessoa do messias torna-se secundária. Nesse sentido específico, “o termo masiah/christós foi usado pela primeira vez como designação do ‘Messias’ nos Salmos de Salomão e no Novo Testamento” (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 25).

A ideia do Messias […] pressupõe que virá um dia em que Deus encontrará meios de intervir para instituir seus preceitos, e ele o fará por via de um agente humano e, por isso, potencialmente político. O Messias é um ser humano no meio de outros: isso é ressaltado até no tipo de judaísmo mais inclinado a crer na intervenção pessoal de Deus. (BARTON, 2005, p. 390)

Na sequência dos fatos, na impossibilidade de se restaurar a realeza em Israel, o sumo-sacerdote e as famílias sacerdotais, a partir de Jerusalém e do Templo, assumem o protagonismo na condução do povo de Israel, incluindo-se quem vivia na diáspora.

Embora às vezes se possa supor a forma mais antiga na unção sacerdotal, seus registros devem ser, quase sem exceção, datados tardiamente, de modo que a unção do sacerdote provavelmente se desenvolveu da unção do rei apenas no tempo exílico/pós-exílico, para legitimar teologicamente o sistema teocrático pós-exílico. (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 30)

Surgirá daqui um messianismo de caráter sacerdotal, paralelo ao messianismo real davídico que sobrevive até os nossos dias (ROOKE, 2005, p. 195-216). De fato, Zc 4,14, em contexto de visão, faz uma importante identificação: “estes são os dois ungidos (literalmente, filhos do óleo) que estão de pé diante do Senhor de toda a terra”. Trata-se do sumo-sacerdote Josué e do governador davidida Zorobabel, colocados em pé de igualdade. Entretanto, o messianismo sacerdotal careceu de fôlego no âmbito do judaísmo subsequente, embora uma teocracia tenha assumido o lugar da monarquia. E se imporá o messianismo real, nos seguintes termos, embora não sendo o único:

O Messias é o rei ideal dos tempos escatológicos, o soberano dos últimos tempos, ou seja, o último dos soberanos de origem davídica, por cuja intermediação as predições proféticas, universalizadas e espiritualizadas, se realizarão. Ele inaugurará, por conseguinte, na história da salvação uma nova era, que será ao mesmo tempo a era definitiva, a era da salvação e das promessas salvíficas realizadas. (COPPENS, 1967, p. 153)

As expectativas messiânicas, em torno de Jesus de Nazaré, articularam-se a partir desse cenário, fazendo eco a uma larga tradição que passou a acentuar “os aspectos ético, religioso, espiritual da figura do Messias e do seu reino”, em correntes que faziam menção ao “Servo de YHWH”, ao “Filho do Homem” e, até mesmo, ao “Anjo de YHWH” (COPPENS, 1968, p. 126), além de “algum profeta” (1Mc 4,46), “um profeta fiel” (1Mc 14,41), “o profeta Elias” (Ml 3,23), “o Eleito” (1Hen 48,3-6), “o Filho de Davi” (Salmos de Salomão XVII,21), “o Ungido” (Salmos de Salomão XVII,32; XVIII,5.7).

A partir desse momento, se começa a sonhar com um autêntico descendente de Davi, justo e bondoso, como o conselheiro admirável de Is 11, humilde como o rei montado sobre o jumento de Zacarias 9. Como não se tem em vista nenhum descendente de Davi, passa-se a dizer que, com certeza, está oculto. (HADAS-LEBEL, 2006, p. 59)

Desde o século I até nossos dias, os ideais messiânicos tomaram as mais diferentes formas e coloridos, dependendo dos momentos históricos e das circunstâncias particulares de cada comunidade de fé. São duas as vertentes principais assumidas pelo messianismo, ao largo do tempo: a vertente política, que se inspira no rei Davi; e a vertente apocalítica voltada para a figura do Filho do Homem. “A primeira atenderia mais à expectativa das classes dominantes, a segunda mais às classes pobres” (SILVA; SILVA, 2017, p. 263).

Por outro lado, multiplicam-se as pessoas que se dão ares de messias e se propõem a realizar obras dignas das esperadas de um messias. Prudência e discernimento se recomendam, quando se trata de avaliar a presença de expectativas messiânicas na história (Mt 24,23-24; At 5,34-39)!

Jaldemir Vitório, SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Texto original: português. Enviado: 32/05/2022; Aprovado: 30/10/2022; Publicado: 30/12/2022.

Referências

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BARTON, J. O Messias na teologia do Antigo Testamento. In: DAY, J. (Org.) Rei e Messias: em Israel e no Antigo Oriente Próximo. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 379-393.

CARVALHO, J. O. Origem e evolução do Messianismo em Israel. Didaskália¸ Lisboa, v. 30, n. 1, p. 29-51, jan./jun. 2000.

COPPENS, J. Le messianisme royal: ses origins, son développement, son accomplissement. Paris: Cerf, 1968.

COPPENS, J. Le prémessianisme vétérotestamentaire. In: HAURET, Ch. et al. (Orgs.). Aux grands carrefours de la révélation et de l´exégèse de l´Ancien Testament. Paris: Desclée de Brouwer, 1967, p. 153-179.

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DE VAUX, R. Les institutions de l´Ancient Testament. v. 1. Paris: Cerf, 1982.

FABRY, H.-J.; SCHOLTISSEK, K. O Messias. São Paulo: Loyola, 2008.

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RINALDI, G. Il “germoglio” messianico in Zaccaria 3,8; 6,12. In: ASSOCIAZIONE BIBLICA ITALIANA. Il messianismo. Atti della XVIII Settimana Biblica. Brescia: Paideia, 1966, p. 179-191.

ROOKE, D. W. Realeza como sacerdócio: o relacionamento entre o sumo sacerdócio e a monarquia. In: DAY, J. (Org.) Rei e Messias: em Israel e no Antigo Oriente Próximo. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 195-216.

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SOUSA, R. F. de O desenvolvimento histórico do messianismo no judaísmo antigo: diversidade e coerência. Revista USP, São Paulo, n. 82, p. 8-15, junho/agosto 2009.

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VITÓRIO, J. “A justiça será o seu cinturão” (Is 11,5): esperança messiânico-política no profetismo bíblico. In: ALVES, C. F.; SOUZA, R. S. R.; PENZIM, A. M. B. (Orgs.). Igreja e Sociedade: análises em perspectiva. Contagem: Fumarc, 2015, p. 25-53.

Liturgia e Catequese

Sumário

Introdução

1 Liturgia e catequese nos primeiros séculos do cristianismo

2 Liturgia e catequese nos documentos recentes da Igreja

3 Interação liturgia e catequese: principais desafios

4 Mistagogia: caminho de interação liturgia-catequese

Conclusão

Referências

Introdução

O mistério pascal é o coração do cristianismo. A explicitação de sua grandeza e relevância em nossa vida é a grande tarefa da liturgia e também da catequese. Ambas as dimensões da vida da Igreja, por caminhos diferentes e essencialmente complementares, auxiliam o cristão no amadurecimento de sua fé e na sua tradução concreta, frente aos desafios do cotidiano.

A catequese sem a liturgia se esvazia da dimensão mistagógica e se reduz a um conjunto de ensinamentos teóricos sobre Deus, sobre a Igreja e sobre a vida cristã, bem articulados na sua forma, mas pouco capazes de dar algum significado mais profundo à vida do catequizando. Por outro lado, a liturgia sem a catequese é carente daquela compreensão necessária à acolhida e vivência ritual, que facilita o mergulho no mistério celebrado e toca o coração do fiel celebrante. Bem articuladas, no entanto, em constante interação, liturgia e catequese conduzem o cristão a celebrar com consciência e piedade os ritos cristãos, como preconizava a Sacrosanctum Concilium (SC, n. 14.19), bem como a considerar os conteúdos nos quais se crê sempre orientados à celebração da fé, da qual a liturgia é epifania.

Tendo como referência essa interação entre liturgia e catequese, o presente texto, após um breve sobrevoo sobre como essa relação se deu nos primeiros séculos do cristianismo, apresenta, em seguida, as perspectivas abertas pelos documentes recentes da Igreja sobre essa interação, indicando, num terceiro momento, os principais desafios enfrentados e apontando o caminho da mistagogia como aquele que melhor pode articular essas duas dimensões constitutivas da vida e da ação evangelizadora da Igreja.

1 Liturgia e catequese nos primeiros séculos do cristianismo

Os primeiros séculos do cristianismo testemunham a riqueza da interação entre liturgia e catequese, bem atestada no antigo princípio lex orandi lex credendi, que expressa bem o quanto liturgia e catequese se interpenetram e concorrem para modelar o coração e a consciência do cristão na perspectiva de uma fé bem vivida. Desde o início, foi em torno da mesa eucarística e da Palavra que os seguidores de Jesus foram consolidando sua identidade cristã e se fortalecendo para o testemunho da fé, como nos relata o livro dos Atos dos Apóstolos:

Perseveravam eles na doutrina dos apóstolos, na reunião em comum, na fração do pão e nas orações […]. Unidos de coração, frequentavam todos os dias o templo. Partiam o pão nas casas e tomavam a comida com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e cativando a simpatia de todo o povo. (At 2,42.44.46-47)

Pode-se lembrar, ainda, a importância da catequese associada à liturgia no cristianismo primitivo, evocando aqui as figuras dos chamados Santos Padres (sec. III-VII), cujas pregações, quase sempre brotadas de contextos celebrativos, iluminavam a caminhada dos fiéis cristãos e dos catecúmenos. Foram grandes mistagogos, que conduziam as pessoas à experiência do mistério de Deus, da sua graça que salva, por um caminho mediado pela espiritualidade, pela contemplação dos sinais sagrados, sempre iluminados pela Palavra de Deus. Desse modo, celebrando a fé no ressuscitado, a Palavra era continuamente aprofundada e transmitida.

No entanto, mudanças históricas impactaram fortemente o cristianismo a partir do século IV e, com o advento da chamada cristandade, liturgia e catequese foram se distanciando uma da outra. A liturgia foi se transformando em ritualismo, com excessiva preocupação com os seus aspectos exteriores e com foco sacramentalista. Quanto aos conteúdos da fé cristã, esses foram se diluindo nos elementos que compunham a cristandade, nas definições dogmáticas dos grandes concílios e, a partir do século X, nas obras que tinham por finalidade sistematizar a teologia e os catecismos. Percebem-se, desde então, pontos não só de distanciamento entre essas duas dimensões fundamentais da vida da Igreja, como também conflitos significativos (PAIVA, 2020, p. 42).

Foi o Concílio Vaticano II, com seus movimentos preparatórios, que lançou novas luzes sobre a vida da Igreja, de uma maneira geral, e sobre a liturgia, de modo particular. Embora os padres conciliares não tenham produzido nenhum documento específico sobre a catequese, sua inspiração e novos paradigmas pastorais surtiram e continuam surtindo efeitos renovadores também nessa seara da educação da fé. Muitos textos preciosos vêm sendo produzidos pelo Magistério, desde aquele dos papas e dicastérios romanos até os documentos das conferências episcopais, todos eles apontando para a urgência de se resgatar a preciosa interação entre a liturgia e a catequese, como acena, por exemplo, o Diretório para a Catequese (DPC), de 2020:

A liturgia é uma das fontes essenciais e indispensáveis da catequese e da Igreja, não só porque a partir da liturgia a catequese pode colher conteúdos, linguagens, gestos e palavras da fé, mas sobretudo porque elas pertencem reciprocamente uma à outra no próprio ato de crer. (DPC, n. 95)

2 Liturgia e catequese nos documentos recentes da Igreja

Alguns documentos do Concílio Vaticano II, mesmo que com acenos, oferecem importantes contribuições para pensarmos a mútua relação entre a liturgia e a catequese. O decreto Christus Dominus, sobre a ação pastoral dos bispos, ao pedir aos pastores solicitude pela catequese, faz questão de afirmar que a liturgia é uma de suas fontes essenciais:

preocupem-se com a instrução catequética, que tem por fim tornar viva, explícita e operosa a fé ilustrada pela doutrina, seja administrada com diligente cuidado quer às crianças e adolescentes, quer aos jovens e mesmo adultos […] Essa instrução se baseie na Sagrada Escritura, na tradição, na liturgia, no magistério e na vida da Igreja. (CD n. 14)

A declaração sobre a educação cristã, intitulada Gravissimum Educationis, ao definir os objetivos da catequese, afirma que ela “ilumina e fortifica a fé, nutre a vida segundo o espírito de Cristo, leva a uma participação consciente e ativa no mistério litúrgico e desperta para a atividade apostólica” (GE n. 4).

Nos campos da liturgia e da catequese, especificamente, o Concílio Vaticano II desencadeou um processo fecundo e contínuo de mudanças. Sínodos, seminários, diretórios litúrgicos e catequéticos, encontros de formação de agentes, muito material produzido, tudo isso criou um clima favorável para a necessária renovação. Dignas de lembrança são a VI Semana Internacional de Catequese (1968), realizada em Medellín, a publicação do Diretório Geral Catequético, em Roma (1971), a publicação do documento Evangelii Nuntiandi (1976), pelo papa Paulo VI, sobre a evangelização, e a exortação apostólica Catechesi Tradendae, em 1979, pelo papa João Paulo II.

Nesse último documento, o papa ressalta a necessária e intrínseca ligação entre catequese e liturgia, afirmando claramente:

A catequese está intrinsecamente ligada com toda a ação litúrgica e sacramental, porque é nos sacramentos, e sobretudo na Eucaristia, que Cristo Jesus age em plenitude para a transformação dos homens. […] A catequese leva necessariamente aos sacramentos da fé. Por outro lado, uma autêntica prática dos sacramentos tem forçosamente um aspecto catequético. Por outras palavras, a vida sacramental se empobrece e bem depressa se torna um ritualismo oco, se ela não estiver fundada num conhecimento sério do que significam os sacramentos. E a catequese intelectualiza-se, se não haurir vida numa prática sacramental. (CT n. 23)

No Brasil, o grande marco na dimensão catequética foi o documento 26 da Conferência Nacional dos Bispos, Catequese Renovada: orientações e conteúdo. Seu impacto mudou a rota da caminhada da catequese, além de tocar profundamente em outras dimensões da vida pastoral da Igreja. O próprio nome já anunciava sua intenção: renovar a prática catequética, a partir de dentro, oferecendo princípios, orientações e conteúdo que sustentassem esse processo de mudança.

Dois números desse documento, em especial, refletem a importante interação entre liturgia e catequese. No número 89, podemos ler:

Não só pela riqueza de seu conteúdo bíblico, mas pela sua natureza de síntese e cume de toda a vida cristã, a liturgia é fonte inesgotável de catequese. Nela, encontram-se a ação santificadora de Deus e a expressão orante da fé da comunidade. As celebrações litúrgicas, com a riqueza de suas palavras e ações, mensagens e sinais, podem ser consideradas uma “catequese em ato”. Mas, por sua vez, para serem bem compreendidas e participadas, as celebrações litúrgicas ou sacramentais exigem uma catequese de preparação ou iniciação. (CNBB, 1983, n. 89)

E o número seguinte acrescenta:

A Liturgia, com sua peculiar organização do tempo (domingos, períodos litúrgicos como Advento, Natal, Quaresma, Páscoa etc.) pode e deve ser ocasião privilegiada de catequese, abrindo novas perspectivas para o crescimento da fé, por meio das orações, reflexão, imitação dos santos, e descoberta não só intelectual, mas também sensível e estética dos valores e das expressões da vida cristã. (CNBB, 1983, n. 90)

No ano de 1997, foi publicado pela Sagrada Congregação para o Clero o Diretório Geral para a Catequese (DGC), mostrando significativa sensibilidade à temática da interação liturgia e catequese, dando ênfase à necessidade de uma catequese litúrgica como forma de iniciar os catequizandos à vida celebrativa. Nele podemos ler:

A catequese litúrgica, que prepara aos sacramentos e favorece uma compreensão e uma experiência mais profunda da liturgia. Ela explica o conteúdo das orações, o sentido dos gestos e dos sinais, educa à participação ativa, à contemplação e ao silêncio. Deve ser considerada como “uma eminente forma de catequese” (DGC, n. 71).

O documento 84 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Diretório Nacional de Catequese (DNC), dedicou vários números ao tema liturgia e catequese, sempre reafirmando a mútua dependência dessas duas dimensões da ação pastoral da Igreja. Considera, primeiramente, a liturgia como fonte da catequese, e cita a proclamação da Palavra, a homilia, as orações, os ritos sacramentais, a vivência do ano litúrgico e as festas como momentos de educação e de crescimento na fé. Sem titubear, afirma que “os autênticos itinerários catequéticos são aqueles que incluem em seu processo o momento celebrativo como componente essencial da experiência religiosa cristã” (DNC, n. 118).

Logo a seguir, o mesmo Diretório ressalta a urgência de uma catequese litúrgica, dizendo que “é tarefa fundamental da catequese iniciar eficazmente os catecúmenos e catequizandos nos sinais litúrgicos e por meio deles introduzi-los no Mistério Pascal” (DNC, n. 120). Assim, aponta como missão da catequese preparar o cristão à iniciação sacramental e ajudá-lo a viver como bom cristão mediante orações, gestos e sinais, silêncio, contemplação, presença de Maria e dos santos, escuta da Palavra etc. (DNC, n. 120).

Digna de menção aqui é a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (EG), do papa Francisco. Ao refletir a respeito da necessidade de uma catequese querigmática e mistagógica, ele propõe a valorização dos símbolos litúrgicos da iniciação cristã e uma catequese centrada na Palavra, mas que não descuide “de uma ambientação adequada e de uma motivação atraente, do uso de símbolos eloquentes” (EG, n. 166), reafirmando a tradicional via pulchritudinis, caminho da beleza que faz resplandecer no coração do homem a verdade e a bondade do ressuscitado (DGC, n. 167).

Mais recentemente, o documento 107 da CNBB, Iniciação à vida cristã: itinerário para formar discípulos missionários (IVC), em contexto mais catecumenal, voltou a insistir nessa interação entre catequese e liturgia, afirmando que “os processos de Iniciação se fundamentam na Sagrada Escritura e na liturgia, educam para a escuta da Palavra e para a oração pessoal, mediante a leitura orante, evidenciando uma estreita relação entre Bíblia, catequese e liturgia” (IVC, n. 66). E continua: “Tal resgate do espírito catecumenal implica o compromisso de reatar a parceria e a união entre liturgia e catequese que, ao longo dos séculos, ficaram comprometidas” (IVC, n. 74).

O Diretório para a Catequese (DC), do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, publicado em 2020, ao tratar das fontes da catequese, dedica preciosos números à liturgia (DC, n. 95-98), além de outras afirmações importantes, ao longo de todo o texto: a necessária interação da liturgia com a catequese; a liturgia como lugar privilegiado da catequese do povo de Deus, conservando-se o caráter celebrativo da liturgia; a urgência de um itinerário mistagógico na catequese, que leve à interpretação dos ritos à luz dos eventos salvíficos, introduza ao sentido dos sinais litúrgicos e apresente o significado dos ritos para a vida cristã em todas as suas dimensões; a importância da participação dos catequizandos na liturgia dominical e nas festas do ano litúrgico.

3 Interação liturgia e catequese: principais desafios

A fecunda interação da liturgia com a catequese está garantida nos documentos da Igreja e muito bem enraizada na sua tradição. No dia a dia, em grande parte das comunidades eclesiais, entretanto, ainda há muito o que fazer.  “Na situação atual não faltam aspectos problemáticos e pontos de atrito, seja no âmbito da reflexão catequética e litúrgica, seja no terreno da prática pastoral” (ALBERICH, 2004, p. 305).

Um dos grandes desafios diz respeito a uma práxis catequética que não inicia de fato à liturgia. Não obstante a boa vontade dos catequistas e alguns passos já dados nesse sentido, ainda é incipiente a formação litúrgica no âmbito da catequese e limitada à concepção de “celebrar” com os catequizandos. Fala-se muito sobre a importância da liturgia, mas ainda se celebra pouco. E não é possível iniciar alguém à ritualidade apenas com discursos. E quando se celebra, é clara a dificuldade do catequista em articular fé, vida, Palavra de Deus, símbolos, gestos, enfim, aqueles elementos que constituem sobremaneira o rito cristão. Essa dificuldade há tempos foi apontada pelo Diretório Geral da Catequese, quando chamou a atenção:

Muitas vezes […] a prática catequética apresenta uma ligação débil e fragmentada com a liturgia: limitada atenção aos sinais e ritos litúrgicos, pouca valorização das fontes litúrgicas, roteiros catequéticos com pouca ou nenhuma relação com o ano litúrgico, presença secundária de celebrações nos itinerários da catequese. (DGC, n. 30)

Alberich é do parecer que as dimensões antropológica e experiencial, aquelas que tratam das questões do homem e suas experiências de vida, de caridade e de serviço, obviamente importantes na catequese, acabaram por ofuscar a centralidade da experiência litúrgica no crescimento da fé (ALBERICH, 2004, p. 306). Assim, podemos falar de uma catequese desfocada da vivência litúrgica ou que tem essa apenas como um apêndice dos seus processos.

Outro desafio não menos preocupante é a instrumentalização da liturgia com finalidade didática e pedagógica para satisfazer à necessidade de explicar os ritos para crianças e jovens. Essas práticas desconsideram a natureza da liturgia, essencialmente celebrativa e mistagógica, impondo-lhe linguagem e metodologia estranhas à sua própria essência, transformando a celebração em uma “aula” mais animada sobre a missa, por exemplo. Além de não iniciar de fato à dinâmica celebrativa da fé, pois não se respeita a estrutura mistagógica e psicológica própria do rito, causa resistência e certo aborrecimento às assembleias e não permite que se encantem pela dimensão contemplativa e orante da fé.  

As deficiências no modo de celebrar, tanto da parte das assembleias como de muitos de seus ministros, incluindo os ordenados, constituem também mais um importante desafio para se consolidar essa tão importante relação da liturgia com a catequese. Não podemos desconsiderar que a liturgia é a principal transmissora da fé da Igreja, uma verdadeira catequese em ato. Sendo assim, o fato de participar de uma celebração deveria ser uma maneira privilegiada de recepção e acolhida da fé transmitida pela profundidade e riqueza dos ritos constituídos bimilenarmente pela Igreja. Perpassados pela Palavra, os ritos litúrgicos comunicam, em si mesmos e na sua vivência concreta, a mais genuína fé da Igreja, centralizada no mistério pascal de Jesus Cristo. Desse modo, a assembleia apreende e compreende a sua fé à medida que faz o rito acontecer em sua vida. A liturgia celebrada de modo relapso, improvisado ou atropelada pelo voluntarismo de seus ministros cria dificuldades para que dela se depreenda uma autêntica educação da fé cristã.

Outros desafios ainda podem ser enumerados, como uma visão sacramentalizadora da catequese, a tímida presença do ano litúrgico nos processos catequéticos, o subjetivismo aliado à ignorância da teologia litúrgica por parte de muitos leigos e ministros ordenados, a falta de preparação dos catequistas para fazer intercambiar as duas dimensões da liturgia e da catequese na sua vivência, prática pastoral e testemunho de vida etc.

4 Mistagogia: caminho de interação da liturgia com catequese

Pensar a interação liturgia e catequese toca diretamente na temática da mistagogia, tão cara à tradição e à espiritualidade do cristianismo. Na verdade, desde o judaísmo, já se evidencia o método mistagógico como via privilegiada de educação da fé das novas gerações e reafirmação da fé para aqueles já iniciados. Um dos melhores exemplos disso nós podemos encontrar na celebração anual da Páscoa dos judeus. A prescrição contida no livro do Êxodo sempre ressoava soberana para eles:

Quando tiverdes entrado na terra que o Senhor vos dará, conforme prometeu, observai este rito. Então os vossos filhos perguntarão: “Que significa este rito?”. Respondereis: “É o sacrifício da Páscoa do Senhor, que passou ao lado das casas dos israelitas no Egito”. (Ex 12,25-27)

“Que significa este rito?” era a pergunta reservada ritualmente ao mais novo. Não se trata apenas de formalidade ritual, mas de algo essencial. Na resposta a essa questão estava o conteúdo que sustentava e dava sentido ao rito da Páscoa. E ao responder, o mais velho da família fazia a memória dos feitos libertadores de Deus em favor de seu povo, garantido historicidade ao rito, inserindo-o em uma história de salvação continuada em suas vidas. “Que significa este rito?” era a pergunta que os catecúmenos e neófitos do cristianismo primitivo faziam, buscando compreender a fé que estavam abraçando. Da resposta dependia a eloquência do rito em suas vidas. Sem a resposta, o rito permaneceria mudo e inexpressivo (BOSELLI, 2014, p. 29). A resposta vinha com as catequeses mistagógicas dos Santos Padres, que, partindo da Palavra, uniam Antigo e Novo Testamento e ajudavam os fiéis a mergulharem no coração do mistério pascal. “Que significa este rito?” é a pergunta que hoje e sempre ecoará na Igreja da parte dos cristãos e dos não cristãos, procurando algum sentido nas ações litúrgicas, isto é, buscando haurir da ritualidade alguma catequese que lhes ajude a desvelar ou, ao menos, acolher o mistério celebrado.

A constituição Sacrosanctum Concilium ocupou-se de resgatar a centralidade do mistério pascal na ação litúrgica e de mostrar sua incidência sobre toda a ritualidade da Igreja. Procurou libertar a liturgia de sua concepção exteriorizada, vista apenas como cerimônia, chamando a atenção para sua essência. Definiu-a como o culto perfeito que o Cristo total, cabeça e membros, presta ao Pai, no Espírito Santo, por meio de ritos e preces. Ela é o cume e a fonte da vida da Igreja (SC n. 7.10.48). Per ritus et preces: é desse modo que a Igreja, povo de Deus, reconhece o crucificado ressuscitado e o dá a conhecer na mediação dos sinais sagrados, palavras, gestos, silêncio, orações… E, ao congregar suas assembleias para seus ritos, ela transmite a sua fé em Cristo. Os eventos salvíficos, presentes e atualizados em cada celebração, fundamentam e legitimam os ritos, libertando-os da magia e da ilusão (BOSELLI, 2014, p. 29). Desse modo, é por meio dos sinais que tocam os sentidos, feito pontes que vão do coração dos cristãos ao coração do próprio Deus, que se chega ao Sentido por excelência, o próprio Senhor ressuscitado. Mas, para bem transitar por essas pontes, cabe à Igreja iniciar seus fiéis ao universo litúrgico e à sua rica linguagem. Boselli, parafraseando São Jerônimo, que dizia “Ignoratio Scripturarum, ignoratio Christi est”, ousa dizer: “ignoratio liturgiae, ignoratio Christi est”, isto é, não conhecer a liturgia significa não conhecer Cristo (BOSELLI, 2014, p. 32).

Uma catequese mistagógica é aquela que leva a um aprofundamento e a uma maior consciência do mistério que, para nós, é “Cristo, esperança da glória” (Cl 1,27). Ela se apresenta como a única possibilidade de libertar o catequizando de uma relação teórica com Deus, ajudando-o a mergulhar na sua graça e a experimentá-lo como seu Senhor e sua vida. De acordo como o documento 107 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, é impensável um processo catequético que desconsidere o altíssimo valor do elemento mistagógico, e esse passa necessariamente pela liturgia, à qual coube, desde o início do cristianismo, em plena interação com a catequese, a missão de iniciar na fé
(Doc. 107, n. 70).

O Diretório para a Catequese oferece alguns elementos essenciais para que se percorra um itinerário mistagógico na catequese o que, ao nosso ver, muito contribuiria para uma aproximação mais eficaz entre a liturgia e a catequese: a intepretação dos ritos à luz dos eventos salvíficos, relendo a vida de Jesus, a partir do Antigo Testamento; a introdução ao sentido dos sinais litúrgicos, educando a sensibilidade dos fiéis à linguagem dos sinais e dos gestos que, unidos à Palavra, constituem o rito; e a apresentação do significado dos ritos para a vida cristã em todas as suas dimensões (DPC, n. 98).

Conclusão

Percorremos um rápido, mas denso caminho, procurando mostrar, mais do que a importância, a urgência de buscarmos alternativas para fazer interagir as dimensões litúrgica e catequética em nossa prática pastoral. Vimos como os recentes documentos da Igreja apontam o enriquecimento mútuo dessas duas dimensões, quando se consegue essa interação, bem como os desafios para que ela efetivamente aconteça. Terminamos por considerar como uma possível resposta eficaz uma catequese mais mistagógica, que dê conta de inserir o catequizando na experiência do encontro com Cristo e de aprofundar sua fé nas mediações dos sinais e ritos sagrados, sempre iluminados pela Palavra de Deus.

O que está em jogo é a necessidade de reconstruir a unidade da experiência da fé, sem reducionismo de nenhuma de suas dimensões, mas procurando concebê-la na sua globalidade. Isto exige articular liturgia, catequese e vida cristã. Se concordamos com a Igreja quando afirma que a sagrada liturgia constitui o “cume e a fonte da vida da Igreja” (SC, n. 10), ela se constitui como verdadeiro locus theologicus, tendo sempre uma função catequética para todo o povo de Deus, na riqueza e eficácia de seus ritos. Para que toda essa força seja experimentada com proveito, requer-se da catequese o cuidado propedêutico de iniciar crianças, jovens e adultos ao universo litúrgico, menos pelo que fala e mais pelo que faz, recorrendo ao rico patrimônio que a liturgia oferece para tornar possível ao cristão o acesso ao mistério de fé por ela professado e continuamente celebrado.

Vanildo de Paiva. Presbítero da Arquidiocese de Pouso Alegre, Minas Gerais (Brasil). Mestre em psicologia e professor na Faculdade Católica de Pouso Alegre. Texto original português. Enviado: 30/07/2022; aprovado: 30/10/2022; Publicado: 30/12/2022.

Referências

ALBERICH, E. Catequese evangelizadora. Manual de catequética fundamental. São Paulo: Salesiana, 2004.

BOSELLI, G. O sentido espiritual da liturgia. v. 1. Brasília: CNBB, 2014. Coleção vida e liturgia da Igreja.

CNBB.  Iniciação à vida cristã: itinerário para formar discípulos missionários. Documento 107. Brasília: Edições CNBB, 2017.

CNBB.  Catequese renovada. Orientação e conteúdo. Documento 26. 29.ed. São Paulo: Paulinas, 2000.

CNBB.  Diretório Nacional de Catequese. Documento 84. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2006.

FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Loyola; Paulus, 2013.

JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica Catechesi Tradentae. 15.ed. São Paulo: Paulinas, 1982.

PAIVA, V. Catequese e liturgia: duas faces do mesmo Mistério. Reflexões e sugestões para a interação entre catequese e liturgia. São Paulo: Paulus, 2020.

PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. São Paulo: Loyola, 1976.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO. Diretório para a Catequese. São Paulo: Paulus, 2020.

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VATICANO II. Constituição Sacrosanctum Concilium. In: VIER, F. (org.). Compêndio do Vaticano II. 19.ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

VATICANO II. Decreto Christus Dominus. In: VIER, F. (org.). Compêndio do Vaticano II. 19.ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

VATICANO II. Declaração Gravissimum Educationis. In: VIER, F. (org.). Compêndio do Vaticano II. 19.ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

Teologias indígenas da América

Sumário

Introdução

1 Pluralidade de teologias indígenas

2 Teologias dos povos originários antes da conquista

3 Teologias dos povos originários depois da conquista

4 Teologias indígenas recentes

5 Alguns desafios do diálogo de teologias

Referências

Introdução

Usar as categorias Teologia e Indígena para falar do pensamento religioso dos povos que habitaram milenarmente o continente agora chamado América é fazer uso de algo emprestado do mundo exterior. Isso causa problemas tanto para os próprios nativos como para os especialistas nesses assuntos, especialmente dentro das igrejas.

Nos diálogos com a Congregação para a Doutrina da Fé, ficou imediatamente demonstrado que a aplicação do termo teologia à sabedoria religiosa dos povos indígenas não está isenta de preocupações. Isso sucede, em parte, porque, na Igreja, continua prevalecendo a ideia de que a palavra dos pobres sobre Deus é tão imperfeita e está tão contaminada que não merece ser considerada como verdadeira ciência teológica. Além disso, os intelectuais indígenas de hoje têm sérias reservas em aceitar que se aplique acriticamente à produção intelectual de seus povos as categorias do pensamento ocidental, do qual surgiu a palavra teologia. Portanto, está, por um lado, o preconceito a respeito do valor das ferramentas gnosiológicas populares e, por outro, o medo de usar categorias de pensamento que, como ponto de partida, desvalorizam o ser e o conhecer indígenas.

Para superar esse impasse, um setor importante dos povos indígenas que já são cristãos se atreveu a reiniciar o diálogo inter-religioso que, durante 500 anos, não pôde ser estabelecido diretamente no interior da Igreja. Nesse tempo, a teologia do vencido foi desqualificada e condenada categoricamente pelo vencedor como palavra diabólica, mesmo depois das primeiras tentativas de comunicação nas quais os sábios de então apresentaram sinais do seu saber profundo sobre Deus.

Nos últimos anos, reavivou-se o otimismo em relação à existência de condições propícias para que os povos originários possam tirar do escondimento e mostrar, com clareza e explicitamente, a riqueza de sua sabedoria milenar. Os principais atores desse novo momento consideram que, mesmo com risco de equívocos, vale a pena tentar reabrir sem medo o diálogo de teologias, uma vez que a clandestinidade e o ocultamento deixaram de ser a melhor estratégia de sobrevivência desses povos. Por isso, insistem em manter uma atitude dialogante e em fazer alianças críticas e profícuas com outros setores da sociedade circundante e das Igrejas. Eles estão convencidos de que as culturas indígenas hoje podem reformular-se e recriar-se no encontro com as demais culturas e com a proposta cristã. Desse modo, essas culturas poderão não apenas continuar vivas, mas também ser, no futuro, mais dinâmicas em assuntos religiosos e em todos os demais âmbitos da existência.

Para entender melhor esse ressurgir indígena – que carrega nos ombros não só suas tristezas e angústias, mas também suas flores e seus cantos, contidos em sua sabedoria milenar –, é necessário distinguir os matizes multicolores de sua palavra sobre Deus, sobre a humanidade e sobre o mundo.

1 Pluralidade de teologias indígenas

Na verdade, não existe uma única teologia indígena, mas muitas teologias indígenas que se diversificam por razões geográficas, culturais e metodológicas. É necessário considerar essa ampla diversidade para compreender integralmente o fenômeno da chamada “teologia indígena”. Certamente, a expressão Teologia Indígena, no singular, é uma generalização, aceita deliberadamente para simplificar as coisas e mostrar a condição de prostração na qual se encontram os povos originários do continente. Assim, encontra-se um enfoque comum que pode aglutinar a todos diante da adversidade, que procede de fontes que não são plurais. Entretanto, existem muitas teologias sob essa nomenclatura e é necessário analisar as razões que explicam a diversidade.

Antes da conquista europeia, existia, nos povos deste continente, uma variedade de funções e categorias cujo objetivo era expressar a multiforme atividade teológica de seus membros. Muitas dessas categorias e funções, ainda que enfraquecidas ou reformuladas no contexto cristão, foram mantidas até nossos dias. Convém recordar que existem três grandes momentos da sabedoria teológica dos povos originários:

(1) O momento anterior ao contato com a cristandade, quando os habitantes deste continente podiam elaborar por si mesmos, sem interferências transcontinentais, os conteúdos e formas de expressão de sua fé. É o que se poderia chamar Teologias Originárias, ou originais. Essas teologias tiveram um longo período de desenvolvimento – alguns falam de 15 mil anos, outros de 25 mil, e outros, inclusive, de 50 mil – e estiveram marcadas pelas distintas vicissitudes da história de cada povo e bloco cultural.

(2) Durante os 500 anos de colonização, no qual as teologias originárias foram negadas ou agredidas e se converteram em resistência ou “diálogo” imposto. São propriamente as Teologias Indígenas que se refugiaram nas montanhas, que se disfarçaram de cristianismo, que se recriaram nos espaços disponíveis ou que se fizeram clandestinas.

(3) Nos tempos atuais, nos quais as Teologias de nossos povos saem do escondimento e se convertem em proposta de vida não só para eles, mas também para os demais. É o momento no qual há condições novas para o diálogo enriquecedor, porque o mundo volta o olhar para os indígenas como reserva de humanidade, na qual podem revitalizar-se as sociedades e as igrejas. Talvez o nome de Teologias Indígenas já não seja, então, a expressão mais adequada e seja preciso adotar ou elaborar novas nomenclaturas.

As teologias originárias foram, por milhares de anos, matrizes e companheiras do projeto de vida dos povos. As teologias indígenas, no choque conquistador, foram apoio da fé agredida da população nativa. Durante a sociedade colonial, tais teologias se fizeram refúgio, amparo e consolo vitalizador da fé do povo vencido; tornaram-se teologias apocalípticas para manter vivas as esperanças utópicas dos pobres. As teologias indígenas dos tempos atuais se esforçam por ser consciência crítica diante do projeto dominador e por ser teologias proféticas dos oprimidos.

Em todos os casos, as teologias indígenas são dinâmicas, porque não apenas recitam textos indígenas do passado, mas, sob a inspiração de tais textos, elaboram a palavra, o conselho e a luz que são necessários para a vida atual do povo. É o que as e os servidores próprios das comunidades fazem ordinariamente e que depois partilham nos encontros regionais e latino-americanos, nos quais estão se dando grandes consensos para continuar caminhando na história e assim construir juntos – ou em sinodalidade, como se diz agora – o futuro desejado. A seguir, apresentamos alguns apontamentos que são mostras dessa diversidade que vai sendo partilhada.

2 Teologias dos povos deste continente antes da conquista

Os primeiros habitantes deste continente que agora chamamos América forjaram aqui, por milênios, uma ampla variedade de teologias que deram sentido e orientação transcendente à sua vida desde que eles chegaram a estas terras e a embelezaram com sua presença.

Nos relatos mais antigos, a Divindade (Huehuetéotl = “Deus velho”, na língua náhuatl) está vinculada ao fogo sagrado, sem forma nem figura, que deu origem a tudo o que agora vemos. E o fez sacrificando-se e organizando, com as partes de seu corpo, o céu, a terra e todas as demais criaturas do universo. Assim sendo, não somente tudo está feito por Ele-Ela, mas tudo está formado d’Ele-Ela. Por isso, cada uma, cada um é uma pequena porção de seu amor, como dizem os guaranis do sul do Continente. E, se cada ser é parte do corpo da Divindade, ninguém está separado do resto, tudo está interconectado e interligado, como afirmam enfaticamente os amazônicos. A criação e os humanos somos a presença tangível de Deus – que em si mesmo é invisível e impalpável. Os humanos somos macehualme, ou seja, os merecedores da penitência da Divindade Ometéotl, Pai-Mãe, que pode receber quatrocentos nomes devido às suas incontáveis presenças. Ser seus colaboradores na obra da criação e da manutenção da harmonia da vida dá aos humanos uma dignidade e responsabilidade de enormes dimensões.

Ao longo do tempo, a sabedoria científica, cultural e religiosa que as avós e os avôs do passado foram colecionando, nos processos de acumulação contínua de saberes, levou-os a construir admiráveis civilizações, com grandes concentrações urbanas que articulavam, numa visão mais globalizada, o conjunto das pequenas unidades vitais existentes em territórios de milhares de quilômetros. É o caso dos Maias, dos Mexicas ou Astecas, dos Incas e dos Guaranis. Com esse poder civilizatório, que os fez semelhantes a Deus, alcançaram uma grandeza humana a serviço do Bem Viver para todos. Essa grandeza durou em torno de mil anos, pois funcionou efetivamente para o bem do conjunto. Entretanto, quando o poder corrompeu os dirigentes, que oprimiram ou esqueceram os irmãos menores, esses últimos abandonaram as metrópoles. E, assim, sobreveio o colapso das grandes cidades há mais de mil anos.

Então, os habitantes dos povoados menores começaram a buscar outro modelo de vida que fosse mais conforme ao ideal sonhado por Deus e pelos pobres; um modelo que surgisse desde baixo, a partir daqueles que haviam carregado o peso das grandes cidades; um modelo que recolhesse o melhor das etapas anteriores. No caso da Mesoamérica, foi o tempo da espera do retorno de Quetzalcóatl, ou seja, do Deus pobre e simples; e, em outras regiões, foi o momento da utopia da Terra sem males, da Casa Grande ou Casa Comunitária, onde coubesse dignamente todas as filhas e filhos da Divindade.

3 As teologias dos povos originários depois da conquista

Na chegada dos europeus a este continente, há pouco mais de 500 anos, as possibilidades de encontro de povos e culturas eram favoráveis. Isso aconteceu não somente pela crise civilizatória que houve aqui, ou unicamente pela expectativa do retorno de Quetzalcóatl e pela busca do Bem Viver e da Terra sem males, mas também porque os povos do continente haviam elaborado esquemas culturais e religiosos que permitiam o encontro entre nacionalidades e culturas diferentes, a partir de sua perspectiva religiosa. Havia a consciência de que existiam muitas modalidades de entender a vida e de nela situar a Deus, que poderiam ser acrescentadas em conjuntos polissintéticos ou polifônicos. Consequentemente, o Deus cristão podia sentar-se, sem nenhum problema, no petate ou esteira dos povos ameríndios. A maneira de entender e viver com Deus das sábias e dos sábios era perfeitamente compatível com a nova fé que chegava. Assim o propuseram os teólogos nativos aos missionários no famoso “Diálogo dos Doze” (1525).

Porém, os europeus não tiveram a mesma atitude dialogante. O fato de terem ganho a guerra lhes dava a certeza de que seu Deus (ou melhor dito, sua teologia) era o único verdadeiro. Portanto, o Deus indígena devia ser aniquilado. Isso foi o que propuseram no final do suposto Diálogo:É-lhes muito necessário desprezar e odiar, descartar e abominar e cuspir em todos estes que agora têm por Deuses e a quem adoram, porque, na verdade, não são Deuses, mas enganadores e zombadores(PORTILLA, 1986, p. 89)[1].

A maioria dos habitantes deste continente não compreendeu o raciocínio de intolerância religiosa dos recém-chegados e não o levaram a sério. Simplesmente, ajustaram sua vivência espiritual e elaboração teológica às margens do raio de ação da sociedade colonial e segundo sua situação de vencidos lhes permitia. E seguiram em frente, fazendo elaborações e reelaborações de seus esquemas de compreensão de Deus e da vida. O resultado desse processo é o que agora chamamos Religiosidade, Espiritualidade ou Piedade Popular, cujo ingrediente principal tem a ver com as múltiplas manifestações da chamada Teologia Indígena.

Desse modo, após a conquista material e espiritual europeia, as teologias aqui preexistentes não desapareceram, mas, por meio de processos de justaposição, sobreposição, substituição e sínteses, fusionaram-se com a proposta do exterior. Isso se deu não somente por conveniência ou sobrevivência, mas também porque encontraram, em ambos os caminhos, o mesmo Deus, que acompanha a todos os povos do mundo, e o mesmo projeto de vida, que se deve manter harmonizado entre os humanos e com a criação inteira. Essa atitude não teve correspondência nos conquistadores e tampouco em todos os missionários, pois a maioria atacou as crenças desses povos, classificando-as como diabólicas ou heterodoxas.

Isso explica porque, da época colonial até agora, a maior parte da busca de Deus impulsionada por indígenas – e também por afro-americanos – ficou fora das igrejas e de suas teologias oficiais, continuando na chamada religiosidade popular, que gerou um cristianismo indigenizado ou uma religião indígena (ou afro) cristianizada, partilhada até nossos dias com os demais pobres da terra.

4 Teologias indígenas dos tempos recentes

A inculturação feita pelo povo simples, durante a época colonial, está recebendo, nos últimos 60 anos, o apoio de importantes membros da hierarquia eclesiástica que se transformaram em aliados da causa indígena e afro, alcançando mudanças na atitude institucional em relação a esses grupos humanos. Nesse processo, o elemento mais valioso é que os próprios indígenas e afrodescendentes dos tempos atuais, formados dentro das igrejas com esquemas frequentemente contrários a seus povos, atreveram-se a uma reapropriação da teologia de sua gente. Assim, vão visibilizando e demonstrando que as teologias ancestrais são o motor mais forte das lutas afro-ameríndias e vão repensando a necessidade de um diálogo aberto e transparente entre essas teologias e a fé cristã.

A Igreja Católica e algumas igrejas evangélicas estão unindo forças para acompanhar esse diálogo macroecumênico, a fim de encontrar tudo o que de nobre e bom nos une, além de elucidar os pontos nevrálgicos que requerem uma atenção especial. Os avanços que vão acontecendo manifestam o kairós aberto recentemente nas igrejas como dom do Espírito e como conquista de quem lutou por fazê-lo possível.

O melhor fruto disso tudo é que os próprios indígenas e afros agora se identificam mais com a teologia de seus povos e com o dinamismo que ela gera, levando à prática os ideais teológicos de seus ancestrais que coincidem com os do Reino de vida, de justiça, de paz, de ágape (partilha) que Jesus, o Filho de Deus, ao colocar sua morada entre nós, trouxe para todos. Por isso, cada vez aumenta o consenso eclesial sobre a importância, para o conjunto de vozes teológicas das igrejas, dessas teologias da periferia com seus sujeitos comunitários, seus conteúdos humanistas, sua linguagem simbólica e suas próprias metodologias.

Ainda permanece o maio desafio: dialogar com as teologias indígenas e afros que não procuram o aval das igrejas e, principalmente, dialogar com o mundo moderno que obriga as teologias ancestrais e as igrejas a reformularem suas propostas em esquemas mais urbanos do que rurais, mais seculares do que religiosos, mais voltados para o presente e o futuro do que para o passado, mais em direção ao conjunto da humanidade do que somente ao interior de cada povo ou de cada igreja.

5 Alguns desafios do diálogo de teologias

No Sínodo Panamazônico de outubro de 2019 e no IX Encontro Latino-americano de Teologia Indígena (2020), evidenciou-se que os conteúdos e o modo como os povos ameríndios elaboram suas teologias colocam os seguintes desafios:

(1) Superar a colonialidade teológica, ainda presente nas igrejas, que está estreitamente ligada às culturas e aos esquemas dominantes do primeiro mundo, para se abrir e receber humildemente a pluralidade multicolor das flores e dos cantos teológicos da humanidade que está na periferia.

(2) Passar da perspectiva da verdade sobre Deus, que é objeto de raciocínios e se coloca em teses e livros, para chegar à proposta do bem viver e conviver, segundo o plano de Deus, que se constrói na unidade de esforços. Dito de outro modo, passar de uma teologia como doutrina, que busca satisfazer a razão, para alcançar uma teologia como “Vidalogia”, que se vivencia a partir do coração ou se sentipensa com o conjunto de nosso ser, de modo a responder às exigências da vida em todos os seus aspectos, a partir do projeto de Deus.

(3) Assumir a integralidade da teologia dos pobres, que sabem que nada nem ninguém está fora do amor de Deus, retomando o que, desde a antiguidade, Santo Irineu sustentava: “O que não é assumido não é redimido”.

(4) Levar a sério, nas igrejas, que o verdadeiro sujeito da fé e da teologia é a comunidade crente, e não apenas os grandes personagens desconectados do povo.

(5) Assumir conscientemente a linguagem analógica ou simbólica do povo como a melhor maneira de falar de Deus, saboreando o viver e o estar com Ele-Ela, sem se ocupar tanto em querer entender, com ideais claras e distintas, o mistério divino.

(6) Reconhecer e acompanhar a ação de Deus presente nos povos originários e afro-americanos, aceitando humildemente que não se trata de outro deus, mas do mesmo Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, que leva adiante seu projeto salvífico em todos os povos do mundo e em toda a criação.

Eleazar López Hernández. Do povo zapoteca de Oaxaca, México. Colaborador emérito do “Centro Nacional de Ayuda a las Misiones Indígenas”.  Texto enviado: 30/09/2022; aprovado: 30/10/2022; publicado: 30/12/2022. Original espanhol.

Referências

HERNÁNDEZ, Eleazar López. La teología india y su lugar en la Iglesia. CIMI, 2008. Disponível em: <https://cimi.org.br/2008/01/26934>. Acesso: 28 set. 2022.

HERNÁNDEZ, Eleazar López. Diálogo de la Iglesia con el mundo indígena: flores y espinas. Centro Nacional de Ayuda a Misiones Indígenas, México, 2004. Disponível em: <http://www.missiologia.org.br/cms/UserFiles/cms_artigos_pdf_27.pdf>. Acesso: 28 set. 2022.

HERNÁNDEZ, Eleazar López. Teologías Indias de hoy. In: Teología India. Tomo II. Segundo Encuentro Taller Latinoamericano. Panamá, 29 de noviembre al 3 de diciembre de 1993, México/Ecuador: Cenami/Abya‑Yala. pp. 22‑23.

HERNÁNDEZ, Eleazar López. Teología india. Tomo I. Memoria del Primer Encuentro Taller Latinoamericano. Quito: Abya Yala, 1991.

SAHAGÚN, Bernardino et al. Coloquios y doctrina cristiana: con que los doce frailes de San Francisco, enviados por el papa Adriano VI y por el emperador Carlos V, convirtieron a los indios de la Nueva España (1524). Edición facsimilar, introducción, paleografía, versión del Náhuatl y notas de Miguel León-Portilla, 1986.

SUESS, Pablo et al. Desarrollo histórico de la teología india. Quito: Abya-Yala, 1998. (Colección Iglesia de Pueblos y Culturas, n. 48-49).

[1] O texto original é dos freis franciscanos, enviados pelo rei Carlos V à Nova Espanha. A citação é da edição fac-simile, com introdução, tradução e notas de Miguel León Portilla, publicada em 1986.

As cinco conferências gerais do episcopado latino-americano

As cinco Conferências gerais do Episcopado Latino-americano

Sumário

Introdução

1 Conferência do Rio

2 Conferência de Medellín

3 Conferência de Puebla

4 Conferência de Santo Domingo

5 Conferência de Aparecida

Conclusão

Referências

Introdução

A Igreja católica da América Latina conheceu uma importante evolução desde a fundação do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), deixando de ser, progressivamente, “Igreja espelho” para tornar-se “Igreja fonte”, como dizia Henrique Cláudio de Lima Vaz referindo-se ao Brasil, o que também pode ser aplicado a todo o continente (VAZ, 1968, p. 17-22). Nesse processo, as conferências do episcopado da região foram fundamentais. No começo, na conferência do Rio de Janeiro, em 1965, o foco de atenção estava mais voltado para o centro romano. Porém, a partir de Medellín, em 1968, houve uma verdadeira virada, que afetou não apenas o catolicismo latino-americano e caribenho, mas também, principalmente com o pontificado de Francisco, o conjunto da Igreja católica. O presente texto propõe uma síntese dos eixos principais de cada uma das cinco conferências[1].

1 Conferência do Rio

A primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-americano foi convocada por Pio XII e aconteceu no Rio de Janeiro, em 1955. Ele próprio assim o expressa:

Pareceu-nos oportuno, recolhendo ademais o voto que Nos apresentou o Episcopado da América Latina, que a Hierarquia Latino-americana se reunisse para realizar o estudo aprofundado dos problemas e dos meios mais aptos para resolvê-los, com essa prontidão e plenitude que as necessidades exigem (PIO XII, 1955).

O mais notável dessa Conferência foi, sem dúvida, o acordo de criação do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM): “A Conferência Geral do Episcopado Latino-americano aprovou, por unanimidade, pedir, e atentamente pede à Santa Sé Apostólica, a criação de um Conselho Episcopal Latino-americano” (DR 97). A missão que lhe é atribuída é preparar as Conferências Gerais do Episcopado, além do exercício da pastoral orgânica através de cinco subsecretariados (DR 97)[2].

Porém, também deve-se destacar que os bispos, instruídos pelos mais carismáticos, realmente se encontraram como bispos da Pátria Grande e debateram os temas.

A maior limitação, contudo, foi que tanto o presidente da Conferência como seu ajudante foram italianos eleitos pelo papa, que também foi quem deu o tom, o enfoque e a temática. A carta que lhes enviou antes das sessões foi quase literalmente a guia para a Declaração inicial e para as Conclusões. Assim o reconhecem os próprios bispos: “as importantíssimas Letras Apostólicas ‘Ad Ecclesiam Christi’ [que] constituíram para nós a ‘Magna Carta’ nos trabalhos e nas conclusões da Conferência” (DR, Declaração). No entanto, isso não deve ser visto como uma ingerência, porque os bispos estavam de acordo em que eles eram, digamos, os braços do papa.

As necessidades, segundo o papa e os bispos, eram, primeiramente, as da instituição eclesiástica. Assim o testemunham na Declaração e o repetiram no documento conclusivo: “a Conferência teve como objetivo central de seus trabalhos o problema fundamental que aflige nossas nações, a saber: a escassez de sacerdotes”. Qualificam-no como “a necessidade mais urgente da América Latina”. Por isso, a insistência na promoção de vocações e na sua preparação nos seminários, assim como, de modo mais geral, na instrução religiosa. O valor da doutrina cristã não poderia ser mais enaltecido:

A Santa Igreja, por disposição de Deus, é a depositária da doutrina cristã que, fundando-se nos princípios eternos e indestrutíveis da verdade divina, dá a solução a todos aqueles problemas que tocam, direta ou indiretamente, a vida espiritual e moral do homem, para que este realize plenamente sua condição de filho de Deus e se torne digno das promessas do Céu (DR, Declaração).

Esse valor da doutrina e da instituição eclesiástica, que é sua depositária, é tão grande que, ao recomendar o que chamam de “as Sagradas Letras”, insistem em que é preciso fazê-lo “destacando os textos mais importantes e fundamentais, como os relativos à Primazia de Pedro, à infalibilidade do Magistério Eclesiástico, ao valor da Tradição etc.” (DR 72). Como se percebe, a Bíblia e principalmente os Evangelhos não são a narração de um acontecimento salvífico, proclamado para que nos integremos a ele, mas um repertório de textos que ratificam a sacralidade e a autoridade da instituição eclesiástica.

A partir dessa absolutização da instituição eclesiástica, o Papa e posteriormente os bispos se referem aos inimigos. Citemos o Papa:

Muitos são, desgraçadamente, os ataques de astutos inimigos e, para rejeitá-los, é necessária enérgica vigilância: como os enganos maçônicos, a propaganda protestante, as diversas formas do laicismo, de superstição e de espiritismo, que quanto mais grave é a ignorância das coisas divinas e mais adormecida a vida cristã tanto mais facilmente se difundem, ocupando o lugar da verdadeira Fé e satisfazendo enganosamente as ânsias do povo sedento de Deus. A elas se acrescentam as perversas doutrinas dos que, sob o falso pretexto de justiça social e de melhorar as condições de vida das classes mais humildes, tendem a arrancar da alma o inestimável tesouro da religião (PIO XII, 1955).

Por isso, para vencê-los, insistem tanto na difusão da doutrina e da moral católicas.

Tendo em conta a escassez de sacerdotes, animam os leigos que “militam em uma ou outra organização de apostolado, com plena submissão às diretrizes e disposições dos Romanos Pontífices e da Sagrada Hierarquia” (PIO XII, 1955). Reconhecem que

o apostolado, mesmo sendo missão própria do sacerdote, não é exclusiva dele, mas também compete a eles, por seu próprio caráter de cristãos, sempre sob a obediência dos Bispos e dos Párocos e dentro das formas e ofícios que não são privativos do ministério sacerdotal (DR 43).

Seu conteúdo é absolutamente eclesiocêntrico:

além de um esforço contínuo por conservar e defender inteiramente a fé católica, deve ser um apostolado missionário de conquista para a dilatação do reino de Cristo em todos os setores e ambientes, particularmente onde não possa chegar a ação direta do sacerdote (DR 46).

No entanto, queremos destacar que, apesar de tanta intervenção, reconhecem o que posteriormente será enfatizado no Vaticano II: a missão lhes compete a eles como cristãos, ou seja, pelo batismo.

A problemática social é sublinhada pelo papa por sua íntima relação com a vida religiosa: “o campo social: tema que é merecedor da maior consideração em todos os povos, mas nas Nações Latino-americanas há motivos particulares para reclamar a solicitude pastoral da Sagrada Hierarquia, já que se trata de questão intimamente ligada com a vida religiosa” (PIO XII, 1955). Os bispos, na mesma sintonia, insistiram que o discípulo de Cristo deve ver tal problemática como um dever moral. A situação é vista fundamentalmente a partir da perspectiva do subdesenvolvimento: “muitos de seus habitantes – especialmente entre os trabalhadores do campo e da cidade – ainda vivem numa situação angustiante” (DR, Declaração). Por isso, a elevação das classes necessitadas acontecerá com o progresso e colaborar para que ele aconteça é um dever moral para o cristão:

O pensamento cristão, de acordo com os ensinamentos pontifícios, contempla como elemento importantíssimo a elevação das classes necessitadas, cuja realização enérgica e generosa surge para todo discípulo de Cristo não somente como um progresso temporal, mas como o cumprimento de um dever moral (DR, Declaração).

Essa elevação, tratando-se do indígena, é entendida como passar da barbárie à civilização: “um trabalho perseverante para que o ‘índio’ se incorpore com honra no seio da verdadeira civilização” (DR, Declaração). Como se percebe, identificam a cultura ocidental com a cultura e, consequentemente, as culturas indígenas como barbárie.

Concretizando um poco mais, referem-se à justiça social, que implica chegar à harmonia entre o capital e o trabalho: “solucionar esses problemas, procurando, principalmente, estabelecer a harmonia cristã entre o capital e o trabalho” (DR 80). A ação da Igreja deveria orientar-se fundamentalmente para impregnar o mundo econômico com sua doutrina e com o espírito de harmonia que a anima: “a presença ativa da Igreja é requerida, a fim de influir no mundo econômico-social, orientando-o com a luz de sua doutrina e animando-o com seu espírito” (DR, Declaração).

Seguindo o Papa, referem-se especificamente à “assistência espiritual aos emigrantes” (PIO XII, 1955).

Não há alusão às causas dessa situação de falta do essencial para as maiorias, nem – está claro – nenhuma denúncia. Pareceria que a difusão da doutrina cristã e o cumprimento do dever moral seriam suficientes para conseguir um desenvolvimento que basicamente solucionaria o problema. Por isso, Fernando Torres Londoño, depois de uma análise precisa, na qual reconhece tudo que há de positivo, conclui que essa primeira Conferência,

por seu espírito, pela temática que tratou e pelas conclusões às quais chegou, situa-se na mesma trajetória do Concilio Plenário Latino-americano de 1899. A Primeira Conferência mostra uma Igreja que ainda se pensa e se concebe em função dela mesma e de suas estruturas clericais (LONDOÑO, 1995).

2 Conferência de Medellín

Para entender Medellín, é necessário compreender seu modo de produção. À primeira vista, pareceria que se recolher num seminário, no centro de um bosque, não ajudaria a assumir a realidade, mas o isolamento provocou que o grupo como tal surgisse: os bispos, os peritos e os observadores se compenetraram nas eucaristias e nas conferências iniciais, nos grupos de trabalho e na partilha das comidas e do descanso, de maneira que todos se deixaram conquistar pelo tema e o enfocaram a partir de um mesmo espírito. Assim, as diferenças, na maior parte dos casos, chegaram a ser internas e todos se abriram para contribuir com o melhor de cada um para a elaboração conjunta. “Ao longo de duas semanas, uns 250 participantes da assembleia, cardeais, bispos, observadores, religiosos e leigos homens e mulheres, partilharam tudo: o trabalho, a mesa e a liturgia” (SCATENA, 2019, p. 14). Por isso, com exceção de dois capítulos (o da pastoral popular e o das elites), o restante possui uma unidade orgânica muito difícil de se alcançar em documentos elaborados em grupo. Por essa razão, “nessa experiência, se impôs a memória de muitos dos protagonistas, a ideia de uma efusão palpável do Espírito de Pentecostes, como depois disse o argentino Pironio” (SCATENA, 2019, p. 12). Ou como ponderou o cardeal Landázuri em seu discurso de encerramento:

O novo Pentecostes do qual várias vezes falamos a respeito dessa reunião é a grande ideia, o grande acontecimento. A consciência profética, que nesses dias se despertou e se vivificou, é a nova luz para a igreja, o novo Pentecostes para a Pátria Grande. Um novo Pentecostes que aconteceu no mesmo momento em que a igreja latino-americana decidiu encarar a nova realidade latino-americana em vez de olhar para si mesma (SCATENA, 2019, p. 27-28).

De fato, o título da Conferência foi: “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do concilio”, ou seja, o tema não foi ela mesma, mas a América Latina. A Igreja foi o sujeito que discernia – sendo parte certamente do tema – e os bispos foram capazes de interpretar profeticamente a transformação que estava acontecendo, tanto no social, no econômico e no político, como no antropológico, tanto nas elites desenvolvimentistas, como nos professionais solidários e no povo. Como contemplavam a transformação em curso a partir de Jesus de Nazaré, olhavam-na não de cima, mas a partir do povo, de sua inserção solidária nele e, por isso, a partir da escolha de um modo de vida atento ao indispensável. Essa perspectiva foi tão decisiva que a opção pelos pobres se tornou um eixo transversal e a perspectiva para ver e julgar a realidade e a ação da Igreja, refletindo-se principalmente na consideração dos pobres como sujeitos na sociedade (DM 2,27) e na Igreja, e também no compromisso dos bispos de estarem próximos dos pobres e, até certo ponto, serem pobres (DM 14: A pobreza da Igreja).

A metodologia de Medellín é ver, julgar e agir, mas tendo presente a interação das três fases. As pessoas que redigiram os documentos já estavam numa ação pastoral. A ela chegaram por uma visão e tomada de posição cristãs e é a partir daí que contemplam a situação. Esse é o ponto de partida dos inspiradores documentos de Medellín. Eles os relançam sobre a Igreja e a opinião pública de uma maneira mais objetiva: começando com a visão da realidade, iluminando-a com a revelação cristã e propondo os compromissos que derivam da consciência do que Deus nos exige para responder a essa situação. É claro que os que não partilham a opção, também não partilharão sua visão de continente, ainda que não rejeitem os dados.

Os documentos veem a situação da América Latina através de indicadores que a descrevem e de vetores que indicam suas linhas de força. Os indicadores compõem uma situação de subdesenvolvimento. Já os vetores das forças sociais mais organizadas vão em duas direções: uma modernização desenvolvimentista e uma revolução estrutural. Entretanto, sem coincidir com nenhuma delas, está a conscientização e a mobilização das massas populares por melhores condições de vida, pela superação de opressões injustas e por uma maior personalização e socialização.

Os documentos incluem quatro diagnósticos gerais do estado da América Latina e de sua dinâmica, que caracterizam certeiramente os aspectos mais decisivos do quadro latino-americano. Também contêm uma tipologia dos atores sociais organizados (DM 7,5-8). Além disso, descrevem a situação da família (DM 3,1-3), da educação (DM 4,2-6), da juventude (DM 5,1-3,9) e do impacto dos meios de comunicação (DM 16,1-2.6). Mas, principalmente no documento sobre a Paz, desenvolvem uma visão estrutural do subcontinente. Concentram-se, em primeiro lugar, nas tensões entre as classes: marginalidade e frustrações crescentes, desigualdades excessivas, opressão e repressão. Caracterizam o domínio das classes altas sobre as demais como colonialismo interno, e preveem que será difícil manter a paz pela insensibilidade dos “de cima”, a crescente conscientização dos “de baixo” e o interesse dos revolucionários em exacerbar as contradições.

Posteriormente, caracterizam como neocolonialismo a situação de dependência em relação às corporações transnacionais e ao capital financeiro mundializado, denominando-a imperialismo internacional do dinheiro. A distorção do comércio internacional, a fuga de dividendos e capitais econômicos e humanos, a evasão de impostos, o endividamento progressivo e o intervencionismo político e até militar seriam os índices mais decisivos. Por último, referem-se às tensões entre os países latino-americanos e à corrida armamentista.

Os bispos distanciam-se dos que promovem revoluções armadas como via para superar essa situação. Mesmo reconhecendo a nobreza de suas motivações, insistem que as consequências serão um agravamento da situação (DM 2,15.19). Acusam os que se opõem às necessárias reformas de serem os causantes das revoluções do desespero que podem sobrevir (DM 2,17). Propõem o desenvolvimento integral. Colocam o amor como a grande força libertadora da injustiça e da opressão e inspiradora da justiça social, entendida como concepção de vida e como impulso para o desenvolvimento integral (DM 1,5). Entendem o desenvolvimento integral como a passagem de condições de vida menos humanas a condições mais humanas:

A passagem da miséria para a posse do necessário, a vitória sobre as calamidades sociais, a ampliação dos conhecimentos, a aquisição da cultura […], o aumento na consideração da dignidade dos demais, a orientação para o espírito de pobreza, a cooperação no bem comum, a vontade de paz, […] a fé […] e a unidade na caridade de Cristo, que nos chama a todos a participar como filhos na vida de Deus vivo, Pai de todos os homens (DM Introdução,6; cf. DM 2,14a).

Esse processo requer mudanças tanto estruturais como pessoais. A situação “exige transformações globais, audazes, urgentes e profundamente renovadoras” (DM 2,16). Isso implica vencer o temor aos “sacrifícios e riscos pessoais que implica toda ação audaciosa e realmente eficaz” (DM 2,17). O risco aumenta pela oposição dos que detêm esse poder injusto e opressor. Por isso, falam da “energia forte e pacífica das obras construtivas” (DM 2,19). São as que se mencionam nos documentos sobre a família, a educação, a juventude e os leigos. Também são aquelas propostas nos documentos sobre Justiça e sobre Paz, de caráter mais global, ou seja, cidadão e político, com sua inevitável dimensão econômica.

Como a América Latina se considerava um continente católico, como os governantes se entendiam como tais, e igualmente o faziam as forças vitais do continente, dizendo-se ambos representantes de povos católicos, esse diagnóstico lhes resultou intolerável. Empreenderam, então, uma campanha virulenta de perseguição ideológica contra bispos e teólogos identificados com essa linha, acusando-os de comunistas.

A razão de ser e a inspiração de base desse documento, e também sua justificação cristã, é que Jesus se encarnou na humanidade. Por ele, que se fez não somente um de nós, mas especificamente nosso Irmão, Deus se “lançou à sorte” com a humanidade. Por sua vez, a humanidade não pode se entender adequadamente sem a referência a ele, não unicamente como Criador, mas também como Pai, através de seu Filho único, que se fez para sempre nosso Irmão e precisamente como pobre e, portanto, a partir dos pobres. Por isso, “todo ‘crescimento em humanidade’ capacita-nos a ‘reproduzir a imagem do Filho, para que ele seja o primogênito entre muitos irmãos’” (DM 4,9)

Essa unidade entre cristianismo e humanidade é o que o documento sobre a Catequese insiste que deva ser ressaltado:

Sem cair em confusões ou em identificações simplistas, deve-se expressar sempre a unidade profunda que existe entre o plano divino de salvação, realizado em Cristo, e as aspirações do homem; entre a história da salvação e a história humana; entre a Igreja, povo de Deus, e as comunidades temporais; entre a ação reveladora de Deus e a experiência do homem; entre os dons e carismas sobrenaturais e os valores humanos. (DM 8,4).

Por isso, ao contemplar essa situação a partir de dentro, os bispos a qualificam como “violência institucionalizada” (DM 2,16) que constitui uma situação de pecado (DM 2,1). Com efeito,

A paz com Deus é o fundamento último da paz interior e da paz social. Por isso mesmo, onde a paz social não existe, onde há injustiças, desigualdades sociais, políticas, econômicas e culturais, rejeita-se o dom da paz do Senhor; mais ainda, rejeita-se o próprio Senhor (DM 2,14 c).

Como se percebe, não se trata de uma análise meramente social nem de um juízo meramente político, mas de uma tomada de posição fundamentalmente cristã.

Por isso, a alternativa deve ser trabalhar para que o ser humano assuma sua dignidade e responsabilidade e, assim, se empenhe em transformar as estruturas que impedem a vida e a humanidade de se desenvolverem:

A originalidade da mensagem cristã não consiste tanto na afirmação da necessidade de uma mudança de estruturas, quanto na insistência que devemos pôr na conversão do homem. Não teremos um continente novo, sem novas e renovadas estruturas, mas sobretudo não haverá continente novo sem homens novos, que à luz do Evangelho saibam ser verdadeiramente livres e responsáveis (DM 1,3).

O que mais caracteriza o Documento é seu caráter responsável (TRIGO, 2018, p. 33-57): atribuem à Igreja, da qual são responsáveis, o equivalente ao que apontam para a sociedade e, em ambos os campos, estão dispostos a colocá-lo em prática, tanto como dirigentes quanto como cidadãos e membros do povo de Deus (DM Introdução 3). Antes de mais nada, exortam os privilegiados (DM 2,17), os passivos (DM 2,18) e os violentos (DM 2,19), assim como os cristãos, a assumirem sua responsabilidade e promoverem a paz trabalhando pela justiça (DM 2,14.16.22). Nessa direção, devem encaminhar-se as diversas expressões da pastoral (DM 2,24), nossas escolas, seminários e universidades (DM 2,25), a espiritualidade dos leigos (DM 10,17) e a tarefa do bispo (DM 15,17).

A alternativa tem que começar por uma mudança pessoal (DM 1,3), que é, simultaneamente, personalização e coesão fraterna (DM Introdução 4) e conscientização da realidade (DM 2,7). A isso são exortados os educadores (DM 4,8; 5,14), o que, cristãmente falando, é uma conversão (DM Mensagem; DM 14,17; 6,8.15). Por isso, os bispos dizem que lhes corresponde educar as consciências em todos esses aspectos (DM 2,20-21) e também fomentar os hábitos comunitários em vistas à colaboração (DM 1,17). Essa consciência crítica da realidade é fundamental para os cristãos (DM 1,6) e, por isso, parte ineludível da catequese (DM 1,17), uma vez que, para conhecer a Deus, é preciso conhecer o ser humano e em Jesus de Nazaré se manifesta o mistério humano (DM Introdução 1). Essa participação tem que chegar à política como exercício de caridade (DM 1,16).

A proposta de uma educação personalizante (DM 4,4.8.11) se expressa para a Igreja como necessidade de colocar em marcha uma catequese integral (DM 8,1.6). Propõem que sejam participativas tanto a sociedade (DM 7,21;5,1; 2,15;1,7;4,12; 1,12.16) como a Igreja (DM 15,3.6; 5,13,14; 11,16.19). À necessidade de que a sociedade se reestruture a partir das comunidades de base (DM 2,14.27) corresponde a de que a Igreja o faça a partir das comunidades cristãs de base (DM 15,10.13;8,10;6,14). Ocorre também correspondência entre a proposta de planificação participativa para a sociedade (DM 1,15;7,21) e a da pastoral de conjunto (orgânica) para a Igreja (DM 15,5.9.23; 9,13; 15,10). Essa mesma correspondência podemos observar entre as expressões societárias segundo as diversas culturas (DM 4,3;5,11) e a inculturação da pastoral (DM 8,15; 6,1; 8,8; 9,7.10-11).

Uma correspondência especialmente relevante e significativa é a que acontece entre a exigência de que as elites cedam seus privilégios em favor dos de baixo (DM 14,10; 2,5.17) e a decisão da instituição eclesiástica de mudança de destinatário privilegiado, de condição social e de situação (DM 14,9.11.15.16).

Se consideramos bem o que foi a primeira conferência episcopal, será fácil compreender o assombro diante dessas conclusões de Medellín, tanto entre os meios de comunicação e os intelectuais e, de forma mais geral, entre as elites latino-americanas, como na cúria vaticana e na cristandade do Ocidente e do terceiro mundo. Tal surpresa se notou principalmente na maior parte da instituição eclesiástica latino-americana e dos católicos clericalizados, que, em sua maioria, não tinham tomado conhecimento da novidade do Vaticano II ou não se abriram a ela e, por isso, não puderam aceitar o que era, na verdade, sua recepção criativamente fiel.

O pressuposto de todos eles era que, no episcopado latino-americano, não havia sujeito com sã autonomia, com qualidade cristã e perspicácia histórica. Por isso, não se via de onde havia saído o documento de Medellín. Parecia-lhes impossível que refletisse o pensar e o sentir, a posição vital e o discernimento dos bispos latino-americanos. Por essa razão, é especialmente digno de menção que o papa Pablo VI, que tinha presidido a inauguração da conferência, lhe desse um voto de confiança e aprovasse suas conclusões antes de lê-las.

3 Conferência de Puebla

Essa desconfiança da cúria romana em relação ao rumo que o episcopado latino-americano estava tomando se expressou institucionalmente quando interveio no CELAM, em 1972, impondo, por meio do núncio, a López Trujillo como secretário (COMBLIN, 2011, p. 147). Ele preparou o documento de trabalho para Puebla e também propôs coordenar a reunião. Entretanto, o presidente da assembleia, Lorscheider, submeteu o assunto a votação e a assembleia rejeitou ambas as medidas. Ainda que o discurso inicial do Papa impôs, em alguma medida, os temas de Jesus Cristo, o ser humano e a Igreja, a assembleia trabalhou com liberdade e referendou Medellín em vários textos (DP 12, 15, 25, 96, 142, 235, 260, 462, 480, 550, 590, 648, 1134, 1165, 1247). No entanto, nem todas as orientações seguiram essa linha. Por isso, podemos considerar o documento como um compromisso entre as diversas correntes (TRIGO, 1979, p. 98-107).

A proposta da minoria consistia em contrastar o radical substrato católico da cultura latino-americana e o secularismo da adveniente cultura universal e em optar por uma modernização sem secularismo. O documento, porém, insiste de modo contundente no fato escandaloso de que “em povos de fé cristã enraizada se impuseram estruturas geradoras de injustiça”, o que é “sinal acusador de que a fé não teve a força necessária para penetrar os critérios e as decisões dos setores responsáveis da liderança” (DP 437).

Para começar pelo método, Puebla assume o método ver, jugar e agir, utilizado em Medellín: começa com a visão pastoral da realidade latino-americana, continua com os desígnios de Deus sobre a realidade da América Latina, prossegue com os centros, os agentes e os meios de evangelizar, e finaliza com as opções e ações preferenciais. Para pôr em marcha as conclusões da assembleia, propõe um processo de participação educando “numa metodologia de análise da realidade, para depois refletir sobre essa realidade do ponto de vista do Evangelho, optar pelos objetivos e meios mais aptos, e seu uso mais racional na ação evangelizadora” (DP 1307).

A fundamentação teológica do método é que a salvação acontece na história, mas a história não é epifania de Deus. Assim sendo,

para que tudo isso se faça de acordo com o espírito de Cristo, devemos exercitar-nos no discernimento das situações e dos chamados concretos que o Senhor faz em cada tempo. Isto exige atitude de conversão e de abertura e sério compromisso com aquilo que foi reconhecido como autenticamente evangélico (DP 338).

É por essa razão que colocam como primeira opção pastoral a própria conversão da Igreja, que concretizam muito pertinentemente (DP 973-975).

Para Puebla, a primeira causa de todos os problemas é o sistema econômico imperante, que não considera o ser humano como centro da sociedade e, por isso, não se interessa em alcançar uma sociedade justa (DP 64, 129). Em função disso, o efeito desse sistema é a polarização crescente entre ricos e pobres (DP 1, 28, 30, 38, 47, 129, 138, 494, 542, 778, 1135, 1207-1209, 1264). Como em Medellín, os bispos qualificam essa situação como “de pecado” (DP 28, 70, 73, 281, 452, 487, 509, 1032) e propõem também a “conversão pessoal e mudanças profundas de estruturas” (DP 30; cf. DP 436-438 et passim).

O enfoque de Puebla estaria nas culturas e nas ideologias. Como tendência histórica dizem: “a programação da vida social corresponderá cada dia mais aos modelos buscados pela tecnocracia, sem correspondência com os anseios de uma ordem internacional mais justa” (DP 129). Ela utilizará os mass media: eles “irão programando cada vez mais a vida do homem e da sociedade” (DP 128; cf. DP 1072-1073). Puebla capta o deslocamento da cultura tradicional latino-americana para o que chama de “adveniente cultura universal”, que, impulsionada pelas grandes potências, “pretende ser universal. Os povos, as culturas particulares, os diversos grupos humanos são convidados, e mais ainda, obrigados a integrar-se nela” (DP 421). “A Igreja não aceita aquela instrumentação da universalidade que equivale à unificação da humanidade mediante uma injusta e lesante supremacia e domínio de uns povos ou setores sociais sobre outros povos e setores” (DP 427). Contudo, reconhece que essa cultura permeou tudo, de tal maneira que “se pode falar, com razão, de uma nova época da história humana (GS 54)” (DP 393).

Em relação às ideologias, os bispos se referem ao liberalismo capitalista (DP 47, 437, 452), ao coletivismo marxista (DP 48, 437, 543) e à Segurança Nacional (DP 49, 547-549). Como visões inadequadas do ser humano, mencionam a determinista (DP 308-309, 335), a psicologista (DP 310), a economicista (DP 311-313), a consumista (DP 311), a liberal (DP 312), a coletivista (DP 313), a estatista (DP 314), a cientista (DP 315).

Insistem nos direitos humanos e na dignidade absoluta da pessoa humana. Ressaltam o não reconhecimento dessa dignidade (e, portanto, a violação massiva de seus direitos), a fundamentação desses direitos e da apresentação positiva a respeito do que significa tal dignidade, além de explicitarem o que fazer para salvaguardá-la e fomentá-la. Por isso, denunciam o que nega mais radicalmente a pessoa, isto é, as idolatrias da nossa época: o dinheiro e o poder, combinados, que atuam buscando expandir-se e que, por essa razão, instrumentalizam todo o resto (DP 493-501). “É urgente libertar a nossos povos do ídolo do poder absoluto para conseguir uma convivência social em justiça e liberdade” (DP 502). Por essa razão, o documento insiste no direito primário da humanidade aos bens da terra, direito ao qual estão subordinados o da propriedade privada e o do livre comércio (DP 492, 542, 747, 1224, 1281).

Essa evangelização tem que penetrar nas culturas. Os bispos optam por duas direções complementares: a evangelização da cultura que foi forjada na América Latina nestes cinco séculos, por meio da evangelização da religiosidade popular, que é seu manancial mais profundo, e dos povos, que são seus portadores; e, simultaneamente, a evangelização da adveniente cultura universal pela evangelização dos construtores da sociedade pluralista que se está forjando nos nossos dias. Contudo, insistem complementarmente em que os pobres também são sujeitos evangelizadores:

O compromisso com os pobres e oprimidos e o surgimento das Comunidades de Base ajudaram a Igreja a descobrir o potencial evangelizador dos pobres, enquanto estes a interpelam constantemente, chamando-a à conversão e porque muitos deles realizam em sua vida os valores evangélicos de solidariedade, serviço, simplicidade e disponibilidade para acolher o dom de Deus (DP 1147).

Além disso, a opção pelos pobres não é apenas um dos capítulos do documento, mas um eixo transversal que o atravessa completamente (TRIGO, 1979, p. 108-111). Por isso, esse é o aspecto de Puebla que possui maior transcendência histórica, e que, sendo assumido pela Igreja latino-americana, foi proposto repetidamente pelo Papa João Paulo II à Igreja universal. Em Puebla, essa opção é tão crucial que a podemos considerar, juntamente com a apresentação de Jesus de Nazaré, como o que dinamiza, estrutura e unifica todo o documento. É particularmente pertinente sua fundamentação teológica: Deus toma sua defesa e os ama, porque “criados à imagem e semelhança de Deus para serem seus filhos, esta imagem está obscurecida e também escarnecida” (DP 1142). E pede que olhemos para rostos muito concretos que a pobreza generalizada toma entre nós (DP 32-39), para que reconheçamos neles “as feições sofredoras de Cristo, o Senhor, que nos questiona e interpela” (DP 31). Por isso, “o serviço dos pobres é a medida privilegiada, embora não exclusiva, de nosso seguimento de Cristo” (DP 1145). Cristo, que em todo o documento é inequivocamente Jesus de Nazaré, que “nasceu e viveu pobre no meio de seu povo de Israel, compadeceu-se das multidões e fez o bem a todos” (DP 190).

A medida da integralidade da opção pelos pobres é a pobreza evangélica que é “exigida a todos os cristãos” (DP 1148) e se caracteriza por três elementos: atitude de abertura confiada em Deus; uma vida simples, sóbria e austera, que afaste a tentação da ganância e do orgulho; e a comunicação de bens materiais e espirituais com os pobres (DP 1149-1150). Para os bispos, “esta pobreza é um desafio ao materialismo e abre as portas a soluções alternativas da sociedade de consumo” (DP 1152). Os bispos se alegram ao ver que muitos de seus filhos não pobres vivem essa pobreza cristã (DP 1151).

A partir da liberdade que dá a pobreza evangélica, têm sentido as propostas que se esboçam: a condenação da pobreza antievangélica à qual está submetida a maioria da América Latina, o esforço por conhecer cada vez mais os mecanismos que causam essa tragédia e denunciá-los, a soma de esforços com os que lutam por desenraizá-la e criar um mundo mais justo e humano, o apoio aos trabalhadores que querem ser tratados como livres e responsáveis e participar nas decisões que concernem suas vidas, a defesa do direito a que criem suas próprias organizações (Cf. DM 2,27), e o respeito e apoio às culturas indígenas (DP 1159-1164).

A partir dessa opção, compreende-se sua mensagem aos construtores da sociedade pluralista. Destacamos dois elementos: o primeiro diz respeito à defesa do salário dos trabalhadores, do direito a organizar-se e participar nas empresas, e do direito mais geral a uma política econômica que não se dirija à redução do emprego; o segundo refere-se à justiça no ponto específico dos contratos, além de sua legalidade, aborda-se o ponto mais genérico da destinação primária dos recursos da terra para a humanidade como magnitude real, como sujeito coletivo, a que está subordinada a propriedade privada.

O serviço do povo de Deus aos povos é a evangelização. Ela

dá a conhecer Jesus como o Senhor que nos revela o Pai e nos comunica seu Espírito. Ela chama-nos à conversão que é reconciliação e vida nova, leva-nos à comunhão com o Pai que nos torna filhos e irmãos. Faz brotar, pela caridade derramada em nossos corações, frutos de justiça, perdão, respeito, dignidade e paz no mundo (DP 352).

O documento insiste no binômio de comunhão e participação, tanto como estrutura da Igreja como missão que tem que levar ao mundo. O motivo é que o Reino “se realiza de certo modo onde quer que Deus esteja reinando mediante sua graça, seu amor, vencendo o pecado e ajudando os homens a crescerem até conseguir a grande comunhão que lhes é oferecida em Cristo” (DP 226). O desígnio de Deus é que os seres humanos construam a comunhão “em toda a sua vida”, inclusive “na sua dimensão econômica, social e política” (DP 215). Essa comunhão, que é a mais genuína produção humana, na perspectiva do plano transcendente, é “produzida pelo Pai, o Filho e Espírito Santo”, porque “é a comunicação de sua própria comunhão trinitária” (DP 215). Por isso, as formas de comunhão

humana, nos seus diversos âmbitos, “são animadas pela graça, primícias dela” (DP 218). No entanto,

o pecado, força de ruptura, há de impedir constantemente o crescimento no amor e a comunhão tanto a partir do coração dos homens, como a partir das diversas estruturas por eles criadas, nas quais o pecado de seus autores imprimiu sua marca destruidora. Neste sentido, a situação de miséria, marginalidade, injustiça e corrupção, que fere nosso Continente, exige do Povo de Deus e de cada cristão um autêntico heroísmo com seu compromisso evangelizador, a fim de poder superar semelhantes obstáculos (DP 281).

O Evangelho nos deve ensinar, em face das realidades em que vivemos imersos, que não se pode atualmente na América Latina amar de verdade o irmão nem portanto a Deus, sem que o homem se comprometa em nível pessoal e, em muitos casos, até em nível estrutural, com o serviço e promoção dos grupos humanos e dos estratos sociais mais pobres e humilhados, arcando com todas as consequências que se seguem (DP 327).

Nisso consiste a sacramentalidade da Igreja: em ser sinal credível de comunhão. Por isso,

cada comunidade eclesial deveria esforçar-se por constituir para o Continente exemplo de modo de convivência onde consigam unir-se a liberdade e a solidariedade, onde a autoridade se exerça com o espírito do Bom Pastor, onde se viva uma atitude diferente diante da riqueza, onde se ensaiem formas de organização e estruturas de participação, capazes de abrir caminho para um tipo mais humano de sociedade (DP 273).

Para que formem parte desse sinal, os pastores estão a serviço da Família de Deus como irmãos: “São irmãos chamados a cuidar da vida que o Espírito suscita, livremente, nos demais irmãos. É dever dos pastores respeitarem esta vida, acolhê-la, orientá-la e promovê-la, ainda que tenha nascido independentemente da iniciativa deles” (DP 249).

4 Conferência de Santo Domingo

Esta conferência foi celebrada no quinto centenário do “descobrimento”. O mais lógico teria sido realizar um discernimento desses cinco séculos, da atuação do cristianismo neles e fazer propostas para fortalecer o bom e superar o ruim. Entretanto, o Vaticano interveio de modo que, no nível estrutural, não foi uma conferência do episcopado, uma vez que mais da metade dos presentes não foram eleitos pelos bispos, foi descartado o documento de trabalho, os que a presidiram vieram de Roma e de lá também veio a normativa e, principalmente, porque não se admitiu a redação global do que os grupos de trabalho elaboraram e que, com exceção dos doutrinais, estavam na linha de Medellín e Puebla e avançavam nessa direção. Tampouco se admitiu o método ver, julgar, agir, que foi substituído por uma doutrina pré-conciliar sobre Jesus Cristo e a Igreja. Por pouco a assembleia não descartou tudo. Por fim, porém, reestruturou-se o que foi possível e o resultado foi satisfatório para a maioria, considerando que os capítulos sobre a promoção humana e a cultura cristã pareciam canais adequados para a pastoral.

Além disso, não foram favoráveis nem a separação entre o local de alojamento e o lugar de trabalho, nem a hospedagem do episcopado em hotéis luxuosos, que continuaram funcionando como tais. Nesse sentido, foi o mais oposto a Medellín.

O tema foi “impulsionar, com novo ardor, uma Nova Evangelização que se projete num maior compromisso pela promoção integral do homem e impregne com a luz do Evangelho as culturas dos povos latino-americanos” (DSD 1). A primeira parte, “Jesus Cristo, evangelho do Pai”, infelizmente, não recolhe a riqueza do conhecimento vivo de Jesus de Nazaré pela leitura orante feita nas comunidades, uma das grandes riquezas do cristianismo latino-americano que se expressou em Medellín e em Puebla. Nem sequer diz que foi entregue ao procurador romano para que fosse crucificado como subversivo, pelas autoridades religiosas, especialmente a aristocracia sacerdotal, que ressentia sua liderança com o povo, o que minava seu carácter institucional; “todo mundo vai atrás dele” (Jo 12,19).  O que se propõe é

Provocar nos católicos a adesão pessoal a Cristo e à Igreja pelo anúncio do Senhor ressuscitado; desenvolver uma catequese que instrua devidamente o povo, explicando o mistério da Igreja, sacramento de salvação e comunhão, a mediação da Virgem Maria e dos santos e a missão da hierarquia (DSD 142).

Como se vê, substitui-se a Jesus de Nazaré pelo ressuscitado e a catequese, em vez de se centrar no seguimento de Jesus, restringe-se à Igreja, à hierarquia e à devoção a Maria. Por isso, no documento, a liturgia não é a celebração da fidelidade no seguimento de Jesus na vida histórica, mas a fonte e o centro, a ser aplicado à vida (DSD 34-35). O doutrinarismo é tal que chegam a afirmar que os “valores, critérios, condutas e atitudes” da religiosidade popular, que “constituem a sabedoria de nosso povo”, “nascem do dogma católico” (DSD 36).

No entanto, existem muitos textos resgatáveis: a necessidade de uma

nova evangelização surge na América Latina como resposta aos problemas que apresentados pela realidade de um continente no qual se dá um divórcio entre fé e vida, a ponto de produzir clamorosas situações de injustiça, desigualdade social e violência. Implica enfrentar a grandiosa tarefa de infundir energias ao cristianismo da América Latina (DSD 24).

Os bispos afirmam que “o conteúdo da Nova Evangelização é Jesus Cristo” (DSD 27). Novas situações exigem novos caminhos. Não pode faltar “o testemunho e o encontro pessoal, a presença do cristão em todo o humano, assim como a confiança no anúncio salvador de Jesus” (DSD 29). O cristianismo e a Igreja têm “de inculturar-se mais no modo de ser e de viver de nossas culturas. (…) Assim, a Nova Evangelização continuará na linha da encarnação do Verbo” (DSD 30).

A proclamação evangélica e a catequese devem “nutrir-se da Palavra de Deus lida e interpretada na Igreja e celebrada na comunidade” (DSD 33). Realiza-se:

“difundindo seu testemunho vivo sobretudo com a vida de fé e caridade” (LG 12). O testemunho de vida cristã é a primeira e insubstituível forma de evangelização, como o fez presente vigorosamente Jesus em várias ocasiões (cf. Mt 7,21-23; 25,31-46; Lc 10,37; 19,1-10) e o ensinaram também os apóstolos (cf. Tg 2,14-18). (DSD 33)

Nessa nova evangelização, pedem “que os batizados não evangelizados sejam os principais destinatários da Nova Evangelização. Esta só será efetivamente levada a cabo se os leigos, conscientes do seu batismo, responderem ao chamado de Cristo a que se convertam em protagonistas da Nova Evangelização” (DSD 97). Por isso, deve-se “evitar que os leigos reduzam sua ação ao âmbito intraeclesial, impulsionando-os a penetrar os ambientes socioculturais e a serem eles os protagonistas da transformação da sociedade à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja” (DSD 98). “Uma linha prioritária de nossa pastoral, fruto desta IV Conferência, há de ser a de uma Igreja na qual os fiéis cristãos leigos sejam protagonistas” (DSD 103).

Já insistimos em que o que dizem sobre a promoção humana é fundamentalmente pertinente. Em primeiro lugar, afirmam que

os direitos humanos são violados não só pelo terrorismo, repressão, assassínios, mas também pela existência de condições de extrema pobreza e de estruturas econômicas injustas que originam grandes desigualdades. A intolerância política e o indiferentismo diante da situação de empobrecimento generalizado mostram desprezo pela vida humana concreta que não podemos calar (DSD 167).

Especificam-no convincentemente:

O crescente empobrecimento a que estão submetidos milhões de irmãos nossos, que chega a intoleráveis extremos de miséria, é o mais devastador e humilhante flagelo que vive a América Latina e Caribe. Assim o denunciamos tanto em Medellín como em Puebla e hoje voltamos a fazê-lo com preocupação e angústia. As estatísticas mostram com eloquência que na última década as situações de pobreza cresceram tanto em números absolutos como em relativos. A nós, pastores, comove-nos até as entranhas ver continuamente a multidão de homens e mulheres, crianças e jovens e anciãos que sofrem o insuportável peso da miséria assim como diversas formas de exclusão social, étnica e cultural; são pessoas humanas concretas e irredutíveis, que veem seus horizontes cada vez mais fechados e sua dignidade desconhecida.

Vemos o empobrecimento de nosso povo não só como um fenômeno econômico e social, registrado e quantificado pelas ciências sociais. Nós o vemos dentro da experiência de muita gente com quem compartilhamos, como pastores, sua luta cotidiana pela vida.

A política de corte neoliberal que predomina hoje na América Latina e no Caribe aprofunda ainda mais as consequências negativas destes mecanismos. Ao desregular indiscriminadamente o mercado, eliminar partes importantes da legislação trabalhista e despedir empregados, ao reduzir os gastos sociais que protegiam as famílias dos trabalhadores, foram aumentando ainda mais as distâncias na sociedade (DSD 179).

Por isso, afirmam que “descobrir nos rostos sofredores dos pobres o rosto do Senhor (cf. Mt 25,31-46) é algo que desafia todos os cristãos a uma profunda conversão pessoal e eclesial” (DSD 178). O texto especifica esses rostos.

A conclusão é:

Assumir com decisão renovada a evangélica opção preferencial pelos pobres, seguindo o exemplo e as palavras do Senhor Jesus, com plena confiança em Deus, austeridade de vida e partilha de bens. […]

Corrigir atitudes e comportamentos pessoais e comunitários, bem como as estruturas e métodos pastorais, a fim de que não afastem os pobres, mas que propiciem a proximidade e a partilha com eles.

Promover a participação social junto ao Estado, pleiteando leis que defendam os direitos dos pobres (DSD 180).

Referem-se concretamente à realidade do trabalho (DSD 186), avaliam-na cristãmente e propõem desafios e linhas pastorais consonantes (DSD 182-185). Igualmente o fazem sobre as migrações (DSD 186-189) e em relação à ordem democrática (DSD 190-193). Destacamos:

Corrigir atitudes e comportamentos pessoais e comunitários, bem como as estruturas e métodos pastorais, a fim de que não afastem os pobres, mas que propiciem a proximidade e a partilha com eles. Promover a participação social junto ao Estado, pleiteando leis que defendam os direitos dos pobres (DSD 180).

Também sobre a nova ordem econômica (DSD 194-203), destacamos:

Fomentar a busca e implementação de modelos socioeconômicos que conjuguem a livre iniciativa, a criatividade de pessoas e grupos, a função moderadora do Estado, sem deixar de dar atenção especial aos setores mais necessitados. Tudo isto, orientado para a realização de economia da solidariedade e da participação, expressa em diversas formas de propriedade (DSD 201).

Da mesma forma, em relação à integração latino-americana (DSD 204-209), ressaltamos o horizonte:

Todos sentimos a urgência de integrar o disperso e de unir esforços para que a interdependência se torne solidariedade e esta possa transformar-se em fraternidade […] A Igreja tem consciência de seu singular protagonismo e de seu papel orientador quanto à formação de uma mentalidade de pertença à humanidade e ao fomento de uma cultura solidária e de reconciliação (DSD 204).

Também nos parece pertinente o que se diz sobre a família, ainda que não partilhemos a insistência de que todo ato sexual deve estar aberto à procriação (DSD 210-227).

O tratamento da cultura padece do mesmo problema de enfoque que em Puebla, já que, de algum modo, pretende identificar os sinais de identidade católica, presentes massivamente no continente, com sua condição de evangelizado. Tampouco concordo com a pretensão de que exista ou possa existir uma cultura cristã (DSD 229). A evangelização da cultura se apoia, sem dúvida, em elementos positivos, mas nunca corrigirá totalmente os negativos estruturais. Além disso, não concordo que a inculturação do evangelho consista em introduzir valores (DSD 230): é demasiadamente etéreo.

Coincido com a importância da catequese, mas estou de acordo com o paradoxo de que coexistem “um desconhecimento da doutrina ao lado de vivências católicas enraizadas nos princípios do Evangelho” (DSD 247). Insistem, e é pertinente fazê-lo, em “apresentar a vida moral como seguimento de Cristo” (DSD 239). Entretanto, por isso mesmo, é uma debilidade que, ao apresentar Jesus, omitam a sua vida concreta.

É valiosa a indicação sobre o que significa a evangelização da cultura negra:

Conscientes do problema da marginalização e do racismo que pesa sobre a população negra, a Igreja, na sua missão evangelizadora, quer participar dos seus sofrimentos e acompanhá-los em suas legítimas aspirações em busca de uma vida mais justa e digna para todos (249).

O mesmo se aplicas às culturas indígenas:

Contribuir eficazmente para deter e erradicar as políticas tendentes a fazer desaparecer as culturas autóctones como meios de forçada integração; ou, pelo contrário, políticas que queiram manter os indígenas isolados e marginalizados da realidade nacional (DSD 251).

Ao se referirem à evangelização das culturas modernas, os bispos assinalam, desde o início, a “incoerência entre os valores do povo, inspirados em princípios cristãos, e as estruturas sociais geradoras de injustiças, que impedem o exercício dos direitos humanos” (DSD 253).

A caracterização da cidade e da pastoral proposta para ela revela a falta de uma compreensão mais profunda de sua realidade e de adaptação a ela (DSD 255-262).

“A educação cristã desenvolve e assegura a cada cristão a sua vida de fé e faz com que verdadeiramente nele sua vida seja Cristo” (DSD 264) Afirma-se o que acontece ou o que gostaríamos que acontecesse? Isso está sequer cogitado no que se chama educação católica?

O que é afirmado sobre a educação cristã é tão pertinente que seria bom que ao menos fosse considerado nos processos de iniciação cristã:

a educação cristã se funda numa verdadeira antropologia cristã que significa a abertura do homem para Deus como Criador e Pai, para os outros como seus irmãos, e para o mundo como aquilo que lhe foi entregue para potenciar suas virtualidades, e não para exercer sobre ele domínio despótico que destrua a natureza (DSD 264).

Os desafios da realidade estão bem definidos:

a realidade latino-americana nos interpela pela exclusão de muita gente da educação escolar, mesmo a básica, pelo grande analfabetismo que existe em vários dos nossos países; interpelados pela crise da família, a primeira educadora, pelo divórcio existente entre o Evangelho e a cultura; pelas diferenças sociais e econômicas que fazem com que para muitos seja dispendiosa a educação católica, especialmente nos níveis superiores. Interpela-nos também a educação informal que se recebe através de tantos comunicadores não propriamente cristãos, p. ex., televisão (DSD 267).

Há uma consciência muito realista da direção da demanda:

Geralmente nos pedem, com base em critérios secularistas, que eduquemos o homem técnico, o homem apto para dominar seu mundo e viver num intercâmbio de bens produzidos sob certas normas políticas; as mínimas. Esta realidade nos interpela fortemente para podermos ser conscientes de todos os valores que estão nela e podê-los recapitular em Cristo (DSD 266).

É possível, ou se tem que discernir o que sim e o que não? Por isso, pedem um diálogo com o homem técnico e com o humanismo cristão, de modo que se chegue à sabedoria cristã (DSD 268).

A fundamentação antropológica na qual se baseia o tratamento sobre a comunicação é certeira: “Cada pessoa e cada grupo humano desenvolve sua identidade no encontro com os outros (alteridade)” (DSD 279).

O problema é bem definido:

Damo-nos conta do desenvolvimento da indústria da comunicação na América Latina e no Caribe que mostra o crescimento de grupos econômicos e políticos que concentram cada vez mais em poucas mãos e com enorme poder a propriedade dos diversos meios e chegam a manipular a comunicação, impondo uma cultura que estimula o hedonismo e o consumismo e atropela nossas culturas com os seus valores e identidades.

Vemos como a publicidade frequentemente introduz falsas expectativas e cria necessidades fictícias; vemos também como especialmente na programação televisiva sobejam a violência e a pornografia, que penetram agressivamente no seio das famílias (DSD 280).

O que se diz sobre comunicação social e a cultura é suficiente, ainda que se reconheça que está apenas começando (DSD 275-286).

Recapitulando: “nos comprometemos a trabalhar em: 1. Uma Nova Evangelização de nossos povos. 2. Uma promoção integral dos povos latino-americanos e caribenhos. 3. Uma Evangelização inculturada” (DSD 292). São os três temas propostos pelo Papa e assumidos pela Conferência.

5 Conferência de Aparecida

O título da Conferência de Aparecida (2007) é “Discípulos e Missionários de Jesus Cristo, para que nEle nossos povos tenham vida”, um título que expressa adequadamente nosso ser cristão.

O documento gira ao redor da vida e o sujeito que a promove é o coletivo dos discípulos missionários, ainda que o sujeito transcendente seja Jesus Cristo. A primeira parte, “A vida de nossos povos hoje”, se apresenta como o olhar dos discípulos missionários sobre a realidade; a segunda, “A vida de Jesus Cristo nos discípulos missionários”, desenvolve sua vocação à santidade, sua comunhão na Igreja e seu itinerário formativo; e a terceira, “A vida de Jesus Cristo para nossos povos”, se refere à sua missão de serviço em favor da vida, da promoção da dignidade humana, especialmente dos pobres, dos que sofrem e particularmente da família e seus membros de diferentes idades e responsabilidades, concluindo com um capítulo sobre a evangelização da cultura.

O objetivo de Aparecida é “repensar profundamente e relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais” (DAp 11). A necessidade desse relançamento deriva da novidade da época, que exige evangelizá-la e inculturar nela o Evangelho. Por isso, o documento dedicará muitas páginas à sua caracterização como oportunidade e risco para a vida humana, e para a qualidade humana dessa vida e, mais especificamente, para a fé cristã. Porém, para os bispos, é também imprescindível uma nova evangelização fundante pela situação do catolicismo na nossa região. De fato, o documento reconhece que, na vida cotidiana da Igreja, “aparentemente tudo procede com normalidade, mas na realidade a fé vai desgastando-se e diluindo-se em mesquinhez” (DAp 12). Por isso, é imprescindível um “acontecimento fundante”, que esteja ligado a um “encontro vivificante com Cristo” (DAp 13).

Esse acontecimento diz respeito, de um modo ou outro, a todos os católicos: “A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo, reconhecendo que não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva” (DAp 12). Portanto, a revitalização do catolicismo “não depende tanto de grandes programas e estruturas, mas de homens e mulheres novos que encarnem essa tradição e novidade, como discípulos de Jesus Cristo e missionários de seu Reino” (DAp 11).

A partir desse objetivo, o documento afirma que foi escrito em continuidade com as Conferências anteriores (DAp 9, 16, 369, 396, 402, 446, 526), já que elas também tiveram o mesmo objetivo de atualizar o Evangelho nas suas próprias circunstâncias, tendo em vista contribuir para que os povos latino-americanos tenham vida humana segundo a humanidade de Jesus Cristo.

Queremos salientar a importância de conectar o encontro com Jesus de Nazaré com a entrega ao seu Reino. Uma entrega a Jesus que prescinda da tarefa do Reino não é entrega a ele, mas a um Cristo que inventamos, uma vez que ele rejeitou a proposta de Pedro de ficar no Tabor contemplando-o (Mc 9,5-8) ou a da Madalena de permanecer desfrutando de sua pessoa ressuscitada (Jo 20,16-18) e os enviou a prosseguir a missão que o Pai lhe havia encomendado (Jo 20,21). Assim, o encontro com Jesus não pode ser concebido como estar devotamente com ele (nisso consiste o pietismo), mas como o seguimento de sua missão com seu mesmo Espírito (DAp 129-153).

O método é partir do olhar crente sobre a realidade para ver nela a passagem de Deus e o que se opõe ao mundo fraterno das filhas e filhos de Deus, isto é, ao Reino que Jesus veio instaurar, ou, dito com outras palavras, ouvindo os sinais dos tempos:

Os povos da América Latina e do Caribe vivem hoje uma realidade marcada por grandes mudanças que afetam profundamente suas vidas. Como discípulos de Jesus Cristo, sentimo-nos desafiados a discernir os ‘sinais dos tempos’, à luz do Espírito Santo, para nos colocar a serviço do Reino, anunciado por Jesus, que veio para que todos tenham vida e ‘para que a tenham em plenitude’ (Jo 10, 10) (DAp 33; cf. DAp 366).

Por isso, o método adotado, em continuidade com as conferências anteriores, é o ver, julgar e agir:

Este método nos permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade; a assunção de critérios que provêm da fé e da razão para seu discernimento e valorização com sentido crítico; e, em consequência, a projeção do agir como discípulos missionários de Jesus Cristo (DAp 19).

A razão dessa sequência é que para fazer o equivalente do que ele fez na sua situação, que significa segui-lo (cf. DAp 139), não só é necessário conhecer seu modo de lidar com sua realidade, mas também com a nossa situação atual.

Parece bastante acertado que o tema seja a vida, já que, na América Latina, a vida é ameaçada e ultrajada de múltiplos modos. Por outra parte, existe, na nossa região, um desejo inegável de vida realmente humana. Além do mais, para isso Jesus veio ao mundo: para que tivéssemos vida e, inclusive, para nos dar vida com sua vida (DAp 347-364).

É decisivo que os cristãos tenhamos que ser discípulos, porque, como o documento reconhece com grande realismo, “se muitas das estruturas atuais geram pobreza, em parte é devido à falta de fidelidade a compromissos evangélicos de muitos cristãos com especiais responsabilidades políticas, econômicas e culturais” (DAp 501). Também é um acerto unir a condição de discípulos à de enviados, porque Jesus escolheu discípulos para que participassem de sua missão. Se os teve a seu lado, foi para que, na convivência, se impregnassem por conaturalidade (cf. DAp 336) de sua mentalidade, suas atitudes e seu modo de se relacionar. É também destacável que não proponha a missão como a maquinária das empresas para vender seus produtos, mas como um acontecimento “que precisa passar de pessoa a pessoa, de casa em casa, de comunidade a comunidade […], sobretudo entre as casas das periferias urbanas e do interior […], procurando dialogar com todos em espírito de compreensão e de delicada caridade.” E continua citando o Papa Bento XVI: “se as pessoas encontradas estão em situação de pobreza, é necessário ajudá-las, como faziam as primeiras comunidades cristãs, praticando a solidariedade, para que se sintam amadas de verdade” (DAp 550).

O documento especifica os lugares onde nos encontramos com Jesus de Nazaré: em primeiro lugar, nos evangelhos (DAp 247, 255), também na comunidade (DAp 256), notadamente nos pobres (DAp 257), na religião do povo (DAp 258-265) e, certamente, na Ceia do Senhor (DAp 251).

A partir desse encontro personalizado com Jesus de Nazaré, passa-se de uma Igreja clericalizada a outra, na qual todos são sujeitos que se edificam mutuamente e participam ativamente na missão (DAp 154, 156, 159, 162). O documento expõe os lugares de comunhão para a missão: a paróquia como comunidade de comunidades, as comunidades eclesiais de base e outras pequenas comunidades, e as conferências episcopais; em seguida, analisa como cada uma das vocações na Igreja contribuem para a comunhão.

O documento assinala que essa missão, por sua entrega aos pobres e a defesa deles, ocasionou mártires, um texto que era esperado desde Puebla:

Seu empenho a favor dos mais pobres e sua luta pela dignidade de cada ser humano tem ocasionado, em muitos casos, a perseguição e inclusive a morte de alguns de seus membros, os quais consideramos testemunhas da fé. Queremos recordar o testemunho corajoso de nossos santos e santas, e aqueles que, inclusive sem terem sido canonizados, viveram com radicalidade o Evangelho e ofereceram sua vida por Cristo, pela Igreja e por seu povo (DAp 98).

O documento tematiza a relação entre Jesus e os pobres de modo paradigmático: “são chamados a contemplar, nos rostos sofredores de seus irmãos, o rosto de Cristo que nos chama a servi-lo” (DAp 393). A razão é que “tudo o que tenha relação com Cristo, tem relação com os pobres, e tudo o que está relacionado com os pobres clama por Jesus Cristo” (DAp 393). Desse modo, temos que dedicar tempo aos pobres como amigos e procurar que eles sejam sujeitos de sua libertação (DAp 394). Por isso, assim como Jesus viveu e propôs a reciprocidade de dons,

os discípulos e missionários de Cristo promovem uma cultura do compartilhar em todos os níveis em contraposição à cultura dominante de acumulação egoísta, assumindo com seriedade a virtude da pobreza como estilo de vida sóbrio para ir ao encontro e ajudar as necessidades dos irmãos que vivem na indigência (DAp 540).

Os próprios pobres são também motivados pelos bispos a isso (DAp 257, 265).

Por essa razão, propõem una globalização alternativa, “que se fundamenta no evangelho da justiça, da solidariedade e do destino universal dos bens, e que supere a lógica utilitarista e individualista, que não submete os poderes econômicos e tecnológicos a critérios éticos” (DAp 474; Cf. DAp 64); “novas estruturas que promovam uma autêntica convivência humana, que impeçam a prepotência de alguns e facilitem o diálogo construtivo para os necessários consensos sociais” (DAp 384). Para possibilitá-lo, propõem

apoiar a participação da sociedade civil para a reorientação e consequente reabilitação ética da política […], a criação de oportunidades para todos, a luta contra a corrupção, a vigência dos direitos do trabalho e sindicais […], promover uma justa regulação da economia, das finanças e do comércio mundial (DAp 406).

Para que tudo isso seja possível, deve-se superar a divisão entre o público e o privado, típica da modernidade, que pode declarar esses temas como assunto de cada um, sem transcendência. Pelo contrário,

quanta disciplina de integridade moral necessitamos, entendendo essa disciplina no sentido cristão do autodomínio para fazer o bem, para ser servidor da verdade e do desenvolvimento de nossas tarefas sem nos deixar corromper por favores, interesses e vantagens. São necessárias muita força e muita perseverança para conservar a honestidade que deve surgir de uma nova educação que rompa o círculo vicioso da corrupção imperante (DAp 507).

Conclusão

É preciso assinalar, no entanto, a limitação do documento de Aparecida. Além do horizonte que, como em Puebla, e ainda mais em Santo Domingo, concebe a salvação na história e a celebra nos sacramentos, principalmente na Ceia do Senhor, também afloram outros dois horizontes incompatíveis: a teologia dos mistérios e una versão um tanto fundamentalista da teologia kerigmatica. É necessário dizer que os textos mais proféticos foram sistematicamente suprimidos pelos que tinham o controle final da redação (por exemplo, o que dizem das CEBs nos n. 193-195 da versão original aprovada pela assembleia e o que ficou nos n. 178-180 da versão definitiva). Isso porque os que promovem afirmações mais piedosas e transcendentalizadas são os que vivem mais adaptados a essa ordem social. Ambos remetem a Jesus de Nazaré, mas uns se restringem mais a seu mistério (por isso a abundância de citações de João) e são propensos a linguagens doxológicas, muito abundantes nesse documento, já que, para eles, o contato primário com Cristo é o culto. Outros, por sua parte, insistem que o mistério de Jesus reluz na sua história (por isso remetem aos sinóticos), nessa história deve-se descobrir seu sentido e, ao continuá-la, entra-se em comunhão com ele.

Os dois grupos valorizam a missa e gostam dela, mas os primeiros a entendem como o encontro fontal do qual vivem, e os segundos como a celebração vivificante e comprometedora do seguimento na vida. Para os primeiros, o Reino se identifica com a pessoa de Jesus. Isso tem duas consequências: a primeira é que o acontecimento do reino é um acontecimento intraeclesial, cuja porta é o batismo e cujo alimento é a Palavra e os sacramentos (por exemplo, DAp 382); a segunda, que a missão consistirá em pôr em contato com Jesus, para que se integrem à Igreja, na qual está a salvação. Para os segundos, Jesus é certamente interno ao Reino, mas a razão é que nele e só nele somos filhos de Deus e irmãos de todos os seres humanos (por exemplo, DAp 139, 361).

O objetivo desse texto é ajudar na compreensão do documento que foi produzido como um compromisso por esses dois grupos e, por fim, favorecer a compreensão da Igreja Latino-americana para nos situar conscientemente nela segundo o dom recebido.

Pedro Trigo, SJ. Facultad de teología de la Universidad Católica Andrés Bello, Caracas, Venezuela. Texto original espanhol.

Referências

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[1] Theologica Latinoamericana já publicou o verbere “As Conferências do Conselho Episcopal Latino-Ameriano”, texto de Sandra Arenas, com uma visão geral do conjunto das Conferências e dos temas tratados. O presente verbete enriquece o anterior, oferecendo outra chave de leitura.

[2] Dussel, na sua análise dessa Conferência, centra-se principalmente em como, a partir dela, começa a organização da Igreja latino-americana em todos os campos e a partir de si mesma (DUSSEL, 1964, p. 186-190).

Infalibilidade

Sumário

Introdução

1 A partir do Vaticano I

2 Virada latino-americana

3 Um conceito renovado de revelação

4 Um conceito renovado de magistério

5 A infalibilidade como convicção fundamental

Conclusão

Referências

Introdução

O dogma da infalibilidade da Igreja tem uma conotação teórica e outra prática. Na atualidade, torna-se difícil aceitar que um Papa tenha autoridade para fazer pronunciamentos infalíveis, ainda quando se deve considerar que o bispo de Roma somente poderia fazê-los a respeito de temas religiosos. Não deveria exigir-se a adesão a tais pronunciamentos pelos que não professam a fé católica. Por outra parte, em virtude de seu aspecto prático, a infalibilidade constitui uma convicção fundamental que, em perspectiva pastoral, convida aos que não partilham a fé a convergirem numa práxis perfeitamente inteligível.

1 A partir do Vaticano I

A infalibilidade (i) como assunto teológico é tão antiga como o Novo Testamento, ainda que, ao longo da história da Igreja, tenha experimentado variações enquanto ao seu objeto e ao seu sujeito. No Novo Testamento, a (i) está relacionada com a responsabilidade da Igreja em custodiar a revelação acontecida em Jesus Cristo. A própria Igreja se considera coluna e fundamento da verdade (1Tm 3,15). Jesus deu aos discípulos e apóstolos autoridade para ensinar (Lc 10,16).

O termo (i) foi utilizado para se referir a um saber teórico sobre o que é revelado; entretanto, em última instância, trata-se de assuntos teóricos que demandam uma práxis crente no Deus que exige fidelidade, porque ele mesmo não falha com as/os cristã/os. O Concílio Vaticano I (1870) teve especial importância na delimitação do conceito (DH 3073-3074). O Concílio entende a (i) como uma doutrina sobre a revelação preservada nas Sagradas Escrituras e na tradição apostólica, que deve propagar-se a todos os povos da terra e que, consequentemente, deve ser precavida de todo tipo de erros (DH 3069). A constituição dogmática Pastor eternus atribui a (i) ao Pontífice Romano no uso da suprema potestade do magistério, nas ocasiões em que ele se pronuncia ex cathedra, exercendo seu cargo de pastor e doutor de todos os cristãos, em matéria de fé e de costumes (DH 3074). Além disso, exige da Igreja universal acatamento do magistério que cumpra essas características. Segundo o Vaticano I, a (i) é um dom de Cristo à sua Igreja, mas seu exercício autêntico é potestade exclusiva do Pontífice Romano.

O Vaticano II ratificou a doutrina do Vaticano I. Confirmou, “para ser firmemente acreditada por todos os fiéis, esta doutrina sobre a instituição, perpetuidade, alcance e natureza do sagrado primado do Pontífice romano e do seu magistério infalível” (LG 18). Por sua parte, introduziu duas importantes precisões. Tratou da (i) como um aspecto do magistério do colégio episcopal a serviço de sua missão de anunciar o Evangelho. O magistério dos bispos pode ser considerado infalível nas circunstâncias em que é exercido em comunhão com o sucessor de Pedro, ainda quando o pratiquem bispos dispersos pelo mundo. Por outro lado, o Vaticano II afirma, com mais claridade que o concílio anterior, que a (i) corresponde fundamentalmente à Igreja: “A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (cf. Jo 2,20 e 27), não pode enganar-se na fé” (LG 12).

Ainda assim, o Vaticano II mantém a problemática afirmação sobre a irreformabilidade de uma doutrina declarada infalível pelo Pontífice Romano (ex sese, et non ex consensu Ecclesiae) (LG 25). Neste caso, cabe perguntar pela validade de um ensinamento magisterial que não seja recebido pelo Povo de Deus. Tal situação exigiria algum tipo de mudança.

Pio IX, mesmo antes do Concílio Vaticano I, declarou a Imaculada Conceição de Maria como dogma da Igreja (1854). A definição cumpre com as características que deveria ter uma afirmação dogmática segundo o concílio seguinte, presidido pelo próprio Pio IX (“declaramus, pronuntiamus e definimus”). Praticamente um século depois, Pio XII proclamou o dogma da Assunção (1950), sendo essa a primeira e última definição infalível formulada após o Vaticano I. Também a respeito da Virgem Maria, fracassou a solicitação de numerosos consiglia et vota, prévios ao Vaticano II, de declarar Maria mediadora universal da salvação. A Lumen gentium esclarece que Jesus Cristo é o único mediador entre Deus e os seres humanos (LG 60-62). Em todo caso, deve-se considerar que, antes da definição do dogma da Imaculada, Pio IX realizou uma extensa consulta; Pio XII, por sua vez, assegurou o dogma da Assunção como resposta a numerosas petições. Ambos quiseram auscultar a fé das/os cristãs/os. Nos dois casos, deve-se insistir, a (i) recaiu sobre assuntos pertinentes à fé das batizadas e batizados.

O tema da (i) foi abordado em suas últimas manifestações em relação à encíclica Humanae vitae (1968). Hans Küng se posicionou contra os que puderam tomar as afirmações sobre o controle de natalidade como doutrina infalível, considerando-a equivocada, assim como uma enorme quantidade de proposições doutrinais magisteriais anteriores na história da Igreja. Em vez de infalibilidade, Küng propôs falar de “indefectibilidade” (inalterabilidade, estabilidade) e de “perenidade” (indestrutibilidade, perdurabilidade). Karl Rahner se opôs a Küng, fazendo ver que são possíveis afirmações magisteriais infalíveis e verdadeiras. De acordo com Rahner, o teólogo suíço opunha verdade a erro, sendo que a infalibilidade de uma doutrina não excluiria a perfectibilidade de sua formulação e inclusive a crítica a ela.

Outros assuntos que, nos anos sucessivos, suscitaram debate sobre o tema da infalibilidade foram o da contracepção técnica e o da ordenação presbiteral das mulheres (João Paulo II, Ordenatio Sacerdotalis, 1994).

2 Virada latino-americana

A doutrina sobre a (i), discutida desde sua proclamação, chegou a se converter em impopular. A esse respeito, Bernard Sesboüé diz: “O termo (i) é hoje particularmente mal-recebido na cultura do nosso mundo. Sua pretensão se interpreta de maneira negativa e se considera que a história contradiz tal doutrina” (SESBOUÉ, 2014, p. 318). Ao que parece, no entanto, conservando a intenção do dogma, a (i) pode ser considerada em outro tipo de expressões. O próprio Sesboüé recomenda usar alguma “expressão dotada de grande valor pastoral que expresse o carisma da Igreja, guardado como dom a serviço da verdade salvífica até o fim dos tempos” (SESBOUÉ, 2014, p. 319).

A esse respeito, a Igreja latino-americana e caribenha não utilizou a expressão (i). Nem o magistério nem os teólogos, salvo alguma exceção, a mencionam. A Igreja do continente não se preocupou tanto em salvaguardar a doutrina, mas em impulsionar a práxis cristã. Se, no século XIX, a Igreja europeia teve que fazer uma formulação expressa do dogma da (i) diante do assédio de adversários históricos, como o racionalismo e os inimigos políticos, a Igreja latino-americana procurou discernir na história a ação do Espírito. Sua atitude diante da história, depois do Vaticano II, foi positiva, mesmo quando, nessa história, descobriu, por exemplo, enormes injustiças.

Essa virada na valorização da história foi apreciada e impulsionada pela teologia latino-americana. Os teólogos usaram a expressão “lugar teológico” para assegurar que a história atual é fonte de conhecimento de Deus (Carlos Mesters, Elsa Támez, Jon Sobrino, Jesús Aceves Herrera, Agenor Brighenti e outros). Eles costumam dizer que os pobres, as mulheres, os povos originários e outros coletivos oprimidos constituem um lugar teológico através do qual o próprio Deus se manifesta.

Na América Latina e no Caribe, pode-se dizer que a Igreja é infalível quando opta pelos pobres, pois Deus opta por eles (TRIGO, 2020, p. 187). E também poderiam chegar a sê-lo outras convicções fundamentais que ela descubra na sua experiência histórica e espiritual. A Igreja latino-americana, como a Igreja em outros lugares do planeta, pode chegar a amadurecer outras convicções infalíveis a propósito, por exemplo, da crise socioambiental atual. Seria fundamental, em todos os casos, que qualquer dessas convicções encontre fundamento nas Sagradas Escrituras.

3 Um conceito renovado de revelação

O que foi dito anteriormente permite entender que a teologia latino-americana compreendeu que a ortopráxis é mais importante que a ortodoxia. Ou seja, que a fidelidade da Igreja à práxis de Jesus é superior à tradição enquanto critério (fides quae creditur) para discernir, no presente, o que pode significar essa práxis (fides qua creditur). E vice-versa: a teologia latino-americana viu que este mesmo seguimento (espiritual) de Cristo é fundamental para compreender em que consiste a revelação e a tradição da Igreja. O Espírito que guiou Jesus, que inspirou os hagiógrafos e que, ao longo dos séculos, capacitou a Igreja para transmitir o Evangelho é o mesmo Espírito que faz compreender a Palavra nos acontecimentos atuais.

Os episcopados e as/os teólogas/os da América Latina e do Caribe recorreram ao método (europeu) ver-julgar-agir para perceber a vontade de Deus no presente e para colocá-la em prática. Nisso imitaram o uso que a Gaudium et spes fez desse método.  A Igreja latino-americana e caribenha prestou atenção aos sinais dos tempos. A partir de seu contexto, quis compreender a Palavra de Deus.

4 Um conceito renovado de magistério

A Lumen gentium contribuiu para conceber a Igreja e o magistério de uma maneira nova. A noção da Igreja como Povo de Deus permitiu que a Igreja latino-americana se enraíze mais profundamente na sua respectiva história, reconhecendo a dignidade de sujeitos históricos socialmente desconsiderados e fazendo caminho junto a outras tradições religiosas e filosóficas. O compromisso de católicos e não católicos a favor dos pobres facilita pensar que a Igreja, enraizada em uma mesma história configurada por todos os seres humanos, constitui um locus theologicus que é simultaneamente alienus et proprius. Ela, em cada época, deve mediar fé e razão, através de um diálogo entre fé e ciências, fé e cultura, e fé e justiça.

Na América Latina e no Caribe, esse modo de ser Igreja se expressa em um renovado modo de entender o magistério. Até antes do Concílio, o magistério latino-americano foi, na realidade, praticamente europeu. A partir da Conferência de Medellín, a Igreja continental – de um modo semelhante a uma pessoa que alcança a maioridade – pôde comprovar na prática que sua ação evangelizadora corresponde à atenção que ela pôs no discernimento contextual dos sinais de seu tempo. Nessa II Conferência Episcopal, bispos e teólogos chegaram a resultados semelhantes sobre a necessidade de realizar mudanças sociais mais significativas. A terceira Conferência, realizada em Puebla (1979), sublinhou a importância da evangelização da Igreja feita pelos próprios pobres. Nessa Igreja, chegou a ser possível falar de um magisterium pauperum.

A Igreja da América Latina e do Caribe descobriu por experiência própria que Deus opta pelos pobres e que, para ser cristã, ela deve fazer o mesmo. As quatro últimas conferências episcopais insistiram que essa opção tem sua raiz na revelação. Três papas também compartilharam e ratificaram o magistério do episcopado do continente. João Paulo II confirmou, ao longo de todos os seus anos de pontificado, a opção preferencial pelos pobres; Bento XVI, em Aparecida, sublinhou sua índole cristológica; e Francisco, o primeiro papa latino-americano, insistiu na opção pelos pobres com mais força que seus antecessores, seja com seu magistério, seja com seus gestos. Na América Latina e no Caribe, valoriza-se que o magistério episcopal favorável aos pobres e às vítimas foi referendado por mártires como o santo Oscar Arnulfo Romero.

5 A infalibilidade como convicção fundamental

A (i) encontra sustentação na Escritura. Nela se revela, através dos seres humanos que praticam a fidelidade uns com outros, a infalibilidade do Deus fiel com a humanidade e com a criação. Essa é a verdade mais profunda da (i) de Deus. Porém, assim como a verdade sobre Deus excede as fórmulas dogmáticas e o próprio magistério, seu amor é maior que a práxis das cristãs e dos cristãos. Esses não podem saber com certeza se sua práxis, mesmo quando quer ser seguimento de Cristo, é correta. Sempre é possível uma prática cristã ideológica. O juízo último sobre sua qualidade é escatológico. Entretanto, o magistério do bispo de Roma, em comunhão com os demais bispos, cumpre um serviço indispensável e insubstituível no discernimento da índole cristã da práxis dos católicos.

O caráter principalmente prático da (i) cristã – ela mesma entendida como convicção básica da misericórdia e da justiça de Deus – facilita a convergência entre quem segue a Jesus e quem não crê nele. Entre os discípulos de Cristo e os que não o são há uma diferença religiosa importante, mas não decisiva. Isso porque esses podem não partilhar um credo, mas, na medida em que convergem em ações favoráveis ao mundo e à criação em geral, não se equivocam.

Nessa perspectiva, aborda-se também o diálogo ecumênico e inter-religioso. A abertura à universalidade do amor de Deus obriga a considerar secundárias as diferenças religiosas. Isso porque a práxis que cumpre os requisitos desse amor subverte os ordenamentos sociais, políticos, culturais e religiosos que dividem e excluem os seres humanos. Os males que afligem à humanidade devem ser tão ou mais preocupantes para a Igreja Católica como os cismas e heresias que atentam contra sua unidade.

O Povo de Deus é infalível quando crê (LG 12), segundo a compreensão de que esse povo ensina (docens) porque aprende (dicens) de sua própria experiência espiritual coletiva e histórica do Deus trino. Entretanto, não qualquer fórmula que declare a (i) de algum assunto deveria ter a mesma autoridade. Somente o Pontífice Romano, em benefício da unidade da Igreja, expressa autenticamente a (i) (DV 10b), movendo a Igreja a avançar por um mesmo caminho rumo à realização escatológica do Reino. Esse caminho proposto pelo papa pode ser percorrido com outros seres humanos e povos, pois também esses, ainda que não o saibam, podem chegar a participar do Reino na medida em que se deixam inspirar pelo Espírito, que em Pentecostes foi derramado para dar continuidade à obra de amor universal de Cristo morto e ressuscitado (LG 17a).

O que procede do magistério do Papa e dos bispos é vinculante para o Povo de Deus. E o é, formalmente, pela investidura que lhes outorga a sucessão apostólica e, materialmente, pela autoridade que lhes confere a prática milenar do amor misericordioso de Deus. Por sua vez, esse Povo deve submergir-se no conhecimento das fontes da revelação (loci proprii) e considerar a contribuição da razão, da filosofia, das ciências, das línguas, da cultura e das religiões (os loci alieni). A fonte primeira dessa articulação é constituída pela Igreja em ação, ou seja, pela Igreja enraizada na história e no mundo, e não separada dele. Essa é a Igreja que vive do amor fidedigno de Deus.

Conclusão

O dogma da (i) foi discutido na Igreja desde sua formulação. Na atualidade, é difícil reconhecer que o Sumo Pontífice, e o episcopado em comunhão com ele, tenha o poder de decidir o que as/os cristãs/os devem crer. Trata-se de uma doutrina impopular. No entanto, deve-se reconhecer nas autoridades da Igreja a potestade de guiar o Povo de Deus com convicção em matérias que pastoralmente tenham grande importância. Elas devem auscultar a fé da Igreja que se encontra nos batizados e nas batizadas. Esses, por sua vez, têm a obrigação e o direito de acolher indicações seguras de seus pastores sobre como viver seu cristianismo. Em todo caso, o exercício da (i) deveria cumprir com a exigência de articular fé e razão, imposta pelo próprio Concílio Vaticano I (contra o fideísmo e o racionalismo). Desse modo, o que os fiéis deverão assumir como um ensinamento revelado por parte do bispo de Roma e dos demais bispos teria que ser, de algum modo, inteligível e praticável por quem não partilha o credo da Igreja. A opção preferencial pelos pobres formulada pela Igreja da América Latina e do Caribe constitui um exemplo de uma convicção evangélica fundamental que pode ser praticada por qualquer ser humano.

Jorge Costadoat. Centro Teológico Manuel Larraín. Pontifícia Universidade Católica de Chile. Universidade Alberto Hurtado.  Texto enviado: 30/09/2022; aprovado: 30/10/2022; publicado: 30/12/2022. Original espanhol.

Referências

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Igreja e Libertação

Sumário

Introdução

1 Movimento libertador eclesial latino-americano e caribenho

2 Linhas teológicas da Igreja libertadora

3 Dificuldades e críticas

4 Evolução e novas perspectivas

Conclusão

Introdução

Ainda que o tema da libertação tenha profundas raízes bíblicas, tanto no AT (Êxodo) como no NT (por exemplo, o programa de Jesus na sua visita à sinagoga de Nazaré, narrado por Lc 4,16-21), foi, contudo, a Igreja latino-americana e caribenha que, depois do Vaticano II (1962-1965), explicitou e atualizou o tema libertador nos níveis teológico e pastoral.

João XXIII quis que o rosto da Igreja conciliar fosse o da Igreja dos pobres, mas esse rosto não aparece nos documentos do Vaticano II (com exceção de duas referências em LG 8 e GS 1). Provavelmente, porque os bispos e teólogos mais influentes no Vaticano II eram da Europa Central e estavam mais preocupados com o ateísmo, o ecumenismo e a liberdade religiosa do que com a pobreza e a fome do povo. Entretanto, o Vaticano II, ao falar dos sinais dos tempos e da necessidade de escutar e discernir a presença do Espírito nos desejos e clamores do povo (GS 4, 11, 44), abriu campo para uma nova visão da história.

1 Movimento libertador eclesial latino-americano e caribenho

Na Assembleia Episcopal de Medellín (1968), a Igreja latino-americana e caribenha não apenas aplicou o Vaticano II ao continente latino-americano, mas o acolheu criativamente, escutando o Espírito na voz do povo que pedia justiça e liberdade, assim como, em outro tempo, o povo de Israel pedia a libertação da escravidão do Egito (Ex 3). Em Medellín, surge a exigência de uma Igreja pobre, simples e pascal que denuncie as estruturas injustas de pecado que oprimem o povo e que se comprometa em lutar pela justiça e pela sua libertação. As Assembleias Episcopais de Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007) aprofundaram a opção evangélica pelos pobres, a defesa de suas culturas e da terra, como explicitação e atualização da fé cristológica em Jesus de Nazaré.

Desde então, encontramos vários bispos latino-americanos comprometidos com os pobres: Proaño, Bogarín, Méndez Arceo, Luna, Samuel Ruíz, Hélder Câmara, Dammert, Landázuri, Silva Henríquez, Novak, Nevares, Angelleli, Pironio, Lorscheider, Oscar Romero, Arns, Casaldáliga, Mendes de Almeida, José Maria Pires, Terrazas, Piña, Gerardi etc. Eles são os verdadeiros Santos Padres da Igreja dos pobres.

Além disso, muitos cristãos estão presentes nos processos sociais de libertação e nas Comunidades Eclesiais de Base, uma forma nova de ser Igreja. A vida religiosa latino-americana e caribenha, inspirada pela CLAR (Confederação Latino-americana de religiosos/as), realizou um êxodo em direção aos bairros populares, setores camponeses, mineiros, afros e indígenas, num processo de inserção e inculturação que recuperou suas origens evangélicas e carismáticas.

Este processo eclesial foi animado e inspirado pela reflexão teológica chamada Teologia da Libertação, promovida tanto por teólogos católicos (Gustavo Gutiérrez, Juan Luis Segundo, Leonardo Boff, Clodovis Boff, Jon Sobrino, Ignacio Ellacuría, João B. Libanio, José Comblin, Ronaldo Muñoz, Enrique Dussel, Carlos Mesters, Marcelo Barros, Ivone Gebara, Maria Clara Lucchetti Bingemer, Pablo Richard, Hugo Assmann, Pedro Trigo, Frei Beto, Segundo Galilea, José Marins etc.) quanto por teólogos evangélicos (Rubem Alves, José Míguez Bonino, Harvey Cox, Jorge Pixley, Elsa Támez etc.).

Simultaneamente a essa corrente teológica libertadora do “Norte”, surgiu, na Argentina, a chamada Teologia do Povo (Lucio Gera, Rafael Tello, Ricardo Farrell, Juan Carlos Scannone, Carlos María Galli etc.). Ela vê o povo não somente como o empobrecido que tem que ser libertado, mas como um povo economicamente pobre e também dotado de uma grande riqueza espiritual, cultural e histórica, da qual os movimentos populares são parte importante. Dessa última corrente, participava Jorge Mario Bergoglio, o futuro Papa Francisco.

Essas teologias não se contrapõem, mas se complementam: uma é mais sociológica, outra mais cultural e religiosa. A teologia da libertação é mais uma corrente plural e uma família teológica do que uma única linha ideológica.

Esse processo libertador da Igreja latino-americana esteve regado, como na Igreja primitiva, pelo sangue de numerosos mártires: bispos como Romero, Angelleli e Gerardi, religiosos como Ellacuría e seus companheiros da UCA de El Salvador, Espinal, Rutilo Grande e seus catequistas, J. Bosco Penido Burnier, as irmãs de Maryknoll, Ita Ford, Dorothy Lu Kazel, Jean Donovan, a religiosa Alice Domon assassinada na Argentina, Dorothy Stang assassinada no Brasil, além de muitos sacerdotes, religiosos e religiosas, numerosos agricultores, indígenas, jovens e famílias assassinados em massacres no Chile, El Salvador, Brasil, Guatemala, Uruguai etc. Esses morticínios eram obra de governos militares e ditatoriais que se proclamavam defensores da civilização cristã ocidental.

Todo esse movimento libertador foi, sem dúvida, fruto do Espírito que suscita dons proféticos e renova constantemente a Igreja a partir de baixo.

2 Linhas teológicas da Igreja libertadora

A eclesiologia e a teologia modernas (Mysterium salutis, Hans Küng etc.) estão centradas, principalmente, na dimensão pessoal e interior da fé e se preocupam pelo sentido da Igreja no mundo de hoje, pela falta de fé e pela secularização. Diferentemente delas, a teologia e a eclesiologia libertadoras se preocupam, em primeiro lugar, com escutar o clamor do povo pobre que pede justiça, pão, trabalho e teto. O principal problema não é a secularização, mas a fome. O Reino de Deus é visto não somente em sua dimensão interior e para além desta vida, mas como uma realidade que começa no nosso mundo e na história: Jesus curou enfermos, alimentou famintos, ensinou os pobres, anunciou as bem-aventuranças e, na parábola do juízo final, ele se identifica com o pobre, o que não tem roupa, o enfermo, o prisioneiro, o faminto (Mt 25,31-45).

Como resumiu Pedro na casa de Cornélio: “Deus o ungiu com o Espírito Santo e com poder, ele que passou fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo diabo, porque Deus estava com ele” (At 10,38). Assim, a Igreja e a teologia latino-americanas concebem a salvação não apenas como algo interior e escatológico, mas como uma realidade histórica já presente neste mundo. O Crucificado está presente nos crucificados da história e é preciso descer esses crucificados da cruz.

A reflexão teológica libertadora usa uma metodologia que vem da Ação Católica, principalmente da Juventude Operária Católica (JOC) europeia. Trata-se do método ver, julgar, agir.

Parte da realidade (clamor dos pobres, fome, vida ameaçada e curta, vítimas, religiosidade popular etc.): é o VER.

Essa realidade é iluminada pela Palavra: o Êxodo, os profetas de Israel e, principalmente, pela vida de Jesus de Nazaré, sua opção pelos pobres, seus ensinamentos do Reino, sua atividade curativa e libertadora, sua paixão, morte e ressurreição: é o JULGAR.

Finalmente, essa teologia quer desembocar numa práxis de compromisso libertador, de solidariedade, de luta pela justiça contra as estruturas de pecado sociais, econômicas e políticas: é o AGIR, ao qual também se acrescenta o CELEBRAR.

3 Dificuldades e críticas

Essa visão e missão libertadora eclesial e teológica recebeu, ao longo dos anos, numerosas críticas, não apenas de setores militares, políticos e econômicos que se sentiam questionados e criticados, mas também por parte do magistério da Igreja. Isso se deu concretamente por meio de duas Instruções da Congregação da Doutrina da fé (1984 e 1986) dirigida pelo Cardeal Ratzinger, sob o pontificado de João Paulo II. A essas duas Instruções se acrescentaram ainda vozes críticas de outros setores eclesiais. A Teologia da Libertação é acusada de uma série de defeitos:

– Reduzir a salvação e a missão da Igreja aos âmbitos socioeconômico e político; limitar-se à busca de transformação política e social, deixando de lado a dimensão transcendente e escatológica da salvação;

– Jesus Cristo fica reduzido a um líder sociopolítico e o Reino se converte num programa puramente temporal e político;

– Esta teologia libertadora se fundamenta não na Palavra e na fé da tradição da Igreja, mas na sociologia e na análise marxista, com o risco de ficar impregnada pela ideologia ateia e materialista do comunismo;

– Procura edificar uma Igreja popular em oposição à Igreja hierárquica, introduzindo a luta de classes na Igreja;

– Fomenta a violência armada e as guerrilhas;

– É um pensamento e uma teologia só do social e do político (uma teologia do “genitivo”); não é como a grande teologia da Tradição que trata sobre Trindade, cristologia, pneumatologia, eclesiologia, sacramentos, liturgia, moral, espiritualidade, escatologia etc.

Diante dessas acusações, é preciso reconhecer que, nesses anos, houve, na Igreja e na teologia latino-americanas, alguns abusos e exageros. Entretanto, essa não foi a direção predominante, nem o modo habitual de proceder dos pastores, da vida religiosa, do laicato, nem dos teólogos.

Uma teologia que parta da realidade dos sinais dos tempos deve dialogar com a filosofia e as ciências sociais de sua época, entre as quais está o marxismo. Os Padres da Igreja dos primeiros séculos dialogaram com o platonismo e Santo Tomás dialogou com o aristotelismo, apesar dos riscos que essas filosofias apresentavam. A teologia libertadora, ao dialogar com a filosofia marxista, não cai no materialismo dialético, nem na luta de classes, nem na violência e na ditadura do proletariado, nem considera a religião como o ópio do povo. Por outro lado, recupera a importância da dimensão econômica para a vida das pessoas e da sociedade, além de apontar para a necessidade de buscar estruturas justas para defender uma vida digna para os pobres.

A teologia e a Igreja libertadora não reduzem a salvação aos níveis econômico e temporal; admitem a transcendência do Mistério, a dimensão gratuita e escatológica da salvação e do Reino, mas afirmam também que o Reino de Deus, à luz de toda a tradição bíblica, já começa na história real da humanidade e implica o direito e a justiça para os pobres.

Jesus não fica reduzido a um Messias político, mas se recupera sua vida pobre e simples em Nazaré, sua predileção pelos pobres, seus milagres e parábolas sobre o Reino (como a do bom samaritano), sua crítica à idolatria do dinheiro e ao farisaísmo de uma religião que se esquece dos pobres, sua insistência no mandamento do amor fraterno e no juízo final contra os que ignoraram o pobre, o nu, o faminto, o enfermo e o prisioneiro. Jesus se identifica com esses pobres, marginalizados e socialmente excluídos.

A teologia da libertação não é uma teologia “do genitivo”, ou seja, somente preocupada com a libertação socioeconômica. Como toda teologia cristã reflete sobre o mistério da fé, da Trindade à escatologia. Porém, a reflexão é feita partindo da realidade da pobreza do povo. Redefine, assim, a salvação como Mistério trinitário comunitário de amor misericordioso do Pai, do Filho que se faz carne para viver nossa vida e de um Espírito que atua desde baixo e inspira uma Igreja dos pobres e uma vida cristã centrada no amor e na justiça. É uma teologia da compaixão e da misericórdia, que defende a vida em todas as suas dimensões, do pão de cada dia à eucaristia e à vida plena e definitiva, divina e eterna da escatologia.

Evidentemente, tendo em vista esse ponto de partida, todos os tratados teológicos e pastorais têm um acento especial: compaixão, misericórdia, responsabilidade, luta contra o pecado da injustiça, solidariedade, proximidade com o povo pobre e simples a quem foram revelados os mistérios do Reino, gênese de uma Igreja comunitária na qual os pobres ocupam um lugar central, Comunidades Eclesiais de Base, respeito aos sacramentais e à religiosidade popular, espiritualidade libertadora etc. Não há nenhuma incitação à violência nem à construção de uma Igreja paralela à hierárquica, ainda que essa teologia seja crítica de todo clericalismo e triunfalismo eclesiástico, do poder mundano das Igrejas, do esquecimento dos carismas do Espírito, autor dos dons hierárquicos e não hierárquicos dados ao Povo de Deus (LG 4).

Em última instância, a eclesiologia e teologia da libertação explicitam as consequências do Vaticano II, dos sinais dos tempos proclamados em Gaudium et spes e do sonho de João XXIII de uma Igreja dos pobres.

4 Evolução e novas perspectivas

De Medellín até nossos dias houve um desenvolvimento e uma evolução tanto na sociedade como na Igreja latino-americana. Aconteceram profundas mudanças sociais e políticas nesses anos, tanto no nível mundial (queda do muro de Berlim) quanto no nível latino-americano (passagem de ditaduras a democracias; ainda que, ultimamente, vemos governos muito autoritários de extrema direita e de extrema esquerda).

Ao primeiro grupo teológico latino-americano da libertação, formado majoritariamente por presbíteros de formação europeia, sucede agora uma geração teológica mais jovem, mais laical, com uma maior participação feminina. Está surgindo una teologia libertadora aberta ao feminismo, à teologia indígena (teologia índia, mestiça e afro), à ecologia, às novas configurações sexuais, com um aprofundamento na Pneumatologia ou teologia do Espírito.

Entretanto, a maior mudança ocorreu com o pontificado de Francisco, vindo do fim do mundo, com uma especial sensibilidade social e popular e uma grande abertura a toda a humanidade.

O jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio, que significativamente assume o nome de Francisco, começa a dar um estilo novo à Igreja com seus gestos e seus escritos, principalmente A alegria do evangelho, Laudato sí e Fratelli tutti etc.

Propõe para toda a Igreja uma nova imagem de Igreja, em grande sintonia com a Igreja libertadora latino-americana:

Igreja de portas abertas, que não é uma prisão, nem um museu, nem uma fortaleza, nem uma alfândega, mas um lar acolhedor, aberto a todos;

Igreja em saída, que vai à rua, que vive uma fé peregrina, que vai às periferias, uma Igreja missionária;

Igreja hospital de campanha, para salvar, curar, suturar, enfaixar feridas de todos os que sofrem e têm a vida ameaçada: crianças, mulheres, indígenas, migrantes, enfermos, anciãos, pessoas com deficiências etc.;

Igreja dos pobres, hoje descartados por um sistema social injusto e desumano, que mata; esses excluídos são os prediletos do Senhor e sua piedade é um lugar especialmente inspirador para a Igreja (lugar teológico);

Igreja que difunde o aroma do evangelho e fala mais de Jesus que da Igreja e do Papa;

– Igreja que tem cheiro de ovelha, em contraposição a ministros clericais, mundanizados e simplesmente gestores e funcionários;

– Igreja que evangeliza com Espírito, fruto da alegria do evangelho, do impulso pentecostal do Espírito, que é sempre novidade e excede nossa imaginação e perspectivas;

– Igreja em caminho sinodal. Essa é a imagem de Igreja que Francisco promove desde outubro de 2015, e a que, segundo ele, o Senhor espera para a Igreja do Terceiro milênio.

“Sínodo” significa “caminho conjunto” e é a definição da Igreja, segundo João Crisóstomo. Uma Igreja sinodal é uma Igreja Povo de Deus (LG II), na qual todos os batizados que possuem o dom do Espírito (LG 12) caminham conjuntamente, peregrinando rumo ao Reino (LG VII).

No caminho sinodal, todos se escutam, dialogam e discernem. Não há uns que ensinam e outros que aprendem, mas todos aprendem e ensinam. É uma pirâmide invertida, na qual o Povo de Deus, formado principalmente pelo laicato, está em cima e os bispos e o Papa embaixo. Não há no topo um grupo seleto (bispos, clero, vida religiosa), ficando os leigos embaixo, mas todos são membros ativos. Conforme a melhor tradição eclesial, “o que afeta a todos deve ser tratado por todos”. Isso repercutirá, por exemplo, na nomeação de ministros, promulgação de normas morais e litúrgicas etc.

Não é um slogan da moda, mas algo tradicional da Igreja, que, no chamado concílio de Jerusalém (At 15), reuniu-se para saber se os gentios que se tornavam cristãos deveriam ser obrigados a realizar a circuncisão judia. Decidiu-se não lhes impor novas cargas: “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor nenhum outro peso além destas coisas necessárias” (At 15,28).

Foram realizadas, em espírito de sinodalidade, algumas Assembleias Eclesiais (não somente episcopais) na Amazônia e na América Latina. E o sínodo de bispos de 2023/2024 é sobre a sinodalidade e estará preparado por una ampla consulta nas Igrejas locais.

A finalidade do sínodo não é produzir documentos, mas fazer germinar sonhos, suscitar profecias e visões, fazer que floresçam esperanças, enfaixar feridas, entrelaçar relações, ressuscitar esperanças, aprender uns com os outros, criar um imaginário positivo que ilumine as mentes e aqueça os corações (Documento preparatório do Sínodo, n 32).

Esse caminho sinodal não poderá ser realizado sem uma profunda conversão pessoal, comunitária e estrutural, para a qual se necessita pedir a ajuda do Espírito do Senhor. A Igreja precisa de uma contínua reforma (UR 6).

Conclusão

Podemos dizer que, com Francisco, o sonho de João XXIII de uma Igreja dos pobres, as dimensões mais comunitárias do Vaticano II (LG II) e da teologia dos sinais dos tempos (GS 4, 11, 44), as linhas de fundo da teologia latino-americana – tanto a mais comum (opção preferencial pelos pobres e pela justiça) como a teologia argentina (teologia do povo e da piedade popular) – são assumidas, reformuladas e abertas a toda a humanidade.

Esta Igreja sinodal em caminho é uma Igreja libertadora, com entranhas de misericórdia e compaixão diante de toda a dor humana e diante da criação, que rompe todo elitismo clerical, espiritual, cultural e econômico, que caminha alegre e esperançada rumo ao Reino, com outras Igrejas e religiões, com todas as pessoas de boa vontade, disposta a libertar a humanidade e a criação de toda escravidão da ganância, opressão e injustiça, antecipando, na medida do possível, os novos céus e a nova terra (Ap 21,1) .

E tudo isso sob o sopro vivificante do Espírito do Senhor, que atua nos momentos de caos (Gn 1, 2), faz passar da escravidão à liberdade, da morte à vida, que sempre surpreende e tudo renova.

Podemos sintetizar tudo o que foi dito com uma poesia do bispo de Brasil, Dom Pedro Casaldáliga:

“O Espírito

decidiu

administrar

o oitavo sacramento:

a voz do Povo!”

Víctor Codina SJ. Texto enviado: 20/02/2022, aprovado: 20/05/2022, publicado: 30/12/2022. Após sua publicação, em 22/05/2023, o autor fez sua Páscoa definitiva (NE).

Referências

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História da Catequese no Brasil

Sumário

Introdução

1 A catequese no Brasil Colonial

2 As intervenções de Marquês de Pombal, expulsão dos Jesuítas e suas consequências

3 Catequese brasileira no século XIX: os bispos reformadores

4 A catequese no Brasil no período pré-conciliar

5 Do Vaticano II (1962-1965) ao final do século XX

6 A catequese a serviço da Iniciação à Vida Cristã: dimensão catecumenal

7 Um panorama fecundo de eventos e atividades catequéticas

Referências

Introdução

A história da catequese no Brasil[1], diferentemente da antiga cristandade europeia, possui pouco mais que cinco séculos. No entanto, não podemos considerá-la desligada de sua matriz. Igualmente, além de relatar a linha do tempo, dos acontecimentos e seus protagonistas, é necessário situá-la no próprio contexto cultural, político e eclesial dentro do qual se desenvolveram práticas, conceitos e tendências teológicas que subjazem aos fatos. No entanto, esse olhar sociohistórico é acompanhado da visão da fé cristã, particularmente católica.

O Diretório Nacional de Catequese (DNC), de 2006, assim se expressa:

A história é lugar da caminhada de Deus com seu povo e do povo com Deus. Nela e por ela Deus se revela e manifesta o que Ele quer ensinar e o que espera da humanidade. Jesus Cristo, o Filho de Deus, encarnou-se na realidade humana e num determinado contexto histórico, que condicionou sua vida, ensinamento e missão. Viveu, ensinou e nos salvou a partir da história e do que ela comporta. A história faz parte do conteúdo da catequese. O fiel, iniciado no mistério da Salvação, é chamado a assumir a missão de ajudar a construir a história hoje, segundo o Reino de Deus (DNC, 2006, nº 60).

Camões, com a visão de cristandade vigente em seu tempo, afirma nos Lusíadas que os portugueses se lançaram aos mares buscando “dilatar a fé e o império” (Canto 1, estrofe 2). Entretanto, antes mesmo que na América chegassem portugueses ou espanhóis, como afirmam os bispos do CELAM, em Puebla, “o Espírito que encheu o mundo assumiu também o que havia de bom nas culturas pré-colombianas. Ele próprio as ajudou a receber o Evangelho” (DP 201). Sem dúvida essas “Sementes do Verbo” presentes nestas culturas (DP 401, 403), foram cultivadas e incrementadas pela evangelização e catequese da Igreja. De fato, como reconhecem os mesmos bispos em Santo Domingo, “as Sementes do Verbo, presentes no profundo sentido religioso das culturas pré-colombianas, esperavam o orvalho fecundante do Espírito” (SD 17). Essas considerações teológicas permitem-nos avançar no tempo e espaço para aí analisar a história da catequese no Brasil.

1 A catequese no Brasil colonial

Uma vez introduzido na história ocidental e aberto para o mundo desenvolvido de então pela presença e ação dos portugueses, a história do Brasil se entrelaça com a história da evangelização e catequese. Em 1503 chegaram os dois primeiros missionários franciscanos, na expedição de Gonçalo Coelho, em Porto Seguro, seguidos mais tarde por outros frades. Em 1532 fundaram-se as primeiras paróquias, e de 1538 a 1541 a primeira missão formal instalou-se em Santa Catarina por obra dos mesmos franciscanos.

Os jesuítas chegaram com o primeiro governador geral Tomé de Souza, em 1549. Sua existência também se confunde com história do Brasil, tornando-se os protagonistas principais que acompanharam de perto o crescimento e desenvolvimento brasileiro. Nascidos pouco antes dentro do espírito da Reforma, e com um enorme impulso missionário, transmitiram a fé cristã aos indígenas, sobretudo os que habitavam fora dos centros urbanos.

Com eles começou-se a implantação de uma catequese mais organizada para os colonizadores portugueses, seguindo o modelo tridentino; e para os indígenas, uma catequese mais missionária, bastante criativa e com esforços para atingir aquilo que hoje chamamos de inculturação. De fato, após as primeiras tentativas de catequizar os indígenas através de intérpretes, os missionários aprenderam a língua local[2], escreveram catecismos nestas línguas e usaram a música, o teatro, a poesia, os autos e a dança ritual para a obra evangelizadora. Tanto nos colégios como na catequese indígena predominava a metodologia da tradição oral: uma memorização da doutrina mais mecânica e menos assimilada. Aliás, para os missionários “a questão da conversão dos índios não era doutrinária, mas uma questão de costumes”, no dizer do Pe. São José de Anchieta (Leite, 1923, p. 12; Anchieta, 1933, p. 419 e 435).

Dentre os missionários distinguiram-se o Pe. Manoel da Nóbrega, provincial, e o Pe. São José de Anchieta, que veio como noviço e se formou no Colégio da Baia, desenvolvendo uma atividade que o coloca entre os gigantes da primeira evangelização latino-americana. Fundou colégios (como o de São Paulo, que originou a atual metrópole), escreveu textos catequéticos, peças de teatro, gramáticas e poemas em quatro línguas: latim, português, castelhano e tupi-guarani. Ao mesmo tempo foi evangelizador, catequista, médico, artífice, pacificador, taumaturgo, mestre-escola, arquiteto: um missionário completo.

Novas levas de missionários jesuítas chegaram ao Brasil nos anos seguintes, tendo no Pe. Antônio Vieira (1608-1697) uma figura ímpar. Realizaram “uma obra sem exemplo na história”, na expressão do historiador Capistrano de Abreu (Abreu, 1945, p. 105). Também outras ordens religiosas, além dos franciscanos e jesuítas (capuchinhos, beneditinos, carmelitas, mercedários) se associaram à obra empreendida por eles na extraordinária tarefa da formação cristã do Brasil. Todos os missionários enfrentavam inúmeras dificuldades por causa da ambição colonizadora da política mercantilista, a ponto de o Papa Urbano VIII ter que escrever a bula Comissum nobis, em 1638, em defesa dos índios, mantendo as disposições de seu predecessor Paulo III: “proibiu e ordenou que as autoridades também proibissem escravizá-los e privá-los de seus bens”, sob pena de excomunhão latae sententiae, reservada ao Pontífice.

Apesar dessas dificuldades, os missionários se preocupavam não somente com novos métodos e técnicas, mas também com a superação da simples catequese doutrinal ou instrução (embora os textos vão muito nesta linha). Estavam muito atentos àquilo que hoje chamamos de promoção humana e social do indígena dentro de um contexto hostil e avesso a um tipo de atividade deste gênero. Com menos intensidade, mas igual zelo apostólico, fizeram esforços na evangelização dos negros que, numa atitude anti-humana, sofriam a escravidão. Entretanto não tiveram voz para se opor a tão execrável instituição escravagista.

Este gigantesco trabalho evangelizador não pode ser atribuído só aos missionários, despojados, abertos à cultura indígena e com uma alta consciência evangélica. Também os leigos, especialmente mulheres, tiveram papel importante, infelizmente esquecido pela história: estiveram sempre ao lado dos missionários, ora assumindo mesmo a direção das aldeias, ora fazendo parte integrante do processo catequizador. Ficou célebre a presença do negro José Lopes Espínola, missionário leigo no Amazonas no fim do século XVII, a quem o próprio Conselho Ultramarino de Portugal sugeriu uma medalha de ouro pelo seu trabalho de catequese (cf. Vilela, 1998, p. 289).

Para a organização da Igreja e principalmente para a história da catequese no Brasil, é de suma importância a promulgação, já nos inícios do século XVIII, das Constituições do Arcebispado da Bahia, capital e sede do arcebispo primaz do Brasil, na época D. Sebastião Monteiro da Vide. Tais Constituições (1707) orientaram a ordenação jurídico-teológico-catequética na Igreja do Brasil durante dois séculos. Elas se compõem de 5 livros: no primeiro deles se trata da obrigação de ensinar a doutrina cristã. O breve catecismo que lhe é incorporado traz os traços dos catecismos doutrinais europeus. A importância catequética deste documento é assim ressaltada:

As Constituições da Bahia trazem à memória dos párocos, dos mestres-escolas e dos pais de família a obrigação de ensinarem crianças e escravos, seguindo à risca as normas do Concílio de Trento; oferecem ainda aos catequistas um catecismo abreviado para a instrução, que denominam de Forma da doutrina cristã, e também um formulário mais resumido ainda e adaptado para os escravos (Lustosa, 1992,59).

2 As intervenções de Marquês de Pombal, expulsão dos Jesuítas e suas consequências

As ideias que transformavam a Europa no século XVIII tinham sua repercussão no Brasil: o iluminismo, os ideais da Revolução francesa, o mercantilismo, o despotismo esclarecido. Este último movimento teve enorme influência no Brasil, através de Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal. Nomeado primeiro-ministro de D. José II, de Portugal, suas medidas políticas afetaram profundamente a ação da Igreja, particularmente por causa da expulsão dos jesuítas (1759, reabilitados por Pio VII, em 1814). Consequentemente perdeu forças a rede de escolas que eles mantinham ao longo do território nacional. Atitude igualmente danosa à Igreja foi a imposição do catecismo jansenista, chamado também de Catecismo de Montpellier (1702, traduzido em português em 1765). Apesar de ter sido condenado e colocado no Index, em 1721, sob acusação de jansenismo e de tendências galicanas, o livro foi imposto pelo governo português, com decreto régio de 30 de setembro de 1770 como texto oficial nas escolas do Reino português e Colônias. Foi considerado o texto da educação da fé no território brasileiro, na segunda metade do século XVIII e início do XIX. Pombal não estava interessado nas questões teológicas desse catecismo, mas em seu aspecto político, pois o jansenismo via com maus olhos o poder central da Igreja (Papa, Cúria Romana); e era isso que lhe interessava: minar o poder e a autoridade de Roma.

Muitos bispos brasileiros protestaram diante de tal imposição, mas inutilmente; outros, ao invés, oficializaram o texto em suas dioceses. Foi divulgado por toda parte, influenciando tremendamente a catequese no Brasil até o início do período imperial. Mais do que o jansenismo dogmático, teve grande influência na formação religiosa brasileira o jansenismo moral, com seu rigorismo ascético fanaticamente exacerbado, a busca da pureza legal sem limites, a luta indiscriminada contra o espírito de tolerância e o laxismo, visão negativa da sexualidade e a divulgação de um cristianismo triste (cf. Lustosa, 1992, p. 67).

Desenvolveram-se, então formas novas que vieram substituir a catequese oficial que, com essas medidas pombalinas foi-se definhando. Assim pode ser considerada a catequese popular que tinha essas características: simplicidade, sem aprofundamento doutrinal, conhecimento daquilo que é mais importante para um cristão, prática de um catolicismo bem popular e sem a linguagem e fórmulas eclesiásticas. Do ponto de vista moral, emergiam costumes e práticas austeras centradas no essencial, e carregadas de devocionismo, herança portuguesa e medieval, quase que colocando a mediação dos santos acima do cristocentrismo evangélico. Tal catequese tornava a transmissão da fé uma tarefa familiar, que facilmente, e sem contestações ou dificuldades, era praticada.

O cristianismo era transmitido ao lado dos valores humanos, impregnados dos valores evangélicos. Inevitavelmente era forte e vigorosa a influência de elementos religiosos indígenas e africanos na vida cristã. Tal mistura sincrética (diferente da tão proposta e desejada inculturação) ainda hoje é visível e palpável em diferentes ambientes brasileiros[3]. Nascia assim o fenômeno da religiosidade popular, sempre se firmando e crescendo. Ela gerou consequentemente uma transmissão da fé sem estruturas e formalidades. Era conduzida pelo povo: pais e mães de família, pessoas simples sem grande instrução, pregadores do povo, puxadores de terços e novenas, benzedeiras, rezadores, beatas e devotos, carolas e ermitões. Nesse ambiente de cristianismo simples, mas válido e sincero, tais figuras se destacavam e muitas vezes assumiam a liderança nas comunidades.

Crescia concomitantemente expressões rituais e celebrativas, bem diferentes dos livros litúrgicos oficiais, orações, mesmo num latim estropiado, adulterado e não poucas vezes com ressaibos de superstição. A popularidade dessas figuras da religiosidade popular era tal que a seu redor se juntavam multidões de seguidores, líderes que ditavam costumes e práticas religiosas populares. Sobreviveram e se multiplicaram até hoje, manifestando, de um modo concreto junto às pessoas mais simples, um modo concreto de sentir e viver a Igreja nas bases e no chão do povo, marcando nossa cultura e folclore religioso.

3 Catequese brasileira no século XIX: os bispos reformadores

O período imperial no Brasil nasceu com a vinda da família real, em 1808, para o Rio de Janeiro. É marcado pela reforma católica, conduzida pelos bispos chamados reformadores[4]. Eles pretendiam alinhar a Igreja do Brasil com o já longínquo Concílio de Trento, ainda pouco vivenciado em Portugal e nas colônias. Com isso, também ganha a pastoral catequética. Como em toda grande reforma na Igreja, ela começa pelo clero, encaminhando-se depois para a instrução cristã do povo, promovendo a renovação do ensino da doutrina. Tal renovação torna-se ferramenta importe para a implantação da reforma. Além de suas Cartas Pastorais, predecessoras dos atuais Documentos da CNBB, que traçavam diretrizes e orientações, as visitas pastorais eram ocasiões de os bispos realizarem suas catequeses mais ortodoxas do que o Catecismo de Montpellier, imposto por Pombal. Igualmente as Paróquias adotavam uma catequese, sempre de cunho doutrinal, porém mais conforme o Concílio de Trento.

Novos catecismos começam a surgir, sinal de vitalidade da renovação catequética a partir de 1840: são marcados pela dimensão doutrinal e as diretrizes tridentinas. Eram traduzidos de edições europeias, sobretudo francesas, ou elaborados e adaptados pelos próprios bispos brasileiros. Foi a época áurea dos Catecismos da doutrina cristã ou Catecismos teológicos. A multiplicação de tais textos prepara o ensaio de busca por um texto único para todo o Brasil, no início do século XX. Além da característica doutrinal, possuíam também o viés apologético: combatem os erros do jansenismo, do galicanismo e do liberalismo; são carregados do tom antiprotestante da reforma tridentina, da qual a nossa reforma era tributária. Desde 1810, devido às cláusulas favoráveis à liberdade religiosa dos anglicanos, contidas no Tratado do Comércio e Navegação com a Inglaterra, inicia-se no Brasil a implantação de igrejas não católicas. Além dos anglicanos, vários pastores protestantes e imigrantes norte-americanos aportam no país, vindos da guerra de secessão daquele país. Alguns fundam importantes escolas, como o colégio e a universidade Mackenzie de São Paulo.

Como no período anterior, além da catequese paroquial, mais formal e baseada em textos de catecismos doutrinais, também ministrada em colégios católicos, há ainda uma significativa atividade mais missionária, de caráter popular, que mantinha e alimentava a fé das famílias; eram os pregadores leigos populares, que marcaram época, como: Antônio Vicente Mendes Maciel (Antônio Conselheiro), líder religioso-político da revolução de Canudos (1897); “São” João Maria, nome mítico que engloba vários personagens envolvidos em pregações messiânicas, medicina popular e política, na guerra do Contestado (Santa Catarina-Paraná); Pedro Batista, na região de Paulo Afonso (Bahia), Ir. José da Cruz (Rio Juruá no Acre) e Jacobina Meurer (Nova Hamburgo, RS). Junto com os textos de catequese eram também amplamente difundidos os devocionários, manuais de oração, novenários, livros de piedade, terços, horas marianas, missão abreviada (textos para a continuidade das santas Missões) etc.

No final do século XIX e início do XX realizaram-se alguns esforços de articulação pastoral. D. Antônio Macedo Costa, bispo de Belém do Pará, nomeado depois Arcebispo da Bahia e Primaz do Brasil, conseguiu, pela primeira vez na história da Igreja brasileira, reunir o episcopado em março de 1890 (eram poucas as dioceses), discutir e promulgar a Pastoral Coletiva do Episcopado Brasileiro. Combate pretensos erros do momento, marcado pelo positivismo e pela presença maciça de membros da maçonaria na nascente República, contra a qual se posiciona, assim como contra a Constituição, Estado laico e liberdade religiosa.

Acontecimentos importantes desse movimento de romanização foram o Concílio Plenário Latino-americano (1899, em Roma!) e o Concílio Plenário Brasileiro (1939), primeiro código jurídico-eclesiástico-pastoral exclusivo para o Brasil. Entre esses dois acontecimentos realizaram-se outras assembleias como o Concílio das Províncias Eclesiásticas do Sul, em Nova Friburgo (RJ) de 12 a 17 de janeiro de 1915. Sua documentação aponta para o esforço da construção de uma Igreja Católica Romana no Brasil, após a separação do Estado. Publica uma célebre Pastoral Coletiva e o Catecismo da Doutrina Cristã, cujas raízes remontam aos bispos “reformadores” do final do século anterior.

Esse importante Catecismo teve sua primeira edição em 1903, com grande aceitação e edições sucessivas, espalhou-se não só pelo Sul, mas também por todo o território brasileiro. Trata-se de um catecismo doutrinal-teológico, com fórmulas precisas e ao mesmo tempo simples, dentro do padrão doutrinal, e por isso mesmo, memorizável. Chegou-se a afirmar que, dentro de seu estilo e características próprias ele supera até o famoso Catecismo de Pio XI, publicado em seguida. Na verdade, era um catecismo em quatro níveis: Resumo da Doutrina Cristã (extrato da doutrina elementar); Primeiro Catecismo da Doutrina Cristã (catecismo elementar destinado aos principiantes); Segundo Catecismo (catecismo básico); Terceiro Catecismo (de nível avançado).

Impôs-se em todo o território nacional, perdurando suas edições sucessivas até os dias de hoje, com muito sucesso. Milhões de cristãos a partir de 1903 até às vésperas do Vaticano II, bem ou mal, foram formados tendo como texto-base esses Catecismos da Doutrina Cristã. Eram considerados por muitos o catecismo por antonomásia. De um modo especial nos colégios, suas respostas eram memorizadas, enquanto se adotavam outros textos, menos doutrinais e mais didáticos, para a explicação daqueles formulários. As célebres maratonas ou certames promulgados oficialmente tinham, em geral, como base, os textos do Catecismo da Doutrina Cristã.

4 A catequese no Brasil no período pré-conciliar

O séc. XX foi o século da renovação catequética em todos os sentidos, dando início ao movimento catequético sob a influência do desenvolvimento da Psicologia e da Pedagogia, ao mesmo tempo em que teologicamente a Igreja caminhava em direção do Vaticano II. Esta renovação pedagógica, unida às descobertas da psicologia científica, desemboca, em termos de catequese, nos Congressos de Viena (1912) e de Munique (1928). O método psicológico de Munique propunha partir de um episódio bíblico, explicar a verdade aí contida e aplicá-la à vida. Dá-se grande valor à liturgia e à bíblia: é o incipiente método querigmático. Na França Joseph Colomb, François Coudreau, Françoise Derkene e Maria Tecla Montessori assimilaram e aperfeiçoaram tais tendências, divulgando-as pelo mundo, inclusive no Brasil.

O Papa São Pio X publicou a encíclica Acerbo Nimis (1905) e o decreto Quam Singulari (1910), em polêmica com o jansenismo, abrindo às crianças, a partir dos 7 anos, o acesso à Comunhão Eucarística. Ao fazer isso, muito impulsionou a catequese infantil, quase fixando nessa idade os destinatários principais da catequese, embora prescrevesse também a catequese de adultos. Seu Catecismo, diferentemente do movimento catequético europeu, prossegue a tradição de preferência à dimensão doutrinal, mas inova e avança na dimensão organizacional da catequese. De fato, institui as Congregações da Doutrina Cristã, destinadas a zelar, estimular e apoiar a catequese em todas as Paróquias. Tais orientações tiveram boa repercussão, aceitação e influxo na organização da catequese no Brasil, mais do que seu Catecismo (1905, 1912), feito originalmente para a Diocese de Roma, espalhando-se depois pela Itália e por todo o mundo católico, sem traços de um catecismo universal. Aliás, no Brasil, já havia, como dito acima, um excelente Catecismo da doutrina cristã desde 1901.

A partir da encíclica Acerbo Nimis, os leigos que no Brasil sempre tiveram uma presença significativa na catequese, serão valorizados mais ainda. Os párocos, que eram cada vez mais conclamados a desempenharem com responsabilidade suas graves obrigações com relação à catequese, buscam seus leigos auxiliares para o trabalho catequético entre os membros das várias associações paroquiais (Apostolado da Oração, Congregações Marianas, Vicentinos, Filhas de Maria, Corte de São José etc.). Esta abertura em favor da participação das/os leigos/as foi reflexo também do surgimento da Ação Católica na Europa e que se desenvolveu muito no Brasil. A falta de clero obrigou os bispos e padres a recorrerem cada vez mais aos leigos. Com isso, as/os catequistas receberam uma formação mais sólida e profunda. Por tudo isso, São Pio X, papa da catequese, em alguns países é padroeiro dos catequistas. No Brasil, foi proclamado padroeiro dos catequistas São José de Anchieta.

Desde o final do século XIX o chamado dos Bispos para uma maior atenção à catequese vinha da constatação da crescente ignorância religiosa do povo, o que já apontava também para uma opção doutrinal da mesma. Por outro lado, pessoas atentas à eficácia da pedagogia da fé começaram a criticar os catecismos doutrinais, à base de perguntas e respostas, privilegiando a memorização das fórmulas concentradas da doutrina cristã. O progresso das ciências pedagógicas e a evolução do movimento catequético europeu, já nas décadas de 1920 e 1930, mostraram as fraquezas destes textos. A primeira renovação significativa veio pela Ação Católica, sob o pontificado de Pio XI. No Brasil, ela teve um enorme raio de ação, cujos efeitos continuaram posteriormente, na virada antropológica, sobretudo a atenção aos graves problemas sociais. Sem o trabalho eficaz e organizado da Ação Católica, certamente não haveria clima para o surgimento das teologias da libertação na América Latina, sobretudo no Brasil.

Seus cursos de cultura religiosa primavam pelo aprofundamento da fé, fugindo, contudo, daquele nocionismo que caracterizava a catequese tradicional como doutrina. Leigos bem formados pela Ação Católica assumiam a vocação de catequistas, alterando um pouco o monopólio da catequese por parte do clero. Eles descobriam e viviam sua vocação cristã como leigos, marcando uma presença muito grande de um modo especial na catequese. No entanto, o avançadíssimo pensamento social cristão que permeava a Ação Católica e que irá influir significativamente na sua militância concreta, não conseguiu mudar muito o conteúdo da catequese tradicional. Este será um trabalho para o movimento catequético após o Vaticano II, mas aqui já estão suas sementes e bases.

Com a Ação Católica a catequese se beneficiou com um valioso instrumento metodológico: a maneira de proceder através da trilogia: ver, julgar e agir. Timidamente praticado nos inícios, desenvolveu-se sempre mais, sob a influência do pensamento de Josef-Léon Cardjin e Jacques Maritain, tornando-se depois não só metodologia da catequese, mas de toda a pastoral. Hoje o DNC propõe a terminologia: ver-iluminar-agir (DNC 157-162).

Muito contribuiu para a evolução da catequese no Brasil o movimento querigmático, também de origem europeia. A catequese querigmática, pedagogicamente construída a partir de unidades didáticas, tem como espinha dorsal de seu conteúdo a História da Salvação, cujo centro é Jesus Cristo, com um grande uso da Bíblia, particularmente os Evangelhos, como também da Liturgia. É fruto da convergência na catequese dos avanços dos movimentos bíblico, litúrgico, da renovação da teologia querigmática, da escola ativa, e de toda a efervescência pastoral que acontecia na Igreja às vésperas do Vaticano II.

Entre os grandes animadores brasileiros da catequese do período pré-conciliar, destaca-se o Pe. Álvaro Pereira de Albuquerque Negromonte (1901-1964). Sobre ele assim se expressa O. Lustosa:

Reconhecido na vida como “mentor do catecismo no Brasil” e “um mestre brasileiro de pedagogia do catecismo”, o Pe. Álvaro Negromonte foi lentamente esquecido após sua morte (1964). Sua obra catequética merece, não apenas os agradecimentos dos catequistas, mas um estudo sério de sua importância e de sua influência nos 30 anos de atuação (Lustosa, 1992, p. 113; cf. 120).

Criou e difundiu no Brasil o chamado método integral de catequese: tinha como objetivo “formar o cristão íntegro, firme na fé, forte no amor e pleno de esperança” (CR 22). Entretanto os poucos autores que tratam da catequese no Brasil, colocam-no em primeiro plano, como renovador da catequese, após a era dos catecismos teológicos e com o advento da renovação querigmática. Depois de intensa atividade em Belo Horizonte, de onde praticamente dirigia a catequese em nível nacional, e no Rio de Janeiro, juntou-se a Dom Helder Câmara, na fundação do Instituto Superior de Pastoral Catequética nacional (ISPAC) e na publicação da Revista Catequética, editada durante 8 anos (1949-1956). Nessa ocasião foi o primeiro assessor nacional para a catequese da nascente CNBB (1952), cujo departamento catequético se intitulava Secretariado Nacional do Ensino de Religião (SNER)[5]. Deixou inúmeras publicações, entre as quais se sobressai sua Pedagogia do Catecismo (1937), sendo que as outras são obras mais didáticas, no estilo renovado dos textos de catequese, cujo conteúdo e estilo renovou radicalmente.

Em muitas partes do mundo cristão realizavam-se Congressos Catequéticos ou Semanas Internacionais de Catequese (seis ao todo) sempre em vista de uma revitalização e novas perspectivas, levadas adiante pelo jesuíta Pe. Johannes Hofinger (1903-1984), incansável apóstolo da renovação catequética em base à teologia querigmática e o nascente conceito de inculturação da fé, do qual foi um pioneiro. Pe. Pedro Arrupe SJ, usou-o pela primeira vez oficialmente no Sínodo da Catequese (1977) e depois São João Paulo II, também pela primeira vez usa-o na Exortação Apostólica Catechesi Tradendae (CT).

Concluindo esse período pré-conciliar no Brasil, é obrigatório referir-se à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, fundada sob a liderança de D. Helder Câmara, então simples padre e Assistente Eclesiástico da Ação Católica, em cuja organização e espiritualidade se inspirou para estruturar a CNBB. A partir de tal fundação trouxe nova coordenação tanto paroquial como diocesana à catequese, dando-lhe vigor e levando-a a um crescimento.

Em 1961 D. José Costa Campos, Bispo de Valença (RJ), é nomeado presidente do SNER. Seu dinamismo, capacidade de organização e liderança imprimiu um novo vigor ao movimento catequético brasileiro, com inúmeras iniciativas. Reorganizou o SNER e convocou o Pe. Hugo Paiva, (CM, padres da Missão), formado em catequética no Institut Catholique de Paris, como assessor nacional. O novo assessor logo elaborou um plano de reorganização da catequese no Brasil, cujas medidas mais urgentes seriam a organização do ISPAC (Instituto Superior de Pastoral Catequética) e a criação de um Centro de Informação e Documentação. Criou ainda uma equipe nacional de assessoria que atuou em território nacional, principalmente com cursos e acompanhando o andamento das atividades do SNER.

5 Do Vaticano II (1962-1965) ao final do século XX

Os grandes movimentos de renovação da primeira metade do século XX, como o movimento bíblico, patrístico, litúrgico, querigmático e catequético do final do séc. XIX e início do XX, incluindo aí a Ação Católica, renovam a Igreja e provocam o Concílio Vaticano II com grande ganho para a catequese. O Concílio não quis um Catecismo Universal ou Catecismo Fonte, atribuindo aos bispos a responsabilidade pelos catecismos locais (cf. CD 14), mas fez publicar o Diretório Catequético Geral (1971). Precedido também por grandes movimentos, como a Ação Católica, a Igreja se abre ao mundo moderno, às questões sociais e à ação dos leigos. O método ver, julgar e agir, da Ação Católica, domina a pastoral no Brasil. Desde 1962. Durante o Concílio, a CNBB publica um plano orgânico de pastoral de 4 em 4 anos, as Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja (mudado depois para Ação Evangelizadora). Nas Diretrizes, a dimensão catequética sempre teve grande destaque, situando-a sempre mais no grande objetivo da evangelização cujas características marcam sempre mais o conceito de catequese.

O Vaticano II ficou sendo inicialmente conhecido e veiculado no Brasil, através, principalmente, da reflexão catequética, muito fecunda nos anos 60 e 70, destacando-se o ISPAC. Criado nos moldes do Institut Catéchètique de Paris, o ISPAC do Rio de Janeiro durou pouco (1963-1969), mas formou a geração de catequetas que impulsionaram a catequese nos anos 60 até o início do milênio…. Publicou várias obras, em geral traduzidas do francês, que muito refletiam o pensamento catequético alemão, e era o que havia na época de mais avançado em termos de catequese. Além desse ISPAC nacional, foram fundados outros ISPACs em nível regional (Curitiba, Salvador, São Paulo, Porto Alegre…).

Com a crise desses cursos, somente em 1982 irá aparecer, em São Paulo, no Instituto Pio XI, dos salesianos, um Curso Superior de Pastoral Catequética (CSPC). O curso durou 16 anos, até 1997, sendo, em seguida, substituído pelos cursos de Pós-Graduação, com reconhecimento do MEC. Em outras cidades também se abriram cursos de pós-graduações lato sensu: Curitiba, Goiás, São Paulo, Porto Velho, Salvador, Cuiabá, Sinop, Florianópolis, Castanhal (Norte II), IRPAC (Leste II), Dourados, Marília, Lages… Tais cursos elevaram muito o nível dos coordenadores de Catequese e dos próprios catequistas de base.

Na América Latina, a renovação catequética se deu, sobretudo, através da Semana Internacional de Catequese de Medellín (agosto de 1968), na qual os catequetas brasileiros tiveram grande atuação. Foi seguida imediatamente da II Assembleia do CELAM, na mesma cidade, em setembro de 1968. A situação sociopolítica exigia da Igreja e da catequese, naquele momento histórico, uma resposta às inúmeras injustiças institucionalizadas (expressão usada por um dos documentos de Medellín). Nascia assim a opção pelos pobres, os germens da teologia da libertação, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a consequente catequese libertadora e transformadora. Esta corrente catequética se consolidou nos documentos da CNBB: Catequese Renovada: Orientações e Conteúdo (CR, 1983), e outros textos produzidos pelo Grupo Nacional de Reflexão Catequética (GRECAT) [6], com intensa participação de muitos especialistas e dos catequistas em geral. Esse grupo, fundado no mesmo ano de 1983, por ocasião da confecção e publicação do documento CR, tem como finalidade acompanhar e assessorar a Dimensão Bíblico-Catequética da CNBB, animar e impulsionar a catequese em nível nacional.

Em 1978 foi fundada a Revista de Catequese, pelo Pe. Ralfy Mendes de Oliveira (1917 -2008), com o apoio da Província Salesiana de São Paulo e da Editora Salesiana Dom Bosco. Apesar das grandes dificuldades, ela se mantém até hoje como publicação acadêmica do Centro UNISAL – Pio XI, de São Paulo. As quatro semanas brasileiras de catequese (1986, 2001, 2009, 2018) têm sido momentos culminantes da história recente da catequese no Brasil. É importante citar ainda as Assembleias do CELAM de Puebla (1979), Santo Domingo (1992), Aparecida (2007) e o documento Catequese na América Latina (1985; 1999), publicado pelo CELAM para os países latino-americanos.

Em termos de Igreja mundial, esse período pós-conciliar foi igualmente riquíssimo de orientações, publicações, documentos, subsídios com estimulante aceitação e repercussão na catequese brasileira. Embora algumas obras apresentadas a seguir não sejam temas propriamente de História da Catequese no Brasil, é importante citá-las devido ao grande influxo que suscitaram. Geralmente elas surgiram de uma prática já existente, ou da grande Tradição da Igreja, mas ao mesmo tempo abriram novos horizontes e caminhos, conforme as necessidades do momento. Assim, foi publicado em 1971, como já foi dito, o primeiro Diretório Catequético Geral, que entre outras coisas, insistia na necessidade de volta aos adultos como interlocutores ou destinatários primeiros da pastoral catequética e, como objetivo da catequese, a maturidade da fé. A IV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (27 de setembro a 26 de outubro de 1977) foi dedicada à catequese: uma longa e profunda análise, seguida das oportunas reflexões e tomadas de decisão, nunca realizada na Igreja com tal amplitude e participação. Logo depois, São João Paulo II escreveu a Exortação pós-sinodal Catequese Tradendae (CT, 1979), de tempestiva repercussão em toda a Igreja, abordando propriamente todos os principais temas da pastoral catequética. Ele também fez publicar o Catecismo da Igreja Católica (CaIC), em 1992, modificando o mandato conciliar que não prescrevia um texto universal de catequese. Pode-se dizer que esse volumoso e oportuno texto, que expressa o autêntico conteúdo da catequese doutrinal, conforme o atual magistério da Igreja, é um lídimo fruto do longo pontificado do Papa São João Paulo II, embora de várias partes houvesse sua solicitação, sobretudo dos países “de missão”. De fato, ele se coloca entre as iniciativas do Papa Wojtyła de prover a Igreja com os instrumentos aptos para uma nova evangelização do mundo de hoje.

Muito ligado ao CaIC, foi promulgado também o Diretório Geral para a Catequese (DGC) em sua 2ª. edição (1997). É talvez o mais completo e profundo dos textos já produzidos pela Igreja em favor da catequese. Como instrução, a catequese é, muito corretamente, considerada em sua dimensão evangelizadora. Isso supõe que ela seja sempre precedida pelo urgente primeiro anúncio, como a essência e o resumo de todo Evangelho. Deste modo, um segundo momento catequético poderá ampliar e consolidar a adesão a Jesus Cristo, usando, para isso, a doutrina católica, que tanto caracterizou a catequese no passado e para o qual foi criado o CaIC. Hoje, num mundo em processos de descristianização, devemos, antes da catequese, fazer valer esse primeiro momento querigmático do primeiro anúncio.

O Congresso Internacional de Catequese (08-12 de outubro de 2002), comemorando os 10 anos do CaIC acentuou a importância desse texto e dos catecismos nacionais, reforçando a necessidade de se dar maior importância à dimensão intelectual e sistemática na educação da fé: daí se explica por que a Congregação da Doutrina da Fé foi a autora e promotora principal do Catecismo. Esta tendência doutrinária ganhou maior importância com o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, querido por João Paulo II e publicado por Bento XVI (29-06-05), um resumo em perguntas e respostas, acentuando mais ainda apenas a dimensão doutrinal! No entanto, tal dimensão intelectual, sempre necessária na catequese, deve estar integrada e equilibrada com os outros aspectos da educação da fé, como bem demonstrou todo o movimento catequético do final do séc. XX, cujo ápice foi o DGC.

Como sintetizar o núcleo desta renovação catequética sob o impacto do Vaticano II? Poderíamos relevar esses aspectos: a comunidade de fé como principal lugar de catequese; o valor da Bíblia como texto principal da educação da fé, acompanhado da centralidade da Liturgia; o princípio de interação entre fé e vida, relevando o mútuo influxo entre mensagem evangélica e situações concretas da vida; a necessidade de inculturação das fórmulas (ou enunciados, doutrinas) da fé; a importância da pessoa do catequista, como testemunha viva do que anuncia e considerado como mistagogo (que conduz ao mistério de Cristo e da Igreja) e sua esmerada formação; por fim, a recuperação da dimensão catecumenal da catequese, que recebeu no período seguinte toda a atenção e maior desenvolvimento.

6 A catequese a serviço da Iniciação à Vida Cristã: dimensão catecumenal

O início do século XXI é marcado no Brasil, pela atenção e reflexão sobre os adultos, com a redação e publicação do Estudo da CNBB: Com adultos catequese adulta, fruto da 2a. Semana Brasileira de Catequese (outubro de 2001). Nesse sentido, houve várias iniciativas em todo o país. É típico do Brasil afirmar a “catequese com adultos” e não “de adultos”, para reforçar a ideia de que eles são, mais que destinatários, interlocutores da catequese. Se isso vale para todo tipo de catequese, muito mais para a catequese realizada com pessoas adultas.

Outro tema que ocupou seriamente a Igreja nesse início de milênio foi a catequese considerada como processo de Iniciação à Vida Cristã (IVC). Sobre essa expressão deve-se considerar que a tradição histórica, tanto teológica como litúrgica, sempre usou a expressão “iniciação cristã” para indicar os processos pelos quais a pessoa “torna-se cristã”, usando a expressão de Tertuliano (século II): “as pessoas se tornam, não nascem cristãs!” (fiunt non nascuntur christiani: Apologia, XVIII, 4). No Brasil e em alguns países latino-americanos, usa-se a expressão “iniciação à vida cristã”, para indicar que não se trata de algo somente místico e espiritual, mas deve tocar as raízes da existência, de um modo muito experiencial, sobretudo no que se refere aos graves problemas sociais do Brasil.

Como haviam determinado os documentos conciliares Christus Dominus (13, 14 c), Ad Gentes (14-15,17) e Sacrosanctum Concilium (64), o Diretório Catequético Geral da Sé Apostólica (1971) já estabelecera que “a instituição dos catecúmenos adultos fosse restabelecida” (20b; cf. 19 b, c). Como fruto da Reforma Litúrgica do Concílio, foi publicado, em 1971, o Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA), importantíssimo para a catequese iniciática, mas ficara um texto desconhecido e pouco usado. Somente no início do século XXI é que, em âmbito latino-americano e depois brasileiro, começou-se a descobri-lo e estudá-lo, suscitando inclusive, no Brasil, uma nova edição, com diagramação que melhor facilitasse seu uso nos ritos de iniciação (2001).

Entretanto, foi em sua segunda edição, de 1997, que o DGC reforçou, na catequese, a restauração do catecumenato, uma vez que agora ela é considerada dentro do quadro maior da evangelização. Assim, a catequese retorna a seu lugar original, nascida, de fato, dentro dos processos de IVC (catecumenato), como nos primeiros séculos do cristianismo.

Diferentemente de certa concepção tradicional de catequese, em que era privilegiado quase que somente o conteúdo doutrinal, o catecumenato, segundo AG, “não é mera exposição de dogmas e preceitos, mas uma educação de toda a vida cristã e um tirocínio de certa duração com o fim de unir os discípulos com Cristo, seu Mestre” (14a).

Esse processo de iniciação é assim descrito: “sejam os catecúmenos convenientemente iniciados no mistério da salvação. Através da prática dos costumes evangélicos e pelos ritos sagrados que se celebram em tempos sucessivos, sejam introduzidos [iniciados!] na vida da fé, da liturgia e da caridade do Povo de Deus” (AG 14a). Seguem-se outras disposições (14b-e) que, no seu conjunto foram assumidas e ampliadas no livro litúrgico Rito de Iniciação Cristã de Adultos (RICA, 1972).

Tais reflexões confluíram no documento da CNBB Diretório Nacional de Catequese (DNC). No início do milênio, ao invés de se fazer uma nova edição atualizada de CR optou-se por publicar esse Diretório, em continuidade com CR e sem rupturas. Tal projeto vinha atender também a um pedido da Santa Sé a todas as Conferências Episcopais, através do DGC (cf. nº. 9, 11, 139, 166 e 171). Foi um longo processo de reflexão e redação que durou de maio de 2002 a outubro de 2006, quando foi aprovado e publicado, depois de três Assembleias Gerais do episcopado e de dois Instrumentos de Trabalho. Muitos catequistas, catequetas, biblistas, teólogos, liturgistas e outros estudiosos foram envolvidos no processo de elaboração deste DNC. Ele trouxe novo impulso e animação na pastoral catequética, um verdadeiro marco na história da catequese brasileira. Propondo uma catequese com dimensão catecumenal, intimamente ligada à Liturgia, o DNC apresenta um novo paradigma de catequese. Tal tendência foi uma antecipação do que seria refletido e proposto para toda a América Latina através da V Conferência do CELAM, em Aparecida. Esse DNC, ao permitir a conferição do Ministério do Catequista para leigos, adiantou de 15 anos o Motu Proprio Antiquum Ministerium, do Papa Francisco, que o irá instituir em 10 de maio de 2021.

Em vista da magna assembleia da V CELAM, em Aparecida (SP), a Secção de Catequese do mesmo CELAM reuniu em Bogotá de 01 a 05 de 2006 a III Semana Latino-Americana de Catequese, com cerca de 50 especialistas, entre os quais muitos brasileiros, para dar contribuições a partir da catequese. Foi um importante momento catequético latino-americano, liderado por Dom José Luís Chávez Botello, responsável pela catequese no continente e seus assessores. Como fruto dessa III SLAC foi publicado um documento em quatro capítulos[7], que acentua, sobretudo, os processos de iniciação cristã e a dimensão catecumenal da catequese. Tal contribuição, embora de maneira muito sucinta, faz parte do Documento de Aparecida, que assume o catecumenato (286-300) realizado nos processos de IVC para a formação dos discípulos missionários, grande perspectiva dessa V Assembleia Continental (cf. nº. 284-285).

Os processos de IVC, conforme o RICA, são compostos de quatro tempos e três etapas. Os tempos são: pré-catecumenato (primeiro anúncio), catecumenato propriamente dito (instrução, catequese, conversão), iluminação-purificação (tempo quaresmal-pascal) e mistagogia (catequese após o recebimento dos sacramentos da iniciação, própria do tempo pascal). As etapas são as grandes celebrações: entrada no catecumenato, purificação e iluminação (ritos de entregas, escrutínios e outros) e celebração sacramental do Batismo, Crisma e Eucaristia. Esse ritual deixa grande possibilidade de estruturação, nova organização e, sobretudo, inculturação dos ritos catecumenais. Porém, as experiências e propostas em geral são baseadas nos ritos tradicionais do mesmo RICA. Conforme o DGC, da Sé Apostólica, e o DNC, da CNBB (2006), o RICA dá o ritmo dos ritos e celebrações que devem acompanhar a catequese entendida como educação e instrução na fé. Ad Gentes (AG) releva ainda a grande importância da comunidade no processo catecumenal: “a iniciação cristã não é apenas tarefa dos catequistas e sacerdotes, mas de toda a comunidade dos fiéis, de modo especial, dos padrinhos” (14d; cf. PO 6d).

No Brasil, como na América Latina, essa guinada em busca de uma catequese de índole catecumenal é bem recebida, inicialmente entre os orientadores da catequese e os ambientes acadêmicos, para em seguida ser entusiasticamente acolhida pela maioria dos catequistas de base. Cresce o interesse pela restauração do catecumenato, pois é nele, ou seja, dentro do processo de IVC que a catequese encontra seu húmus e lugar onde melhor exercer sua missão mistagógica e iniciático-pedagógica. Apesar dos inúmeros cursos de atualização ou assembleias para o clero sobre a IVC, proporcionados pela maioria das dioceses, do ponto de vista prático, a instauração desse novo paradigma catequético-catecumenal encontra resistências e questionamentos por parte daqueles que justamente deveriam liderar tal renovação: os párocos! Muitos o julgam complicado, trabalhoso e preferem manter a toada tradicional da catequese, apenas com alguma maquiagem nos subsídios e métodos.

Um acontecimento de grande impacto na catequese no Brasil e demais setores da Igreja, sem dúvida, foi a eleição do Papa Bergoglio. O nome escolhido, Francisco, já indica uma forte tendência de seu pontificado: surpreendeu o mundo com gestos de simplicidade, pobreza, apelo à misericórdia, reforma nas estruturas eclesiais e o retorno ao núcleo central do Evangelho. Invejável é também a lista de seus escritos: além de uma encíclica sobre a Fé, Lumen Fidei, que muito tem a ver com a catequese, escreveu quase que de próprio punho a exortação apostólica Evangelii Gaudium (a alegria do Evangelho), importantíssima para a evangelização e catequese, recolhendo os frutos principais do Sínodo dos Bispos, de 2012. Outros grandes documentos seus: Laudato sì, Amoris Laetitia, Querida Amazonia, Fratelli tutti. Proclamou 2016 como Ano da Misericórdia, convocou o Sínodo de 2018: os jovens e a fé, e sua respectiva exortação Apostólica Christus vivit. Ele mesmo, em suas catequeses, é um exemplo vivo de como fazer catequese hoje.

7 Um panorama fecundo de eventos e atividades catequéticas

Entre 2012-2022, podemos elencar onze acontecimentos e documentos em torno da IVC. Eles marcam a história recente e apontam para esse novo paradigma catequético. Não se trata apenas de nomes e dinâmicas inovadoras, mas constitui-se também como que um novo caminho, que não tem retorno, para o futuro da catequese no Brasil:

1. O Sínodo dos Bispos para a Nova Evangelização realizado, em outubro de 2012, com o tema A Nova Evangelização para a transmissão da fé, no marco dos 50 anos do Vaticano II e 20 do Catecismo da Igreja Católica. Reafirmou a importância da catequese para a nova evangelização, sublinhando seu caráter catecumenal e a prioridade dos adultos. Pediu que fosse revista a sequência da recepção dos Sacramentos da Iniciação, propondo: Batismo, Crisma, Eucaristia, para que esse Santíssimo Sacramento se torne o ápice da iniciação, e não a confirmação.

2. O III Congresso Internacional sobre o Catecumenato, realizado em Santiago do Chile (20-25 de julho de 2014) sobre a IVC e a mudança de época.

3. O Seminário Nacional sobre Iniciação à Vida Cristã, em São Caetano (SP), de 07 a 09 de novembro de 2014: avaliação de experiências realizadas e prospectivas.

4. Publicação pelo Celam do texto: A alegria de iniciar discípulos missionários numa mudança de época. Novas perspectivas para a catequese na América Latina e Caribe[8]. É um texto breve, denso e provocativo; apresenta-se com uma linguagem simples; sem ser acadêmica ou erudita, é profunda, compreensível por um catequista de cultura média.

5. Lançamento, pela Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética, da CNBB, do Itinerário Catequético: iniciação à vida cristã – um processo de inspiração catecumenal (Brasília: Edições CNBB 2016, 3ª. ed.). Nele, de maneira muito esquemática, há itinerários de IVC para 4 idades: adultos não batizados, adultos batizados, crianças, adolescentes e jovens, sempre a partir do RICA e integrando os três grandes livros da IVC: Bíblia, CaIC, RICA.

6. Reunião do Pontifício Conselho para Promoção da Nova Evangelização com os 18 Regionais da CNBB, para conhecimento direto da catequese no Brasil por parte desse organismo romano, realizado de 02 a 04 de setembro de 2015, em Aparecida (SP): foi a primeira vez que um órgão da Cúria Romana se interessou por um maior conhecimento, in loco, da nossa realidade catequética brasileira. Estabeleceu-se um diálogo muito fecundo.

7. Aprovação, pela 55ª. Assembleia Geral da CNBB, em 2017, do Documento 107, Iniciação à Vida Cristã: itinerário para formar discípulos missionários (Brasília: Edições CNBB, 2017). É o documento oficial mais importante da Conferência Episcopal brasileira para a IVC, dentro da qual se situa a catequese. São 4 capítulos densos de doutrina e história: depois de um primeiro capítulo, em que apresenta o ícone da IVC no episódio de Jesus e a Samaritana, o segundo é um duplo olhar: para o passado (a história da IVC) e para o presente (as necessidades atuais); só então, no terceiro capítulo, procede-se a uma grande reflexão teológico-pastoral sobre a IVC, tratando temas como mergulho no mistério de Deus e de Cristo mediante o mistério da Igreja, contemplada como comunidade querigmática e missionária, mistagógica e materna; reflexão sobre o RICA e os sacramentos da IVC, concluindo com a visão da vida cristã como fruto da Iniciação. Por fim, no quarto e maior capítulo, há a proposta de caminhos metodológicos: o projeto diocesano responsável por todo o êxito dessa prática pastoral-catequética, o querigma, o catecumenato com seus tempos e etapas, orientações para a formação iniciática e sobre os principais atores da IVC, concluindo com encaminhamentos para a revisão da ordem dos sacramentos da iniciação: Batismo, Crisma e Eucaristia.

8. Promovido pelo Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, realizou-se no Vaticano, de 20 a 23 de setembro de 2018, o II Congresso Internacional de Catequese, com o tema: O Catequista, testemunha do Mistério. Teve o caráter mais de festa e celebração, mas também momentos de reflexão sobre o catequista testemunha e anunciador do mistério cristão.

9. IV Semana Brasileira de Catequese, de 14 a 18 novembro de 2018, em Itaici (SP), com o tema A Catequese a serviço da IVC. Foi preparada com um subsídio próprio pelas duas comissões episcopais: da Catequese e da Liturgia. O evento teve como lema “Nós ouvimos e sabemos que Ele é Salvador do mundo” (Jo 4,42), contando com mais de quatrocentos participantes de todo Brasil, com a totalidade da liderança catequética brasileira e representantes da maioria das 278 dioceses e outras circunscrições eclesiásticas.

10. Publicação do novo Diretório para a Catequese (DpC), pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização e apresentado em 25 de junho de 2020. Repete as grandes intuições e perspectivas do Diretório Geral para a Catequese anterior, e integra os ensinamentos dos Papas Bento XVI e Francisco. Retorna a falar de catequese escolar para atender a necessidades das Igrejas do Leste Europeu, que muito valorizam a escola para evangelizar (no Brasil se faz a distinção entre Catequese e Ensino Religioso Escolar). Com relação ao Diretório anterior, inova acrescentando a dimensão midiática da catequese, muito bem desenvolvida no item Catequese e cultura digital (nº. 359-372): características gerais, transformação antropológica, cultura digital como fenômeno religioso, cultura digital e questões educativas, anúncio e catequese na era digital. Para a América Latina, que já possui o grande documento de Aparecida, com significativo avanço na IVC, o novo Diretório não trouxe grandes novidades. Entretanto, para a Europa e outros continentes, ele relembrou as conquistas da catequese nesse último século e nem sempre colocadas em prática no antigo continente. Sua receptio (recepção) foi intensa e calorosa, dada a facilidade das redes sociais, em fazer lives, seminários, conferências, cursos. Grandes estudiosos, tanto da América Latina, como da Europa, deram suas contribuições apresentando o texto e relevando sua grande contribuição para a catequese hoje e no futuro.

11. Esse DpC, de 2020, não reconhece oficialmente o Ministério instituído do Catequista; na verdade, nem é nomeado. De fato, há pessoas, também da Hierarquia da Igreja, que não concordam com essa ideia, afirmando que oficialmente o termo Ministério se aplica somente aos membros do clero. Mas, o Papa Francisco, em 10 de maio do ano seguinte (2021), enfrentando oposições, colocou um ponto final nessa discussão e, por própria iniciativa (motu próprio), instituiu formalmente o Ministério Leigo da/o Catequista, através do Motu Proprio Antiquum Ministerium (AM). É um grande reconhecimento da Igreja pelo trabalho árduo, cansativo, penoso dos catequistas. Embora já haja um Rito da CNBB para a instituição do ministério do/a catequista, (Cnbb, Ministério do Catequista. Coleção Estudos da CNBB 95. Paulus: 2007) a Conferência Episcopal, obedecendo ao mandato do Papa em AM, publicou também o Ritual para a instituição o Ministério Leigo da/o catequista [9].

Conclusão

A História da catequese na Igreja mostra que em seus inícios ela nasceu inserida no processo maior de Iniciação Cristã, codificado numa das maiores organizações que a Igreja já instituiu, o Catecumenato. A instrução e o ensino da doutrina cristã estavam inseridos num âmbito maior que implicava celebrações, entregas, provas de conversão cristã, escrutínios, acompanhamento de toda comunidade…

Com o avanço da evangelização e a hegemonia do cristianismo no ambiente cultural ocidental, a catequese ficou quase que reduzida à transmissão da doutrina, ou seja, no seu aspecto mais intelectual e reflexivo, doutrinal, especulativo e não tanto experiencial, como no catecumenato. No Brasil, pela intensa atividade missionária dos Jesuítas, predominou esse tipo doutrinal da catequese, porém com grandes esforços daquilo que hoje chamamos de inculturação e promoção humana. Nenhuma tentativa houve que se aproximasse do antigo catecumenato, como acontecia em outras regiões. O golpe desferido por Pombal com a expulsão dos Jesuítas, não conseguiu erradicar o cristianismo, muito embora ele tenha imposto o Catecismo Jansenista (ou Catecismo de Montpellier).

A fé mantida no meio do povo, por leigos e associações religiosas, manteve acesa a fé.  Entretanto, somente com os Bispos Reformadores, o Concílio de Trento começou a ser implantado no Brasil, nascendo assim a “era dos catecismos doutrinais” (1850-1950), muitos deles, como o Catecismo da doutrina Cristã (1901), verdadeiras pérolas de formulação doutrinal, dentro do estilo da época. Esse esforço de alinhar a Igreja do Brasil com o centro da Igreja romana, teve seu ponto alto nos Concílio Plenário Latino-americano (1899, em Roma!) e o Concílio Plenário Brasileiro (1939), que muito prescreveram sobre a catequese doutrinal.

À medida que o movimento de renovação catequética surgia na Europa nos inícios do século XX, ia sendo conhecido também no Brasil, embora com atrasos, por obra sobretudo do Pe. Álvaro Negromonte. Permanecia ainda com o forte caráter doutrinal e mnemônico herdado de tempos imemoriais. A influência da psicologia, sociologia, e de outras ciências humanas, alavancavam o progresso também do ensino catequético. Teologicamente, muito contribuiu o movimento querigmático, no esforço de um cristocentrismo renovador na catequese. Finalmente, o Concílio Vaticano II e seu poder renovador, acelerou a verdadeira renovação da catequese, sobretudo sua nova eclesiologia, cristologia e renovada concepção da Revelação Divina.

A Semana Internacional de Catequese e a II CELAM (Conferência Episcopal Latino-americana) ambas em Medellín (Colômbia), no mês de agosto de 1968, representaram mudanças significativas para a catequese: a preocupação já não era somente com a correta doutrina, mas também com a situação, em geral de grande pobreza, dos catequizandos, trazendo-lhes, em nome do Evangelho, melhores condições de vida e promoção humana. Essa dimensão sociopolítica foi mitigada posteriormente pelos movimentos que acentuavam mais o caráter espiritual, mistagógico, litúrgico e orante da mensagem cristã. Entre idas e vindas, a Igreja, sobretudo no Brasil e na A. Latina, encaminhou-se a largos passos, já no século XXI, para a compreensão original da catequese, ou seja: ela está a serviço dos processos de Iniciação Cristã (DGC 63-68; DNC 35-38), retornando, assim, a seus inícios nos séculos II-IV. Fecha-se, assim, o ciclo histórico com a volta às origens, adaptada à novas situações para a proclamação da Boa Nova de Jesus Cristo e seu Evangelho.

Pe. Dr. Luiz Alves de Lima, sdb. UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Texto original português. Enviado em 20/02/2023; aprovado em 20/10/2023; postado 31/12/2023.

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[1] Siglas usadas nessa matéria: AG = Ad Gentes; AM = Antiquum Ministerium; DAp = Documento de Aparecida (CELAM: 2007);  CaIC = Catecismo da Igreja Católica; CD = Christus Dominus; CM = Congregação da Missão (vicentinos); CR = Documento Catequese Renovada; CT = Catechesi Tradendae; DGC = Diretório Geral para a Catequese (1997; DNC = Diretório Nacional de Catequese (2006); ISPAC = Instituto Superior de Pastoral Catequética; IVC = Iniciação à Vida Cristã; PO = Presbiterorum Ordinis; DM = Documento de Medellín (CELAM, 1968); DP = Documento de Puebla (CELAM: 1979); RICA = Ritual de Iniciação Cristã de Adultos; SD = Documento de Santo Domingo (CELAM: 1992); SC = Sacrosanctum Concilium; SLAC = III Semana Latino-Americana de Catequese.

[2] As Regras comuns dos jesuítas impunham a grave obrigação de conhecer e usar bem as línguas indígenas, a ponto de poderem escrever livros e explicar a doutrina cristã; era uma das condições para ser ordenado sacerdote. Muitas eram as línguas faladas no Brasil, mas havia uma língua geral, dos tupinambás (nheengatu), mais ou menos falado por todos.

[3] Sobre os valores indígenas e africanos assimilados no catolicismo popular pela catequese nesta época, cf. Cansi, 1993, p. 195-201.

[4] Podem ser citados: D. Antônio Viçoso (Mariana), D. Antônio Joaquim de Melo (São Paulo), D. Antônio Macedo Costa (Pará), D. Joaquim Manoel da Silveira (Maranhão), D. Pedro Maria de Lacerda (Rio de Janeiro), D. Romualdo de Souza Coelho e outros. Alguns autores chamam tal reforma de romanização, pois se pretendia superar o tradicional catolicismo português, de raiz medieval, sob o espírito tridentino romano.

[5] É preciso notar que, no Brasil, não havia muita distinção entre Catequese, como atividade paroquial em vista do crescimento da fé, própria da Comunidade Eclesial (paróquia) e o Ensino Religioso Escolar, próprio da Escola, como educação da religiosidade. Pe. Álvaro Negromonte sempre trabalhou e escreveu sobre ambos. Tal distinção vai se acentuar e ser esclarecida somente mais tarde com o documento Catequese Renovada (1983).

[6] São muitos. Os mais importantes: Textos e Manuais de Catequese: orientações para sua elaboração, análise e avaliação = Estudos da CNBB 53, 1987; Formação de Catequistas: critérios pastorais = Estudos da CNBB 59, 1990; Orientações para a catequese de crisma = Estudos da CNBB 61, 1991; Catequese para um mundo em mudança = Estudos da CNBB 73, 1994; O hoje de Deus em nosso chão = Estudos da CNBB 78, 1998; Com adultos catequese adulta = Estudos da CNBB 80, 2001; Crescer na Leitura da Bíblia = Estudos da CNBB 86, Paulus 2003; Ler a Bíblia com a Igreja: comentário didático popular à Constituição dogmática Dei Verbum = Projeto Nacional de Evangelização “Queremos ver Jesus…” nº 11, 2004, etc.

[7] Celam – Secção de Catequese, A caminho de um novo paradigma para a Catequese. III SLAC. Brasília: Edições CNBB, 2007.

[8] Celam. A alegria de iniciar discípulos missionários numa época de mudanças. Brasília: Edições CNBB, 2016.

[9] Cnbb, Critérios e Itinerários para a Instituição do Ministério de Catequista. Brasília: Edições CNBB, 2022.