Mística Contemporânea

Sumário

Introdução

Conclusão

Referências

Introdução

A época em que vivemos é nomeada de diferentes modos: modernidade, modernidade tardia, hipermodernidade, pós-modernidade, entre outras. Tal como diz a V Conferência do Episcopado Latino-americano, em Aparecida, 2007, não se trata apenas de uma época de mudanças, mas de uma “mudança de época”.

Um dos impactos mais profundos que essa mudança de época apresenta, sem dúvida, é o que incide sobre a religião. Se no iluminismo a razão humana começa a ganhar destaque e passa a ser o princípio fundamental que rege a vida humana e se constitui como cânon inapelável da verdade, hoje a configuração da existência é outra. A crise da modernidade vai ser sucedida por um novo estado de coisas que o conhecimento humano está longe de haver assimilado exaustivamente. No século XX esse novo processo aparece com mais clareza. E no que já se viveu do século XXI, alguns elementos se confirmaram e houve igualmente o surgimento de novas perspectivas.

O Cristianismo histórico, religião até aqui indiscutivelmente majoritária e hegemônica no hemisfério ocidental, verá surgir bem perto de si e mesmo em suas fileiras fenômenos como o teísmo, o secularismo, o ateísmo e o agnosticismo. Suas fileiras começarão a ser drenadas por novos cristianismos de características mais extrinsecistas e catárticas que trazem consigo novas concepções de mundo, incidindo não apenas na pertença religiosa em geral, mas na configuração social e política dos estados que se autocompreendiam como laicos.

A razão iluminista, potente e soberana, questiona todo o sistema de compreensão e entendimento que antes imperava. Já não mais autocompreendida como império da razão, nossa época assiste à fragmentação das grandes narrativas e utopias e é obrigada a repensar e ressignificar todos ou quase todos os conceitos que antes lhe davam sustentação teórica.

O século XX é chamado século sem Deus, Nele até as divindades são efêmeras e fugazes, identificando-se com objetos de consumo. Esse estado de coisas se prolonga no século XXI, intensificando alguns de seus aspectos: a fragmentação, a diversidade, a fluidez das relações e das identidades. Nesse contexto, as experiências “religiosas”, no entanto, continuam a multiplicar-se, desconhecendo, porém, muitas vezes os limites das instituições propriamente ditas.

Assim, as experiências ditas místicas, entendidas como de união com o mistério e o divino, e mesmo as correntes e escolas místicas continuam a acontecer na contemporaneidade. Trazem, porém, uma nova configuração, rompendo espaços, fronteiras e realizando sínteses novas e inusitadas. Os estudos da mística voltam novamente a acontecer, mas não se restringem aos limites das igrejas ou das religiões institucionais. Acontecem em uma transdisciplinaridade sempre mais acentuada, correspondente à pluralidade religiosa que marca hoje a relação do ser humano com a transcendência.

A mística hoje é objeto de busca e de estudo por pesquisadores de várias áreas; teólogos ou cientistas da religião; estudiosos oriundos de outras áreas, como a literatura, a filosofia, a antropologia; leitores mais ou menos letrados ou mesmo não crentes de todos os cortes e configurações institucionais. Talvez isso se deva à perda de importância no espaço público, por parte da Igreja instituição, que fez a atenção à mística “migrar” de dentro de seus limites para outras áreas exteriores a ela. Já em 2012, o teólogo estadunidense Roger Haight, em entrevista a Junges e Dalla Rosa, na revista do Instituto Humanitas da Unisinos, declarava que a Igreja perdeu relevância pública, o que estimulou o “surgimento da espiritualidade em contraposição à religião porque a Igreja não é mais vista como uma fonte de espiritualidade humanística” (JUNGES; DALLA ROSA, 2012, p. 18-21). Evidentemente Haight pensava aqui na Igreja Católica Romana, da qual faz parte, inclusive enquanto religioso jesuíta. Mas o mesmo se poderia dizer de outras igrejas cristãs históricas. Em uma época como a nossa, os vestígios de Deus são quase invisíveis e as religiões parecem tomar uma forma nebulosa e “vaga”.  Isso não impede, porém, que as experiências místicas continuam a acontecer forte e inesperadamente, ainda que com diferentes sínteses em relação a épocas anteriores

Para entender, portanto, a mística na contemporaneidade examinaremos algumas circunstâncias que cercam a vida dos místicos que viveram e vivem nesta mesma época.  Não pretendemos nem poderíamos esgotar aqui todos os homens e mulheres que fazem em sua vida a experiência interior profunda e inefável de sentir-se unidos ao mistério por uma iniciativa que muitas vezes não saberiam dizer de onde vem, mas com respeito à qual têm uma certeza: não vem deles mesmos nem por eles mesmos foi produzida.

Os místicos e as místicas contemporâneos não serão mais encontrados principalmente dentro dos espaços sagrados, entendendo-se por tais os claustros, os conventos, as igrejas, as ordens religiosas. Sua existência será descoberta nas fábricas, em meio ao barulhento e estressante ritmo das máquinas e das indústrias. Ou nas ruas com os mais pobres e excluídos do progresso. Ou na prisão, devido a sua atividade e a seu compromisso, considerados perigosos pelas autoridades estabelecidas. Ou no inferno dos lagers e gulags de todas as origens e formatos ideológicos, sendo ali levados por seu comportamento fora dos padrões considerados “normais” ou por posições tomadas em defesa dos mais fracos e vulneráveis e contrapoderes opressores. Poderão ser encontrados igualmente em meio a comunidades e pessoas de outras religiões, comungando em tudo de sua vida, embora professando interiormente uma fé diferente. Ou ainda em meio ao cosmos e à natureza, reinventando uma nova forma de relação entre e com todos os outros seres vivos, vivendo sua condição de criatura de uma nova maneira.

O que nos diz que esses homens e mulheres são “místicos” e não apenas ativistas políticos, pessoas éticas e honestas que se comprometem com as mais importantes lutas da humanidade como tantos outros que não identificam a transcendência em suas experiencias e práticas? Pode-se identificá-los por sua experiência radical do Sentido Último da vida e da realidade ao qual a teologia nomearia de Deus, mas que em seus lábios pode tomar outros nomes como justiça, equidade, consciência ecológica, liberdade.

Uma das características da mística na contemporaneidade, portanto, é o fato da existência de uma sensibilidade que busca a experiência direta com o mistério da Realidade última. E essa busca de experiência direta já não apresenta contornos institucionais nítidos, mas, pelo contrário, aponta para uma tendência transreligiosa, em que o contato buscado se dá com o fundo mais profundo, o segredo último da realidade, que nós chamamos de Deus e que os estudiosos das religiões identificam como o denominador comum, o núcleo de todas as religiões (DUCQUOC, 2002, p. 125).

Os estudiosos da religião hoje identificam uma clara e inegável insatisfação com a religião predominante e institucionalizada. As experiências que surgem tomam sempre mais a forma de uma busca mais pessoal e experiencial do divino (HEISSIG, 2005, p. 246). O risco dessa escolha é a superficialidade que pode ocorrer ao pretender fazer voo livre, independentemente de qualquer instância ou instituição. Desligada de qualquer espessura ou opacidade, a busca espiritual pode perder-se ou dissolver-se em uma pluralidade mal compreendida, onde não há enraizamento ou identificação com o que quer que seja.

Por outro lado, há que reconhecer o aspecto extremamente positivo que aí reside: a comprovação da liberdade de Deus, que não se deixa aprisionar por nenhuma instituição, código ou sistema, ainda que religiosos. A experiência mística em nossa época não esperou a reforma das Igrejas ou instituições religiosas para efetuar sua própria busca. Tampouco a bênção da academia. Os místicos contemporâneos entrecruzam vocabulários, conceitos e símbolos de todas as procedências e cidadanias – inclusive religiosas e eclesiais – a fim de dizer sua busca de Deus sem pedir permissão aos representantes acadêmicos, religiosos ou eclesiásticos (MARDONES, 2005, p. 201-202).

No entanto, se acontece em forte independência das instituições eclesiais ou religiosas, também é fato que a mística na contemporaneidade se caracteriza pela vinculação indissolúvel com a ética e tudo o que dela deriva, a saber: a ação transformadora no mundo, o compromisso político, as pautas e lutas da humanidade no momento histórico que lhes é dado viver, a valorização da experiência e da emoção e não apenas da razão, o cuidado da criação, o elogio das diferenças como as de gênero, raça, etnia, o diálogo com outras experiências religiosas. Em suma, a mística na contemporaneidade, se parece distante de um religioso institucional e situado, mostra uma profunda aliança com o mundo, sobretudo naquilo que apresenta de conflitivo e vulnerável.

Os místicos contemporâneos buscam sim uma experiência profunda de união com o divino. Porém, esse divino não é por eles e elas encontrado “fora” das coisas deste mundo. Mística, ética e prática estabelecem claramente diversos tipos de intersecção. Pois, se o Sentido último da existência – ao qual chamamos Deus – sujeito maior da mística, se deixa encontrar em todas as coisas; se no mundo, tal como ele é, é possível experimentar sua presença inefável, então o agir humano na realidade está definitivamente “consagrado” e é parte integrante da esfera do sagrado e do divino. E isso dentro mesmo de sua condição de profano e secular, e não dela abdicando ou escapando.

Em meio a essa secularidade atravessada por uma sempre maior diversidade, um fio condutor assinala um consenso axial: todos os místicos, de qualquer gênero, tempo ou espaço, são pessoas apaixonadas. O divino entra em suas vidas com a força e a violência de uma tremenda paixão e toma-os por inteiro, subjugando-os com o imperativo de seu amor. Na relação com esse divino experimentam gozo e dor, ausência e presença, cada um em seu estilo próprio e original. Mas todos e todas, sem exceção, tiveram certeza de que estavam no interior da experiência do mistério mais profundo e santo, Aquele que as religiões procuraram nomear e as ideologias conceituar, mas que sempre escapa a toda tentativa humana de circunscrevê-lo e captá-lo por inteiro. E essa experiência invadiu-os e tomou-os para sempre.

. Lendo os escritos desses “amantes de Deus” (MEROZ, 1982, p. 27-49), sobretudo aqueles mais autobiográficos, que contêm o relato de suas experiências, possível perceber neles o rosto divino que se delineia. Embora alguns deles ou delas sejam pensadores de alta relevância, ao escrever sobre suas experiências, o pensamento vai precedido pela paixão. A pergunta por Deus e a sede por sua presença surgem no mais profundo de seu interior a partir da percepção da dor pela injustiça existente no mundo e pelo desamparo no sofrimento. Trata-se da “história da paixão do mundo que no fundo é também paixão de Deus e por graça do mesmo, origina a paixão por Deus”.

Tal percepção da dor no e do mundo conduzem além da discussão entre teísmo ou ateísmo. Ante o sofrimento humano, esbarra-se na universal questão da teodiceia, ou seja, na dificuldade de acreditar na existência de um Deus todo-poderoso e cheio de bondade que “a tudo rege magnificamente” e que parece não responder aos clamores dos infelizes. A indignação, a ira que clama, a voz que se levanta, dão testemunho da nostalgia do “inteiramente Outro”. É, como diz Max Horkheimer, “a nostalgia de que o assassino não deveria triunfar sobre sua vítima inocente.” Sem a paixão pela justiça no mundo e por aquele que, em última instância, é seu fiador, não pode haver um desejo por uma experiência do Sentido maior da vida e um sofrimento consciente por causa da injustiça.

A partir daí surgem as vocações proféticas e místicas que acolhem e tomam sobre si o sofrimento das vítimas assumindo sua defesa. Neste ponto, transforma-se, igualmente, o pensar humano sobre o mundo. Este mundo, tal como é em realidade, não pode mais ser definido como um espelho da divindade. O espelho está quebrado. E defini-lo em termos de perfeição e harmonia implica idolatria. Isto significa na prática: se o ser humano se desabitua às perguntas absolutas sobre o sentido último e a justiça, acabará dando-se por satisfeito e habituando-se à deficiência das circunstâncias. A mística contemporânea é caracterizada por uma insatisfação e um inconformismo com as situações injustas e opressoras, justamente porque desfiguram o mundo tão amado pelo Amado que apaixona os homens e mulheres de hoje.

A mística contemporânea busca e encontra na injustiça, no sofrimento humano e nas situações insuportáveis deste mundo o marco da pergunta pelo sentido último da vida como justiça, e, no fundo de sua experiência de união inefável, se sente convocada para uma prática solidária. Neste caminho de solidariedade prática, os místicos contemporâneos se destacarão como os que escolhem não eludir o sofrimento e com ele lidar desde o exterior, mas o atravessam desde dentro, não desejando estar separados da dor que atinge seus semelhantes a fim de, com eles e elas e como eles e elas, revelar o sentido da vida humana a partir do padecido em suas próprias existências e entranhas.

A mesma mística contemporânea igualmente rompe fronteiras por muito tempo estabelecidas, inclusive eclesiais e religiosas. Os místicos contemporâneos então serão encontrados em profundo diálogo com outras denominações e confissões religiosas, inclusive participando de seus rituais e mesmo de seus processos de iniciação, a fim de conhecê-las por dentro. São conhecidos os casos de Henri Le Saux (LE SAUX, 1986), de Christian de Chergé (BINGEMER, 2018) e outros. Assim também crescem as experiências de dupla pertença religiosa no mundo inteiro, inclusive na América Latina, onde religiosos católicos são ao mesmo tempo filhos de santo no Candomblé e onde, no dizer de Gilbraz Aragão, a dança dos orixás e o canto dos santos muitas vezes se encontram e realizam uma nova síntese (ARAGÃO, 1997)

Isso nos faz chegar à definição da mística contemporânea como experiência do amor – e da comunhão por ele gerada – como única realidade digna de fé. (COMTE SPONVILLE, 2016). O amor deixa os amantes expostos ante uma ausência de seguranças absolutas, caminhando entre o ser e o não ser, entre palavra e silêncio, entre presença e ausência. Na experiência do amor, os amantes recebem um novo ser que lhes é dado pelo tu amado. Ou seja, a força do amor está limitada ao acontecimento do amor em si mesmo. Daí derivam sua suprema força e sua debilidade e amorosa impotência. O amor não pode se impor a não ser com e como amor. Diante do mal em ação e da injustiça que mutila e agride, não pode revidar. Só pode sofrer e compadecer-se. Diante da diferença da fé e da religião do outro, não pode fazer outra coisa a não ser entrar em comunhão e compartilhar interiormente dando testemunho visível e palpável de tal experiência. Por aí passam alguns dos principais caminhos de encontro com Deus na contemporaneidade.

Os místicos e espirituais experimentam, então, que o amor é vulnerável e passível de ser afetado pelo amor que convida à comunhão, que faz o místico ou a mística abrir-se ao que não é ele e se deixar ferir pela solidariedade suprema e radical com a alteridade humana, sobretudo quando a mesma sofre situações de intolerância, opressão e perseguição. Assim fazendo, a mística contemporânea responde à pergunta posta pelo pensamento judaico no pós-holocausto; à pergunta das vítimas de todas as guerras “unilaterais” e sem sentido; de todas as intolerâncias religiosas; à pergunta cristã latino-americana que brota e se faz ouvir a partir dos pobres da terra e das vítimas da opressão. Como falar de Deus a partir do sofrimento do inocente? (GUTIERREZ, 1987).

Os místicos contemporâneos, que viveram e vivem a experiência teopática, da passividade configurada pelo amor divino e pela união com o mistério, são mediadores adequados para dizer no mundo de hoje quem é Deus e anunciá-lo em meio a um mundo secular e plural que deseja e busca a Transcendência, o Espírito, mas parece haver perdido o rumo da linguagem sobre seu mistério. Seu testemunho é uma forma de mediação pela qual o divino hoje tenta dizer-se e expressar-se (PIERRON, 2006, p. 30).

O século XX, chamado século sem Deus, não está vazio da presença divina e continua seduzindo e apaixonando homens e mulheres que buscam sua experiência e ao fazê-la, dela dão testemunho na praça pública. Mas, talvez, esta presença se faça visível de outra maneira.

A mística contemporânea, com suas características de não institucionalidade, de transdenominacionalidade, de trânsito inter-religioso, traz profundas interpelações à teologia. Vemo-nos diante da relação entre a teologia e a espiritualidade considerada em sua bidirecionalidade, isto é: da relação que a teologia mantém com a espiritualidade e da relação que esta mantém com aquela. Esta relação mútua constitui um ponto crítico, pois na verdade a relação entre a teologia e a espiritualidade sempre foi crucial.

A retrospectiva histórica da relação entre teologia e espiritualidade apontaria o quanto e o tanto das variadas formas que esta relação assumiu em diferentes épocas, tradições e escolas. Do relato dessa relação aparecem, ao longo da história da teologia cristã, dois polos extremos. De um lado, aparece a hipótese de que o discurso teológico açambarca de tal maneira o discurso espiritual que, ou bem o suprime, assumindo-o em sua própria discursividade, ou bem o comprime, reduzindo-o a uma das muitas possíveis teologias existentes no genitivo, às vezes adjetivas e pouco substanciais.

Na verdade, a teologia cristã nasceu como hermenêutica da Santidade. Da Santidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo manifestada na humanidade chamada a participar dessa santidade, portanto como experiência da Santidade de Deus que santifica o ser humano e o faz ingressar e progredir em um conhecimento amoroso sempre maior do mistério divino. Os raciocínios aparentemente abstratos das especulações trinitárias jamais visaram outra coisa senão afirmar contundentemente a realidade da salvação e da santificação humanas, realizada pela autocomunicação de Deus. A teologia nasceu então de uma experiência iniciática e mistagógica e a serviço dessa experiência, crendo e afirmando que a experiência precede a razão e a experiência de Deus, portanto, precede qualquer tentativa de pensamento ou discurso organizado sobre o mesmo Deus.

Aqui procuramos demonstrar como a mística contemporânea é aberta e plural e como pode acontecer em meio a elementos e coisas que tradicionalmente foram classificados como alheios à sua identidade. Se voltamos nosso olhar mais especificamente para a mística cristã, de tão rica tradição e história, veremos que na verdade a mística contemporânea redescobre dentro de si mesma elementos que são parte constitutiva de sua identidade desde as origens.

A mística cristã é uma experiência do Espírito Santo que ensina e profere apenas duas palavras: Abba, Pai, e Senhor Jesus. O místico e a mística cristãos são, portanto, guiados e conduzidos pelo Espírito Santo para experimentar e seguir a carne do Filho e seu percurso terrestre e histórico para finalmente receber a revelação de sua Ressurreição dentre os mortos que é a realização maior da vida plena e eterna. Por ter em seu centro o mistério da encarnação, a mística cristã nunca pôde nem deveu afastar-se do mundo e dos seres humanos que o povoam. E a experiência mística dentro do cristianismo é, pois, inseparável desse mundo e da carne que o habita. Em suma, da vida que pulsa sob suas mais diversas formas.

O que caracteriza a mística cristã, portanto, não é nem jamais foi a sublimidade imaterial, porque o Espírito não se opõe ao mundo, mas o vivifica. O Espírito não foge do mundo, mas desce por sobre as realidades a fim de impregná-las de sua Santidade. O Espírito, portanto, não se refugia no intimismo, mas abre o interior daquele que faz a experiência de Deus, – de quem Ele sonda as profundezas (1 Cor 2,10) – para expandir-se e dilatar-se. Aquele que, segundo Agostinho, tem como nome próprio a palavra Dom, manifesta o seu poder na capacidade que dá aos crentes de seguir Jesus, saindo de si mesmos para a doação ao outro (VAZQUEZ, 2016).

É nesse sentido que a experiência mística tem a forma da experiência ética. A sua intencionalidade e o seu fundo mais profundo visam ao amor, à bondade e à justiça, e não, em primeiro lugar, à beleza ou à verdade. Não porque estas sejam secundárias, mas porque no ser humano devem ser segundas em relação ao amor que é, inseparavelmente, amor a Deus e amor ao próximo.

A vida no Espírito, portanto, é e sempre foi vivência de amor e expressão do amor, compromisso com as obras do amor, portanto, é ao mesmo tempo, experiência espiritual e ética. A mística contemporânea, com sua abertura à secularidade e à pluralidade e à diversidade, traz essa primordialidade do amor entendido como compromisso histórico e transformador e solidariedade universal para o centro do viver e do pensar. Pode parecer incrível – e de certa maneira o é – que em uma cultura que parece desejar exilar o transcendente para fora do cotidiano ou reduzi-lo a um objeto de consumo, seja justamente a mística que possa contribuir para resgatar a espessura da vida humana e das experiências humanas mais profundas em toda a sua força. Trata-se de um desmentido radical e definitivo às acusações que punham sob suspeita a mística como alienação ou fuga da realidade. A mística contemporânea resgata para sempre essa aliança da mística com a realidade e a responsabilidade humana para com ela.

O crescimento em importância da mística em todas as suas formas e filiações, mesmo em suas formas seculares e por assim dizer desinstitucionalizadas, mesmo em suas formas sincréticas ou plurirreligiosas ou multifacetadas, constitui algo de extrema importância em nossa conturbada contemporaneidade. O caminho da mística hoje – incluída aí a mística cristã – é um caminho contracultural, em que a humanização do ser humano e a experiência que lhe dá sentido à vida se dão, por assim dizer, na contramão da sociedade onde vive e do que nela é veiculado como proposta passível de conduzir à felicidade. A mística contemporânea, nesse sentido, é uma instância crítica da sociedade contemporânea.

Em uma cultura de prazer e sensações sedutoras e seduzidas, a experiência mística leva a sair de si e deixar-se afetar pelo outro, sua diferença, sua alteridade, sua necessidade. Este caminho ao encontro da alteridade do rosto do outro implica um profundo e radical desprendimento e uma rigorosa ascese, implicando acolher a dor alheia e fazê-la sua, ser um espaço onde a dor possa abrigar-se, um bálsamo para as feridas daqueles que sofrem. Assim expressou seu mais profundo desejo a jovem Etty Hillesum, mística judia que viveu os horrores do holocausto, sendo assassinada nas câmaras de gás de Auschwitz: “desejaria ser um bálsamo para todas as feridas” (HILLESUM, 2008).

Seduzido por Deus, o místico não se refugia em catarses exteriorizantes e na maior parte das vezes, estéreis, mas entra sem defesas e sem volta em uma aventura em que esta sedução o levará até à perda de si mesmo na comunhão radical com a dor do outro, acolhida e padecida em carne própria. Aqui se poderia citar outros místicos contemporâneos além de Etty Hillesum. Por exemplo, a judia que se tornou carmelita Edith Stein, o arcebispo salvadorenho Oscar Romero, o monge trapista Christian de Chergé, a filósofa francesa de origem judaica Simone Weil, o padre jesuíta operário Egide van Broeckhoeven, o bispo catalão radicado no Araguaia, Pedro Casaldáliga e inúmeros outros e outras.

Em uma cultura consumista, a propaganda assegura que o máximo de felicidade consiste em ter, sempre, cada vez mais, descartando e substituindo o mais rapidamente possível tudo aquilo que se possui – de objetos a pessoas – aumentando a volatilidade e a velocidade da frenética deglutição dos bens e valores. Frente a isto, a experiência mística propõe a experiência do dom, da entrega, do cuidado pelo outro, sobretudo por aquele e aquela que estão mais desprovidos de qualquer amparo e se encontram infelizes e abandonados. E tudo isso em meio à mais absoluta gratuidade.

Em uma cultura que proclama a liberdade entendida como autonomia que a ninguém presta contas e se rege segundo seus desejos mais imediatos, cultivando a soberba de tudo poder, mesmo à custa daquilo que é dos outros, de direito e de fato, a experiência mística é por excelência receptiva e passiva, e, sobretudo, consciente de sua impotência. Experiência teopática, que acolhe e recebe o que é dado, padecendo em si a presença e a ação de Deus sem nada poder fazer para produzi-la, a mística faz o elogio da humildade e da passividade, da ação não agente que, no dizer da mística Simone Weil, é a atitude primordial de todo ser humano.

Em uma cultura em que o poder é glorificado, a experiência mística ensina que o ser humano é paciente mesmo quando agente (RAHNER, 1989, p. 37-59), porque é incapaz de dar-se o ser que faz existir e configura a identidade humana.

Em uma cultura onde a aspiração máxima é devorar avidamente tudo o que se apresenta, consumindo sem digerir, passando em seguida ao consumo de outra coisa ou de outra pessoa, a experiência mística ensina que a realização humana reside no desejo de dar-se, despossuir-se e entregar-se para ser consumido, para servir em tudo às necessidades dos outros, para distribuir-se eucaristicamente em alimento para todos (Cf. CAVANAUGH, 2008).

Em uma cultura injusta, quando os recursos são distribuídos segundo a manipulação egoísta e totalitária de alguns em detrimento de outros; onde o bem-estar de alguns é conseguido à custa da perda e do empobrecimento progressivo e sistemático de muitos, a experiência mística ensina a praticar a justiça e viver segundo seus parâmetros. Não, porém, de uma justiça retributiva, que dá a cada um o que merece, mas, à imitação do próprio Deus, de uma justiça restaurativa, que dá ao outro aquilo de que ele precisa e necessita para viver. E para que essa justiça se faça, o místico paga o preço com sua própria pessoa, expondo-se e arriscando-se para que outros possam ter mais vida e vida em abundância.

Em uma cultura na qual o planeta é agredido e sugados seus recursos; quando o corpo vivo da mãe e irmã terra se esteriliza e a ordem do universo se desordena pela inescrupulosa exploração da criação em nome da ganância e da exploração, a mística aponta para uma experiência de comunhão com essa mesma terra, tratando-a com o carinho de um esposo devotado, como Thomas Merton ou celebrando nela uma grande eucaristia como Teilhard de Chardin.

Em uma cultura onde reina a injustiça, a experiência mística ensina a não querer estar do lado dos vencedores, mas dos vencidos; a não desejar desfrutar das benesses do progresso enquanto há tantos que não têm acesso a elas. Leva a solidarizar-se com as vítimas da injustiça partilhando sua condição e sofrendo a mesma injustiça em sua própria pessoa.

Em uma cultura onde a violência impera e faz vítimas fatais todo dia e a toda hora, a experiência mística contemporânea ensina que o único lugar para estar é junto às vítimas, pois qualquer outra opção seria reforçar a posição dos algozes e carrascos. Antes, aquele ou aquela que experimentou a presença potente e amorosa de Deus como mistério santo, atravessa a violência e assume sobre si mesmo as consequências desta mesma violência, procurando construir uma paz que não é simplesmente ausência de guerras, mas amor ativo e redentor que a tudo restaura e renova a face da terra.

Conclusão

O que aqui foi dito da mística contemporânea se aplica diretamente ao cristianismo, mas não só. Como foi afirmado desde o início, a experiência mística na contemporaneidade não se dá apenas dentro das instituições e das igrejas, mesmo das instituições religiosas. Ela acontece em todo lugar onde homens e mulheres saem de si e ultrapassam os próprios limites para praticar o amor e transformar o mundo guiados por uma experiência de transcendência. Alguns e algumas vivem esse êxodo em seu cotidiano simples e sem muita visibilidade. Outros acedem à praça pública, expondo-se e arriscando a própria segurança e a própria vida.

Dentro ou fora da Igreja e das instituições religiosas, nelas comprometidos radicalmente ou às margens de suas fronteiras, os místicos nos ensinam que experimentar o mistério de Deus no meio do mundo conduz a uma paixão ardente por este mesmo mundo e a trabalhar sem cessar por sua redenção e transformação. Seja qual for seu estado de vida, sua condição social, suas capacidades intelectuais, os místicos e as místicas contemporâneos recolhem-se à câmara nupcial onde a experiência do amor acontece com plenitude e delícia para mergulhar de cheio na realidade desfigurada do mundo em que vivem, buscando configurá-la segundo o mistério do amor que experimentam como dom e graça.

Maria Clara Bingemer. PUC Rio. Texto enviado em 25/09/2022, aprovado em 25/10/2022 e postado em 30/12/2022.

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