All posts by Geraldo Mori

Fé e Justiça

Sumário

1 Questões introdutórias

1.1 Importância do tema

1.2 A dimensão social da fé

1.3 Relação fé e justiça

1.4 Justiça na perspectiva bíblica

2 O Reino de Deus e a prática da justiça

3 Justiça: sinal e instrumento do Reino nas estruturas da sociedade

4 A Igreja e a luta pela justiça

4.1 A opção da Igreja latino-americana e sua repercussão social e eclesial

4.2 Desafios e perspectivas atuais

5 Referências bibliográficas

1 Questões introdutórias

1.1 Importância do tema

A temática “fé e justiça” é como um fio de ouro que perpassa, articula e costura as muitas páginas da Bíblia. Não é apenas um tema entre outros, por mais importante que seja. Nem muito menos algo secundário e preterível. Ela constitui o núcleo fundamental da experiência judaico-cristã de Deus: caracteriza e/ou descreve tanto o Deus de Israel e de Jesus quanto o Povo de Deus em sua mútua relação e inter-ação.

Na verdade, “a preocupação com a justiça foi constante entre os povos do Antigo Oriente Próximo. E, dentro de Israel, a sabedoria tribal, o culto, as leis, desde antanho procuraram inculcar […] o interesse e o afeto pelas pessoas mais fracas” (SICRE, 2008, p.357). A tal ponto que se pode afirmar que “a mensagem da Bíblia está centrada fundamentalmente em torno da justiça inter-humana, isto é, das justas relações com os demais em todos os âmbitos” (ALONSO DÍAZ, 1976, p.98).

A justiça constitui o “coração da religião de Israel e de Jesus” (AGUIRRE, 1994, p.541), a “ideia central unificadora da teologia bíblica de Israel” (CODINA, 2008, p.133). É “um destes conceitos-matriz em torno do qual pode estruturar-se todo o cristianismo” (GONZÁLEZ FAUS, 1999, p.394). A fé cristã “encontra na categoria bíblica de justiça uma de suas expressões mais adequadas” (VITORIA, 1994, p.562). Deste modo, sem cair em nenhum tipo de reducionismo, podemos afirmar seguramente que, ao tratar da problemática da relação fé e justiça, nos situamos no coração mesmo da fé e da teologia judaico-cristãs, tocando em “um dos temas mais graves da práxis cristã” (ELLACURÍA, 2002, p.307) e em um dos problemas “mais urgentes, importantes e decisivos para a reta orientação da missão da Igreja” (ELLACURÍA, 2002, p.308).

1.2 A dimensão social da fé

A fé é o ato pelo qual se adere confiante e fielmente a Deus e ao seu projeto de salvação. É resposta humana à proposta de Deus. A iniciativa é de Deus (proposta). Mas, para tornar-se real e efetiva, precisa ser assumida por uma pessoa e/ou um povo (resposta). A fé é um dom (Ef 2,8), mas um dom que, uma vez acolhido, recria-nos, inserindo-nos ativamente em seu próprio dinamismo: “Criados por meio de Cristo Jesus para realizarmos as boas ações que Deus nos confiara como tarefa” (Ef 2,10). É, portanto, dom-tarefa: algo que recebemos para realizar.

E ela diz respeito à vida humana em sua totalidade. Deve configurar todas as dimensões da vida segundo a vontade e os desígnios de Deus: tanto a dimensão pessoal, quanto a dimensão socioestrutural. Exige tanto a conversão do coração, quanto a transformação da sociedade; pessoas novas e sociedade nova. A fé não pode jamais ser reduzida ao âmbito da individualidade, como se ela não tivesse nada a ver com o modo como nos vinculamos uns aos outros e interagimos. Ela tem uma dimensão social constitutiva (cf. AQUINO JÚNIOR, 2011, p.15-28). E num duplo sentido: diz respeito ao modo como nos relacionamos uns com os outros, isto é, às relações interpessoais (família, vizinhos, amigos, colegas, namorados, pessoas desconhecidas etc.); e diz respeito ao modo como organizamos e estruturamos nossa vida coletiva, isto é, às estruturas da sociedade (sistemas econômicos, políticos, jurídicos, culturais etc.).

1.3 Relação fé e justiça

Enquanto confiança, adesão e fidelidade ao Deus que se revela em Israel e, na plenitude dos tempos, em Jesus Cristo, a fé cristã está constitutivamente referida, determinada e configurada pelo jeito de ser/agir desse Deus na história de Israel e na práxis de Jesus de Nazaré. Não se pode compreender a fé cristã senão a partir e em função do Deus de Israel e de Jesus de Nazaré.

Esse Deus se revela agindo como Go’el que resgata seus parentes da escravidão, como Rei que faz justiça ao pobre, ao órfão, à viúva e ao estrangeiro, como Pastor que apascenta suas ovelhas e as protege dos lobos, como Pai que cuida de seus filhos e os socorre em suas necessidades, para usar algumas das imagens/metáforas que a Escritura usa para falar de Deus. Todas elas revelam a centralidade dos pobres e oprimidos na ação de Deus. E a relação com ele, a , passa necessariamente pelo cuidado e pela prática da justiça com os pobres: o Deus que escuta o clamor do povo e o liberta da escravidão “deseja que Israel se constitua em uma sociedade alternativa ao Egito, em um povo onde reina a justiça e a solidariedade” (CODINA, 2008, p.133); “O Deus da bíblia aparece necessariamente mediado por uma exigência de amor incondicional que se expressa em categorias como o reino, o ágape ou a justiça” (GONZALEZ FAUS, 1999, p.289); “A justiça é um atributo central de Deus, é um elemento constitutivo da salvação; a justiça inter-humana é a exigência central que Javé inculca e que deve caracterizar essencialmente o seu povo” (AGUIRRE, 1994, p.541).

Não basta reconhecer que a fé tem uma dimensão social constitutiva. É preciso levar a sério a exigência bíblica de estruturação da dimensão social da vida segundo o direito e a justiça, cujo critério e cuja medida são sempre o pobre, o órfão, a viúva e o estrangeiro – símbolo dos marginalizados de todos os tempos. De modo que “o compromisso com justiça não é um elemento adicional, importado quiçá por modas recentes, mas surge da entranha mesma da fé em Deus”; “a pergunta pela justiça nos leva diretamente ao mistério de Deus e ao seu projeto para a humanidade” (AGUIRRE, 1994, p.541). “Pode-se dizer com absoluta verdade que sem opção pela justiça não há conversão a Deus (Jon Sobrino) ou, pelo menos, que tal opção age como teste negativo de toda conversão” (GONZALEZ FAUS, 1999, p.390). Assim como Deus se revela e é conhecido na prática da justiça, o povo se constitui e é reconhecido como povo de Deus na prática da justiça; assim como a justiça caracteriza e descreve o Deus de Israel e de Jesus, deve caracterizar e definir também o povo de Deus. Em síntese, a fé no Deus de Israel e de Jesus tem uma dimensão social constitutiva e essa dimensão social da fé deve ser vivida e dinamizada segundo a lógica da justiça.

1.4 Justiça na perspectiva bíblica

É preciso compreender bem o que significa justiça na Bíblia. Estamos acostumados com uma idéia de justiça que perpassa toda a tradição ocidental, mas que é bem diferente da concepção bíblica (cf. COMBLIN, 2008, p.33). Segundo essa concepção, a justiça é cega, surda e imparcial. Ela está cristalizada na imagem/símbolo da deusa Têmis: uma imponente figura feminina com os olhos vendados (imparcialidade), carregando em uma das mãos uma balança (equilíbrio) e na outra uma espada (poder/força).

Na Bíblia, por sua vez, o justo por excelência é Javé. E, ao contrário da deusa Têmis, nem é cego/surdo nem imparcial. Pelo contrário. É um Deus que a opressão do seu povo, escuta seus clamores contra os opressores e desce para libertá-lo da opressão dos egípcios e conduzi-lo a uma terra que “mana leite e mel” (cf. Ex 3,7-9). Toma o partido das vítimas. É parcial. Por isso mesmo, é conhecido como o Deus dos pobres e dos oprimidos. Na boca de Judite: “Deus dos humildes, socorro dos pequenos, protetor dos fracos, defensor dos desanimados, salvador dos desesperados” (Jd 9,11). Na boca de Maria: o Deus que “derruba do trono os poderosos e exalta os humildes; cumula de bens os famintos e despede vazios os ricos” (Lc 1,52s).

Na perspectiva bíblica, a justiça não diz respeito à aplicação cega e imparcial de regras e leis estabelecidas. Ela tem a ver fundamentalmente com o direito dos pobres e oprimidos. “Para os semitas, a justiça é não tanto uma atitude passiva de imparcialidade, quanto um empenho do juiz em favor do que tem direito”, (GUILLET, 2009, p.501) que, segundo os profetas, quase sempre é “um pobre e uma vítima da violência” (GUILLET, 2009, p.500). De modo que a justiça está intrinsecamente vinculada à problemática do direito e, mais concretamente, à problemática do direito do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro. Fazer justiça é respeitar e fazer valer o direito dos pobres, oprimidos e fracos (cf. COMBLIN, 2008, p.33). Nas palavras do profeta Jeremias: “Assim diz o Senhor: praticai o direito e a justiça. Livrai o explorado da mão do opressor; não oprimais o estrangeiro, o órfão ou a viúva; não os violenteis nem derrameis sangue inocente neste lugar” (Jr 22,3).

E isso, além de uma exigência ou prática moral, é uma questão estritamente religiosa: justo (piedoso, servo) é o que se adequa ou se ajusta ao Justo que é Deus, isto é, o que faz a vontade de Deus. E a vontade de Deus, isto é, a prática da justiça, como recorda o Evangelho de Mateus (tido muitas vezes por espiritualista…), tem a ver fundamentalmente com as necessidades e os direitos dos pobres, oprimidos e fracos (cf. Mt 25,31-46). É Deus que nos justifica e nos torna justos, mas mediante a “fé ativada pelo amor” (Rm 13,8): “O amor é o cumprimento pleno da lei” (Rm 13,10). De modo que o sentido religioso da justiça, tão enfatizado depois do exílio (ajustar-se a Deus, fazer sua vontade), não só não prescinde nem relativiza o sentido social da justiça enfatizado pelos profetas (observar e defender o direito do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro), mas o implica/supõe e encontra nele sua medida permanente. Para Jesus, agir com misericórdia, praticar a justiça é condição para herdar a vida eterna (cf. Lc 10,25-37), para tomar parte no banquete escatológico (cf. Mt 15,31-46).

2 O Reino de Deus e a prática da justiça

A Bíblia não fala de Deus em termos abstratos e universais (onipotente, onipresente, onisciente, absoluto, imutável etc.), mas em termos históricos e concretos (redentor, libertador, pastor, rei, pai etc.). De muitos modos e com muitas imagens ela descreve a atuação de Deus e sua relação com o povo. Uma dessas imagens, e que se torna central na vida de Jesus, particularmente nos evangelhos sinóticos, é reino ou reinado de Deus – uma imagem proveniente do mundo político. Deus aparece como rei, cujo reinado consiste em fazer justiça aos pobres e oprimidos (cf. Ex 15,18, Sl 72, Mt 6,33).

De fato, “o tema central da proclamação pública de Jesus foi o reinado de Deus” (JEREMIAS, 2008, p.160) e “sua marca principal é que Deus está realizando o ideal da justiça real, sempre ansiado, mas nunca cumprido na terra” (JEREMIAS, 2008, p.162).

Essa Boa Notícia do reinado de Deus só pode ser compreendia em referência ao “ideal régio” do Antigo Oriente Próximo, no qual “o rei, por sua própria missão, é o defensor daqueles que são incapazes de se defender por si mesmos”; “é o protetor do pobre, da viúva, do órfão e do oprimido” (DUPONT, 1976, p.37). Na perspectiva de Israel, “a justiça real não consistia primordialmente numa aplicação imparcial do direito, mas na proteção que o rei estende aos desamparados, fracos e pobres, às viúvas e aos pobres” (JEREMIAS, 2008, p.162). Por isso, não devíamos nos surpreender e/ou escandalizar com a afirmação de que “o anúncio do advento do Reino de Deus constitui uma Boa Nova precisamente para os pobres e para os desgraçados. Eles devem ser os beneficiados do Reino” (DUPONT, 1976, p.54). Nem sequer com a afirmação mais radical de que o reinado de Deus “pertence unicamente aos pobres” (JEREMIAS, 2008, p.187). Não por acaso, ao falar da proximidade do reinado de Deus, os evangelhos referem-se precisamente à ação de Jesus em favor dos pobres, doentes, impuros, pecadores etc.

Se não é possível falar de Jesus sem falar do reinado de Deus tampouco é possível falar do reinado de Deus sem falar da justiça aos pobres e oprimidos. Jesus, o Reino e a justiça aos pobres são inseparáveis. O traço decisivo do reinado de Deus consiste precisamente na “oferta de salvação feita por Jesus aos pobres” (JEREMIAS, 2008, p.176). De modo que o reinado de Deus, centro da vida e missão de Jesus, tem a ver fundamentalmente com a justiça, isto é, com a garantia do direito do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro; é reino de justiça e, por isso mesmo, é boa notícia para os pobres, oprimidos e fracos.

3 Justiça: sinal e instrumento do Reino nas estruturas da sociedade

Poder-se-ia pensar que a justiça é uma característica e uma exigência da fé judaica e não da fé cristã; que é central no Antigo Testamento, mas não no Novo Testamento; que enquanto os profetas de Israel exigiam a prática do direito e da justiça (enfoque sociopolítico), Jesus exige a prática da caridade (enfoque individual e assistencial); consequentemente, que a luta pela justiça não é tarefa própria dos cristãos enquanto tais, muito menos da Igreja – a caridade, sim; a justiça, não.

Mas é preciso recordar que Jesus é judeu; que o Deus de Jesus é o Deus de Israel; que o Antigo Testamento faz parte das escrituras cristãs; que a ação de Deus e a relação com ele são ditas/narradas na Bíblia de muitas formas, com muitas imagens e muitos conceitos (justiça, direito, paz, misericórdia, amor etc.); que essas formas, imagens e conceitos não se contrapõem, pelo menos na perspectiva bíblica; e que, embora a justiça não seja a única forma de se referir à ação de Deus e à fé cristã, é uma forma privilegiada: seja porque constitui o coração do evangelho do reinado de Deus (conceito central na Bíblia), seja por ser menos passível de interpretações e/ou manipulações subjetivistas (conceito adequado ao nosso tempo).

A consciência da dimensão estrutural da vida humana proporcionada pelo desenvolvimento das ciências sociais e a tentação (bem ou mal intencionada) de tomar as expressões “amor” e “misericórdia” em um sentido meramente interpessoal e/ou assistencial (obras de misericórdia, solidariedade etc.), tornam a expressão “justiça” ainda mais importante e necessária em nosso tempo para designar a exigência e o critério fundamentais da ação cristã (direitos, sociedade nova, mundo novo etc.).

Neste contexto, vários autores têm se esforçado por encontrar uma forma adequada de expressar e articular em nosso mundo o sentido bíblico de justiça em sua relação com o amor. Por um lado, tratam a justiça como expressão do amor ou como a dimensão estrutural do amor: “não se pode esquecer a dimensão estrutural do amor cristão” (AGUIRRE, 1994, p.561); “amar em um mundo injusto não é possível senão construindo a justiça” (GONZÁLEZ FAUS, 1999, p.392); “a justiça é aquela forma que o amor adota em um mundo de opressão e pecado” (ELLACURIA, 2002, p.316). Por outro lado, falam do especificamente cristão da justiça, referindo-se à lógica amorosa da gratuidade e do perdão: não se pode confundir “a fome de justiça com a sede de vingança”, “a prática cristã da justiça deve aproximar-se mais do perdão que da vingança” (GONZÁLEZ FAUS, 1999, p.394); a “experiência da fé familiariza a justiça com o perdão” (VITORIA, 1994, p.576). Noutras palavras, a justiça é tomada aqui como a prática socioestrutural do amor cristão ou como sinal e instrumento do Reino nas estruturas da sociedade. Enquanto tal, ela tem que ser realizada e dinamizada segundo a lógica do amor e não segundo a lógica do ódio e da vingança.

Em todo caso, não há nem pode haver contradição entre amor e justiça na fé: ambas aparecem na Escritura como características e expressões fundamentais de Deus e de seu povo; ambas dizem respeito fundamentalmente à humanidade sofredora e à exigência de socorrê-la em suas necessidades; e ambas referem-se ao homem em sua totalidade, em todas as suas dimensões, incluindo o que chamamos dimensão socioestrutural.

4 A  Igreja e a luta pela justiça

4.1 A opção da Igreja latino-americana e sua repercussão social e eclesial

Como bem reconhece o Documento de Aparecida, “a opção preferencial pelos pobres é uma das peculiaridades que marca a fisionomia da Igreja latino-americana e caribenha” (Aparecida n.391). Certamente, a preocupação com os pobres não é algo novo na vida da Igreja. Nem é uma invenção da Igreja da América Latina. Mas ela foi retomada de modo muito fecundo e criativo pelo Concílio Vaticano II, com João XXIII e com o grupo “Igreja dos pobres”, e, particularmente, pela Igreja latino-americana, com as conferências de Medellín e Puebla e com a teologia da libertação, nos termos de “Igreja dos pobres” e/ou “opção pelos pobres” (cf. AQUINO JÚNIOR, 2014, p.119-50).

Mas provavelmente o que mais caracteriza e distingue a Igreja da América Latina seja o modo como tem compreendido e vivido o compromisso com os pobres: não apenas na assistência imediata e na solidariedade cotidiana, como sempre se deu ao longo da história da Igreja, mas também e de modo muito particular na luta pela justiça. Já na Conferência de Medellín, os bispos se deram conta do caráter institucional/estrutural da injustiça e da violência, bem como da necessidade de mudanças nas estruturas da sociedade. Por isso mesmo não falaram apenas de caridade, mas também de justiça. Aliás, o primeiro Documento de Medellín trata precisamente da justiça. E a problemática reaparece com muita força no Documento de Puebla (cf. Puebla n.63-70, 87-109, 1134-1165, 1254-1293) e nas demais conferências.

Tudo isso tem repercutido muito no conjunto da sociedade latino-americana e no conjunto da Igreja. Negativamente, pode-se constatar essa repercussão através dos conflitos e perseguições vividos na sociedade e mesmo no interior da Igreja. O martirológio latino-americano é a prova maior… Positivamente, temos a inserção e participação de amplos setores da Igreja nas lutas populares em todo continente e o reconhecimento cada vez mais explícito, pelo conjunto da Igreja, que a luta pela justiça é constitutiva da missão da Igreja. A título de exemplo, basta lembrar o Sínodo dos Bispos sobre A justiça no mundo (1971) e a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (1975). É nessa tradição que se compreende a insistência do papa Francisco na necessidade de articular bem a prática cotidiana da solidariedade com a transformação das estruturas da sociedade (cf. EG, 188s) e a afirmação clara e precisa de que “embora ‘a justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política’, a Igreja ‘não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça’” (EG n.183).

4.2. Desafios e perspectivas atuais

Se “a promoção da justiça é parte integrante da evangelização” (Puebla n.1254) e, enquanto tal, algo constitutivo e não opcional na vida da Igreja, o modo concreto como se dá essa promoção da justiça depende sempre das formas reais de injustiça e das possibilidades reais de enfrentamento da injustiça e de efetivação da justiça. Daí porque a problemática da justiça não possa ser reduzida a meros princípios abstratos e universais, sem muita ou nenhuma incidência real e efetiva. Tanto as injustiças quanto a promoção da justiça são reais, concretas, com rostos, nomes, endereços, lutas etc. Neste sentido, é preciso confrontar-se com as situações reais de injustiça e assumir as lutas concretas pela efetivação da justiça, não obstante os riscos (até de morte) e as ambiguidades (presentes não só na luta pela justiça, mas na vida humana em geral e, concretamente, na vida eclesial: relações de poder, expressões litúrgicas, dinheiro etc.).

Antes de tudo, é preciso confrontar-se com as situações reais de injustiça. Tanto as vítimas da injustiça, quanto os que a promovem e/ou beneficiam com ela têm nome e endereço. Puebla já falava das “feições concretíssimas” da pobreza e elencava uma lista de rostos nos quais “deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo” (cf. Puebla n.31-39). Aparecida, no mesmo sentido, amplia essa lista, acrescentando alguns dos “novos rostos” da pobreza (cf. Aparecida n.402). E nós temos que continuar identificando em cada lugar ou contexto as pessoas e os grupos que têm seus direitos negados, mas também as pessoas e os grupos que produzem essa situação ou se beneficiam com ela, bem como as causas e os mecanismos econômicos, sociais, políticos, jurídicos, culturais, religiosos etc. que produzem e sustentam essas situações.

Mas é preciso também assumir as lutas concretas em favor da justiça, isto é, da garantia dos direitos dos pobres, oprimidos, pequenos e fracos. Não basta ter compaixão dos pobres e marginalizados, nem sequer ser solidário com eles – por mais importante e necessário que isso seja. É preciso enfrentar os mecanismos que produzem essa situação e, de alguma forma, os que a promovem ou se beneficiam com ela. Como afirma o papa Francisco, além dos “gestos mais simples e diários de solidariedade”, é necessário cooperar para “resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres” (EG n.188). “A desigualdade é a raiz dos males sociais” (EG n.202). E sua superação passa tanto pela conversão do coração, quanto pela transformação das estruturas sociais, o que só é possível através de organizações sociais e da constituição de força social capaz de enfrentar e alterar a estruturação da vida coletiva.

Por fim, convém advertir que a luta contra as injustiças e pela garantia dos direitos dos pobres, oprimidos e fracos não é tarefa só da Igreja nem algo que ela possa realizar sozinha e por si mesma. Por um lado, a Igreja não dispõe dos meios econômicos, políticos, jurídicos, culturais etc. necessários para tal empreendimento. Por outro lado, há uma quantidade enorme de organizações, instituições e forças envolvidas nas mais diferentes lutas pela justiça. A Igreja deve inserir-se nesse processo mais amplo e contribuir, a partir de sua missão (realização do reinado de Deus) e dos meios de que dispõe (comunidades, pastorais e movimentos, palavra e gesto, princípios e valores, conscientização, denúncia, mobilização popular, pressão social, articulação com outras forças sociais etc.), para que a justiça se torne realidade e os pobres, oprimidos e fracos possam viver com dignidade. A realização da justiça, isto é, a garantia dos direitos dos pobres oprimidos e fracos é, simultaneamente, sinal e medida da realização do reinado de Deus em nosso mundo e, enquanto tal, sinal e medida da fé cristã (adesão fiel e criativa ao reinado de Deus e sua justiça) e da missão da Igreja (serviço humilde e fiel ao reinado de Deus e sua justiça).

Francisco de Aquino Júnior – FACAF e UNICAP, Brasil. Texto original português.

5 Referências bibliográficas

AGUIRRE, R.; VITORIA, J. “Justicia”. In: ELLACURIA, I.; SOBRINO, J. Mysterium Liberationis. Conceptos fundamentales de la Teología de la Liberación. San Salvador: UCA, 1994. p.539-77.

ALONSO DÍAZ, J. A. Términos bíblicos de “Justicia Social” y traducción de “equivalencia dinâmica”. Estúdios Eclesiásticos, n.51, p.95-128. 1976.

AQUINO JÚNIOR, Francisco de. A dimensão socioestrutural do reinado de Deus. Escritos de teologia social. São Paulo: Paulinas, 2011.

_____. Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento. São Paulo: Paulinas, 2014.

CODINA, V. Fe en Dios y práxis de la justicia. In: SOTER (org.). Deus e vida. Desafios, alternativas e o futuro da América Latina e do Caribe. São Paulo: Paulinas, 2008. p.129-49.

COMBLIN, J. A profecia na Igreja. São Paulo: Paulus, 2008.

DUPONT, J. Os pobres e a pobreza segundo os ensinamentos do Evangelho e dos Atos dos Apóstolos. In: DUPONT, J.; GEORGE, A. et al. A pobreza evangélica. São Paulo: Paulinas, 1976. p.37-66.

ELLACURÍA, I. Fe y Justicia. In: Escritos Teológicos III. San Salvador: UCA, 2002. p.307-73.

GONZÁLEZ FAUS, J. I. Justiça. In: SAMANES, C. F.; TAMAYO-ACOSTA, J. J. Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999. p.389-94.

GUILLET, J. Justiça. In: LÉON-DUFOUR, X. Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Vozes, 2009. p.499-510.

JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento: Nova edição revisada e atualizada. São Paulo: Hagnos, 2008.

SICRE, J. L. Profetismo em Israel. O profeta, os profetas, a mensagem. Petrópolis: Vozes, 2008.

[1] Doutor em teologia pela Westfälische Wilhelms-Universität de Münster (Alemanha); professor na Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE.

Experiência de Deus

Sumário

1 Considerações sobre a experiência

2 O sentido da vida, experiência humana fundamental

3 Fé e experiência do Mistério

4 Experiência de Deus

5 Experiência cristã de Deus

6 Referências bibliográficas

   1 Considerações sobre a experiência

A palavra experiência remete à ação de ir ao exterior (ex), às coisas, para buscar provar (per). Experimentar tem sentido de contato com o real. Experiências baseiam-se em percepções sensoriais. Percebemos o real com os sentidos para “adquiri-lo” pela razão no exercício de sua atividade reflexiva e interpretativa.

Sob a influência da moderna subjetivação e metodologização da experiência, consideramos, geralmente, a experiência como uma atividade, um fazer do sujeito que, sendo fundamentalmente razão (cogito), se dirige ao real que é, nessa perspectiva, objeto para se conhecer e dominar. Essa esquematização epistemológica representa uma redução do sentido de experiência que passa a depender do método científico para poder ser comprovada. O conceito de experiência será parte da prática do conhecimento e reduzido ao domínio da natureza em benefício da vida humana. Experimentar será, portanto, a atividade de propor experimentos que passam a ser repetidos com o objetivo de levar o sujeito ao conhecimento do “funcionamento” das coisas.

Experiência, no entanto, não é apenas fazer. Existe uma dimensão passiva da experiência que deve ser considerada. A experiência é também um “sofrer”, um ser afetado pelas ocorrências que nos atingem no contato com o real. “Percebemos com nossos sentidos as ocorrências que nos atingem, elas tocam-nos o corpo, penetram nas camadas inconscientes de nossa alma, e de certo só uma pequena parte delas torna-se consciente e é ‘adquirida’ pela razão no exercício de sua atividade reflexiva e interpretativa.” (MOLTMANN, 1998, p.32). Experiência, como podemos entender a partir dessa afirmação de Moltmann, não tem apenas o sentido ativo de meio/método que leva ao conhecimento do que é útil, mas tem também o sentido passivo de algo que nos ocorre na medida em que nos posicionamos no mundo como seres de relação. “Não sou eu que faço a experiência, mas sim a experiência que faz algo em mim. Eu percebo com meus sentidos o acontecer externo e observo em mim as alterações que ele realiza.” (MOLTMANN, 1998, p.34). Na relação com o mundo, com o outro e com o Transcendente, somos afetados, mas também somos transformados em nossa maneira de pensar, sentir e agir. A experiência aqui tem sentido existencial de fonte de transformação.

Tendo como referência Jean Mouroux, o teólogo Mário de França Miranda vai distinguir três tipos de experiência: a empírica, que é a cotidiana e acrítica, provinda das realidades inevitáveis da vida concreta; a experimental, que tem como referência o método científico; e a existencial, que é “a experiência pessoal do ser humano no horizonte total da realidade, onde vive e se realiza como homem ou mulher.” (FRANÇA MIRANDA, 1998, p.90). Neste contexto de compreensão de experiência podemos situar a experiência de Deus, pois Deus não é objeto de experimentação metódica. A experiência de Deus refere-se ao sentido último da vida.

2 O sentido da vida, experiência humana fundamental

O humano é ser de sentido. Distingue-se no mundo quando, em meio às determinações da vida, questiona-se sobre si mesmo. Não se adaptando às imposições biológicas ou sociais que vem do exterior, coloca a si mesmo em questão. À diferença de outros seres, o humano é um ser que não se restringe a essa condição de ser determinado pela natureza e pela história.  Percebendo-se como “fruto do que lhe é estranho” olha para si e pergunta:  qual o sentido de tudo isso? Nesse momento, reflete Karl Rahner, nasce o humano, ser de transcendência vocacionado a realizar-se no exercício da liberdade e responsabilidade.

Ao se colocar analiticamente em questão e abrir-se para o horizonte ilimitado de semelhante questionamento, o homem já transcendeu a si mesmo, bem como todas as dimensões pensáveis dessa análise ou de autorreconstrução empírica de si. Ao fazê-lo, afirma-se como quem é mais que a soma desses componentes analisáveis de sua realidade. Precisamente essa consciência de si, esse confronto com a totalidade de todos os seus condicionamentos, o fato mesmo de estar condicionado evidenciam que ele é mais do que a soma dos seus fatores (RAHNER, 1989, p.43).

Essa consciência de si como totalidade aberta, no entanto, só se explica, esclarece Rahner, na medida em que se considera que, em sua relação com o mundo, o humano capta-se a si mesmo como parte de uma realidade que o transcende, como ser diante do Mistério, essa realidade que tudo abarca, infinitude e densidade que se encontra no mais exterior e no mais interno de todas as coisas, o Mistério de onde tudo vem e para onde tudo vai. O humano é, portanto, sujeito e pessoa livre e responsável, na medida de sua abertura para esse Mistério Santo, aquele que confere sentido à sua vida.

Como ser aberto à transcendência, o humano faz a experiência da liberdade. A liberdade não é um dado particular, mas é fruto da experiência transcendental da subjetividade. “Enquanto o homem por sua transcendência se encontra em abertura total, é também responsável por si. Está entregue a si não só quando conhece, mas também quando age. E neste estar entregue a si mesmo percebe-se como responsável e livre.” (RAHNER, 1989, p.50). A liberdade transcendental é a responsabilidade última da pessoa por si mesma e tem como mediação os desafios históricos. Responsabilidade e liberdade são experiências do sujeito que se percebe como sujeito, como ente que, por sua transcendência, possui originária e indissolúvel unidade e presença de si mesmo perante o ser.

3 Fé e experiência do Mistério

O humano, aberto ao infinito, atualiza a liberdade em ação na medida em que estabelece um compromisso vinculante com objetos, verdades e valores que derivam dessa experiência do absoluto que confere sentido à existência em seu nível mais fundamental, assumidos, no entanto, provisoriamente em vista da exigência que a existência humana tem de objetos, verdades e valores absolutos, mas que não se encontram disponíveis no nível da existência histórica (cf. HAIGHT, 2004, p.36). A liberdade pressupõe a fé.

A fé é central e nuclear, unifica, integra e articula os aspectos da personalidade. Não é adesão cega a um conjunto de fórmulas, mas “aquiescência do intelecto e da vontade” ao Absoluto que permite ao humano ser sujeito e pessoa, livre e responsável. Ela é tendência interna fundada no surgir do absoluto pré-apreendido por nós na relação com a realidade. A fé orienta as decisões fundamentais que implicam o agir. No contexto da consciência histórica, a fé se funde com a esperança. “(…) na medida em que a fé também constitui a resposta mais íntima e mais central dos seres humanos à realidade, deve-se perceber que, em um nível mais profundo, fé e esperança são indistintamente a mesma coisa.” (HAIGHT, 2004, p.40).

A fé é, portanto, liberdade advinda da experiência do Mistério Santo, dessa alteridade absoluta, do totalmente Outro que se revela a nós, como professa Karl Rahner, a qual chamamos Deus:

A esse Mistério, que confere um fundamento a cada realidade concreta e que abre um espaço e horizonte para cada conhecimento, eu o chamo de Deus. Ele não precisa que andemos provando sua existência sem cessar. (…) Quando eu me situo em meu interior e calo, quando permito que as muitas realidades concretas de minha vida se assentem em um Fundamento [Grund], quando deixo que todas as perguntas se centralizem na Pergunta, aquela que não pode ser respondida com as respostas que são dadas às perguntas concretas, mas deixo que o Mistério infinito se expresse a si mesmo, então o Mistério está presente aí (RAHNER apud: VORGRIMLER, 2006, p.12).

4 Experiência de Deus

Deus é o Mistério Santo que permite ao humano conhecer-se como ser de transcendência. Sem Deus, afirma Karl Rahner, não existiria para o humano a Totalidade e a realidade se reduziria a um conjunto de preocupações parciais. Sem Deus, o homem ficaria metido no mundo e em si mesmo e não se realizaria como ser de liberdade e responsabilidade, seria apenas um animal engenhoso (cf. RAHNER, 1989, p.65).

Ao nos afirmarmos como sujeitos e pessoas, livres e responsáveis, fundados nesse Absoluto que se oferece e que nos abre à transcendência, afirmamos ao mesmo tempo, por analogia, o ser pessoal de Deus que é o fundamento da pessoa que somos chamados a ser. O conhecimento de Deus como pessoa se dá, entretanto, quando experimentamos, em nossa experiência histórica, Deus que quer encontrar-se conosco e se tem encontrado conosco em nossas histórias individuais, na profundeza de nossas consciências, e na totalidade da história humana (cf.  RAHNER, 1989, p.95). Quando somos afetados por sua presença amorosa junto a nós, conhecemos Deus por experiência. Experiência de Deus, vai afirmar Congar, é a percepção da realidade de Deus que vem a nós e nos atrai à comunhão que terá como fruto o amor:

“Experiência”: sob esse termo entendemos a percepção da realidade de Deus vindo até nós, ativo em nós e por nós, atraindo-nos a si numa comunhão, numa amizade, isto é, num ser um para o outro. Tudo isso, é claro, aquém da visão, sem abolir a distância na ordem do conhecimento do próprio Deus, mas superando-a no plano de uma presença de Deus em nós como fim amado de nossa vida: presença que se torna sensível através dos sinais e nos efeitos da paz, alegria, certeza, consolação, iluminação e tudo aquilo que acompanha o amor. (…) Na oração, na prática dos sacramentos da fé, na vida da Igreja, no amor de Deus e do próximo, recebemos a experiência de uma presença e de uma ação de Deus nos chamados e nos sinais que nos são mostrados (CONGAR, 2005, p.13-4).

A experiência de proximidade imediata de Deus é, portanto, sempre mediada pela relação com o mundo e com os outros, uma vez que Deus está em toda a parte, pois é quem tudo fundamenta. Tudo o que, em nossa experiência histórica, nos abre ao Mistério que, desde sempre, se oferece a nós para que possamos nos realizar como seres de liberdade e responsabilidade é, para nós, experiência de Deus. “Deus situa-se além de todos os nomes e imagens”, considera E. Schillebeeckx, mas ele é, “de forma eminente-divina e por nós não descritível, tudo o que se pode encontrar de bom, verdadeiro, e belo no mundo dos homens e de sua história.” (SCHILLEBEECKX, 1994, p.107).

5 Experiência cristã de Deus

Para a tradição cristã, a experiência de Deus se dá plenamente pela escuta da Palavra daqueles que testemunharam o mistério da presença de Deus encarnado em Jesus de Nazaré. Quem vê Jesus, vê o Pai, proclama a comunidade dos cristãos. Ele é luz do mundo porque revela que o Mistério Santo diante do qual estamos é um Deus pessoal e amoroso que nos chama à filiação.  Jesus é luz que, com sua vida, revela o caminho para o encontro com o Pai.

A cena do batismo de Jesus é um relato que diz muito dessa relação de Jesus com Deus. Saído das águas do Jordão, afirmam os evangelhos, Jesus vai viver uma dupla experiência: descobrir-se a si mesmo como Filho muito querido e sentir-se cheio de seu Espírito.

Às margens do Jordão, Deus não se mostrará para Jesus como mistério insondável, Deus todo-poder, mas sim como Pai de amor infinito e de imensa misericórdia: “Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo” (Mc 1,11). O texto fala do prazer de Deus diante de Jesus que em resposta diz “Abbá”. Esse nome expressa a sua confiança e disponibilidade total a Deus.

A vida inteira de Jesus transpira esta confiança. Jesus vive abandonando-se a Deus. Tudo faz animado por esta atitude genuína, pura, espontânea, de confiança em seu Pai. Busca sua vontade sem receios, nem cálculos, nem estratégias. Não se apoia na religião do templo nem na doutrina dos escribas; sua força e sua segurança não provém das Escrituras e tradições de Israel. Nascem do Pai. Sua confiança faz dele um ser livre de costumes, tradições ou modelos rígidos; sua fidelidade ao Pai o faz agir de maneira criativa, inovadora e audaz. Sua fé é absoluta (PAGOLA, 2010, p.372).

Ao mesmo tempo que ouve a voz que declara ser Ele o Filho Amado do Pai, o Espírito desce sobre ele. No relato de Mateus podemos ler:  “e ele viu o Espírito de Deus descendo como uma pomba e pousando sobre ele” (Mt 3, 16). Cheio do Espírito de Deus, aquele que cria e sustenta a vida, que cura, que vivifica e que santifica, Jesus se lança em missão.

Movido pela força do Espírito, Jesus vai aproximar-se dos enfermos para curá-los, vai enfrentar os espíritos malignos sem medo. Ungido pelo Espírito, vai “evangelizar os pobres, proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor” (cf. Lc 4, 18-19).

Jesus, cheio do Espírito, desvincula-se da família, deixa o seu trabalho, e põe-se a anunciar o “reino de Deus” que está irrompendo. Sua mensagem é um convite ao acolhimento do perdão salvador de Deus oferecido a todos e não apenas aos batizados no Jordão. Para Jesus, o tempo não é mais o da austeridade do deserto, mas é o da celebração festiva da vida nova querida por Deus para o seu povo. Proclama a misericórdia de Deus de forma sensível e concreta curando os enfermos, aliviando a dor de pessoas abandonadas, abençoando e abraçando as crianças, fazendo a todos sentir a proximidade salvadora de Deus. Sua linguagem não será a linguagem dura do deserto, mas poesia que convida a olhar o mundo de maneira nova (cf. PAGOLA, 2010, p.106).

A experiência cristã de Deus é o amor incondicional – ágape ou caritas –, que é esse vínculo de amor existente entre Deus-Pai e o Filho, amor que transborda em paixão pelo mundo até a radicalidade da morte na cruz. A cruz de Jesus revela que a transformação definitiva do mundo não se apoia na vingança, mas na incondicional confiança no projeto de Deus todo-misericordioso que promove a passagem da morte para a ressurreição. Em Jesus, a cruz é passagem, páscoa, tem sentido de salvação. Promove a vitória definitiva contra o mal, que é fundamentalmente o escondimento da verdade com o objetivo de justificar a injustiça e a dominação. Aquele que passou a vida fazendo o bem entrega-se livremente às forças da morte, faz ver a culpa do mundo e  nascer o homem novo, com isso totalmente libertado da humana divisão. A descida do Filho de Deus ao inferno do sofrimento promovido pela injustiça revela o caminho de reconciliação que é o da entrega de si em prol do reinado do amor. Ágape é o amor de Deus transformando as possibilidades humanas de amar, dando condições para o estabelecimento de um vínculo fundado na gratuidade. É amor oblativo, vivido na certeza que a entrega de si renova a vida porque é dessa entrega que brota vida nova, ressurreição.

Ceci M. C. Baptista Mariani – PUC Campinas, Brasil. Texto original português.

6 Referências bibliográficas

CONGAR, Yves. Revelação e experiência do Espírito. São Paulo: Paulinas, 2005. Coleção Creio no Espírito Santo, n.1.

HAIGHT, Roger. Dinâmica da Teologia. São Paulo: Paulinas, 2004.

FRANÇA MIRANDA, Mário de. A experiência cristã e suas fontes históricas. In: FABRI DOS ANJOS, Márcio (org.).Experiência religiosa: risco ou aventura? São Paulo: Paulinas, 1998.

MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1998.

PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. São Paulo: Loyola, 2010.

RAHNER, Karl. Curso Fundamental da Fé. São Paulo: Paulus, 1989.

SCHILLEBEECKX, Edward. História Humana: Revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994.

VORGRIMLER, Herbert. Karl Rahner – experiência de Deus em sua vida e em seu pensamento. São Paulo: Paulinas, 2006.

Símbolo e sacramento

Sumário

1 Signo, símbolo, linguagem, corpo

2 Referências Bibliográficas

1 Signo, símbolo, linguagem, corpo

“Isoladas/ as palavras são mudas./ Homem, mulher,/ amor/, é som em linha reta/ e a Terra é redonda;/o som se perde em nada./ As palavras sobrevivem unidas umas às outras numa força de ponte para alcançar o ritmo no horizonte” Estes versos do poema A palavra é carente, de Lupe Cotrim Garaude, podem ser uma boa introdução, em linguagem simbólica, para compreender os sacramentos como “símbolos”.

Por sua atividade simbólica o ser humano configura o mundo e, ao mesmo tempo, é configurado por ela. O símbolo se distingue do simples sinal ou signo, ou seja, da mera ação significativa das palavras enquanto usadas para designar os diversos objetos do mundo. A palavra grega symbolon literalmente significa pôr junto, reunir. Próprio do símbolo é reunir, pôr em comum, criar comunhão. A palavra “rosa” designa um objeto da natureza. A rosa oferecida como presente à pessoa amada torna-se símbolo. A significação do símbolo não reside isoladamente na rosa, nem no gesto de entregar a rosa, nem na pessoa que a oferece ou a recebe, mas na atividade mediante a qual os seres humanos intercambiam um objeto, uma palavra, ou um gesto e desse modo se relacionam, manifestam seus sentimentos recíprocos, ao mesmo em tempo que descobrem sua identidade. Ou seja, na linguagem. A ordem simbólica é o meio pelo qual as pessoas se encontram e se revelam e assim se constroem e constroem o seu mundo.  É nessa ordem que o vocábulo como signo dos objetos se torna símbolo, palavra que une e comunica as pessoas.

A ação simbólica faz parte da linguagem, entendida não como mero instrumento para designar os objetos, mas como meio ou ambiente no qual a pessoa humana se descobre, se constrói e acontece. A linguagem põe em jogo a pessoa humana enquanto  corpo ‒ o “eu-corpo” ‒ o eu que somente enquanto corporeidade pode relacionar-se com os outros e com Deus. O corpo é o lugar da articulação simbólica, diferenciada segundo as orientações do desejo, do tríplice corpo ‒ social, ancestral e cósmico ‒ que constitui o ser humano como sujeito. No corpo se articulam o eu e o outro, a natureza a cultura, o desejo e a palavra. Para a fé cristã, o corpo de Cristo na tríplice dimensão ‒ terrena, eclesial e celeste ‒ é o lugar da manifestação da Palavra eterna de Deus, que, por nós e por nossa salvação, se fez carne em Jesus Cristo.

Os sacramentos só podem ser bem compreendidos quando pensados como ações ou intercâmbios simbólicos que envolvem sempre o eu-corpo do homem, o corpo eclesial e o corpo de Cristo em sua relação com o universo. Os sacramentos são ações litúrgicas da Igreja, A assembleia litúrgica, enquanto personificação da Igreja, corpo de Cristo, em um lugar e um tempo determinados, é o sujeito primordial dos sacramentos. Cada um dos sacramentos envolve e manifesta a ação sacramental da Igreja, sacramento fundamental (Grund-sakrament) que, por sua vez, reenvia ao Uhr-sakrament ou proto-sacramento: o Cristo, a palavra de Deus feita carne (TABORDA, 2005, p.73 nota 56).

Enquanto sacramento da união dos homens entre si e com Deus, toda a ação da Igreja é sacramental, mediante o culto espiritual que consiste em apresentar a Deus o próprio corpo como sacrifício vivo e espiritual para o serviço dos irmãos (cf. Rm 12, 1ss.), seguindo o exemplo de Cristo que se ofereceu por nós na cruz. As ações sacramentais do culto cristão, encontram seu sentido, seu acabamento e sua verificação no viver dos cristãos ao serviço dos irmãos na vida cotidiana. Elas fazem que “o viver para” os irmãos seja recebido gratuitamente de Deus como dom e graça ao mostrá-lo ritualmente, porque o sacramento como símbolo não remete a algo exterior a si mesmo, mas introduz numa ordem da qual ele faz parte: a vida no corpo de Cristo. Os sacramentos celebrados na liturgia são, por isso, momentos culminantes da vida cristã, enquanto vida em Cristo para o serviço do mundo. Introduzem, no Mistério Pascal, o Mistério do corpo de Cristo, morto na cruz e ressuscitado por nós e para nossa salvação, mediante o dom do Espírito que faz parte desse Mistério.

Para tentar compreender a eficácia divina dos sacramentos, a teologia escolástica lançou mão das categorias filosóficas de causalidade eficiente e causalidade instrumental. O Verbo encarnado ‒ afirmava-se ‒ age mediante os sacramentos, de modo semelhante ao artífice que esculpe uma estátua servindo-se de instrumentos apropriados. A afirmação era verdadeira e útil para afirmar que a eficácia do sacramento provém de ser Deus o seu autor. Tomás de Aquino construiu uma reflexão muito rica sobre os sacramentos, servindo-se da analogia com os conceitos de causalidade emprestados da filosofia, embora não deduzindo-a deles, senão dos dados da revelação em Cristo. Mas a utilização de causalidades que dificilmente escapam a representações de tipo produtivista não chega a tocar o mais essencial do agir sacramental, a ordem simbólica. Não é de estranhar que a teologia posterior, presa àqueles conceitos, não conseguisse desenvolver a forma específica do agir sacramental, como linguagem e corpo humanos assumidos por Deus em Jesus Cristo para se relacionar conosco. Consequência desse tipo de reflexão, aliada a outras conjunturas históricas, foi  uma visão do agir dos sacramentos, em não poucos setores da Igreja, de forma quase mágica. Não foi o fato de pensar os sacramentos a partir da causalidade eficiente o que os expôs a serem considerados como ações mágicas (Tomás de Aquino não caiu na armadilha), mas o fato de a teologia posterior e a prática sacramental não se deixarem guiar constantemente pela revelação divina em Jesus Cristo.

A teologia busca, hoje, no modo de agir simbólico um instrumental epistemológico mais apropriado para compreender o agir divino mediante os sacramentos. Não com a pretensão de deduzir o agir sacramental de uma noção previa do símbolo. Construir-se-ia, por esse caminho, uma nova escolástica incapaz de dar razão da prática sacramental. Mas olhando, com ajuda da reflexão sobre a linguagem e o corpo como lugares privilegiados das relações entre os humanos, a revelação singular e escandalosa de Deus no Mistério Pascal, para reencontrar o sentido dos sacramentos que a Igreja recebe do Cristo na tradição litúrgica.

O corpo de Cristo, morto na cruz, ressuscitado e exaltado por Deus por mérito dessa mesma morte, fonte do Espírito que suscita para Cristo o corpo eclesial, é o fundamento dos sacramentos. Sacramentos do amor “trinitário de Deus”, eles nos introduzem na ordem simbólica criada pelo Mistério Pascal, sacramento da humanidade de Deus. O modo do agir simbólico nos ajuda a pensar esse agir divino, sem a pretensão de desvelar o Mistério santo do próprio Deus, revelado no Mistério Pascal, ao permitir-nos articular os dados da Revelação com nossa experiência cotidiana de ser no mundo em relação de alteridade com todos os humanos.

O símbolo age significando e pelo mesmo ato de significar que conduz à comunhão entre as pessoas, envolvendo, mediante a corporeidade, a verdade do ser: ser para, ser em relação. Um exemplo fácil de compreender: o abraço da mãe a uma criança, enquanto envolve todo o seu afeto, entregando-se a ela sem reservas, dá a esta a consciência de ser querida e cria laços imperecíveis. O gesto aparentemente idêntico de alguém que, pretendendo abusar de uma criança, tenta iludi-la para conseguir seu perverso propósito, produzirá um efeito desastroso, deixando marcas indeléveis por toda a sua vida, porque o gesto significou uma coisa estranha, não fazia parte de uma ordem simbólica verdadeira.

A morte do Cristo na cruz, coroando toda uma vida de doação incondicional a quantos se encontraram com ele, contemplada no interior da tradição de fé de Israel e à luz da fé cristã, revela o amor de Deus não apenas aos discípulos do Nazareno, mas aos homens e mulheres de todos os tempos. Amor divino que, no corpo do Filho, se entrega incondicionalmente a todos os humanos para que no Filho e com o Filho renasçam para uma vida nova e imperecível.

Compreender o gesto de Cristo na cruz como gesto de amor do Pai para a humanidade toda, simbolizado nos sacramentos, requer um processo lento e progressivo de comunhão, como o que deve haver entre mãe e filho para que seu abraço se torne símbolo de amor. A prática da Igreja e o surgimento progressivo dos sacramentos mostram bem isso. Os sacramentos nascem em torno à mesa em que se celebra a memória da entrega de Cristo por nós, e são sempre acompanhados do sacramento da Palavra que os torna significativos, até o ponto de revelar, na morte de um judeu crucificado, o dom ‒ a autocomunicação ‒ do próprio Deus à humanidade. Para compreender isso não basta narrar os eventos da vida de Jesus. Era necessário escutar o próprio Deus dizendo neles o seu amor por Israel e por toda a humanidade. Compreende-se por que a memória da entrega de Jesus na cruz, celebrada na liturgia, foi sempre precedida pela leitura das Escrituras judaicas e por que são lidas também as cartas dos apóstolos. Os apóstolos, iluminados pela memória de Jesus, viram-se obrigados a reinterpretar as escrituras antigas ao se deparar com pessoas que não eram judias e procuravam em Jesus a salvação. Como Deus poderia agir por meio de Jesus se a sua memória não se tornasse significativa para os que participavam das celebrações da Igreja?

Pensar um sacramento implica pensar o seu ritual como verdadeiro intercâmbio simbólico entre Deus e o ouvinte da sua Palavra, que é tocado por ele como gesto divino de salvação. A ação sacramental não pode ser reduzida ao que a escolástica considerava a matéria e a forma, sob pena de cair no sacramentalismo mágico. Para agir mediante o sacramento, o rito litúrgico deve introduzir quem o recebe, de forma real, na ordem simbólica do Mistério Pascal, como transparece da prática litúrgica. Essa manifesta melhor o sentido dos sacramentos do que uma reflexão teológica que não se deixa guiar pela própria celebração. Todo o ritual da celebração dos sacramentos faz parte deles e não pode ser considerado como acessório dispensável sem negar a sua essência, que é serem ações simbólicas cujos atores são o próprio Deus a Igreja. Recupera-se assim, na reflexão teológica, a sacramentalidade da liturgia da Palavra, esquecida durante séculos pela teologia sacramental, como protestou Lutero. A proclamação da palavra acompanha sempre o gesto sacramental e faz parte dele, não podendo ser compreendia como uma palavra humana, preparatória ou explicativa do gesto sacramental, mas como Palavra do próprio Deus e do seu Filho Jesus Cristo na comunhão criada pelo Espírito na ação litúrgica.

A renovação conciliar da Liturgia, que ainda deverá percorrer um longo e árduo caminho, não é inovação. Ela devolverá progressivamente aos sacramentos o seu lugar originário, a Liturgia da assembleia dominical que celebra a Páscoa do Senhor. Assim, transparecerão como momentos culminantes do encontro dos homens com o Deus que vem ao seu encontro em Jesus Cristo, no corpo eclesial que o Espírito dá ao Senhor ressuscitado.

Isso, porém, não se tornará transparente em um mundo onde uma infinidade de seres humanos é vítima da violência e da injustiça, se as comunidades não vivem o que celebram: Deus revelado, proclamado e cultuado em um crucificado, vítima da violência do mundo por ter anunciado a escandalosa notícia que a invocação do verdadeiro Deus só pode nascer da procura do seu rosto nos pobres e nos excluídos pelos poderes do mundo. Excluídos até pelas religiões, quando são construídas à imagem dos poderes mundanos. Rosto de Deus revelado escandalosamente num homem declarado maldito em nome da religião (cf. Gal 3,10-13)! Por isso o sacramento, enquanto introdução do homem na ordem simbólica pela qual Deus, por pura graça, entra em relação com todos os humanos no Crucificado, só pode ser compreendido por quem, seguindo o caminho de Jesus, estiver disposto a perder a vida por amor aos irmãos.

E aqui surge um paradoxo da fé cristã. Os sacramentos, que criam a identidade cristã de quantos os celebram e recebem por eles a vida verdadeira como dom de Deus, obrigam o cristão a afirmar que o dom recebido não é privilégio que o separa dos outros, senão missão de anunciar para todos, como boa notícia, o amor divino, experimentado no crucificado como amor a todos os humanos, sem fronteiras de religião. Explicar isso, sem relativizar o Mistério divino revelado em Cristo, e sem negar a presença de Deus nos caminhos das religiões, implicaria desenvolver complexas reflexões de Cristologia e Soteriologia. Mas é pertinente dizer, numa simples introdução ao sacramento como símbolo, que a celebração dos sacramentos, para ser significativa para os cristãos no mundo da comunicação globalizada, deve também tornar transparente esse aspecto mediante o próprio ritual.

Juan Ruiz de Gopegui , SJ, FAJE, Brasil. Texto original português.

2 Referências bibliográficas

BIRMELLÉ, André. La articulation entre Écriture et sacraments dans la lturgie lutherienne. In: BORDEYNE, Philippe; MORRILL, Bruce T. Les Sacrements, révélation de l’humanité de Dieu, volume offert à Louis-Marie Chauvet. Paris: Cerf, 2008.

CHAUVET, Louis-Marie. Symbole et sacrement. Une relecture sacramentelle de l’existence chrétienne. Paris: Cerf, 1987.

______. Les sacrements. Parole de Dieu au risque du corps. Paris: L’Atelier, 1997.

KUBICKI, Judith M. Les symboles sacramentels en un temps de violence et de rupture. Un peuple façonné par l’espérance et la vision eschatologique. In: BORDEYNE, Philippe; MORRILL, Bruce T. Les Sacrements, révélation de l’humanité de Dieu, volume offert à Louis-Marie Chauvet. Paris: Cerf, 2008.

TABORDA,  Francisco, Mistério – Símbolo – Mistério. Ensaio de compreensão da lógica interna da teologia de Karl Rahner. In: OLIVEIRA, Pedro Rubens F. ; TABORDA, Francisco (orgs.). Karl Rahner 100 anos. Teologia, Filosofia e Experiência espiritual. São Paulo: Loyola, 2005.

Recepção judaica e cristã da Bíblia

Sumário

1 O TaNaK desde o Exílio até nossos dias

2 Traduções

2.1 A Bíblia grega

2.2 Targum

3 O Talmud

4 A Bíblia cristã e sua leitura não judaica

4.1 Na Patrística

4.2 Na Idade Média

4.3 Na Modernidade

5 A reaproximação entre leitura judaica e leitura cristã

5.1 Vaticano II

5.2 O povo judeu e suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã

5.3 Verbum domini

6 Referências bibliográficas

O surgimento da Bíblia se deu ao longo de vários séculos, em lugares, tempos e padrões literários diversificados (cf. Hb 1,1). Da mesma forma, também não foi acolhida imediatamente, mas gradativamente. A composição dos textos bíblicos faz parte de um processo que tem como principal marco histórico a dominação estrangeira sobre “o povo da Aliança”. Foi para firmar a própria identidade e evitar a diluição cultural em meio às nações estrangeiras que os descendentes dos hebreus empregaram o recurso de colocar por escrito suas experiências com o Deus dos antepassados, como testemunho de fé para as gerações posteriores.

1 O TaNaK desde o exílio até nossos dias

O estabelecimento da monarquia no antigo Israel (por volta de 1013 aC) suscitou a presença de escribas (cf. 1Rs 4,3) na Corte real, como redatores de documentos e de crônicas anuais sobre ações dos reis. Muitas informações, nesses anais, serviram de base para vários textos bíblicos posteriores (cf. 1Rs 14,19 et passim). Depois do cisma político (em torno de 931 aC), o Reino do Norte sofreu vários golpes de estado, até que, em 722 aC, os assírios  tomaram a capital Samaria e miscigenaram a população com as de outras regiões de seu império (cf. 2Rs 17).  No Sul, porém, perpetuava-se no comando político a linhagem de Davi, até que a capital Jerusalém caiu sob o poder dos babilônios. As elites políticas, religiosas e intelectuais do Reino de Judá foram exiladas para a Babilônia a partir de 586 aC O exílio durou até 538 aC, quando Ciro, rei da Pérsia, permitiu que os judeus voltassem para Jerusalém e restaurassem a religião (DONNER, 1997, p.433-43)

Durante o exílio babilônico e depois dele, os judeus, tanto os exilados como os remanescentes em Judá, consignaram em forma de livro sua experiência com Deus. Tradições orais e litúrgicas tomaram corpo e sofreram diversas redações até culminarem em um corpus escriturístico integrado. Esse corpus passou a ser conhecido como TaNaK, um acróstico de suas três partes: Torá (Lei), Neviim (Profetas) e Ketuvim (Escritos). É comumente aceito que Meliton (falecido em 180 dC), bispo de Sardes (na Ásia Menor), tenha cunhado a terminologia Antigo Testamento, para denominar os livros que o judaísmo chama de TaNaK (SKARSAUNE, 1996, p.411-6).

A Torá também é chamada de Lei, Lei de Moisés e Pentateuco. Designa os cinco primeiros livros da Bíblia e é considerada como os escritos fundamentais da fé judaica, porque trata da eleição, da promessa e da aliança de Deus para com os patriarcas. Os Neviim ou Profetas narram os fatos que vão desde a morte de Moisés até a destruição do Primeiro Templo pelo império babilônico e incluem relatos de acontecimentos, profecias, exortações, consolações e esperanças de um futuro promissor para o povo da Aliança. Os Ketuvim, também chamados de Escritos, tem conteúdo educacional, orações, filosofias, contos edificantes, textos apocalípticos, canções e lamentos de vários tipos etc.

Ao ser lida e estudada nas sinagogas judaicas, logo depois do exílio babilônico, a Bíblia ainda não era o que é atualmente. De acordo com a maioria dos pesquisadores, a atual configuração do Antigo Testamento data de depois do ano 70 de nossa era, final do processo de recepção desses escritos e a consequente fixação do conjunto dessas obras que constituem o TaNaK. A destruição do Segundo Templo, em 70 dC, foi um dos principais catalisadores para a definição dos livros aceitos como sagrados (lidos na liturgia da sinagoga) e dos livros reservados à leitura pessoal e não pública. A sacralidade de alguns deles foi discutida, como o Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos e Ester, e esses, após longa discussão, foram finalmente aceitos como sagrados. Além desses, alguns escritos foram proibidos de ser lidos por terem sido considerados como obras de grupos sectários de judeus helenistas e seguidores de Jesus de Nazaré (BARTON, 1996, p.67-83).

O final do processo de aceitação do TaNaK visava firmar a identidade do judaísmo e servir como medida preventiva contra desvios na interpretação da Torá. A aceitação final dos livros tornou o judaísmo definitivamente uma “religião do livro”, porque é nesse conjunto de obras reconhecidamente inspiradas que o judeu de cada época interpreta sua experiência de fé e sua identidade como povo. A aceitação do TaNaK se configura como fator de unidade entre os judeus espalhados entre as nações em todas as épocas.

2 Traduções

2.1 A Bíblia grega

Quando os judeus estavam sob o domínio helenístico dos ptolemeus, cuja sede política era Alexandria, no Egito, o TaNaK, escrito originalmente em hebraico, foi traduzido pelos judeus da diáspora helenista para o grego koiné (entre o III e o I século aC). Essa versão grega, chamada Septuaginta (LXX), fez várias mudanças nos títulos originais dos livros hebraicos e na forma de agrupá-los, os quais foram organizados em novas seções assim distribuídas: Pentateuco, Históricos, Hagiógrafa (do grego: escritos sagrados) e Profetas. Por causa da mudança de uma língua semita para um idioma indo-europeu, os tradutores tiveram que lidar com dificuldades em verter os conceitos de uma cultura para outra, portanto muitas modificações foram inseridas também nos textos.

Como a LXX levou muitos séculos para ser terminada, enquanto o trabalho de tradução avançava, a lista de livros se expandia. Por isso, além da tradução daqueles livros que pertenciam ao domínio judaico do TaNaK, a versão grega também adicionou outras obras originalmente escritas em grego.

O judaísmo rabínico (posterior ao ano 70 dC, cujo marco é a destruição do Segundo Templo), não recebeu a Septuaginta como texto adequado para a leitura pública na liturgia da sinagoga. Várias razões foram dadas para isso. Primeiramente, alguns erros de tradução foram denunciados. Em segundo lugar, os textos hebraicos, em alguns casos (especialmente o livro de Daniel), utilizados pela Septuaginta diferiam do texto hebraico declarado sagrado e fixado. Em terceiro lugar, os rabinos queriam distinguir a tradição genuinamente judaica daquela emergente confessada pelos seguidores de Jesus. De fato, as comunidades cristãs dos primórdios aceitaram amplamente a LXX e fizeram dela a Escritura Sagrada para fundamentar sua fé. Finalmente, os rabinos alegaram autoridade divina para a língua hebraica, em contraste com o aramaico ou o grego, mesmo quando essas línguas se tornaram idioma franco dos judeus naquela época. Entretanto, nas obras de judeus helenistas como Fílon de Alexandria e Flávio Josefo, a LXX é considerada com igual valor que o texto hebraico. Também foram encontradas cópias da Septuaginta entre os manuscritos de Qumran no Mar Morto; isso testemunha seu valor para os judeus daquele tempo (WEVERS, 1996, p.87-90).

Por volta do século II dC, vários fatores levaram a maioria dos judeus a abandonar o uso da LXX. O principal deles foi a associação da LXX com o cristianismo, tornando-a suspeita aos olhos das novas gerações de judeus. De fato, a maior parte dos cristãos desconhecia o hebraico, seja porque tinham vindo do judaísmo helenista ou porque fossem gentios. Como a LXX era a única versão grega da Bíblia até então, ela se tornou extremamente necessária para essas pessoas e passou a ser a Bíblia do cristianismo nascente. Os escritores do Novo Testamento, ao citarem as escrituras judaicas, utilizam-se livremente da LXX, dando a entender que Jesus e os apóstolos a consideravam confiável. Durante as polêmicas judaico-cristãs dos primeiros séculos de nossa era, pensou-se inclusive que os judeus tinham alterado o texto hebraico para torná-lo diferente da tradução grega em várias passagens que eram fundamentais para os cristãos (WEVERS, 1996, p.91).

2.2 Targum

As suspeitas levantadas contra a LXX, por causa de sua vinculação a uma religião em conflito com o judaísmo da época, podem ter contribuído para mais ampla utilização da tradução aramaica autorizada do TaNaK, denominada de Targum.

O Targum não era de fato uma tradução, mas se constituía como paráfrases com explicações e ampliações dos textos do TaNaK, feitas por um intérprete autorizado, na linguagem comum dos ouvintes, com o objetivo de atualizar o texto antigo para novas gerações e novos contextos históricos. As principais modificações feitas pelo Targum tinham por objetivo evitar os antropomorfismos e dar preferência à alegoria, para salvaguardar a transcendência de Deus (RIBERA, 1994, p.218-25).

O TaNaK foi recebido pelo Targum com muita liberdade. Várias modificações foram acrescentadas no texto, mesmo porque não houve a pretensão de substituir o texto hebraico pelo aramaico. O texto hebraico continuou sendo lido publicamente na sinagoga e logo depois o Targum auxiliava a compreensão dos ouvintes, visto que poucos sabiam hebraico.

Algumas tradições judaicas a partir da Babilônia aceitaram o Targum como escrito de autoridade, ou seja, como texto sagrado ao lado do TaNaK. Isso, posteriormente, tornou-se uma questão de debate. Somente no Iêmen ainda se usa o Targum na liturgia da sinagoga.

Apesar de todas as controvérsias na recepção do Targum para definir sua importância e seu uso, hoje é amplamente admitido que a paráfrase aramaica é essencial para o estudo do TaNaK, mesmo quando as comunidades judaicas não eram mais falantes do aramaico. O fato de o Targum nunca ter deixado de ser uma fonte importante para a exegese judaica mostra sua ampla aceitação como fonte fundamental de comentário do TaNaK. Vários manuscritos bíblicos medievais contêm o texto hebraico e o aramaico interpolados versículo por versículo. Esse fato tem suas raízes na exigência de utilização do Targum para estudo privado do TaNaK lido publicamente no sábado (RIBERA, 1994, p.218-25).

3 O Talmud

O Talmud, compilação das discussões rabínicas sobre os diversos aspectos da práxis judaica, também se posiciona sobre a recepção das Escrituras. Os comentários rabínicos do TaNaK que compõem o Talmud são apresentados como a Torá oral dada a Moisés e transmitida às gerações seguintes (Avot 1,1). Por isso, o Talmud, como resultado das tradições orais de várias gerações de rabinos, é tido com igual autoridade do texto bíblico da Torá.

No Talmud da Babilônia, no tratado sobre o Sinédrio, Sanhedrin 90a, os  rabinos discutem sobre quem participará ou não do mundo vindouro, do mundo regenerado. Nessas discussões afirmam, entre outras coisas, que estará excluído do mundo futuro todo aquele que não tiver a Torá como divinamente inspirada. E Rabi Akiva acrescentou que tal aconteceria, também, a quem lesse um livro não canônico, ou seja, um dos livros entre os que não “mancham as mãos”, i.e., que não deixam as mãos marcadas pela sacralidade. Dada a importância de Akiva e a polêmica entre judeus e cristãos nos primeiros séculos da era comum, esta postura mais severa também foi incluída no Talmud de Jerusalém, tratado Sanhedrin 10a e 28a.

Entre os livros que “não mancham as mãos”, o Eclesiástico, ou Sirácida, recebeu o tratamento mais excludente no Talmud, pois foi colocado entre as obras pertencentes aos minim ou hereges (Tosefta Yadaim II, 13). Apesar de ter sido excluído do cânon e das proibições com que foi cercado, o Sirácida permaneceu popular entre os judeus e é citado frequentemente no Talmud (TREBOLLE BARRERA, 1993, p.48-9; 141-50; 159-213).

Tudo isso mostra uma atitude paradoxal, presente na compilação do Talmud, em relação à recepção das Escrituras. Por um lado, certas obras são muito úteis para fundamentar a práxis do judaísmo dos primeiros séculos da era comum. Por outro lado, essas mesmas obras, como o Sírácida, são igualmente fundamentais para justificar o cristianismo. Portanto, elas são usadas com frequência como dicta probantia pelos rabinos e são, igualmente, declaradas proibidas como livros dos hereges.

A posição dos compiladores do Talmud também não difere muito a respeito da LXX. Eles têm que enfrentar o fato de que a versão grega existe e é amplamente usada pelos judeus, visto que poucos ainda dominam a língua mater dos ancestrais. No entanto, o Talmud não pode oficializar uma aprovação à versão grega do TaNaK por motivos ideológicos e históricos, compreensíveis dentro do contexto no qual as tradições rabínicas foram compiladas.

Para resolver esse impasse, os rabinos acolhem uma lenda, bastante divulgada, sobre o surgimento da LXX. A menção a essa lenda reflete as preocupações e ansiedade dos rabinos não só sobre a Septuaginta, mas também sobre sua própria posição, autodefinida como transmissores da tradição mosaica, em um contexto no qual são desafiados tanto por uma hegemonia cultural greco-romana, quanto pela existência dos judeus cristãos e judeus helenistas, que pretendem ser os verdadeiros herdeiros dos patriarcas e profetas.

A lenda sobre o surgimento da LXX relata que o rei Ptolomeu reuniu setenta e dois anciãos e os colocou em setenta e duas salas separadas, sem dizer-lhes por que os tinha reunido. Depois o rei teria dito, a cada um deles em particular, que traduzissem a Torá de Moisés. Deus, então, os inspirou de forma que todos concebessem a mesma ideia (Talmud da Babilônia, tratado Megilla 9a).

A LXX é um fato. A lenda tal como está no Talmud traz uma ambiguidade, afirma que “eles conceberam a mesma ideia”, mas não diz que a tradução é boa. Para os rabinos compiladores do Talmud, a Torá jamais será traduzida de forma adequada.

Alguns textos rabínicos veem a tradução como um processo essencialmente problemático e consideram as tentativas de realizá-lo como algo escandaloso. Intimamente ligado a isto está a questão da precisão do texto bíblico recebido e transmitido pelos rabinos, em relação às traduções das Escrituras, que podem, por vezes, refletir diferentes versões dos textos no idioma original hebraico. Isso levanta questões urgentes para a teologia rabínica, visto que, após a destruição do Templo, os rabinos não apenas escolheram os livros sagrados, mas também o texto hebraico que melhor servia para conferir a autenticidade de suas tradições no momento de polêmicas em que estavam vivendo (TOV, 1999, p.1-20).

Quanto ao Targum, o Talmud preocupou-se, antes de tudo, em deixar bem claro que o texto bíblico e sua tradução eram coisas bem diferentes, sendo distinto o valor de cada um. A legislação do Talmud a respeito do Targum vai, principalmente, manter essa distinção: o leitor e o tradutor (metargumen, intérprete) não podem ser o mesmo (Talmud da Babilônia, tratado Sotah 39b) e o texto bíblico tem que ser lido, enquanto a tradução deve ser feita de memória (Talmud de Jerusalém, tratado Megilla 74d).

Contudo, ainda que a tradução (o targum) esteja claramente subordinada ao texto bíblico, ela permitia, ao mesmo tempo, dar a conhecer a correta interpretação desse, atualizando-o e até mesmo mudando-lhe o significado. Dessa forma, a versão aramaica mantinha intocável o texto hebraico, considerado sagrado e, ao mesmo tempo, atualizava-o para que respondesse aos novos desafios, sem a necessidade de modificar o texto.

Quando o Targum foi escrito, junto às funções de tradução e de atualização desempenhou também o papel de instrumento de estudo do texto bíblico dentro do sistema educativo rabínico, e isso então se tornou sua função primária até agora (PÉREZ, 1996, p.533-62).

4 A Bíblia cristã e sua leitura não judaica

Durante os séculos I-VI, os judeus cristãos tiveram muitos problemas com a sinagoga e precisaram justificar a sua fé procurando na Escritura passagens que os ajudassem a reler a vida de Jesus. Esse tipo de leitura bíblica configurou-se como:

– tipológico: as passagens do Antigo Testamento seriam figuras e tipos das ações messiânicas de Cristo. Ex: Mt 16,4; Lc 11,29.

– alegórico: prevaleceu o símbolo, mais que a interpretação literal ou histórica. Ex: Gl 4,22-28.

– cristológico: o mistério da salvação tem o seu único eixo em Cristo. Ex: Lc 24,25-27 (GILBERT, 1995, p.65-126).

4.1 Na Patrística

Os Padres Apostólicos procuram fundamentar na Bíblia suas doutrinas que tinham um cunho pastoral. Os apologetas estavam às voltas com polêmicas provocadas pelos pagãos e pelos judeus. Seu acesso à Bíblia tinha por objetivo: refutar calúnias conta os cristãos; lutar contra costumes, mitos e ritos judaicos e pagãos; defender como verdadeiras as doutrinas dos cristãos e rejeitar literaturas judaicas e pagãs que poderiam se contrapor ao cristianismo (SÁNCHEZ, 1996, p.58-62).

Durante o período da patrística, a recepção da Bíblia se efetivou a partir do sentido histórico, moral e alegórico. Histórico significa, nessa perspectiva, que cada acontecimento fala sobre Jesus, portanto as Escrituras Hebraicas nada mais fazem que falar sobre Cristo e sua igreja.

4.2 Na Idade Média

Além dos sentidos conhecidos até então (literal, histórico, alegórico, moral), na Idade Média foi utilizado também o anagógico, sentido místico que elevava o cristão até as realidades celestiais. Como muitos eram iletrados e não podiam ter acesso à Bíblia, foi incentivada a representação de cenas bíblicas através da pintura. À pregação caberia, então, a missão de dar a explicação dessas representações. Fundou-se uma catequese pela imagem, fornecendo uma consciência limitada da Bíblia, representada sem as dificuldades, contradições, diferenças e incoerências do texto bíblico. Apesar disso, a Bíblia foi a fonte de todo conhecimento na Idade Média, mesmo seu acesso sendo restrito a poucos (SÁNCHEZ, 1996, p.62-3; GILBERT, 1995, p.127-34).

4.3 Na Modernidade

Com a invenção da imprensa, a Bíblia tornou-se um livro acessível a quem desejasse e pudesse possuí-lo. O texto que antes estava oculto aos olhos da maioria, logo começou a revelar sua dificuldade, provocando dúvidas, críticas e as mais diversas interpretações. Assim, o sentido literal, antes não muito importante, passou a ocupar a primazia. Lutero proclama “só a Escritura”, relativizando toda a interpretação realizada até ali. E, para completar, os Reformadores conclamaram uma volta à verdade hebraica. A partir de então, começou um estudo crítico das Escrituras, mas a verdade hebraica tão conclamada ainda não era uma reaproximação com a leitura judaica das Escrituras. A Bíblia ainda era recebida sem se levar em conta suas raízes mais profundas.

5 A reaproximação entre leitura judaica e leitura cristã

A consideração das raízes hebraicas das Escrituras e a reaproximação entre a leitura judaica e a leitura cristã teve seu início entre os católicos quando, em 1943, o Papa Pio XII escreveu a encíclica Divino Afflante Spiritu, sobre o modo mais oportuno de promover os estudos da Sagrada Escritura. Nesse documento, Pio XII pede que a Bíblia ocupe um lugar central na teologia e na vida dos fiéis. Afirma a importância do conhecimento sobre o hagiógrafo, o gênero literário, a história, as antiguidades etc.

Um acontecimento muito significativo para esta reaproximação entre judeus e católicos na recepção das Escrituras foi a descoberta dos manuscritos de Qumran, em 1947, que provocou certo frisson entre pesquisadores. Consequência disso foi um despertar para pesquisas referentes aos diversos aspectos da vida judaica em torno do primeiro século da era comum, fato que fez surgir um movimento de retorno às raízes judaicas da fé cristã.

 5.1 Vaticano II

Em 1962 começou o Concílio Vaticano II, fruto de vários movimentos de renovação, modernização e reaproximação, que vinham se desenvolvendo já há muitos anos.

Na Declaração Nostra Aetate, sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs, os padres conciliares afirmam que a Igreja não deve esquecer que, por meio do povo de Israel, “ela recebeu a Revelação do Antigo Testamento e se alimenta pela raiz de boa oliveira, na qual como ramos de zambujeiro foram enxertados os Povos” (Nostra Aetate n.4).

O coroamento desse movimento de reaproximação no Vaticano II foi a promulgação, no dia 18 de novembro de 1965, pelo Papa Paulo VI, da Dei Verbum, Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina. Nessa Constituição se reafirma a mesma postura de abertura também presente na Nostra Aetate, quando escreveram os padres conciliares que “Deus, desejando a salvação do gênero humano, escolheu ‘por especial providência’ o povo de Israel e com ele estabeleceu aliança e a ele confiou suas promessas, para preparar a salvação do gênero humano” (Dei Verbum n.14). Portanto, a revelação narrada e explicada no Antigo Testamento é verdadeira palavra de Deus (Dei Verbum n.14), pois manifesta conhecimento a respeito de Deus e do ser humano e o modo como todos os seres humanos são tratados pelo Deus justo e misericordioso. “Tais livros, apesar de conterem também coisas imperfeitas e transitórias, revelam, contudo, a verdadeira pedagogia divina” (Dei Verbum n.15).

 5.2 O povo judeu e suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã

Em preparação para a celebração dos 50 anos da Dei Verbum, a Pontifícia Comissão Bíblica, em 24 de maio de 2001, lançou o documento O povo judeu e suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã. A questão ali levantada é sobre as relações que a Bíblia estabelece entre judeus e cristãos, já que a Bíblia cristã é composta em sua maior parte pelas Sagradas Escrituras do povo judeu e o Novo Testamento, no qual se expressa a fé em Jesus Cristo, está em estreita relação com o Antigo Testamento (n.1).

O Novo Testamento não é uma novidade absoluta: está enraizado nas Escrituras do povo judeu e lhes reconhece a autoridade divina. Esse reconhecimento é expresso de modo implícito usando terminologias, reminiscências e citações implícitas e explícitas (n.2-4). Proclama-se que o Novo Testamento está de acordo com as Sagradas Escrituras do povo judeu na dupla convicção: da necessidade de que se cumpram as Escrituras e na conformidade dos eventos do Novo Testamento com as Escrituras do povo judeu (n.6-8).

O tema da recepção das Escrituras judaicas na fé de Cristo considera, principalmente, a unidade do plano de Deus e a noção de cumprimento, pois o Antigo Testamento se abre progressivamente a uma perspectiva de cumprimento último e definitivo, que o cristianismo vê como já realizado substancialmente no mistério de Cristo. Sendo assim, a contribuição da leitura judaica da Bíblia é muito útil, análoga à leitura cristã que se desenvolveu em paralelo durante alguns séculos. Mas, por razões hermenêuticas, os cristãos não devem fazer a leitura judaica da Bíblia da mesma maneira que os judeus, pois isso significaria aceitar todos os seus pressupostos, como a autoridade do Talmud, a primazia da Torá sobre os demais livros, a crença que o messias ainda não veio etc. Cada uma das leituras, a judaica e a cristã, é coerente com sua visão de fé respectiva, da qual é resultado e expressão, e são mutuamente irredutíveis. Os cristãos podem aprender com a exegese judaica, e vice-versa.

 5.3 Verbum Domini

Em 11 de novembro de 2010, o Papa Bento XVI publicava a exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini, que recolheu as conclusões da assembleia do Sínodo dos Bispos celebrada no Vaticano em outubro de 2008, com o objetivo de “revalorizar a Palavra divina na vida da Igreja”.

O objetivo do documento, esclarecia o Papa na introdução, era “indicar algumas linhas fundamentais para uma redescoberta, na vida da Igreja, da Palavra divina, fonte de constante renovação”. Além disso, o Papa expressou o desejo e a esperança de que a Palavra de Deus se tornasse cada vez mais o “coração de toda a atividade eclesial”.

É precisamente dentro desse objetivo e esperança que a Verbum Domini considera a relação entre Antigo e Novo Testamento, admitindo que essa relação é íntima e que é necessário “fixar a atenção no vínculo peculiar que isso cria entre cristãos e judeus, um vínculo que não deveria jamais ser esquecido” (n.43). Admitir que existe esse vínculo peculiar “não significa ignorar as rupturas atestadas no Novo Testamento relativamente às instituições do Antigo Testamento”. Essas rupturas existem, estão na ordem do processo histórico e da hermenêutica constitutivos da identidade de judeus e cristãos, embora também seja fundamental considerar “o cumprimento das Escrituras no mistério de Jesus Cristo, reconhecido Messias” pelos cristãos (n.43).

Essa posição dos padres sinodais em relação às Escrituras hebraicas torna-se, na Verbum Domini, o coroamento da posição oficial dos católicos de reaproximação entre leitura judaica e leitura cristã da bíblia, quase cinquenta anos depois do Concílio Vaticano II.

Aíla Pinheiro, FCF, Brasil. Texto original português.

6 Referências bibliográficas

BARTON, John. The Significance of a Fixed Canon of the Hebrew Bible. In: SAEBO, Magne.  Hebrew Bible, Old Testament: The History of Its Interpretation. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1996. v.1. p.67-83.

BENTO XVI. Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini. São Paulo: Paulinas, 2010.

CALÉS, Mario. El Talmud de Babilonia. Buenos Aires: Abraham J. Weiss, 1964.

DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. São Leopoldo: Sinodal, 1997. v.2.

Gilbert, Pierre. Pequena História da Exegese Bíblica. Petrópolis: Vozes, 1995.

_____. Como a Bíblia foi escrita: introdução ao Antigo e ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1999.

NOSTRA AETATE, Declaração sobre as Relações da Igreja com as Religiões não-cristãs. In: Compêndio do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1996.

PÉREZ FERNÁNDEZ, Miguel. Literatura Rabínica. In: ARANDA PÉREZ, G.; GARCÍA MARTÍNEZ, F. e PÉREZ FERNÁNDEZ, M. Literatura judia intertestamentária. Estella: Editorial Verbo Divino, 1996. p.533-62.

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã. São Paulo: Paulinas, 2002.

RIBERA, Josep. The Targum: from translation to interpretation. In: McNAMARA, M.J. The Aramaic Bible: Targums in their Historical Context. Sheffiel: JSOT Press, 1994. p.218-25.

Sanchez, Tomás P. Um livro chamado Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1996.

SCHWAB, Moïse. Talmud Yerushalmi. Paris: Maisonneuve, 1878.

SKARSAUNE, Oskar. Scriptural Interpretation in the Second and Third Centuries. In: SAEBO, Magne. Hebrew Bible, Old Testament: The History of Its Interpretation. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1996. v.1. p.373-442.

TOV, Emanuel. The Rabbinic Traditions Concerning the “Alterations” Inserted into the Greek Translation of the Torah and Their Relation to the Original Text of the Septuagint. In: The Greek and Hebrew Bible: Collected Essays on the Septuagint, Leiden. Boston: Brill, 1999. p.1-20.

TREBOLLE BARRERA, Julio. La Biblia judía y la Biblia cristiana: Introducción a la historia de la Biblia. Madrid: Editorial Trotta, 1993.

WEVERS, John William. The Interpretative Character and Significance of the Septuagint Version. In: SAEBO, Magne. Hebrew Bible, Old Testament: the History of Its Interpretation. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1996. v.1. p.84-107.

Bíblia como Palavra de Deus

Sumário

1 Revelação

2 Inspiração

3 Inerrância e Veracidade

4 Línguas bíblicas

5 Formação do Cânon

6.1 Antigas versões

6.2 A versão aramaica

6.3 A versão grega

6.4 As versões latinas

6.5 Outras versões antigas

7 Versões modernas

8 Objeções à Bíblia e Ciências Humanas

9 Referências bibliográficas

Este verbete envolve o percurso e a dinâmica dos temas que caracterizam o ser e o agir de Deus, que se manifesta e vem ao encontro do ser humano, e denotam a percepção, a acolhida e a reflexão do ser humano como resposta a essa iniciativa divina.

Nesse percurso e dinâmica, os temas da Revelação e da Inspiração aportam diretamente nos temas da Inerrância e da Veracidade dos textos bíblicos, que foram escritos em hebraico, aramaico e grego. Essas são as línguas originais da Bíblia, que foi-se cristalizando durante um longo processo histórico, denominado Formação do Cânon do Antigo Testamento e do Novo Testamento.

Todavia, este conjunto de livros difere, na sua extensão e no seu número, de acordo com a aceitação das Antigas Versões existentes que deram origem às inúmeras Versões Modernas da Bíblia. Com o surgimento e a difusão da Crítica Literária, teve início uma série de Objeções à Bíblia que, no fundo, acabaram por permitir o desenvolvimento de interpelações e debates oriundos das Ciências Humanas, que, ao invés de descredenciarem a autoridade da Palavra de Deus, acabaram por incentivar novas pesquisas e descobrir novas formas de abordagem e de metodologias.

1 Revelação

Por revelação entende-se o ato pelo qual o próprio Deus, em sua bondade infinita, dignou-se a se fazer presente e atuante na história, palco dos acontecimentos, para dar-se a conhecer ao ser humano, elegendo-o seu interlocutor, através de fatos e palavras conexos entre si. Deus, adotando e fazendo uso dessa metodologia, permitiu que o ser humano pudesse encontrá-lo e experimentar a sua presença e ação de forma perceptível, pelos sentidos, e inteligível, pela razão. Se a experiência dos fatos fundamenta as palavras, as palavras preservam e explicam os fatos.

Essa dinâmica demonstra que a Revelação possui, em si, um duplo nível: a) um nível que diz respeito ao conteúdo revelado (ex parte Dei); b) um nível que diz respeito à inteligência do homem em relação a esse conteúdo revelado (ex parte hominis). Os dois níveis não somente envolvem as partes, mas comprometem os seus respectivos papéis na história da revelação.

A Dei Verbum n.2, sobre isso, afirma: “Em virtude desta Revelação, Deus invisível (cf. Cl 1,15; 1Tm 1,17), no seu imenso amor, fala aos homens como a amigos (cf. Ex 33,11; Jo 15,14-15) e se entretém com eles (cf. Br 3,38), para os convidar e admitir a participarem da sua comunhão.”

Deus, ao se revelar, assumiu a condição tanto de “sujeito da revelação”, como de “objeto da revelação”. No primeiro caso, Deus foi quem tomou a iniciativa de se revelar e de se manifestar de forma acessível e ao alcance das capacidades com as quais dotou o ser humano. No segundo caso, Deus tornou-se o conteúdo a ser experimentado, buscado e compreendido pelo ser humano, capaz de perceber e de adentrar no seu mistério, para reconhecê-lo como seu Criador. Apesar disso, a revelação não esgota o mistério de Deus. O que Deus revelou ao ser humano é o necessário para que ele realize a sua vontade e descubra o sentido da sua vida, da sua existência e do seu fim último: ser partícipe da sua íntima comunhão de amor (cf. 2Pd 1,4).

Se a essência da revelação é o próprio Deus, que se dá a conhecer ao ser humano, então a natureza da revelação consiste no modo pelo qual Deus se faz conhecido e se permite encontrar. A revelação histórica de Deus é o fundamento da História da Salvação. Dando-se a conhecer ao ser humano, Deus inaugurou, igualmente, a via de acesso pela qual ele pode encontrar respostas para os seus questionamentos e anseios mais profundos. Ao descobrir quem é Deus, o ser humano passa a ter a possibilidade de se autodescobrir e saber não somente a sua identidade, mas, também, perceber a sua missão e qual é o seu fim último (Teleologia).

Se a revelação é autocomunicação de Deus, deve ser compreendida como evento salvífico. Esse evento teve início com a Criação, desenvolveu-se na história religiosa do antigo Israel e alcançou a sua plenitude no mistério da encarnação, vida, ministério público, morte e ressurreição de Jesus Cristo, para culminar com o envio do Espírito Santo. Por meio dessa trajetória histórica, Deus se deu a conhecer como comunhão: Deus é Uno e Trino.

Portanto, a revelação é um apelo de Deus, em forma de encontro e diálogo familiar com o ser humano que acredita na experiência que faz, e é, também, uma moção, enquanto abertura para a verdade, que reflete sobre a sua existência à luz da fé.

2 Inspiração

A concepção e a compreensão que se tem da inspiração bíblica estão na ordem da fenomenologia religiosa. Por meio dessa, acredita-se que uma especial ação de Deus possa ter acontecido em determinadas pessoas que, investidas pelo Espírito de Deus, receberam um carisma, isto é, uma graça particular para poder falar, agir e escrever as palavras que o próprio Deus quis comunicar aos seres humanos para revelar os seus desígnios salvíficos.

No âmbito religioso, essa concepção é universal e, portanto, não é uma característica específica e exclusiva da fé judaico-cristã. Os povos antigos (egípcios, assírios, babilônios, persas, gregos, romanos), porque eram religiosos, partilharam deste mesmo parecer. A razão disso é que a “comunicação inspirada” pela divindade é um elemento factual e potencialmente vivo na religiosidade dos povos anteriores e contemporâneos ao povo do Deus da revelação.

Na base dessa religiosidade, está a aceitação que as divindades existiam e podiam ser invocadas por mediadores, aos quais manifestavam, para um indivíduo ou uma comunidade, a sua vontade. Por meio do estabelecimento dessa comunicação quer-se saber quais sãos os desígnios divinos, principalmente para se obter sucesso nos projetos e neutralizar as possíveis desgraças.

Todavia, a nota específica que distingue a concepção judaico-cristã dos demais povos reside, exatamente, no fato dessa considerar como inspirados alguns escritos, que se tornaram normativos para a vida de cada indivíduo e da inteira comunidade. Esta acolhida foi o que determinou essa comunidade religiosa como povo da revelação.

Por inspiração divina da Sagrada Escritura entende-se, então, o influxo particular e especial de Deus, exercido na vida e nas capacidades de todos os que, de forma direta ou indireta, estiveram envolvidos no processo da elaboração dos livros sagrados. Ao lado disso, admite-se que a inspiração foi o que definiu Deus e os seres humanos envolvidos nesse processo como verdadeiros “autores” dos textos bíblicos.

Assim, a Sagrada Escritura, enquanto Palavra de Deus revelada e inspirada, foi escrita sob a ação do Espírito Santo, como afirma a Dei Verbum n.11:

As verdades reveladas por Deus, que se encontram contidas e expressas na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo. Com efeito, a santa Mãe Igreja, por fé apostólica, considera como sagrados e canônicos os livros inteiros tanto do Antigo como do Novo Testamento, com todas as suas partes, porque, tendo sido escritos por inspiração do Espírito Santo (cf. Jo 20,31; 2Tm 3,16; 2Pd 1,19-21; 3,15-16), têm Deus por autor e como tais foram confiados à própria Igreja.

Essa afirmação, apesar de ser um ato de fé solene do Magistério da Igreja, não resolveu as numerosas questões que surgiram nos últimos tempos, e que têm exigido de biblistas e teólogos, a partir dos resultados obtidos pelos métodos exegéticos, uma reflexão cada vez maior, a fim de proporcionar uma melhor compreensão quanto ao tema da inspiração da Sagrada Escritura.

O termo inspiração não existe no Antigo Testamento, mas a sua compreensão pode ser depreendida das fórmulas de introdução dos oráculos proféticos: “Assim fala o Senhor” ou “Oráculo do Senhor”, que indicam a concepção da origem divina da palavra transmitida através dos Profetas. Jr 36,2.32 é um exemplo da fixação escrita da palavra profética. Ao lado disso, está a firme convicção de que a Torá (lei – instrução) contém a palavra de Deus normativa para o antigo Israel e que foi posta por escrito por ordem do próprio Deus (Ex 34,27-28).

Já em 2Tm 3,16 encontra-se a palavra theópneustos, que pode ser traduzida por um valor predicativo (“Toda Escritura é inspirada por Deus”) ou por um valor atributivo (“Toda Escritura inspirada por Deus”). Jerônimo traduziu por divinitus inspirata. Além dessa citação explícita, 2Pd 1,19-21 afirma que nenhuma profecia foi fruto de mera moção humana, mas resulta da ação do Espírito Santo, pelo qual homens falaram em nome de Deus. Esta certeza, com relação às palavras contidas nos escritos proféticos, foi estendida aos escritos de Paulo, dando a entender que houve dificuldades de interpretação da Escritura (2Pd 3,15-16).

Dessa base bíblica resulta a afirmação que Deus, ao transmitir a sua palavra, não dispensou os seres humanos envolvidos, mas quis revelar-se e expressar a sua vontade através da cooperação humana, valendo-se da sua cultura, da sua língua e das suas formas literárias, sem que nada do conteúdo ficasse comprometido. Se Deus não tivesse falado de forma humana, a comunicação não seria estabelecida e o seu ser e o seu agir não poderiam ser percebidos e compreendidos pelo ser humano. É o que está expresso na Dei Verbum n.11, assumindo a posição já contida na Providentissimus Deus e na Divino afflante Spiritu.

Todavia, para escrever os Livros Sagrados, Deus escolheu homens, que utilizou na posse das faculdades e capacidades que tinham, para que, agindo Deus neles e por meio deles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que ele quisesse.

Portanto, a posição do Magistério, quanto à doutrina da Revelação e da Inspiração, possui a sua base na centralidade que Jesus Cristo, o Verbo Encarnado, ocupa na Sagrada Escritura, pois ele é a sua chave interpretativa. Com isso, o profetismo, como sinal da inspiração divina no Antigo Testamento, e a realização das promessas, da lei e das profecias, no Novo Testamento, fundamentam a interpretação cristológica que se faz de toda Sagrada Escritura.

3 Inerrância e Veracidade

Dos temas da revelação e da inspiração derivam os temas da inerrância e da veracidade da Sagrada Escritura. Por inerrância entende-se a certeza de que o conteúdo dos livros da Sagrada Escritura não contém erros quanto à fé na existência de Deus, enquanto fonte de conhecimento capaz de orientar o comportamento humano.

A perspectiva sobre a inerrância, que se encontra na Dei Verbum n.11, revela que houve a intenção de se optar por uma compreensão de tipo positivo, no sentido de que o texto, claramente, abandona o modelo apologético. Embora se afirme que a Bíblia não contém erros, percebe-se que a ênfase recaiu muito mais sobre o fato de que os Livros da Escritura ensinam com certeza… a verdade relativa à nossa salvação. Assim, a inerrância da Bíblia deixa de ser o ponto central da questão sobre a veracidade da Sagrada Escritura, para que a verdade salvífica apareça como corolário.

A inerrância, então, comporta a admissão de que a Sagrada Escritura ensina a verdade, não obstante possam ser encontrados vários tipos de erros que ocorreram na transmissão escrita dos textos. Disto se ocupa a Crítica Textual, como passo metodológico fundamental para se reconstruir um texto danificado ou para se determinar que texto seria o mais próximo do que saiu das mãos do hagiógrafo. Nota-se, mais uma vez, que a natureza da possibilidade do erro não contradiz a doutrina afirmada, porque admitir um erro de transmissão escrita não significa negar a posição da Igreja no que diz respeito à inerrância bíblica, vinculada à comunicação da verdade que se refere, exclusivamente, à salvação do gênero humano e não a verdades de cunho histórico ou científico, no sentido moderno desses termos.

Assim, a constatação de erros de grafia, ao longo da transmissão escrita do texto, não compromete o sentido literal da Sagrada Escritura, que se alcança no acolhimento de cada texto na sua identidade literária e na sua estrutura contextual. O princípio fundamental que rege e orienta a fé na aceitação e na compreensão da inerrância bíblica é a fé de que os textos ensinam, com certeza, a verdade salvífica. Essa verdade é obtida na compreensão do conjunto da mensagem contida nos textos.

Uma vez que a finalidade da Sagrada Escritura é comunicar quem é Deus e qual é a sua vontade para o ser humano, é imprescindível lembrar que os autores sagrados foram pessoas totalmente integradas no contexto vital do seu tempo, imersos na sua própria cultura com tudo o que de limitado e inexato ela comportava em cada época ou estágio do processo de formação dos livros bíblicos. A ciência dos hagiógrafos era empírica e pertencia ao momento histórico, geográfico e cultural de cada um. Isso não foi um obstáculo, mas uma condição e o meio eficaz para que Deus se revelasse, manifestasse a sua vontade e essa fosse transmitida com fidelidade.

O conflito, gerado por correntes racionalistas e iluministas, foi querer ler e interpretar a Sagrada Escritura com a atenção direcionada apenas para dois pontos: a busca pela veracidade histórica das narrativas bíblicas e a visão do seu conteúdo teológico reduzido a uma mera produção humana, sem que houvesse fundamentos científicos para as verdades afirmadas. O resultado foi a criação de um abismo entre a verdade salvífica, transmitida na Sagrada Escritura, e a verdade acadêmica, comprovada pela ciência. Isso será tratado mais adiante no tópico “Objeções à Bíblia e Ciências Naturais”.

4 Línguas bíblicas

Os livros do Antigo Testamento foram escritos em hebraico, aramaico e, em certos casos, em grego. Já o Novo Testamento foi escrito em grego popular, denominado koiné. Alguns livros do Antigo Testamento, presentes no cânon católico, foram preservados somente em grego pela Septuaginta ou, simplesmente, LXX, como é conhecida. São os livros de: Tobias, Judite, 1-2Macabeus, Eclesiástico, Sabedoria e Baruc.

O hebraico é uma forma dialetal, que estava em circulação na Palestina, juntamente com o aramaico, o cananeu meridional (cartas de Amarna), o fenício-púnico, o moabítico e o ugarítico. Esse, em particular, ajuda a compreender a pré-história do hebraico, desde a sua forma mais antiga, denominada de páleo-hebreu, até assumir a forma quadrada com a utilização do alfabeto aramaico. No Antigo Testamento, para se indicar o páleo-hebreu, usava-se “língua de Canaã” (cf. Is 19,18) ou “língua judaica”, para se distinguir do aramaico falado pelos neobabilônios (cf. 2Rs 18,26.28; Ne 13,24).

Assim, o hebraico bíblico é uma denominação tardia, que aparece citada no prólogo do livro do Eclesiástico, como sendo a língua em que foram escritos os livros contidos na Torá, nos Profetas e nos outros Escritos (TaNaK). O desenvolvimento do hebraico bíblico, de certa forma, se confunde com o processo de formação dos livros do Antigo Testamento e a sua utilização foi sendo identificada, cada vez mais, com a forma linguística usada no judaísmo jerusalimita.

A partir do século VI aC, o hebraico foi sendo suplantado pelo uso do aramaico como língua falada e também escrita. Alguns textos do Antigo Testamento foram escritos em aramaico imperial ou diplomático: Esd 4,8–6,18; 7,12-26; Dn 2,4b–7,28 (esses textos não aparecem nas edições protestantes da Bíblia); Jr 10,11 e duas palavras em Gn 31,47. Após as conquistas de Alexandre Magno e a difusão do helenismo, o grego foi imposto como língua falada, mas o aramaico conservou-se em diferentes formas dialetais.

A partir do IV século aC, o grego koiné tornou-se o principal veículo linguístico, falado e escrito, para propagar o helenismo em um vasto império, como cultura dominante, mas principalmente como forma de governo. Este caminho aberto serviu para que diferentes crenças religiosas se difundissem rapidamente em todo o mundo, favorecendo o intercâmbio religioso, principalmente das chamadas religiões de mistério. Foi por causa disto que a palavra sincretismo ganhou também uma forte conotação religiosa.

A Bíblia grega, denominada Septuaginta, e os primeiros documentos produzidos pelo cristianismo, que deram origem aos textos do Novo Testamento, foram escritos no grego koiné falado e não na sua forma culta e literária, o grego clássico. Os cristãos, ao assumirem a LXX como texto oficial das escrituras dos judeus, porque continham as antigas promessas messiânicas, aproveitaram esse elemento linguístico como força comunicativa e conseguiram levar, para o mundo greco-romano, a fé e os ensinamentos de Jesus Cristo, que cumpriu todas as Sagradas Escrituras.

5 Formação do Cânon

O vocábulo grego kanôn deriva de uma palavra semita que, em acádico, é qin; em ugarítico é qn; em assírio é qanû; e em hebraico é qâneh. Essa terminologia passou para as línguas neolatinas através do latim canna, que no português significa “cana ou bastãozinho”. No Antigo Oriente Próximo, o cânon era uma vara reta ou barra, próxima do que se chama de régua, que servia de critério, isto é, representava uma unidade de medida utilizada por pedreiros ou carpinteiros (cf. Ez 40,5.6.7.8). O termo, em sentido metafórico-figurado, também já denotava uma regra, uma norma, um grau de excelência ou um critério-parâmetro com o qual uma pessoa podia julgar se uma doutrina, um raciocínio ou um juízo estava correto, isto é, de acordo com a realidade. O termo cânon será utilizado, também, com o sentido de série ou elenco, passando a ser aplicado à lista dos livros sagrados dos judeus e dos cristãos.

Do ponto de vista bíblico, então, o cânon indica um conjunto de escritos que judeus e cristãos consideram como normativos para a vida de fé individual e comunitária. Ao se determinar o cânon das suas escrituras sagradas, tanto o judaísmo como o cristianismo estavam definindo a sua própria identidade de fé. O critério fundamental para um livro ser considerado canônico é o reconhecimento de que ele foi inspirado por Deus e, logo, contém a revelação da verdade que Deus quis transmitir.

O processo de formação do cânon do Antigo Testamento não foi o mesmo que o do Novo Testamento. Os livros, que compõem o Pentateuco, os Livros Históricos, os Livros Proféticos e os Livros Sapienciais, passaram por um longo processo redacional até chegarem à sua forma final. Esse processo durou, aproximadamente, 1000 anos para o Antigo Testamento. Já para o Novo Testamento, o processo foi mais breve e levou cerca de 150 anos.

A elaboração e aceitação de novos livros pelos cristãos foi o que levou os judeus a estabelecerem os quatro critérios básicos para que um livro fosse aceito como canônico, no final do século I dC, provavelmente durante o sínodo dos antigos rabinos realizado em Jâmnia, que fixou o cânon judaico dos 39 livros que formam a Bíblia Hebraica. O primeiro critério dizia respeito à língua, tinha que ter sido escrito em hebraico, tida como língua sagrada. O segundo critério dizia respeito ao local, tinha que ter sido escrito na região da Palestina. O terceiro critério dizia respeito à época, tinha que ter sido escrito antes das reformas empreendidas por Esdras e Neemias, que deram origem ao judaísmo. O quarto critério dizia respeito à conformidade com a Torá de Moisés. Esse era o principal critério, pois com relação ao cristianismo nascente, servia de base para se refutar muitas das afirmações contidas nos escritos que formariam o Novo Testamento.

O cânon dos livros é diferente na Bíblia Hebraica e na Bíblia Cristã. A primeira está subdividida em três blocos: Torá, Nebi’îm e Ketubîm. A segunda necessita, ainda, de uma distinção. A Bíblia Protestante segue o mesmo cânon da Bíblia Hebraica e, por isso, não possui sete livros: Tobias, Judite, 1-2 Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Baruc. Esses livros e alguns suplementos próprios da versão grega, presentes nos livros de Ester e Daniel, foram reconhecidos como canônicos pela Igreja Católica e, a partir de 1566, passaram a ser denominados deuterocanônicos.

O termo deuterocanônico, aplicado a esses sete livros e suplementos, não é muito adequado, pois, necessariamente, não significa que eles foram inseridos no cânon da Igreja Católica num segundo momento. Designa, porém, aqueles livros sobre os quais o caráter inspirado e canônico tinha sido posto em dúvida por alguns autores cristãos da antiguidade, entre os quais esteve São Jerônimo, tradutor da Bíblia para o latim, denominada Vulgata.

A primeira carta de Paulo aos Tessalonicenses foi o escrito ocasional que inaugurou o conjunto dos escritos que formariam o Novo Testamento. O evangelho segundo Marcos foi, provavelmente, o primeiro do gênero, seguido depois por Lucas, Mateus e, no final do século I dC, por João. Estas atribuições, porém, são posteriores aos próprios escritos e remontam aos Padres da Igreja que foram, por certo, os responsáveis por determinar quais livros fariam parte do cânon cristão.

A canonicidade de um escrito do Novo Testamento pode ser admitida, em linhas gerais, quando o seu conteúdo pode ser identificado com a fé da Igreja primitiva. Ao lado disso, o testemunho, como expressão do tempo que se liga ao evento Jesus Cristo, foi igualmente determinante. Em geral, critérios externos e internos foram formulados para definir quais livros fariam parte do Novo Testamento.

Quanto aos critérios externos, em primeiro lugar, evoca-se a “autoridade dos autores”, muito mais pautada na Tradição do que em evidências históricas. Em segundo lugar, “o tempo privilegiado das origens”, isto é, o período apostólico. Em terceiro lugar, a “ortodoxia da doutrina contida nos escritos”, derivada quer do ensinamento de Jesus Cristo, quer da autoridade transmitida aos apóstolos. Em quarto lugar, “a utilização litúrgica”, pela qual os escritos eram proclamados publicamente numa reunião oficial da Igreja.

Quanto aos critérios internos, evoca-se o reconhecimento da experiência e ação do Espírito Santo na vivência da comunidade que acolhe e elabora, dando forma ao conteúdo oral ou escrito que recebe. O mais importante, é o reconhecimento da Igreja dentro de um processo vivo e aberto, chamado Tradição, que acolhe e toma posse do que foi transmitido através dos autores reconhecidamente inspirados.

O cânon das Escrituras é, para a Igreja de todos os tempos, a verdadeira e própria norma non normata, acontecida e revelada, implicitamente, no período apostólico e elaborado, explicitamente, nas decisões que a Igreja tomou ao longo dos séculos, principalmente através das disposições e afirmações frutos dos Concílios Ecumênicos.

6 Antigas versões

Pelo termo versões se designam as diversas formas em que a Sagrada Escritura foi divulgada ao longo dos séculos, tanto em línguas originais como nas diversas traduções que foram feitas. É possível, então, que várias versões tenham tido origem em uma mesma tradução e que diversas traduções tenham sido realizadas a partir de uma versão. Disso resultam as famílias textuais da Sagrada Escritura.

6.1 A versão aramaica

Os livros sagrados foram escritos em hebraico e assim eram lidos nas assembleias litúrgicas, mas o povo, após o exílio na Babilônia, adotara o aramaico como língua falada e escrita, por ser a língua internacional usada pelos dominadores persas. Desse fato resultou a necessidade dos “tradutores” interpretarem para o aramaico o que fora lido em hebraico. Quando se tratava de um texto da Torá, a tradução era feita a cada versículo. Quando se tratava de um texto profético, a tradução era feita a cada três versículos. É possível dizer que esse procedimento sinagogal foi um real trabalho de tradução simultânea já na antiguidade.

De início, essa tradução foi somente oral, mas a partir do século I a.C. começou a ser feita também por escrito, originando a versão targúmica da Sagrada Escritura. Existem livros em aramaico de quase toda a TaNak, salvo dos livros de Esdras, Neemias e de Daniel. Quando os targumim são comparados com o Texto Massorético, reproduzido no Códice de Leningrado, notam-se algumas diferenças. Essas são explicadas, na maioria das vezes, levando-se em consideração que na base dos targumim estaria um texto hebraico consonantal anterior ao que se tornou normativo a partir de Jâmnia, e porque a tradução em aramaico era livre e de cunho explicativo.

6.2 A versão grega

A partir do século III aC, os judeus da diáspora que passaram a viver em Alexandria, no Egito, preocupados com a transmissão da fé e dos costumes judaicos aos filhos que nasciam em terras dominadas pelo helenismo e incentivados pelo rei Ptolomeu II, começaram um trabalho de tradução, da Torá para o grego, de um texto hebraico consonantal denominado pelos estudiosos de Protomassorético. Uma antiga lenda conta que setenta anciãos judeus de Alexandria foram escolhidos e designados para realizar essa tradução. Disso resultará a denominação Septuaginta para a versão grega da Bíblia Hebraica. Após a tradução da Torá, o trabalho continuou e no final do século I aC todos os livros estavam traduzidos. Outros também surgiram em língua grega, mais tarde, e não foram aceitos pelos judeus de Jâmnia, mas alguns foram adotados pelos cristãos. Dentre esses estão os deuterocanônicos.

A LXX foi fundamental para a expansão do cristianismo fora da Palestina, visto que o hebraico e o aramaico circunscreviam as Sagradas Escrituras somente aos judeus. Graças ao grego, adotado como língua cultural no vasto Império Romano, a campanha missionária cristã, muito favorecida pelo apóstolo Paulo, pode, em primeiro lugar, tornar as Sagradas Escrituras dos judeus conhecidas e, em segundo lugar, favorecer o surgimento dos escritos que comporiam o futuro cânon do Novo Testamento.

6.3 As versões latinas

Não obstante o grego fosse uma língua muito apreciada, o latim também tinha uma força muito grande, principalmente por sua valorização por poetas e escritores como Virgílio, Cícero, Horácio e Ovídio. Com a simpatia do Imperador Constantino pelo cristianismo, pois a sua real conversão, ao que tudo indica, aconteceu pouco antes da sua morte, e a proclamação da religião cristã como oficial de todo o Império Romano pelo imperador Teodósio, houve uma intensa popularização do cristianismo, que ocasionou a tradução da Bíblia para o latim. Várias versões surgiram, mas a mais importante foi a Vetus Latina, que esteve muito em voga no Norte da África, visto que o latim era a língua mais popular. A Vetus Latina foi, provavelmente, a Bíblia de Santo Agostinho.

No século IV dC, São Jerônimo recebeu e acolheu a solicitação do Papa Dâmaso I para que revisse a tradução da Bíblia para o latim, pois havia uma grande circulação de versões discordantes. A obra empreendida por São Jerônimo ficou conhecida como Vulgata, cuja sigla é Vg. Esta tradução, inicialmente, não teve o mesmo impacto da Vetus Latina e somente foi adotada como versão oficial da Igreja Católica Ocidental (Romana) durante o Concílio de Trento (1545-1563). A sua impressão foi patrocinada pelo Papas Sisto V e Clemente VI, razão pela qual passou a ser conhecida como Vulgata sisto-clementina. Duas revisões foram feitas após o Concílio Vaticano II (1963-1965), uma promovida pelo Papa Paulo VI e outra por são João Paulo II, ambas encomendadas aos monges da Abadia de São Jerônimo em Roma, e a nova publicação, levando em conta as pesquisas bíblicas recentes e uma maior aproximação do hebraico, aramaico e grego, passou a se chamar Nova Vulgata.

6.4 Outras versões antigas

Além das traduções gregas e latinas, outras versões, totais ou parciais, surgiram nos primeiros séculos do cristianismo em língua siríaca (peshita), egípcia (copta), armena etc., que ainda estão em uso na liturgia desses ramos do cristianismo ortodoxo.

7 Versões modernas

As versões parciais ou totais da Bíblia multiplicaram-se, nos últimos cinco séculos, em um incontável número de novas “vulgatas”, em línguas germânica e anglo-saxônicas: alemão e inglês; e em línguas neolatinas: italiano, francês, espanhol, português etc. As versões elaboradas por protestantes saíram na frente e somente com o Papa Bento XIV (1757) é que as versões católicas, tendo a Vulgata por texto oficial, começaram a aparecer com mais frequência e sempre sob aprovação da Santa Sé ou, fora da Urbe, sob a constante vigilância dos Bispos. Tanto o antigo Código de Direito Canônico de 1917 (cân.1391), como o novo Código de 1983 (cân.825) regulamentaram as traduções que, sem dúvida alguma, ganharam grandes estímulos no Concílio Vaticano II, na Dei Verbum n.22.

Neste ponto, serão citadas, apenas, as de maior relevância e que tiveram maior impacto. Em alemão, a mais famosa é a versão de Lutero, que foi a primeira a ser traduzida levando em conta as línguas originais. Na verdade, essa versão acabou por se tornar o parâmetro de unificação para a futura língua alemã oficial, visto que eram muitos os dialetos. Lutero não descuidou na sua tradução, buscando sempre a palavra mais adequada, e teve presente tanto a Vulgata como os comentários patrísticos de sua época. Ele usou para o Antigo Testamento a versão latina do texto hebraico feito por Sante Pagnini, que o dividiu em versículos, serviu-se inclusive da ajuda de judeus, e da edição de Erasmo da Septuaginta para o Novo Testamento.

Da parte católica, dentre as várias traduções, duas foram muito apreciadas: a editada por Weitenauer (Augsburg, 1783-1789) e a de Loch – Reischl (1851-1866), a partir da Vulgata, mas munida de um aparato crítico, levando em conta as variantes do hebraico e do grego. Em 1972, para o Novo Testamento, e em 1974, para o Antigo Testamento, surgiu uma edição conjunta da Bíblia, envolvendo os bispos da Alemanha, Áustria, Suíça, Luxemburgo e Lüttich. Em 1980, essa edição sofreu uma revisão.

Em anglo-saxônico, as versões mais conhecidas e difundidas são a King James’ Bible (1604), encomendada pelo rei anglicano James; a Authorized Version (1607-1611); a Standard Version (1881, para o NT, e 1884, parra o AT); a American Standard Version (1900-1901); a Revised Standard Version (1946-1957); a New English Bible (1961-1970), fruto desejado de uma reunião da principais Igrejas protestantes; e a Good News Bible, que foi publicada em 1976, tanto em Londres como em Nova York.

Em italiano, antes do Concílio de Trento, surgiram a Bibbia di Nicolò Malermi e a tradução de Antonio Brucioli, feita a partir das línguas originais. A versão italiana da Vulgata foi obra de Antonio Martini, em 23 volumes. Entre 1923-1958, surgiu uma tradução em italiano, editada por Alberto Vaccari e colaboradores do Pontifício Instituto Bíblico, a partir das línguas originais, com notas de crítica textual e comentário. A partir de 1943, ano da publicação da Encíclica Divino afflante Spiritu, de Pio XIII, surgiram a La Sacra Bibbia, obra organizada por Garofalo e Rinaldi, e um grande número de novas versões com comentários científicos, dentre as quais destaca-se a Nuovissima versione della Bibbia em 46 volumes, que, em 1983, foi reunida em um único volume. Muitas outras poderiam ser citadas, um destaque, porém, vai para a Bibbia di Gerusalemme (1974; 1993), que traz o texto oficial da Conferência Episcopal Italiana, Bibbia CEI (1974), com as notas da Bible de Jérusalem.

Em francês, a primeira versão completa foi a Bible de Sainte Louis IX, do século XIII, traduzida do latim. Em 1535, um primo de Calvino, Olivetano publicou uma tradução a partir dos originais e que serviu de base para futuras versões protestantes até o século XIX. A três versões completas mais importantes foram a Bible de Jérusalem que, inicialmente, surgiu em 43 volumes (1948-1952) e, depois, em um único volume (1956); a Bible de La Pléiade, organizada por Dhorme (1956-1959); e a Sainte Bible, dirigida por Pirot e Clamer (1935-1959). Enfim, a Traduction Oecuménique de la Bible (TOB), fruto da colaboração de católicos e protestantes que apareceu em 1975 e foi revista em 1988.

Em espanhol, houve versões parciais anteriores ao Concílio de Trento, mas por causa da Inquisição espanhola as publicações católicas e a leitura da Bíblia foram proibidas em língua vulgar. Essa situação durou até 1780. Em contrapartida, entre os judeus e os protestantes a história foi diferente e surgiram a Biblia de los Hebreus ou del Ferrara e a Biblia del Oso, que foi a primeira versão completa em espanhol (1567-1569) e foi traduzida diretamente da versão hebraica de Sainte Pagnini e, linguisticamente, supera a Biblia del Ferrara. No século XX, surgem a edição organizada por Nacar–Colunga em Madrid (1944 e revista em 1968); a edição de Bover–Cantera, também em Madrid (1947 e revista em 1962); e a Sagrada Biblia de Cantera–Iglesias, que é uma versão crítica feita a partir das línguas originais (1975). De grande valor literário é a Biblia del Peregrino, em 3 volumes, dirigida por Alonso Schökel (1996).

Na América Latina, a versão católica mais difundida é a La Biblia Latinoamericana conhecida também por La Biblia de Nuestro Pueblo ou La Nueva BibliaEdición Pastoral para Latinoamérica, que foi feita no Chile a partir das línguas originais. Foi obra de Bernardo Hurault, publicada na Espanha em 1972, por motivos econômicos, pela Editorial Verbo Divino. Em 2004, uma nova edição revisada foi publicada em conjunto pela San Pablo e Editorial Verbo Divino. Desde a segunda metade do século passado, houve também grande circulação da Bíblia de Jerusalém em espanhol. A entrada da Bíblia na América Latina de língua espanhola deve-se, porém, à Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira que fez chegar os primeiros exemplares na Argentina e no Uruguai em 1806.

Em português, houve, desde antes do Concílio de Trento, várias iniciativas de tradução da Bíblia, mas nunca chegaram a uma edição completa em Portugal. João Ferreira de Almeida foi o primeiro a traduzir a Bíblia para a língua portuguesa, e o fez a partir das línguas originais, começando pelo Novo Testamento e usando o Textus Receptus. Almeida não conseguiu traduzir todo o Antigo Testamento. Em 1691, ano de sua morte, tinha conseguido chegar até Ez 48,12. A tradução foi completada por Jacobus van den Akker em 1694. Em tom comparativo, pode-se dizer: o que a tradução de Lutero foi para o alemão, a tradução de João Ferreira representou para o português. Nos últimos trinta anos, a tradução do Almeida, como é mais conhecida, recebeu várias revisões, dando origem a novas edições: Almeida Corrigida Fiel; Almeida Revista e Atualizada; Almeida Revista e Corrigida.

Além da tradução do Almeida, a tradução do padre Antônio Pereira de Figueiredo também obteve grande aceitação. Entre 1778-1781 publicou, em 6 volumes, o Novo Testamento. Entre 1782-1790, em 17 volumes, publicou o Antigo Testamento. Em 1819, foi publicada uma versão em 7 volumes, e em um único volume em 1821.

No Brasil, a primeira tradução completa da Bíblia, erudita nas suas características e bem literal a partir das línguas originais, surgiu em 1917; contou não somente com a participação de teólogos, mas com a revisão linguística e literária de Ruy Barbosa. Entre 1950 e 1990, a Editora Paulinas publicou a versão do padre português Mattos Soares que traduziu diretamente da Vulgata, na década de 1930. Em 1976, surgiu, baseada na versão francesa, a edição da Bíblia de Jerusalém pela Editora Paulinas, que contou com a participação de muitos especialistas. Em 2002, já pela Paulus, surgiu a nova edição da Bíblia de Jerusalém, revista e ampliada. A Bíblia Sagrada editada pelas Vozes, e sob a coordenação geral de Ludovico Garmus, contou com vários biblistas e foi publicada, a partir das línguas originais, em 1982. Neste mesmo ano, também foi publicada uma Bíblia Sagrada pela Editora Santuário e, no ano seguinte, a Bíblia Mensagem de Deus, publicada pela Loyola. Em 1990, sob a coordenação de Ivo Storniolo, foi publicada a Bíblia Sagrada Edição Pastoral, visando mais aos leigos e que acaba de ser reeditada (2014): Nova Bíblia Pastoral. Enfim, para comemorar o jubileu de ouro da CNBB, em 2001 foi publicada a Bíblia CNBB; está em andamento a sua revisão.

8 Objeções à Bíblia e Ciências Humanas

A Bíblia recebe o maior número de objeções dos meios científicos ligados à História, à Arqueologia e às Ciências Naturais. A juventude, por ter maior acesso aos estudos, é a mais influenciada e disposta a erguer bandeiras, quando se depara com docentes capazes de apresentar critérios e argumentos que, à primeira vista, parecem irrefutáveis.

Não raro, escutam-se questionamentos, posicionamentos e comentários oriundos tanto dos meios acadêmicos, quanto também dos populares, do tipo: “A Bíblia não é uma fonte confiável de história e para a história”, inúmeros estudos derivados da Arqueologia e da História comparada das religiões comprovam isso; ou “A Bíblia não diz a verdade, porque as Ciências Naturais contradizem as suas afirmações, principalmente quanto à origem e à evolução do universo e das formas de vida, em particular a humana, sobre o planeta terra”. A discussão, então, passa a oscilar entre mito e verdade.

Na base das afirmações estão, sem dúvida, certezas de ordem científica, mas também estão preconceitos ou falta de informação sobre a natureza da Bíblia. Some-se a isso a dicotomia que permeia muitos espaços humanos colocando em conflito a fé e a razão. Por um lado, se encontram os defensores fideístas e fundamentalistas das verdades bíblicas, que ignoram os postulados da Ciência. Por outro lado, se encontram os defensores das posições racionalistas, iluministas e positivistas, que ignoram os vários sentidos contidos nos textos bíblicos. Para esses, a única verdade que existe e deve ser aceita é a verificada, que deriva da comprovação científica com base na repetição das experiências. Em muitos casos, os dois grupos se “excomungam” reciprocamente.

Diante desse impasse, então, é importante que se faça uma distinção quanto à natureza dos textos bíblicos e os objetos de estudo das ciências. Assim, é possível conceder, em parte, a razão para ambos os lados, desde que haja o mútuo interesse em se buscar uma posição equilibrada e capaz de gerar diálogos profícuos, nos quais são respeitadas as competências. Para que isso aconteça de maneira oportuna e eficaz, faz-se igualmente necessário que as verdades bíblicas e as verdades científicas não sejam colocadas no mesmo nível e sobre os mesmos patamares.

Se o horizonte da Ciência é o desconhecido e o ainda não solucionado – por exemplo, quanto à formação da matéria e a compreensão da antimatéria do universo, por certo, em expansão – o horizonte da Bíblia é o ser humano direcionado para a harmonia do seu ser e da busca da felicidade. Quando os dois horizontes se alinham e não se ofuscam, como em um eclipse, são superadas as incertezas e iluminadas obscuridades da história do saber humano, e projeta-se luz sobre as realidades inacessíveis à razão.

A fim de facilitar esse diálogo, já desde o século XIX os estudiosos da Bíblia viram a necessidade de se aplicar aos textos metodologias e abordagens científicas, para alcançar resultados mais convincentes quanto à teologia e à mensagem neles contidas. O principal foi o Método Histórico-Crítico, de índole diacrônica, que foi assumido dos círculos filosóficos preocupados em estabelecer os textos originais dos filósofos da antiguidade. Esse método reúne uma série de procedimentos literários, com a pretensão de alcançar a gênese e os processos históricos existentes por detrás dos textos.

Nos últimos anos, apesar de muitos frutos obtidos, essa metodologia recebeu fortes críticas, porque sozinha não consegue dar conta de toda a problemática e riqueza encerradas nos textos bíblicos. Ao lado dessa constatação, os resultados obtidos são, em muitos casos, até contraditórios, colocando as verdades encontradas como alvo de relevantes questionamentos. Isso fez surgir, no mundo exegético-teológico, novas abordagens e metodologias, não menos rigorosas e de índole mais sincrônica, bem mais preocupadas e focadas na Bíblia como literatura, mostrando que seus autores e suas reflexões estavam plenamente inseridos no contexto do Antigo Oriente Próximo.

Leonardo Agostini Fernandes, PUC-Rio, Brasil. Texto original português.

9 Referências bibliográficas

ALONSO SCHÖKEL, L. A Palavra Inspirada. A Bíblia à luz da ciência da linguagem. São Paulo: Loyola, 1992.

APARICIO VALLS, M. C.; PIÉ-NINOT, S. (org.). Commento alla Verbum Domini. Roma: Gregorian & Biblical Press, 2012.

APARICIO VALLS, M. C. Inspirazione. Assisi: Cittadella Editrice, 2014.

ARTOLA, A. M.; SÁNCHEZ CARO, J. M. Bíblia e Palavra de Deus. v.2. São Paulo: Ave Maria, 1996.

BENTO XVI. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini. Sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2010.

BOSCOLO, G. La Biblia en la Historia. Introducción general a la Sagrada Escritura. Bogotá: Javeriana/San Pablo, 2012.

BUZZETTI, C.; CIMOSA, M. Bibbia – Parola Scritta e Spirito, Sempre. Inspirazione delle Sacre Scriture. Roma: LAS, 2004.

COLLINS, R. F. Ispirazione. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (org.). Nuovo Grande Commentario Biblico [F. Dalla Vecchia; G. Segalla; M. Vironda (org. Edizione italiana)]. Brescia: Queriniana, 1997. p. 1341-54.

CONGREGAZIONE PER LA DOTTRINA DELLA FEDE. L’interpretazione della Bibbia nella Chiesa. Atti del Simposio. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 1999.

DENZINGER, H.; HÜNERMANN, P. El Magisterio de la Iglesia. Enchiridion Symbolorum Definitionum et Declarationum de Rebus Fidei et Morum. Barcelona: Herder, 1999.

DUBOVSKÝ, P.; SONNET, J.-P. (orgs). Ogni Scrittura è ispirata: nuove prospettive sull’ispirazione biblica. Roma: Gregorian & Biblical Press; Milano: San Paolo, 2013.

ENCHIRIDION BIBLICUM. Bologna: EDB, 1993.

FABRIS, R. (org.). La Bibbia nell’Epoca Moderna e Contemporanea. Bologna: EDB, 1992.

FABRIS, R. et al. Introduzione Generale alla Bibbia. v.1. Leumann: ELLE DI CI, 1994.

FERNANDES, L. A. A Bíblia e a sua Mensagem. Introdução à leitura e ao estudo da Bíblia. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Reflexão, 2010.

FERRARI, P. L. La Dei Verbum. Brescia: Queriniana, 2005.

FISICHELLA, R. Inspiração. In: LATOURELLE, R.; FISICHELLA, R. (org.). Dicionário de Teologia Fundamental. Petrópolis: Vozes; Aparecida: Santuário, 1994. p.483-86.

GONZÁLEZ ECHEGARAY, J. et al. A Bíblia e seu contexto. v.1. São Paulo: Ave Maria, 1994.

LOPPES, G. Dei Verbum. Testo e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012.

JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Fides et Ratio. Sobre as relações entre Fé e Razão. São Paulo: Paulus, 1998.

KONINGS, J. A Bíblia, sua origem e sua leitura. Petrópolis: Vozes, 2011.

KUCKELKORN, E. A. Repensar la Inspiración Bíblica. Algunas observaciones y reflexiones. Theologica Xaveriana. v.62, n.174, p. 289-317. 2012.

MARTINI, C. M. La Parola di Dio alle origini della Chiesa. Roma: Gregoriana, 1980.

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. Inspiração e Verdade da Sagrada Escritura. A Palavra que vem de Deus e fala de Deus para a Salvação do Mundo. São Paulo: Paulinas, 2014.

VAZ, A. S. Depois das antigas traduções da Bíblia. In: Didaskalia. v.XLIV, p.57-103. 2014.

VV.AA. Dei Verbum: La Bibbia nella Chiesa. In: Parola, Spirito e Vita. n.58. 2008.

Antigo Testamento

Sumário

1 Panorama histórico-literário

2 Panorama teológico-literário

2.1 Muitas teologias no AT

2.2 Dois Antigos Testamentos

2.3 Atual divisão dos livros do AT

3 Torah ou Pentateuco

4 Livros históricos

4.1 Obra Histórica Deuteronomista e o livro de Rute

4.2  Obra Histórica do Cronista

4.3 Novelas edificantes e livros de aventura

5 Livros sapienciais e livros poéticos

6 Livros proféticos

6.1 Profetas não escritores e profetas escritores

6.2 Profetas maiores e profetas menores

6.3 A mensagem dos profetas

7 Antigo Testamento e Palavra de Deus

8 Referências bibliográfica

1 Panorama histórico-literário

Deus se revela na história, não somente por palavras, mas também e principalmente pelos fatos. Por isso, o discurso de Deus é:

a) situado e encarnado em um tempo e em uma sociedade, uma linguagem e uma cultura.

b) progressivo, isto é, espalhado no tempo, até encontrar a sua plenitude em Cristo.

c) mantém estritamente unidas história e Palavra, de modo que a Palavra de Deus faz a história, dirigindo-a e interpretando-a.

O Antigo Testamento levou aproximadamente mil anos para ser escrito. A cada nova situação histórica, os fatos do passado e do presente são relidos, reinterpretados, recontados. Por isso, é necessário pontuar alguns acontecimentos importantes e, neste arco de tempo, situar o processo de formação dos livros bíblicos. Nesta linha do tempo, todas as datas são anteriores à era cristã ou comum (isto é, aC):

  • 1000-931: Império davídico-salomônico
  • 931: morte de Salomão
  • Separação dos dois reinos irmãos e início de uma história paralela: Norte (Israel ou Efraim) e Sul (Judá)
  • 883: ressurgimento da Assíria como grande potência militar
  • 722 (ou 721): invasão Assíria e destruição do Reino do Norte (Israel/Efraim)
  • 722/721-586: história do único reino independente, o Sul (Judá)
  • Gradual enfraquecimento da Assíria e ressurgimento da Babilônia
  • 640-609: reinado de Josias (reforma política e religiosa)
  • 597: primeira deportação para a Babilônia
  • 586: invasão de Jerusalém pelos babilônicos, destruição do Templo, segunda grande deportação para a Babilônia e início do período chamado de “exílio”
  • 586-537: exílio na Babilônia
  • 555: início da campanha de Ciro, rei dos medos e dos persas
  • 539: entrada vitoriosa de Ciro na Babilônia
  • 538: edito de Ciro, autorizando os judeus deportados a retornarem a Jerusalém
  • 537: início do período da reconstrução de Jerusalém e do Templo
  • 333: Alexandre o Grande conquista o Antigo Oriente Próximo (Oriente Médio)
  • 323: morte de Alexandre o Grande na Babilônia; divisão do seu império entre os diádocos
  • 167-164: Antíoco IV Epífanes inicia um processo de helenização obrigatória
  • Revolta dos Macabeus: guerra, perseguição e mártires
  • 63: Roma conquista o Oriente Médio
  • 40-4: Reinado de Herodes o Grande
  • 6 (aC!): Nascimento de Jesus

De todas essas datas, a que tem maior impacto na história e na literatura do AT é o ano de 586, que marca o início do período do exílio.

Em termos de história civil e política, o exílio marca o fim da monarquia e da independência. Não só isso. Também a religião é afetada e, por conseguinte, os textos que formarão a Sagrada Escritura.

A cada novo importante acontecimento, há uma nova etapa na história de Israel/Judá. Os fatos do passado são recontados e explicados à luz da nova situação social, histórica e política, para dar sentido ao presente e abrir a esperança do futuro.

Desde os tempos do império davídico-salomônico até os tempos da reconstrução pós-exílica (períodos assírio, babilônico e persa), surgem e são amalgamadas diversas tradições orais e escritas. O resultado é a obra historiográfica-legislativa do Pentateuco (também chamado de Torá), um relato mais ou menos linear das origens (criação, queda, dilúvio), dos patriarcas (Abraão, Isaac, Jacó/Israel, José e seus irmãos), do êxodo e da travessia do deserto.

Outra tradição historiográfica assume a tarefa de narrar os eventos desde a conquista de Canaã até o exílio, passando pelo período dos juízes, da monarquia unida e dos reinos divididos.

Com a consolidação da monarquia, consolida-se também o profetismo, que perdura até os anos da reconstrução e talvez além. Nem todos os profetas são conhecidos por seu nome, nem todos escreveram. Não obstante, muito da mensagem desses mensageiros divinos foi conservada, graças a uma intensa atividade literária, empreendida por eles mesmos ou por seus discípulos.

As mudanças históricas e políticas, tanto na sociedade de Judá como no cenário internacional, levam ao gradativo desaparecimento da profecia, deixando espaço para dois outros movimentos literário-religiosos de extrema importância e vitalidade: a tradição apocalíptica e a tradição sapiencial.

A apocalíptica impregna já alguns dos livros proféticos canônicos. Mas sua principal produção literária não pertence ao cânon bíblico. Diferentemente, a tradição sapiencial foi amplamente acolhida no cânon, com escritos que refletem sobre o sentido da existência humana.

Os escritos de diversas tradições poéticas também foram assumidos no cânon do AT. Igualmente tradições historiográficas de menor envergadura, que produziram novelas edificantes e livros de aventura, todos refletindo os desafios que as circunstâncias sociais e históricas impunham às comunidades do povo de Deus, não só em Jerusalém, mas também fora da Judeia/Palestina.

 2 Panorama teológico-literário

 2.1 Muitas teologias no AT

Cada um dos livros que temos hoje levou muito tempo para chegar à sua forma atual e, na maioria dos casos, não foi obra de uma única pessoa. Por isso, é necessário falar não de teologia, e sim de teologias do Antigo Testamento: a teologia da chamada escola deuteronomista é diferente da teologia de um grupo normalmente chamado de javista; a teologia de Jó é totalmente diferente da teologia de Sirácida (Eclesiástico).

2.2 Dois Antigos Testamentos

Um conjunto de livros que formam o que normalmente chamamos de Antigo Testamento já estava completo antes do ano 200 aC Por ter sido escrito em hebraico (uma mínima parte em aramaico) é chamado de Bíblia Hebraica e tem três divisões: Torah (Lei), Nebi’îm (Profetas), Ketubîm (Escritos). É comumente chamado de TaNaK (palavra formada pela primeira letra do título de cada parte).

Em torno do ano 180 aC, foi feita a tradução da Bíblia Hebraica para o grego. Mas essa não foi somente uma tradução: houve também adaptações e acréscimos, tanto de partes como de livros inteiros. A tradução grega é conhecida como Setenta ou Septuaginta e indicada pelas letras LXX (setenta em algarismos romanos).

Entre a Bíblia Hebraica e a LXX, portanto, há várias diferenças além da língua: ambiente histórico, social, político, geográfico; adaptações e acréscimos; livros novos na LXX (nem todos no cânon de nossas Bíblias); agrupamento e ordem dos livros.

As bíblias católicas se diferenciam das bíblias protestantes/evangélicas porque, além dos livros da Bíblia Hebraica, incluem também alguns dos livros novos que foram acrescentados na LXX. São eles: Baruc, Eclesiástico (Sirácida), Sabedoria, Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus. Também os livros de Daniel e Ester receberam acréscimos, presentes nas bíblias católicas, mas não nas bíblias protestantes/evangélicas.

Cumpre enfim lembrar que a LXX contém ainda uma série de livros que não foram assumidos pelo cânon cristão católico: 3 e 4 Macabeus, Odes, Salmos de Salomão e 4 Esdras.

2.3 Atual divisão dos livros do AT

Nas edições cristãs da Bíblia, a ordem e o agrupamento dos livros não seguem exatamente a Bíblia Hebraica nem a LXX. Antes, os livros foram agrupados e sequenciados conforme vários critérios, tais como a importância do livro ou do bloco de livros e a cronologia dos eventos narrados. Nessas Bíblias é possível distinguir os seguintes grupos:

  • Torá (= Lei) ou Pentateuco
  • Livros históricos
  • Livros sapienciais e livros poéticos
  • Livros proféticos

3 Torá ou Pentateuco

Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio formam um complexo narrativo-legislativo. Sob o aspecto narrativo, relata-se uma história linear: as origens do mundo e da humanidade (Gn 1-11), a história dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó (Gn 12-36), a história de José (Gn 37-50), o êxodo do Egito (Ex 1-15), a Aliança no Sinai e a travessia do deserto (Ex 16-Nm 21), acampamento em Moab e últimos eventos antes de entrar na Terra Prometida (Nm 22-Dt 34).

Sob o aspecto legislativo, os cinco primeiros livros da Bíblia contêm um amplo conjunto de códigos legislativos, inseridos na narrativa linear anteriormente descrita. Destacam-se: o Decálogo (Ex 20,2-17, reelaborado em Dt 5,6-21); o Código da Aliança (Ex 20,22-23,19); a Lei de Santidade (Lv 17-26) e o Código Deuteronômico (Dt 12-26).

Este complexo narrativo-legislativo foi longamente amadurecido e composto com materiais provenientes de vários grupos, ideologias e épocas. Desde o século XVIII surgiram várias opiniões acerca da formação do atual Pentateuco, mas foi a teoria documentária de Julius Wellhausen a que se impôs desde a metade do século XIX. Segundo essa teoria, o texto atual do Pentateuco é o resultado da fusão de quatro fontes em um conjunto mais ou menos harmonioso. Essas quatro fontes são:

Javista (J): desde Gn 2,4 chama Deus de “Javé”. O local sem dúvida é Jerusalém (Reino do Sul), mas a datação é discutível: no século X aC, durante o reinado de Salomão, ou no século VII aC, sob Josias? Ou ainda no século VI aC, mais próximo do final da monarquia?

– Eloísta (E): chama Deus de “Javé” somente após Ex 3,14. Antes disso, Deus é chamado de “Elohim”. Entre os séculos IX e VIII aC, no Reino do Norte.

Sacerdotal (P, do alemão, Priestercodex): preocupa-se principalmente com aspectos rituais. Durante o exílio na Babilônia (587-537 aC) e pouco depois.

Deuteronomista (D): compôs o livro do Deuteronômio como introdução à obra historiográfica que vem a seguir (Obra Histórica Deuteronomista). Vários estratos redacionais, refletindo os diferentes momentos da história de Israel (período assírio, período babilônico, exílio, período persa).

Cada uma dessas fontes reflete um período histórico e uma ideologia religiosa. Nenhuma delas tem a intenção de escrever um relato jornalístico, e sim uma história teológica (catequética), desde as origens até as vésperas da entrada na Terra Prometida.

Não obstante críticas, revisões e correções, a teoria documentária de Wellhausen continuou soberana até a década de 1970, quando seus pressupostos básicos foram fortemente questionados. Desde então, buscaram-se outras explicações para a composição do Pentateuco. Três foram as tendências dessas novas explicações:

a) Rejeitar sumariamente a leitura diacrônica (método histórico-crítico) e, tendo como base teorias literárias recentes, assumir unicamente a leitura sincrônica.

b) Assumir uma datação recente dos textos do Pentateuco e, deste modo, eliminar as fontes mais antigas da teoria documentária, isto é, a Javista e a Eloísta.

c) Substituir o modelo de documentos pelo de redações ou reelaborações sucessivas, o que leva a vários modelos, muitas vezes fragmentados.

Não raro, retorna-se, de um modo ou de outro, às intuições de Wellhausen, ainda que apenas conceitualmente. Fala-se, por exemplo, de um Proto-Pentateuco pré-sacerdotal, de um sacerdotal básico, de um Deuteronômio deuteronomista, de releituras pós-deuteronomistas e pós-sacerdotais. Na trilha das leituras sincrônicas, fala-se de “Hexateuco” (de Gn a Js, isto é, da criação à conquista da Terra), bem como de um “Eneateuco” (de Gn a 2Rs, isto é, da criação à perda da Terra).

Esta multiplicidade de opiniões demonstra a complexidade da questão sobre a formação do Pentateuco e quão longe estamos de um novo consenso acerca de uma explicação que, como a teoria documentária clássica de Wellhausen, constitua um paradigma que se imponha por sua solidez e aplicabilidade.

4 Livros históricos

O termo “históricos” deveria vir entre aspas, uma vez que o conceito que os autores bíblicos tinham de obra historiográfica é muito diferente do que temos hoje.

4.1 Obra Histórica Deuteronomista e o livro de Rute

Josué, Juízes, 1-2 Samuel e 1-2 Reis narram de modo linear uma história complexa e cheia de reviravoltas: da conquista da Terra Prometida à perda dessa mesma terra. Na Bíblia Hebraica esses livros são chamados de “Profetas Anteriores”. Trata-se de uma obra historiográfica – a Obra Histórica Deuteronomista (OHD) – que recolhe material de outros escritos (normalmente, registros da corte) e também material inédito.

Normalmente fala-se de várias camadas redacionais, amalgamadas durante duzentos anos aproximadamente (entre 650 e 450 aC). A autoria é atribuída à chamada escola deuteronomista ou simplesmente o deuteronomista. Esse nome justifica-se pelo fato do livro do Deuteronômio funcionar como o portal de entrada para a história narrada a seguir e também oferecer os critérios para julgá-la.

O período da história de Israel coberto pela OHD começa com a confederação de tribos (Josué), passa pela conquista da terra (Juízes) e pela monarquia unida (Samuel), e culmina com a separação dos reinos e a destruição de cada um deles (Reis). É um relato sob o ponto de vista religioso e tem a finalidade de mostrar que a história vai se deteriorando sempre mais, até chegar ao limite da infidelidade, não deixando alternativa a Yhwh, exceto mandar a catástrofe para punir seu povo e, deste modo, purificá-lo. Assim, a OHD quer não só explicar por que Yhwh puniu seu povo com o exílio, mas também apontar os caminhos para superar a crise e reconstruir a comunidade, desta vez mais fiel à Aliança.

Assim progride a história na OHD:

  • Deuteronômio: a sociedade ideal, conforme a Lei de Yhwh.
  • Josué: o povo fiel, cumpridor da Aliança e da Lei.
  • Juízes: fidelidade e infidelidade se alternam, num ciclo contínuo: pecado, castigo, arrependimento, libertação
  • 1-2 Samuel e 1-2 Reis: infidelidade institucionalizada; o primeiro a ser infiel é o rei.

As edições cristãs da Bíblia seguem a LXX e inserem o livro de Rute entre Juízes e Samuel. Rute[1] é a bisavó do rei Davi e, para preparar a entrada em cena desse grande rei de Israel, a novela que narra a edificante história de Rute é inserida antes do livro que narra a passagem do período dos juízes para o período da monarquia.

4.2  Obra Histórica do Cronista

Um conjunto de quatro livros é atribuído a um autor normalmente denominado cronista, uma vez que os dois primeiros livros de sua obra recebem o nome de “Crônicas”. Esses dois escritos recontam o que fora narrado nos livros da Torá e dos Profetas Anteriores (Obra Histórica Deuteronomista) à luz da nova situação vivida pela comunidade judaíta no período do Segundo Templo. Essa releitura da Lei e dos Profetas Anteriores termina com o decreto de Ciro autorizando a volta para Jerusalém dos judeus deportados da Babilônia. Uma versão ligeiramente modificada desse mesmo decreto inicia o livro de Esdras, deixando a entender que todo o relato de Crônicas funciona como um resumo que prepara os dois livros seguintes, Esdras e Neemias, que narram as várias etapas da repatriação, da reconstrução dos muros e do templo de Jerusalém, da restauração do culto e da reorganização da comunidade.

4.3 Novelas edificantes e livros de aventura

Completando a série de livros narrativos do Antigo Testamento, as edições cristãs da Bíblia apresentam livros que preenchem o período de tempo que cobre a dominação persa, a dominação greco-helenista e os prenúncios da dominação romana.

O livro de Ester chegou a nós em duas versões – hebraica (mais curta) e grega (mais longa) – e narra a história de uma judia deportada que, como um “José feminino” chega ao poder na Pérsia e sua ação é decisiva para salvar seu povo.

As bíblias católicas acrescentam também livros escritos em grego: Tobias, Judite e 1-2 Macabeus.

Tobias é uma narrativa popular, uma novela edificante que conta as peripécias de um judeu fiel em meio a dificuldades e perigos a serem enfrentados em terra pagã. Graças a sua retidão ética, o protagonista – Tobias – experimenta a ação salvadora da providência divina.

Judite é também uma novela popular, mas do tipo heroico: uma comunidade judaica perseguida esmorece e perde a esperança. Surge então uma viúva, Judite (“a judia” por excelência), que, fortalecida por sua fé, arrisca a própria vida e salva seu povo. Como uma Ester da periferia e armada com a espada, Judite encarna a confiança nas promessas de Deus e derrota o inimigo poderoso e ambicioso.

Ester, Tobias e Judite são, pois, narrativas exemplares por meio das quais o judaísmo transmite suas convicções acerca da identidade do povo judeu, do comportamento a ser assumido em meio às crises e da fidelidade diante do impacto causado pelo helenismo.

Nessa mesma linha de aguerrida fidelidade, apresentam-se os dois livros canônicos dos Macabeus, com narrativas de episódios ambientados no período da helenização forçada empreendida por Antíoco IV Epífanes (175-164 aC).

O primeiro livro é um relato de heróis: uma família de judeus piedosos se recusa a aceitar a imposição religiosa e deflagra uma guerra contra os dominadores helenistas e a aristocracia judaica que havia aderido ao imperialismo cultural e religioso.

O segundo livro (provavelmente anterior ao primeiro) é mais religioso, reflete o sentimento dos judeus piedosos e descreve os testemunhos da fé dos que, mesmo diante da guerra, da perseguição e da morte, não renegam a religião judaica. O livro traz cenas de martírio e também de ferozes batalhas. 2 Macabeus elabora uma teologia da história e também uma explícita profissão de fé na imortalidade e na ressurreição dos justos.

5 Livros sapienciais e livros poéticos

Os livros sapienciais propriamente ditos são cinco: Provérbios, Jó, Qohélet (Eclesiastes), Sirácida (Eclesiástico) e Sabedoria. Cântico dos Cânticos e Salmos são livros poéticos.

A busca da sabedoria e do sentido da vida não foi um fenômeno exclusivo do povo bíblico nem por ele iniciado. Antes, trata-se de uma indagação comum, presente também nas culturas vizinhas (Egito, Mesopotâmia, Ugarit). A palavra sabedoria abrange não só os conhecimentos científicos, mas também e principalmente a capacidade de encontrar as soluções adequadas para todo tipo de problema: agricultura, economia, relacionamentos sociais, família etc.

Os livros sapienciais bíblicos podem ser lidos e interpretados sob o pano de fundo da chamada teologia da retribuição. Trata-se de uma doutrina que pode ser assim esquematizada:

  • justo = sábio = abençoado (rico, saudável, feliz)
  • injusto = insensato = amaldiçoado (pobre, doente, infeliz)

Em outras palavras, “aqui se faz, aqui se paga”!

Todavia, os autores bíblicos não são unânimes sobre a validade desta crença. À pergunta “a teologia da retribuição funciona?”, eis as respostas encontradas nos livros sapienciais bíblicos:

  • Provérbios e Sirácida: “Sim, funciona! E a vida humana tem sentido.”
  • Jó e Qohélet: “Não, não funciona! E a vida humana é sem sentido.”
  • Sabedoria: “Funciona, mas só na vida após a morte! E o sentido da vida humana está na felicidade extraterrena.”

Nas edições cristãs da Bíblia, entre os livros sapienciais estão inseridos dois livros poéticos: Salmos e Cântico dos Cânticos.

Na Bíblia Hebraica, o livro dos Salmos é denominado Tehillim, isto é, louvores. O título “salmos” vem da LXX, que o denomina Psálmoi, isto é, cantos para serem executados ao som de um instrumento de corda, que em grego se diz psaltérion. Esse último termo grego passou a designar o livro todo, como uma coleção de hinos, louvores, cantos. Na verdade, porém, o livro é uma coleção de coleções: 150 peças literárias de vários tamanhos, estilos e gêneros (súplicas, lamentações, poesias doutrinais, hinos e louvores).

O Cântico dos Cânticos é também uma coletânea de poesias ou cantos de amor, nos quais se concentram as várias faces do desejo e da paixão: a descrição da pessoa amada, a saudade, o anseio, o prazer etc. O Cântico elabora uma teologia do amor humano: mais do que um sentimento, o amor é uma realidade intrinsecamente boa e que justifica a si mesma, que é fim em si mesma. Isso, porque o amor humano inspira-se no amor divino e é parábola dele, pois revela como Deus nos ama: com paixão, ansiedade, alegria, prazer, fúria.

6 Livros proféticos

A palavra profeta vem do grego pro-fetés e significa “alguém que fala no lugar de outro”, o porta-voz. Nesse sentido, vários personagens são eventualmente chamados de profetas ao longo da Bíblia: Abraão, Moisés, Davi. Todavia, o termo é mais propriamente aplicado a homens e mulheres que assumem o papel de mediadores entre Deus e a raça humana.

O fenômeno da profecia não é exclusivo de Israel. No mundo antigo, tal como hoje, é facilmente confundido com a capacidade de enxergar o futuro e prever os acontecimentos. Mas esta não é a única nem a principal atividade profética. A nomenclatura na Bíblia Hebraica é fluida e deixa entrever uma evolução no conceito do que significa agir como mediador: vidente, visionário, homem de Deus, profeta. Mais ainda, assinala também uma evolução dos meios de comunicação: visões; êxtase, possessão e transe; palavras e oráculos.

Os profetas bíblicos, portanto, não devem ser confundidos com adivinhadores do futuro. Eles não enxergam o futuro, mas sim o presente: observando as estruturas sociais e o comportamento individual das pessoas, o profeta emite um juízo, se aquela sociedade/pessoa caminha de acordo com a Lei de Yhwh ou não. Em caso afirmativo, aquela sociedade/pessoa pode ter esperança; em caso negativo, o que se antevê é a catástrofe.

6.1 Profetas não escritores e profetas escritores

Em termos literários, os profetas podem ser divididos em dois grupos: os profetas não escritores e os profetas escritores ou clássicos.

Como o próprio nome diz, o termo profetas não escritores designa os profetas aos quais não foram atribuídos livros na Bíblia. Há uma longa lista de profetas não escritores, cuja atividade está principalmente descrita nos livros de Samuel e Reis. Os mais importantes são Elias e Eliseu; mas há também: Natã, Gad, Aías de Silo, Miqueias ben Yemla, Hulda (mulher) e vários outros. E, é claro, o próprio Samuel é qualificado como “último juiz e primeiro profeta”.

Os profetas escritores (ou profetas clássicos) constituem o grupo mais famoso; todavia, não formam o grupo mais numeroso. Na Bíblia Hebraica, são apenas quinze livros proféticos: os três maiores (Isaías, Jeremias, Ezequiel) e os doze menores (Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias). As edições cristãs, todavia, seguem o arranjo da Bíblia Grega (LXX): após Jeremias, acrescentam-se os livros de Lamentações e de Baruc; após Ezequiel, o livro de Daniel, com os acréscimos gregos.

6.2 Profetas maiores e profetas menores

A qualificação “maiores” e “menores” não é devida à importância nem ao período de atuação desses profetas. É motivada única e exclusivamente pelo tamanho dos livros e, por isso, deveria ser rejeitada. Em lugar de “profetas menores”, o mais correto é falar de “o livro dos Doze Profetas”.

Ficaram fora da lista acima: Baruc e Daniel. Baruc é um profeta cujo livro encontra-se somente na LXX e que por alguns é identificado com seu xará Baruc, o secretário de Jeremias. Quanto a Daniel, seu livro é um apocalipse e por isso na Bíblia Hebraica está entre os “Escritos”.

Quando se fala de “literatura profética”, é óbvio que se fala de profetas escritores. Mas cada um dos livros proféticos de nossas bíblias possui uma história redacional bastante complexa. Em primeiro lugar, a ordem dos livros não equivale à ordem cronológica que os profetas atuaram: Oseias é posterior a Amós e, no entanto, o livro de Amós está depois dos livros de Oseias e de Joel (cujo período de atividade ainda é causa de polêmica). Segundo, há também questões referentes à autoria dos livros proféticos. Malaquias, por exemplo, é uma palavra que significa “mensageiro de Yhwh”: trata-se de um nome praticamente inventado para atribuir a ele o último livro dos Doze Profetas. E há trechos também em Isaías e em Zacarias (além do próprio Malaquias), cujos verdadeiros autores são anônimos, sem falar em Jonas, que não é o autor, e sim o protagonista do livro que leva seu nome.

6.3 A mensagem dos profetas

No que se refere à mensagem dos profetas, ela está ligada ao período histórico e ao lugar em que exerceram sua atividade. O marco fundamental é o exílio (586-537). Este período de cerca de cinquenta anos divide a história do povo de Deus em um “antes-durante-depois” que reflete nitidamente na mensagem dos profetas, principalmente os profetas de Judá (Reino do Sul).

De modo absolutamente sumário, é possível sintetizar assim a mensagem dos profetas escritores:

  • antes do exílio: “Convertam-se!”
  • durante o exílio: “Coragem!”
  • após o exílio: “Vamos nos unir!”

Cronologicamente, assim é possível situar os profetas escritores:

a) em Israel ou Efraim (Reino do Norte):

  • antes da queda da Samaria (721): Amós (± 780) e Oseias (± 760).

b) em Judá (Reino do Sul):

  • antes do exílio na Babilônia (até 586 aC): Isaías de Jerusalém (740-701); Miqueias (727-701); Sofonias (± 630); Jeremias (627-586); Naum (± 612 ?); Habacuc (± 600) e a primeira parte da pregação de Ezequiel (593-587).
  • durante o exílio na Babilônia (entre 586 e 539): a segunda parte da pregação de Ezequiel (587-571) e o Segundo Isaías (550-539)
  • após o exílio, em Jerusalém, nos primeiros anos da reconstrução (537 em diante): o Terceiro Isaías (538-510), Ageu (±520) e Zacarias 1-8 (±520)

Há também profetas e livros proféticos de datação incerta, alguns provavelmente do período helenista: Malaquias, Zacarias 9-14, Abdias, Joel, Jonas, Baruc e Daniel.

 7 Antigo Testamento e Palavra de Deus

Para os cristãos, Cristo é a plenitude da revelação de Deus; em outras palavras, Cristo é a perfeita manifestação de Deus e nele, portanto, a revelação encontra seu cumprimento. A leitura cristã das Escrituras adotou esquemas substancialmente bíblicos para exprimir a relação entre os dois Testamentos, de modo a afirmar que o Novo termina o que o Antigo tinha começado. Tais esquemas são:

  • continuidade e descontinuidade (novidade);
  • preparação e cumprimento;
  • figura e realidade;
  • promessa e realização.

Todavia, é um grave erro (heresia) afirmar que o Antigo Testamento só tem valor em função do Novo, ou que o Antigo é Palavra de Deus apenas porque é legitimado, completado e corrigido pelo Novo. Não!

O Antigo Testamento vale por si mesmo e é Palavra de Deus tanto quanto o Novo. Em outras palavras, o Antigo Testamento não depende do Novo para ser Palavra de Deus e  não é, em hipótese alguma, substituído pelo Novo. Ao contrário, o Novo se enraíza no Antigo, de tal modo que é necessário conhecer muito do Antigo Testamento para compreender um pouco do Novo!

Cássio Murilo Dias da Silva, PUC RS, Brasil. Texto original português.

8 Referências bibliográficas

GUIJARRO OPORTO, Santiago; SALVADOR GARCÍA, Miguel (eds.). Comentário ao Antigo Testamento. 2v. 3.ed. São Paulo: Ave Maria, 2009.

RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe (orgs.). Antigo Testamento – história, escritura e teologia. São Paulo, Loyola, 2010.

ZENGER, Erich et alii. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003. Bíblica Loyola, 36.

Para saber mais

CARMODY, Timothy R. Como ler a Bíblia. Guia para estudo. São Paulo: Loyola, 2008.

CHARPENTIER, Étienne. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulus, 1986. Entender a Bíblia.

DRANE, John (org). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Loyola – Paulinas, 2009.

HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a Bíblia. 8.ed. São Paulo: Paulus, 1997. Biblioteca de Estudos Bíblicos.

SCHMID, Konrad. História da literatura do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2013. Bíblica Loyola, 65).

[1]    Na Bíblia Hebraica, o livro de Rute pertence ao conjunto de livros denominados “Meguillot”, e está no terceiro bloco de livros, isto é, nos Escritos.

Ética e teologia no Antigo Testamento

Sumário

1 A imagem de Deus

1.1 O Deus da libertação

1.2 O Deus da Aliança

1.3 O Deus da Torá

2 A imagem do ser humano

2.1 A imagem e semelhança

2.2 O apelo a “caminhar com Deus”

2.3 O agir radicado na liberdade

3 Fé e ética

3.1 Duas faces da mesma moeda

3.2 A historicidade da fé

3.3 A secundariedade do culto

4 Grandes vertentes da ética bíblica

4.1 O amor entranhado a Deus

4.2 O cuidado com o próximo

4.3 A recriação da fraternidade

5 Quatro palavras basilares

5.1 Direito – mishpat

5.2 Misericórdia – hesed

5.3 Justiça – sedaqah

5.4 Fidelidade – emet

6 Referências bibliográficas

As entrelinhas do texto bíblico revelam uma indissociável relação entre teologia e ética. A atenção de Deus está voltada para o ser humano e suas ações na história. O ser humano, por sua vez, confronta-se com o projeto de Deus, a ser acolhido ou rejeitado. Acolhida ou rejeição, atos da liberdade humana, significam decidir-se, ou não, por um projeto de vida sintonizado com os anseios divinos para a humanidade. Os atos do homem e da mulher de fé são expressões de comunhão ou de discrepância com o que se reconhece serem as orientações do Criador para as suas criaturas. A longa trajetória do povo de Israel, desembocando nas comunidades cristãs, descreve o percurso da humanidade desejosa de adequar seu caminhar (ética) ao querer do Deus de sua fé (teologia).

A vertente ética faz-se presente em todas as grandes tradições literário-teológicas do Antigo Testamento. Ao se referirem ao diálogo entre Deus e a humanidade, comportam as exigências divinas para o ser humano, inserido na história e desafiado a viver, aí, a fidelidade ao Deus do povo. A Tradição Legal (a Torá), por natureza, reporta-se ao projeto de Deus para seu povo formulado com leis apodíticas e casuísticas, mas, também, como narrações que sugerem modos de proceder. A Tradição Profética, ao denunciar os desvios de conduta da liderança e do povo, aponta para o que Deus espera de Israel. A Tradição Histórica narra as consequências da fidelidade e da infidelidade do povo ao seu Deus e comporta um apelo para a vida virtuosa, pressuposto para a bênção divina. A Tradição Sapiencial confronta o fiel com a exigência de se decidir por Deus – o caminho da vida –, evitando-se a impiedade e a injustiça – o caminho da morte. A oração de Israel, cujo repertório mais significativo encontra-se nos Salmos, aponta para prática da piedade, feita de comunhão com Deus e com o próximo. Assim, qualquer que seja a porta de entrada para a leitura bíblica veterotestamentária, o fiel se defrontará com indicativos éticos incontornáveis. As muitas imagens de Deus, desde o Deus da Criação, passando pelo Deus da Libertação e, também, do Exílio, para desembocar no Deus na Esperança, todas elas, comportam apelos de conduta para o israelita fiel. Confrontar-se com Deus (teologia) significa escutar-lhe as exigências (ética).

1 A imagem de Deus

O linguajar teológico da Bíblia refere-se sempre a Deus na relação com suas criaturas, de modo particular, o ser humano. O diálogo de Deus com o ser humano revela a preocupação divina com a realidade de cada pessoa, sua situação e seu modo de proceder na história. Um dado original da religião de Israel consiste no enraizamento histórico da teologia, com o consequente desdobramento ético.

1.1 O Deus da libertação

O fato fundante da religião bíblica é a libertação dos israelitas da opressão egípcia. Um Deus de índole ética é movido a intervir para arrancar das garras do opressor um povo fadado ao extermínio pela crueldade do faraó. “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa de seus opressores, pois conheço as suas angústias. Por isso desci, a fim de libertá-lo da mão dos egípcios e fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel” (Ex 3,7-8).

Os verbos ver, ouvir, descer, libertar e fazer subir definem o agir ético de Deus e apontam para a conduta esperada do ser humano. Ver e ouvir supõem proximidade e atenção em face ao sofredor. Descer corresponde a se desinstalar com o propósito de agir. Libertar e fazer subir são gestos concretos em favor do oprimido. Constatar a realidade do oprimido sem a consequente ação resulta em comiseração estéril e, por consequência, dispensável. Eis por que Deus toma as providências para a reversão da sorte dos israelitas. Serão tirados da terra da opressão e conduzidos à terra da fraternidade.

A expressão “meu povo” sublinha o afeto divino, no trato com os israelitas. Deus se sente ligado àquele povo insignificante, “o menor dentre os povos” (Dt 7,7), assumindo-o como povo de sua predileção. Israel será o povo de Deus, libertado da escravidão e do risco de ser eliminado. O grande desafio consistirá em se deixar guiar pelo Deus libertador, a quem não agradam a injustiça e a opressão.

1.2 O Deus da Aliança

A libertação foi o gesto salvífico de Deus. Embora sinta os israelitas como “meu povo”, está na dependência de ser acolhido como o Deus do povo. A relação deverá ser selada com um pacto – berit – bilateral, engajando ambas as partes. Os termos do pacto podem ser formulados de dois modos complementares: na perspectiva de Deus, “Eu serei o teu Deus e tu serás o meu povo”; na perspectiva do povo, “Nós seremos teu povo e tu serás nosso Deus” (cf. Jr 31,31-34; Ez 11,20). Cabe aos israelitas a decisão, pois, da parte de Deus, a escolha já está feita: Israel é “meu povo”.

Portanto, a salvação antecedeu a aliança. Deus libertou os israelitas da opressão antes de ser acolhido como o Deus de Israel. Seu gesto de misericórdia foi inteiramente gratuito e independeu dos méritos do povo ou de qualquer obrigação de sua parte, ao tomar as dores de Israel, por ser incapaz de se manter impassível diante do sofrimento dos fracos e pequeninos.

A aliança é uma proposta a ser acolhida ou rejeitada. YHWH não se imporia a Israel, atropelando-lhe a liberdade. Porém, ao aceitá-lo como seu Deus, Israel estaria se comprometendo com um projeto de vida fundado na compaixão e na misericórdia, experimentadas na libertação da escravidão egípcia. A fé resultante da aliança apelaria para relações justas no trato com o semelhante. Esta seria a maneira correta de ser fiel ao pacto selado com Deus. O componente ético da aliança é incontornável.

1.3 O Deus da Torá

O projeto ético de YHWH está codificado no Decálogo (cf. Ex 20,1-17; Dt 5,6-22), no Código da Aliança (cf. Ex 20,22-23,19), no Código Deuteronômico (cf. Dt 12-26) e no Código Sacerdotal (cf. Lv 17-26). Estas formulações, no estilo dos códigos de lei da antiguidade, abrangem todas as áreas de ação da pessoa de fé, sem se limitarem ao culto. Correspondem a uma espécie de código de ética para quem aderiu à aliança com YHWH.

As leis da Torá têm como objetivo regular as relações humanas, para evitar qualquer forma de injustiça ou de detrimento em relação aos mais fracos, cuja dignidade é aviltada pela ação dos prepotentes. Qualquer ato resultante em vitimização dos pobres e dos indefesos terá a reprovação divina e consistirá em afronta ao Deus de Israel. Na direção contrária, tomar partido em favor deles significa agir em sintonia com Deus.

Diferentemente dos códigos legais de outros povos, a Torá bíblica é atribuída a YHWH. Sua origem é divina e, portanto, inquestionável. “Deus pronunciou estas palavras dizendo (…)” (Ex 20,1), “YHWH disse a Moisés (…)” (Ex 20,22), “YHWH falou convosco face a face, do meio do fogo, sobre a Montanha. Eu estava então entre YHWH e vós, para vos anunciar a palavra de YHWH, pois ficastes com medo do fogo e não subistes à montanha. Ele disse (…)” (Dt 5,4-5). “YHWH falou a Moisés e disse: ‘Fala a Aarão, a seus filhos e a todos os israelitas. Tu lhes dirás: Isto é o que ordena YHWH’ (…)” (Lv 17,1-2) são maneiras de atribuir a YHWH o projeto ético pelo qual os israelitas deverão se pautar.

2 A imagem do ser humano

As exigências éticas da Bíblia supõem uma concepção de ser humano, pensado na relação com Deus, donde se desdobrarão as relações com os semelhantes. O trato com o próximo decorre da abertura para o querer divino; o querer divino aponta o modo de proceder adequado no trato com o próximo. Teologia e antropologia, por conseguinte, interpenetram-se, tornando indissociáveis o modo de ser e de proceder do ser humano e o modo de ser e de proceder do Deus libertador.

 2.1 A imagem e semelhança

A decisão divina de criar o ser humano à sua “imagem e semelhança” (Gn 1,26.27) tem um forte componente ético. Diferentemente das demais criaturas, teria como vocação fundamental seguir os passos de Deus na criação, exercendo o domínio sobre as demais criaturas, na condição de continuador da obra divina. Dominar significa responsabilizar-se pelo que saiu das mãos de Deus com o selo da bondade, como declara o refrão repetido no final de cada etapa da obra criadora – “Deus viu que isso era bom!” – para se concluir com a constatação – “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1,31). Por ser imagem e semelhança de Deus, o ser humano deve agir como Deus, no trato com o semelhante e com as demais criaturas.

Elemento fundamental na obra da criação é a igualdade de posição entre homem e mulher. “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou” (Gn 1,27). O componente ético dessa declaração é inegável. Fica, assim, denunciada como contrária ao desejo do Criador toda tentação de sobrepor o homem à mulher, considerando-a inferior. O machismo, erva daninha na história da humanidade, é uma deturpação do querer divino original.

A “imagem e semelhança” apela para a capacidade de o ser humano agir em sintonia com o Criador. Foi depositado em seu coração o que Deus tem de melhor. Bondade, misericórdia e compaixão são características do ser humano, distinguindo-o dos demais seres vivos. Os gestos humanos de bondade, em última análise, expressam a bondade de Deus, presente no íntimo do homem bom. O mesmo se diga das ações misericordiosas, dos atos de cuidado com o semelhante e da compaixão em face aos sofredores. Por este viés, Deus se faz presente na história, como “Deus de ternura e compaixão” (Ex 34,6).

 2.2 O apelo a “caminhar com Deus”

O profeta Miqueias formulou com precisão o apelo que ressoa no coração de cada ser humano. “Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom e o que YHWH exige de ti: nada mais que praticar a justiça, amar a bondade e te sujeitares a caminhar com teu Deus” (Mq 6,8). Essa proposta de vida supõe uma relação inextricável entre o humano e o divino. O caminhar com Deus – o caminho da fé – concretiza-se nos gestos de justiça e de bondade, nas relações interpessoais. Caminhar com Deus significa, por consequência, caminhar com o próximo.

Caminhar é verbo de ação que aponta para a dinâmica da vida humana, sempre em movimento, onde surgem novas possibilidade de ser justo e bondoso. Na medida em que está com Deus, o ser humano, ao se defrontar com o próximo, será apelado a atuar como atuou o Deus apiedado com o Israel sofredor nas mãos do faraó egípcio. A ética bíblica, portanto, supõe o ser humano caminhante, sem se cansar na prática do bem. Parar e cruzar os braços correspondem a bloquear a possibilidade de Deus fazer o bem à humanidade, pela mediação da pessoa de fé.

A presença de Deus na caminhada do fiel tem a força de inspirar-lhe ações conformadas com o projeto divino, na linha do amor misericordioso. A renúncia ao caminhar com Deus tem o efeito de deixar o ser humano largado à própria sorte com o risco de se desviar do bom caminho e enveredar pelas estradas tortuosas do vício e da impiedade. Ter Deus como companheiro de caminhada possibilita-lhe perseverar na prática do bem, embora devendo enfrentar desafios que põem à prova a consistência de sua fé.

 2.3 O agir radicado na liberdade

O tema da liberdade perpassa toda a Bíblia. A imagem e semelhança divina não privam o ser humano de seu elemento identificador, ou seja, a capacidade de se decidir. A decisão mais radical consiste em poder dizer não ao querer divino e seguir os apelos das paixões e dos instintos. O relato da criação atenta para este dado da realidade humana ao falar de Adão e Eva, que dão ouvido à serpente, à revelia da ordem divina. “YHWH Deus deu ao homem este mandamento: ‘Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em dela comeres terás que morrer’” (Gn 2,16-17). Por sua vez, a serpente sugere à mulher: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal” (Gn 3,4-5). A mulher deixa-se levar pela serpente e induz o marido a fazer o mesmo. O mandamento de Deus foi deixado de lado. Misterioso é Deus não ter cumprido a promessa de infligir-lhes a morte. Antes, os expulsa do Jardim do Éden, poupando-lhes a vida. Doravante, sua existência consistirá num contínuo desafio de fazer escolhas certas.

Em muitas ocasiões, a Bíblia refere-se à encruzilhada na qual o ser humano continuamente se encontra. “Eis que hoje ponho diante de ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade” é a constatação de Dt 30,15. Mais adiante se dá um conselho sensato: “Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência, amando a YHWH teu Deus, obedecendo à sua voz e apegando-te a ele” (Dt 30,19-20). Dt 11,26-28 formula a decisão em forma de obediência ou desobediência aos mandamentos de YHWH, com o desfecho de bênção e maldição pela escolha feita. A sorte do fiel está na dependência de um ato da liberdade, sem qualquer imposição da parte de Deus. O Salmo 1 descreve o caminho dos justos e o caminho dos ímpios, com os respectivos resultados (cf. Pr 4,18-19). Cabe ao ser humano decidir-se e assumir as consequências.  Eclo 15,11-20 trata da liberdade humana. Uma afirmação lapidar define a condição humana: “Desde o princípio Deus criou o ser humano e o abandonou nas mãos de sua própria decisão” (Eclo 15,14). Donde a responsabilidade por cada um de seus atos, sem o álibi de atribuí-la a outrem. “Não digas: ‘É o Senhor que me faz pecar’ (…) Não digas: ‘E ele que me faz errar’” (Eclo 15,11-12). A personificação da Sabedoria (cf. Pr 9,1-6) e da Insensatez (cf. Pr 9,13-18) aludem à dupla voz a ressoar no íntimo do coração humano, diante das quais é desafiado a se posicionar.

A ética bíblica, embora de caráter religioso, jamais atropela a liberdade humana. Existe uma proposta divina a ser acolhida ou rejeitada. Acolhê-la significa aderir a YHWH e decidir-se a caminhar com ele. Pelo contrário, rejeitá-la é a decisão de dispensar YHWH e lançar-se solitário nas aventuras da vida, com o risco de se perder. Em hipótese alguma, a decisão será produto de pressão ou de ameaça. Cabe ao ser humano optar e arcar com as consequências da opção.

3 Fé e ética

A fé bíblica, expressa na imagem de Deus, concretiza-se num ethos, correspondente à proposta de vida de origem divina para o fiel. O binômio fé-ética pode ser desdobrado nos binômios fé-vida, contemplação-ação, oração-engajamento social, adoração-cuidado com o próximo, e outros. Em todos eles, a relação com o Transcendente move a pessoa de fé ao compromisso com os irmãos e as irmãs e com a comunidade.

 3.1 Duas faces da mesma moeda

Teologia e Ética, na Bíblia, são como as duas faces de uma moeda. Caminham sempre juntas! A vertente teológica fala de Deus preocupado e atento ao ser humano, à sua conduta e à sua sorte. Jamais se pensa um Deus alienado, fechado no mundo celeste, despreocupado com o destino da humanidade e de suas criaturas. Antes, é um Deus filantropo, na expressão de Sb 11,24-26 – “Tu amas tudo o que criaste, não te aborreces com nada do que fizeste; se alguma coisa tivesses odiado, não a terias feito. E como poderia subsistir alguma coisa, se não a tivesses querido? Como conservaria sua existência, se não a tivesses chamado? Mas a todos poupas, porque são teus: Senhor, amigo da vida”. O Deus de Israel caracteriza-se pela preocupação com a vida.

A vertente ética aponta para o ser humano chamado a adequar sua vida ao querer divino, tornando-o o norte de sua ação. Esta forma de teonomia de modo algum transforma-o em joguete nas mãos da divindade, pois em sua origem está uma decisão livre por abraçar o projeto de Deus como caminho de vida. Por outro lado, a possibilidade de romper com Deus e seguir o caminho da impiedade e da morte estará sempre diante do ser humano. O Salmo 73(72) refere-se à tentação do justo de se bandear para a infidelidade. “Por pouco meus pés tropeçavam, um nada, e meus passos deslizavam, porque invejei os arrogantes, vendo a prosperidade dos ímpios” (v.2-3). Entretanto, o justo supera a tentação e se decide por Deus. “Quanto a mim, estou sempre contigo, tu me agarraste pela mão direita; tu me conduzes com teu conselho e com tua glória me atrairás (…) A rocha do meu coração, minha porção é Deus, para sempre! (…) Quanto a mim, estar junto de Deus é o meu bem!” (v.23-28).

A atitude do ímpio, ao negar a existência de Deus, é atípica na sociedade de Israel. “Diz o insensato em seu coração: ‘Deus não existe!’ (…) Não sabem todos os malfeitores que devoram meu povo como se comessem pão, e não invocam a YHWH?” (Sl 14,1.4). O fenômeno moderno do ateísmo era desconhecido. Enveredar-se pelo caminho da maldade significava romper com o Deus de Israel e sua lei. Na direção contrária, praticar a justiça tornava-se ato de piedade de alta consistência religiosa.

 3.2. A historicidade da fé

A interação fé e ética se deve ao enraizamento histórico da revelação do Deus de Israel. YHWH se fez conhecer na história e, na história, se estabelece o relacionamento com ele. Nada acontece fora da história, na relação do fiel com seu Deus. Aí se dá o ato de fé, com seu desdobramento de fidelidade ou infidelidade. Aí o fiel se compromete com seu Deus e se dispõe a ser-lhe obediente. Aí é possível experimentar a conversão, ao escutar os apelos de Deus, de modo especial, pela voz dos profetas. “Volta, Israel, a YHWH teu Deus, pois tropeçaste em tua falta. Tomai convosco palavras e voltai a YHWH. Dizei-lhe: ‘Perdoa toda culpa, aceita o que é bom. Em lugar de touros nós queremos oferecer nossos lábios (…) porque é em ti que o órfão encontra misericórdia’” é o apelo de Oseias ao Israel infiel (Os 14,2-4).

O líder Josué, tendo reunido todas as tribos em Siquém, urge tomar uma decisão, no momento em que estão instaladas, cada uma no respectivo território. “Escolhei hoje a quem quereis servir (…) Quanto a mim e à minha casa, serviremos a YHWH” (Js 24,15). O povo responde unânime: “Nós também serviremos a YHWH, pois ele é nosso Deus (…) É a YHWH que serviremos (…) A YHWH nosso Deus serviremos e à sua voz obedeceremos” (Js 24,18.21.24). Servir a YHWH corresponde a viver o dia a dia segundo o estatuto e o direito fixado por Josué, como “Lei de Deus” (cf. Js 24,25-26). O desafio consistirá em fazer valer a misericórdia no trato mútuo, de forma que a fraternidade aconteça, deixando para trás a opressão egípcia. A obediência e o serviço a YHWH se tornarão visíveis no estilo de vida das tribos. De igual modo, a desobediência e a infidelidade!

3.3 A secundariedade do culto

Os profetas de Israel chamaram a atenção para o papel secundário do culto, na relação com a ética. Deus não se agrada com os sacrifícios e holocaustos, quando a vida do fiel está em descompasso com o seu querer. Só a correta relação com o próximo, baseada no direito e na justiça, dispõe o crente para o culto verdadeiro.

Isaías levantou-se contra o culto praticado em seu tempo (cf. Is 1,10-20). Deus mesmo declara estar farto dos holocaustos, sacrifícios, oferendas, festas e peregrinações feitos para honrá-lo. “Estou farto (…) não posso suportar falsidade e solenidade” (v.11.13).  “Quando estendeis vossas mãos, desvio de vós meus olhos. Ainda que multipliqueis a oração não vos ouvirei. Vossas mãos estão cheias de sangue” (v.15). O culto agradável a Deus tem pressupostos éticos bem claros. “Tirai da minha vista vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Buscai o direito e corrigi o opressor! Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva!” (v.16-17). O culto sem o respaldo da ética fica esvaziado!

Amós vai na mesma direção (cf. Am 5,21-27). A injustiça desacredita o culto. “Eu odeio, eu desprezo as vossas festas e não gosto de vossas reuniões. Porque, se me ofereceis holocaustos (…), não me agradam as vossas oferendas e não olho para o sacrifício de vossos animais cevados. Afasta de mim o ruído de teus cantos, eu não posso ouvir o som de tuas harpas!” (v.21-23) são palavras postas na boca de Deus. A atenção de Deus está voltada para o coração de quem o cultua, sem lhe importar o que faz e o que lhe oferece. A exigência é precisa: “Que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso!” (v.24). Portanto, culto autêntico só com o respaldo do direito e da justiça.

Em outro oráculo, o profeta ironiza as peregrinações aos santuários tradicionais de Israel (cf. Am 4,4-5). Peregrinar a Betel e a Guilgal é um caminho de pecado. Os sacrifícios, os dízimos e as oferendas voluntárias satisfazem o gosto dos adoradores – “porque é assim que gostais, israelitas” (v.5) –, mas não a YHWH. A motivação se repete: a sociedade de Israel carece de direito e de justiça, no trato dos fracos e indefesos. A má conduta ética torna o culto desprezível para Deus.

Jeremias faz eco aos profetas que o antecederam. “Que me importa o incenso que vem de Seba, e a cana aromática de países longínquos? Vossos holocaustos não me agradam e vossos sacrifícios não me comprazem” (Jr 6,20). Mais adiante, o profeta se levantará contra o Templo de Jerusalém, único lugar de culto em sua época, por se ter instalado aí um culto desprovido de compromisso ético (cf. Jr 7,1-15). O culto agradável a Deus não se coaduna com a prática da injustiça, da opressão do estrangeiro, do órfão e da viúva, com o derramamento de sangue inocente “neste lugar” e com a idolatria. A sorte do Templo haveria de ser a mesma do antigo santuário de Silo, onde estava a Arca da Aliança (cf. 1Sm 4,1-11).

A denúncia de Jeremias evoca a pregação de Miqueias que, como ele, havia anunciado a ruína de Jerusalém devido à corrupção geral instalada na cidade. “Por culpa vossa, Sião será arada como um campo, Jerusalém se tornará lugar de ruínas, e a montanha do Templo, cerro de brenhas!” (Mq 3,12; cf. Jr 26,18). A grandeza dos locais de culto a YHWH não resulta da grandiosidade das liturgias e, sim, da qualidade ética de quem lhe presta culto.

4 Grandes vertentes da ética bíblica

Dois são os vetores da ética, no âmbito da Bíblia: Deus e o próximo. Passa por aqui toda a ação do israelita de fé, preocupado em vivê-la com autenticidade. Correspondem-lhe dois desafios: a idolatria e o egoísmo. Bandear-se para outros deuses tem como consequência aderir a outro ethos, incompatível com o projeto de YHWH; buscar os interesses pessoais, em detrimento do irmão carente, só é possível para quem rompeu com seu Deus.

4.1 O amor entranhado a Deus

A formulação mais peremptória da relação do crente com YHWH exige dele adesão incondicional e irrestrita. “Ouve, ó Israel: YHWH nosso Deus é o único YHWH! Portanto, amarás YHWH teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força!” (Dt 6,4-5). O coração do fiel estará inteiramente voltado para YHWH, a ponto de determinar-lhe toda a conduta. Cada gesto terá, aí, sua raiz e será todo carregado de densidade teológica.

Criatura alguma, jamais, poderá ocupar o lugar reservado apenas para Deus na vida do crente, sob pena de desdizer-lhe totalmente a fé. Os profetas de Israel serviram-se de metáforas matrimoniais para denunciar a idolatria do povo, considerando-a adultério. A experiência pessoal de Oseias serviu-lhe de parábola para compreender o que se passava com o povo (cf. Os 1,2-9). A conversão corresponde à reconstrução da fidelidade matrimonial, à conduta esperada da esposa fiel. “Eis que, eu mesmo, a seduzirei, conduzi-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração!” (Os 2,16). A fidelidade processa-se no mais íntimo do fiel, determinando-lhe todo o modo de proceder. É onde acontece o amor entranhado a Deus.

4.2 O cuidado com o próximo

A ética bíblica tem um foco bem preciso: o próximo necessitado ou fragilizado. Os escravos não podem ser maltratados (cf. Ex 21,1-11; Dt 15,12-18). O pobre e o inocente gozarão de proteção, evitando-se serem explorados (cf. Ex 23,6-8). A mulher, casada ou não, carente de peso social, era protegida pela Lei (cf. Ex 22,25-16; Dt 22,22-23,1). A vida humana gozava de especial cuidado, a ponto de se dever tirar a vida aos assassinos (cf. Ex 21,12-36; Lv 24,17; Dt 24,7). A prática da agiotagem era condenada com força, por vitimar as pessoas mais frágeis da sociedade (cf. Ex 22,24; Lv 25,35-37; Dt 23,20-21). O manto tomado em penhor deveria ser restituído antes do pôr do sol, por ser o agasalho com o qual o pobre se protegeria do frio (Ex 22,25-26; Dt 24,12-13). O dízimo trienal pertencia ao estrangeiro, ao órfão e à viúva, para comerem e se saciarem (cf. Dt 14,28-29; 26,12-13). O falso testemunho era coibido, para não se penalizar o inocente, vítima da maldade alheia (cf. Dt. 19,15-21). O trabalhador diarista tinha o direito de receber o salário no mesmo dia, antes do pôr do sol, por ser pobre e necessitado (cf. Dt. 24,14-15; Lv 19,13). Uma sociedade sem cuidado com os pobres, as viúvas, os órfãos e os estrangeiros caminha na contramão de Deus.

4.3 A recriação da fraternidade

A desobediência de Adão e Eva (cf. Gn 3) e o fratricídio de Caim (cf. Gn 4) rompem o projeto divino original, alicerçado na comunhão. Os relatos da criação descrevem a perfeita harmonia nas relações entre Deus e o ser humano, dos seres humanos entre si e destes consigo mesmo e com a natureza. A nova realidade abriu as portas para toda sorte de iniquidade, dando origem à banalização da vida humana. A vingança sem freios é referida nos primórdios da humanidade. “Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes” (Gn 4,24). Mais adiante se faz uma constatação espantosa: “YHWH viu que a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era continuamente mau todo desígnio de seu coração. YHWH arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e afligiu-se o seu coração” (Gn 6,5-6).

A sequência da narração bíblica pode ser entendida como o esforço de se recriar a comunhão e a fraternidade queridas por Deus. Os seres humanos foram desafiados a encontrar uma forma de convivência que fizesse deles irmãos e irmãs da grande família dos filhos e filhas de Deus. A ética daí decorrente se entende como o resultado do diálogo entre YHWH e o ser humano, em busca da forma conveniente de conviver. O querer divino corresponde a tudo quanto favoreça e promova o entendimento e o respeito entre as pessoas. Na direção contrária, situam-se as ações geradoras de divisão, injustiça e morte. Esta é a chave para se compreender o que, na história, sintoniza com a verdadeira ética de matiz teológico.

5 Quatro palavras basilares

Quatro palavras se fazem insistentemente presentes quando os textos bíblicos aludem à ética, decorrente da fé em YHWH, o Deus de Israel: direito, misericórdia, justiça e fidelidade. São termos que apontam para a relação de Deus com os seres humanos e a dos seres humanos entre si. Pode acontecer de serem usadas em paralelo – “Sou o Senhor que pratico o amor, o direito e a justiça na terra” (Jr 9,23) – ou em dupla – “A justiça será o cinto dos seus lombos e a fidelidade, o cinto dos seus rins” (Is 11,5). Na visão bíblica, importa a realidade e não o conceito abstrato. Assim, mais importante que belas teorias sobre justiça e misericórdia são as situações concretas em que se tornam realidade.

5.1 Direito – mishpat

Refere-se ao querer divino, regulador das relações interpessoais. Pode ser entendido como a Torá, enquanto orientação de YHWH a ser posta em prática nas relações interpessoais. Atropelar o direito corresponde a virar as costas para YHWH e seguir a direção contrária ao seu querer. Respeitar o direito e se deixar guiar por ele é a atitude de quem está sintonizado com YHWH e abraça seu querer como projeto de vida.

Os profetas foram, de modo especial, sensíveis ao desrespeito ao direito. Isaías era consciente da realidade de seu tempo. Contemplando a Cidade Santa, constata: “Como se tornou prostituta a cidade fiel! Cheia de direito, nela habitava a justiça, mas agora só assassinos” (Is 1,21). Jeremias denuncia o rei pelo descarado desrespeito do direito: “Ai do que constrói sua casa sem justiça e seus aposentos sem direito; que faz seu próximo trabalhar de graça e não lhe paga o salário” (Jr 22,13). Na mesma linha, segue Ezequiel: “A população pratica a extorsão, comete roubos, oprime o pobre e o necessitado e maltrata o estrangeiro sem nenhum mishpat” (Ez 22,29).

Neste contexto, a missão dos profetas de Israel consistiu em pregar a submissão ao direito e a adequação do modo de proceder aos mandamentos de YHWH. Miquéias anuncia intrépido sua disposição interior: “Estou cheio de força, do espí­rito do Senhor, de direito e de coragem para anunciar a Jacó seu crime e a Israel seu pe­cado” (Mq 3,8). Como os demais profetas, atua como instância crítica, ao falar em nome de YHWH. “Ela (Jerusalém) rebelou-se contra meus preceitos e minhas leis (…) Desprezaram meus preceitos e não viveram segundo minhas leis” proclama Ezequiel (Ez 5,6).

Os profetas anseiam pelo dia em que surgirá um rei disposto a se pautar pelo direito, como exige Dt 17,14-20. “Eis que um rei reinará conforme a justiça e os prín­cipes governarão segundo o direito” é o anseio de Isaías (Is 32,1). O direito será a regra de convivência entre as pessoas, pois o Messias (= rei) firmará seu trono “no direito e na justiça” (Is 9,6). Ezequiel alude ao Messias com a imagem do pastor, que, ao contrário dos mercenários (= falsos pastores), vai apascentar seu rebanho “conforme o direito” (34,16).

5.2 Misericórdia – hesed

 O hebraico hesed é traduzido de variadas maneiras, dependendo do contexto da ocorrência. Amor, misericórdia, piedade, benevolência, bondade e compaixão são algumas das várias possibilidades. A tradução mais comum é amor e misericórdia, embora haja outro termo para amor (‘ahabah) e para misericórdia (rahamim = entranhas; donde a expressão “entranhas de misericórdia”). Em Zc 7,9, encontramos a exortação: “Praticai o amor (hesed) e a misericórdia (rahamim)”. Alguns textos falam da misericórdia de Deus para com os seres humanos (cf. Jr 9,23; 33,11; Is 54,10; Sl 33,5; 103,8). Outros se referem ao amor-misericórdia dos seres humanos entre si (cf. Os 6,6; Pr 3,3; 20,28; 21,21). Mq 6,8 fala em “amar o amor” ou “amar a misericórdia” (ahabat hesed). Oseias denuncia a fragilidade do amor de Israel para com seu Deus, servindo-se de uma imagem sugestiva, posta na boca do próprio Deus – “O vosso amor (hesed) é como a nuvem da manhã, como o orvalho que cedo desaparece” (Os 6,4).

O agir misericordioso, no trato com o semelhante, é característica da ética bíblica. É a maneira humana de espelhar a bondade de YHWH, cuja “misericórdia é eterna!” (Sl 136[135]). “Ele é bondoso e misericordioso, lento para a cólera e cheio de misericórdia” (Jl 2,13).  Quanto mais o fiel adere, de coração, a YHWH, tanto mais misericordioso será com os mais fracos e indefesos. E será valente em defendê-los da maldade do opressor, pois assim o fez YHWH, apiedado com o sofrimento dos israelitas nas mãos do faraó. Como a misericórdia de YHWH é firme e para sempre (cf. Is 54,8), da mesma forma deve ser a de seus fiéis. Os israelitas vivem da promessa de que a misericórdia de YHWH jamais se afastaria do povo de sua predileção (cf. Is 54,10; Sl 118[117],1-4).

5.3 Justiça – sedaqah

A semântica mais rica do vocábulo sedaqah provém da tradição profética. Trata-se da situação na qual toda a comunidade está articulada no respeito a cada um, sem exclusão de ninguém, de modo especial aqueles por quem a comunidade deve, em primeiro lugar, se preocupar: os órfãos, as viúvas, os pobres e os estrangeiros. Isto só é possível quando o direito e a misericórdia norteiam o agir da sociedade. Portanto, a justiça resulta de opções éticas bem determinadas, em consonância com o projeto de YHWH.

A denúncia profética da injustiça supõe a estreita ligação entre direito e justiça. O profeta Amós denuncia a perversão da justiça por falta de direito (cf. Am 5,7). Por sua vez, a perversão do direito resulta em injustiça (cf. Am 6,12). Jeremias descreve a sociedade sem jus­tiça, ou melhor, o que seria uma sociedade com justiça. “Assim diz o Senhor: pra­ticai o direito e a justiça. Livrai o explorado da mão do opressor; não oprimais o estran­geiro, o órfão ou a viúva, não os violenteis nem derrameis sangue inocente neste lugar” (Jr 22,3; cf. Am 2,6-8; 5,10-12). Do mesmo modo, Ezequiel: “Assim diz o Senhor Deus: já é demais, príncipes de Israel! Repeli a violência e a exploração! Praticai o direito e a justiça (…) Tende balanças exatas” (Ez 45,9-12). Falando aos dirigentes do país, atinge aqueles cuja função precí­pua consistia em criar uma sociedade fundada na justiça. Essa era uma função incontornável do rei, cuja tarefa consistia em defender os mais sus­ceptíveis de serem vítimas da injustiça.

YHWH, por sua parte, espera a construção de uma sociedade justa, fruto da obediência e da submissão ao direito. A justiça social é expressão da fidelidade a Deus. A alegoria da vinha (cf. Is 5) expressa bem a expectativa de Deus em relação a seu povo. “Ele esperava o direito e eis a violência; a justiça e eis gritos de aflição” (v.7).

A justiça está em estreita relação com a paz. Os dois vocábulos – sedaqah e  shalom – são com frequência associados. Paz aponta para a situação social baseada no respeito a cada pessoa, a quem se asseguram os direitos fundamentais. Is 32,17 proclama: “O fruto da justiça será a paz; a obra da justiça será a tranquili­dade e a segurança para sempre” (cf. Sl 85,11 – “Justiça e paz se abraçarão”).

5.4 Fidelidade – emet

O hebraico emet significa constância, firmeza, perseverança. Pode ser traduzido por  verdade. Aqui será tomado no sentido de fidelidade. Como nos vocábulos anteriores, fidelidade supõe o direito – a Lei de Israel – como ponto de refe­rência. Fidelidade e infidelidade decorrem da obediência e da desobediência ao querer de YHWH.

YHWH é um Deus fiel (cf. Jr 10,10) que se atém ciosamente à palavra dada. Sua fidelidade foi demonstrada ao longo da história do povo de Israel, em especial nos momentos mais difíceis, quando Israel foi desobediente. Nessas circunstâncias, a fidelidade de Deus torna-se mais evidente, por ter motivos para castigar a infidelidade do povo.

A infidelidade de Israel fazia-se perceptível na idolatria, nas injustiças sociais e nas alianças espúrias. Este foi o resultado de um largo processo corrupção. Jr 2,21 expressa este pensamento – “Eu te havia plantado como vinha excelente, toda de cepas legítimas. Como te degeneraste em ramos de uma vinha bastarda?” “Cepas legíti­mas” traduz a expressão zera’ emet, cujo sentido literal é “semente fiel”. Sublinha o descompasso entre o momento fundacional da fé de Israel, o momento do plantio da vinha, e o momento atual da vida do povo. De sementes boas, brotou uma vinha degenerada. A ética de Israel entrou em descompasso com o agir e o querer de YHWH.  Para Oseias isto era evidentíssimo.  “Não há fideli­dade, nem amor, nem conhecimento de Deus no país” (Os 4,1).

Uma acentuada irresponsabilidade ética tomou conta do povo. A infidelidade a YHWH levava-os a praticar um culto vazio, sem o alicerce de uma vida com consistência ética. Isaías denunciou tal equívoco.  “[Vós] confessais o Deus de Israel mas sem firmeza (sedaqah) nem sinceridade (emet)” (Is 48,1). Logo, Israel enganava-se a si mesmo, com sua prática religiosa vazia, feita de pura exterioridade. A volta à fidelidade era uma exigência premente. Consciente disto, Zacarias adverte o povo: “Amai a fidelidade e a paz” (Zc 8,19). E antevê um futuro de fidelidade por parte do povo: “Jerusalém será chamada cidade da fideli­dade” (Zc 8,3), quando YHWH confirmará sua condição de Deus fiel e justo: “Eu serei seu Deus na fidelidade e na justiça” (Zc 8,8). É a recuperação do verdadeiro ethos de Israel.

Jesus de Nazaré e seus seguidores levarão adiante o projeto ético veterotestamentário, como vivência da “nova Aliança”, inscrita nos corações pelo Espírito de Deus, como falara o profeta Jeremias (cf. Jr 31,31-34). O verbete “Ética e Teologia no Novo Testamento” descreverá esse momento novo do ethos judaico.

Jaldemir Vitório SJ, FAJE, Brasil. Texto originário português.

6 Referências bibliográficas

 BARROS, M. Ética e solidariedade na Bíblia. Magis Cadernos de Fé e Cultura. n.2, p.109-32. 1994.

GERSTENBERGER, E. S. A ética do Antigo Testamento: chances e riscos para hoje. Estudos Teológicos, n.2, p.107-18. 1996.

JENSEN, J. Dimensões éticas dos profetas. São Paulo: Loyola, 2009.

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. Bíblia e Moral: raízes bíblicas do agir cristão. São Paulo: Paulinas, 2009.

REIMER, H. Sobre a ética nos profetas bíblicos. Estudos Bíblicos, n.77, p.29-38. 2003.

Ética teológico-cristã da sexualidade

Sumário

1 A ética teológica da sexualidade e existência humana

2 O estatuto teológico da ética da sexualidade

2.1 O caráter plenamente humano da sexualidade

2.2 O caráter crístico da sexualidade

2.3 A sexualidade: entre o sacramental e o sacramento

3 A ética da sexualidade e a Teologia dogmática

4 A tarefa ética da Teologia da sexualidade

4.1 O enigma da sexualidade e a ética

4.2 A Lei e os valores da sexualidade

5 Ética e moral da sexualidade

6 Referências bibliográficas

1 A ética teológica da sexualidade e existência humana

Por muito tempo a Moral da Pessoa ocupou-se das questões concernentes à sexualidade e a categoria de pessoa destacava-se como estruturante do arcabouço da reflexão da práxis cristã. No entanto, com os grandes avanços das denominadas ciências humanas e seu impacto, sobretudo nas últimas décadas, sobre a teologia moral, tornou-se mais comum denominá-la de Ética teológica da sexualidade. Isso se deve ao cuidado que se tem tido de  deslocar a atenção da “pessoa”, tomada no sentido essencialista para insistir na existência humana em sua dinamicidade (SALZMAN; LAWLWER, 2012). Em torno da existência humana sincronizam-se o caráter subjetivo, intersubjetivo e social da sexualidade, auxiliado pelos conhecimentos advindos da psicanálise, da sociologia (FOUCAULT, 1977), da antropologia, da filosofia política e de outros campos do saber que se debruçam sobre o fenômeno do corpo e da sexualidade humana (BORRILO, 2002).

Nesse sentido, a Ética teológico-cristã da sexualidade está ancorada na experiência vivida do ser humano concreto ou do sujeito encarnado (HENRY, 2012), bem como no saber que essa mesma experiência se dá e que se expressa através do saber das ciências da vida e do corpo. A centralidade da existência sexual faz com que a ética da sexualidade se oponha à visão do sujeito abstrato e de sua respectiva consideração a respeito do corpo e do sexo. Pressupõe-se, portanto, uma antropologia em que o ser humano é corpo e não alguém que apenas tem um corpo (HENRY, 2012).

Nessa esteira, corpo e sexo não se contrapõem, não estão em concorrência e, por conseguinte, rechaçam qualquer dualismo entre corpo e alma. A consequência imediata dessa abordagem é que a sexualidade não aparece mais como sendo da ordem da mera contingência e da esfera da necessidade da encarnação em função da individuação do eu como subjetividade ou consciência pura ou espírito.

O ser humano se faz, expressa e se diz no corpo como sujeito sexuado. Por isso a visão do sexo subjacente a essa antropologia não se restringe ao corpo-objeto abordado pelas ciências empírico-formais, mas vincula-se ao corpo-subjetivo e à ontologia do corpo veiculada pela filosofia e a teologia da carnalidade humana. Nessa perspectiva, a sexualidade não é um dado amorfo nem algo pronto e acabado, já que sempre referida ao advir da vida no homem com os outros em sociedade. Trata-se, pois, do ponto de vista fenomenológico, de um evento enquanto a sexualidade já é e está por edificar-se à medida que a carnalidade situa o ser humano no arco da existência, isto é, o insere na natureza, na história, na cultura, enfim, no seio das relações com e para os outros no mundo, na cidade (pólis). Nesse sentido, não há como se distanciar do fenômeno da sexualidade para tematizá-la. Ela é da ordem do aparecer e do manifestar-se de modo a escapar do saber teorético que prescinda do coenvolvimento daquilo que aparece.

2 O estatuto teológico da ética da sexualidade

Em função de uma antropologia que se pretenda unitária e da condição humana em sua unicidade na diversidade (SALZMAN; LAWLER, 2012), a Ética teológica da sexualidade leva em conta o fato de a experiência humano-cristã ser indissociável da encarnação. Que o Filho de Deus tenha assumido a carne na história da narratividade de seu corpo, isso faz com que esse evento crístico repercuta imediatamente na condição humana lançada na Existência. Assim, o seguimento do Cristo como categoria ética incorpora a si um diferencial ou uma novidade com relação à vivência da sexualidade (FUCHS, 1995). A saber, põe em evidência o impacto da revelação (cristã) sobre a vida humana e o modo como se segue o Cristo graças à corporeidade e à sexualidade, ambas assumidas como dom da criação e como graça da salvação em Cristo.

2.1 O caráter plenamente humano da sexualidade

A ética da sexualidade tem como pressuposto o fato que corpo e sexo não são considerados meros meios ou trampolim para outro fim (espírito), mas a maneira pela qual se tem, concretamente, acesso à vida humanizada sexualmente, dita e experimentada, em Cristo. Desse modo, a reflexão (cristã) da sexualidade trava-se na interface entre Ética teológica fundamental e Ética teológico-cristã do corpo. Sem uma antropologia teológica do corpo, a ética da sexualidade corre o risco de ser asséptica e sem incidência na existência encarnada das pessoas que vivem tendo como horizonte a fé cristã.

Por um lado, a Ética teológica fundamental inclui no horizonte de sua reflexão o caráter universal da ação humana. Aquilo que o Cristo revela da e para a humanidade a partir de sua história (SESBOÜE, 1982, p.227-68) diz respeito, em primeiro lugar, ao sentido da existência humana enquanto referida à criação. Assim, essa categoria teológica pode ser traduzida, em termos seculares, como “finitude” e essa, por sua vez, aparece indissociável da criatividade da condição existencial do ser humano. Nesse caso, o cristianismo não se pretende como “regime de exceção” no tocante à vivência da sexualidade (AZPITARTE, 2001). Na ótica do corpo-próprio, a teologia propugna a humanização do ser humano em consonância com a carnalidade e a sexualidade plenamente realizadas e não a reboque delas. Logo, a Ética teológico-cristã da sexualidade não se edifica à margem da condição eminentemente “criatural” da existência cristã, partilhada por e com o gênero humano.

2.2 O caráter crístico da sexualidade

Por outro lado, a Ética teológica contempla em seu labor a singularidade da experiência cristã segundo sua diferença específica. Essa refere-se à peculiaridade da carnalidade que porta em si o caráter crístico. Graças à encarnação, o cristão não se autocompreende senão intrinsecamente associado ao Cristo, de modo a tecer e conformar sua vida na carne em constante contato e confronto com o Mistério Pascal.

De maneira explícita, a vivência do Batismo, a celebração da Eucaristia e a vida eclesial são maneiras concretas pelas quais se gesta a identificação do cristão com o Cristo. Assim, a configuração da vida cristã se tece na interpelação ou no embate do corpo a corpo com várias alteridades. A saber, na escuta das Escrituras, na cumplicidade de vida da comunidade de pertença, na celebração, na Liturgia e no constante encontro com o rosto/corpo do outro humano é que se retroalimenta a vida cristã e se descobre e se realiza o sentido da sexualidade em Cristo.

Do ponto de vista da vida especificamente cristã, essas alteridades instigam o cristão a viver a sexualidade como evento humano associado, por sua vez ao “Fato cristão” que a inspira. Essa dinâmica relacional se traduz e se cumpre na contínua incorporação do cristão ao Corpo de Cristo. Desse modo, o corpo e sexo não se dissociam de certa metáfora esponsal que, por sua vez, se traduz na cumplicidade amorosa entre Cristo e a Igreja (humanidade).

Em função disso, a sexualidade em perspectiva cristã também assume um caráter sacramental. Ela é vivida pelos cristãos como testemunho e sinal da entrega amorosa do Cristo pelo seu corpo (ANATRELLA, 2001). A sacramentalidade da vida sexual, por sua vez, assume múltiplas formas na diversidade da comunidade cristã inserida no mundo.

Há aqueles que se sentem chamados a contrair um vínculo amoroso por meio do matrimônio, cuja união se expressa na relação carnal movida pelo desejo e pelo amor, graças à experiência do corpo e do sexo que a sustenta, a mantém e a impulsiona. Há outros que optaram por consagrarem-se à vida religiosa como modo de serviço ao Reino de Deus. Nela, a sexualidade assume a modalidade de uma vida consagrada celibatária. Outros optam pela vida clerical na qual, especificamente, o celibato presbiteral assume o caráter disciplinar. Mas há também aqueles que vivem uma união estável cuja experiência corpórea-sexual visa a traduzir a experiência de comunhão de vida entre parceiros homoafetivos, cuja significação procede do desejo de testemunhar o seguimento de Cristo e expresso em alguns “sacramentais” do cristianismo (GALLAGHER, 1990, p.31-8).

Todas as modalidades de vida cristã na qual a sexualidade assume uma configuração muito própria, dependendo do tipo de estilo de vida, partilham, no entanto, da mesma fecundidade do amor inspiradas no amor de Cristo pela humanidade.

2.3 A sexualidade: entre o sacramental e o sacramento

Por sua vez, o caráter sacramental da vida cristã abre a reflexão ético-teológica da corporeidade para a dimensão pneumática da sexualidade. Ao humanizar a humanidade assumindo-a por dentro – desde o mistério da encarnação e seu desdobramento na criação, salvação e santificação –, o cristão é santificado na e pela sexualidade, graças à filiação divina instaurada por Cristo. Sendo ele o Filho, a encarnação do Verbo inaugura para o gênero humano a possibilidade de viver em profunda comunhão com Deus e de incorporar-se à vida trinitária (VIDAL, 2002).

Uma vez inabitado pelo Espírito do Cristo, é concedido ao ser humano o dom e a tarefa da santificação de sua vida a partir do próprio corpo e do sexo. A sexualidade, portanto, lida à luz da Teologia cristã do corpo, afirma-se como caminho de uma autêntica e fecunda vida espiritual. Abandona-se, portanto, de vez, o dualismo entre corpo e espírito em voga na tradição greco-romano que, em certo sentido, influenciou algumas abordagens depreciativas da sexualidade por parte do cristianismo ao longo dos séculos (BROWN, 1990). Com isso, evita-se cair em dois extremos, seja no espiritualismo ingênuo e idealista da sacralização da sexualidade, seja na visão depreciativa do corpo em detrimento da supervalorização do espírito, para o qual a encarnação é da ordem da contingência existencial.

A vida em Cristo, movido pelo seu Espírito, assegura a dessacralização da sexualidade (ela é da ordem da criação e da santidade e não do sagrado). E, ao mesmo tempo eleva a sexualidade à estatura de um autêntico caminho de humanidade dos corpos existencialmente vividos na relacionalidade afetivo-sexual. A vida espiritual já não é alheia à vivência da sexualidade humana. Essa, por sua vez, é considerada como lugar da experiência da ternura, do amor, do dom e da entrega mútua e, por isso, associada aos frutos do Espírito.

3 A ética da sexualidade e a Teologia dogmática

Graças aos motivos antropoteológicos evocados, há que se ter presente que a Ética cristã da sexualidade é inseparável da Teologia Dogmática. Dependendo do modo como os vários tratados da Teologia – Teologia Fundamental, Cristologia, Trindade, Pneumatologia, Eclesiologia etc. – abordam a corporeidade, isso determina a visão ético-teológica da sexualidade e vice-versa.

Dessa relação depreende-se uma ética cristã estoica, uma ética gnóstica da sexualidade ou, o contrário, uma ética cristã do amor e do desejo calcada na positividade da carnalidade humana como lugar da experiência salvífica mediatizada pelo corpo e pelo sexo. Emergem, pois, dessa constatação duas perspectivas que, em certo sentido, parecem antagônicas: ou ressalta-se o desejo, o erotismo e o prazer como características inalienáveis da condição humana e da própria vida em Cristo ou, pelo contrário, acaba-se por subestimá-los a ponto de comprometer inclusive a novidade da visão cristã do corpo e do sexo (SALZMAN; LAWLER, 2012).

Isso implica dizer que o grande desafio para uma Ética teológico-cristã da sexualidade na contemporaneidade passa pela premente necessidade de rearticular-se Amor, Graça e Desejo a partir da relação entre os seres humanos e deles com o Deus do cristianismo; e entre Prazer e Dom da carne (Eros), que a humanidade recebeu na criação, e a plenitude da encarnação, na revelação e na redenção, consumada na santificação (AZPITARTE, 2001).

4 A tarefa ética da Teologia da sexualidade

Em função do arcabouço da ética teológica, há que se ter presente seu labor com relação à promoção e à proteção da sexualidade humana em suas respectivas dimensões. Isso se deve, por um lado, ao fato de a sexualidade referir-se ao ser humano, seja como sujeito em relação (com o outro), seja como membro da comunidade humana, enquanto o insere na vida pública ou na convivência em sociedade (LACROIX, 2009).

4.1 O enigma da sexualidade e a ética

Por outro lado, a ética da sexualidade lida com o fato originário de a sexualidade ser da ordem do “enigma” (RICOEUR, 1967) e, consequentemente, do regime da ambivalência, na medida em que nela articulam-se o desejo (de outrem) e o prazer. Enquanto o desejo suscita no indivíduo uma fome insaciável do outro com o qual se vive o amor erótico, a dinâmica interna do prazer, por sua vez, está à procura da saciedade, da fruição e do gozo dos corpos que se dão na relação sexual. Nesse caso, o sentido da sexualidade oscila entre a transcendência e a imanência, entre a proximidade e o distanciamento que o desejo e o prazer suscitam nos parceiros que se propõem, em consentimento, contrair um vínculo amoroso de vidas e corpos. Isso significa que a ética da sexualidade articula-se em torno desses pressupostos antropológicos, sem os quais corre-se o risco de juricizar a sexualidade e comprometer seu caráter ético originário.

Ora, seguindo essa dinâmica do amor e do desejo, compete à ética promover os valores que a própria sexualidade se dá enquanto evento humano-cristão. A ética da sexualidade visa a cultivar e assegurar o cuidado de si, o cuidado do outro, o cuidado da relação “como” terceiro e o cuidado do “terceiro” da relação no âmbito da vida sexual.

4.2 A Lei e os valores da sexualidade

Em torno do desejo e do prazer, a ética assume um caráter, primeiramente, positivo em função da bondade da sexualidade segundo seu teor eminentemente relacional, no sentido de orientar os indivíduos a encarnarem, em sua vida sexual, a ternura, o dom, promessa, oblação, fecundidade, entrega amorosa, fidelidade etc., como maneira de levar a cumprimento a humanização da sexualidade vivida em Cristo. Isso se aplica a toda e qualquer forma ou estilo de vida sexual escolhido e assumido livremente pelos cristãos.

Entretanto, como a sexualidade também carrega em si a possibilidade da fixação no gozo e, consequentemente, o risco de desumanização – a categoria teológica do pecado tem sua correspondência ética na desfiguração da sexualidade – por conta da possibilidade real de o sujeito involucrar-se em si, da objetivação do corpo de outrem e/ou da privatização da relação, fechando-a para a vida social, compete à ética da sexualidade formular interdições com base no sentido originário humano-cristão da sexualidade.

Como a significação da Lei que ordena a vida sexual assume um caráter positivo graças à própria interpelação que vem da palavra do outro, a ética da sexualidade não se impõe de fora como um código de normas jurídicas, essas, por sua vez, esvaziadas de seu caráter ético fundado na relação. Antes, a Lei que rege a proteção da sexualidade é aquela da esfera da ética, enquanto ela pretende interditar tão somente aquilo que conduz à negação do desejo e do amor que deriva do primeiro.

5 Ética e moral da sexualidade

O caráter normativo da ética da sexualidade visa tão somente a proteger a sexualidade das ameaças da “tirania do prazer” (GUILLEBAUD, 1999). Essa tende a esvaziar o significado originário do corpo-sujeito e do sexo-sujeito. Compreende-se, pois, que as leis e as interdições com relação ao autoerotismo (masturbação) (CAPPELI, 1986, p.255-367), à prostituição, à pedofilia, à pornografia etc., pretendam proteger os indivíduos contra aquilo que compromete a significação genuína e originária da sexualidade. Daí as exigências de se ter que associar ao cuidado as obrigações do respeito ao próprio corpo/sexo, do respeito ao corpo do outro e do respeito ao corpo do terceiro da relação e na relação. Graças a isso, a ética articula-se em função de duas dimensões fundamentais, a saber, a do “sentido” da sexualidade (seu fim) em torno do cuidado e da estima e a das “obrigações” do sexo, estruturadas ao redor do respeito dos indivíduos e grupos humanos.

Com base na estrutura da ética da sexualidade é que se pode chegar a formular o juízo ético sobre as diversas expressões da vivência da sexualidade. Ora, se a vida sexual é inseparável do caráter relacional da existência, não há como pensar a significação da sexualidade sem evocar a questão da castidade (THEVENOT, 1982, p.35-90). Essa diz respeito à condição sexual de todo e qualquer ser humano, à medida que a experiência remete àquilo que a própria palavra sugere – a saber, sexo se traduz do latim como castus, que significa cortar, separar. Do ponto de vista simbólico, significa que a sexualidade humana está intimamente associada à castração.

Por isso compete à ética cuidar que a sexualidade se distancie de todo tipo de fusão entre seres humanos, de modo a se preservar e promover um de seus valores fundantes. Em outras palavras, a castidade emerge como exigência da própria manutenção do caráter humanizante da sexualidade, suscitado pela experiência vivida e não alheia a ela. Nesses termos a castidade é um valor intrínseco da sexualidade humana (GONZÁLEZ-FAUS, 1993).

Isso permite também distinguir castidade de celibato. A castidade funciona como uma espécie de “condição de possibilidade encarnada” para o celibato, embora o segundo sempre suponha a adesão livre de quem o acolhe como suspensão do exercício das faculdades sexuais. A ética da sexualidade insiste em que a experiência do celibato seja fruto de uma escolha realmente ética e que, por isso, seja nutrida pelo sentido da castidade, a fim de que não seja vivida como mera privação do sexo ou motivada meramente por um sentido acético (VIDAL, 2002). Isso poderia comprometer a fecundidade com que o celibato deverá ser expresso do ponto de vista da vida sexual concreta de quem o assume.

Outra consideração do ponto de vista do juízo moral parece significativa em função da natureza do desejo. Como a sexualidade é da ordem da relacionalidade humana, e essa só se explicita na busca ou na procura incessante do outro, é próprio da vivência sexual sedimentar-se em torno da temporalidade da relação. A ética da sexualidade insiste no caráter estruturante do desejo, de modo que a responsabilidade implicada na relação entre as pessoas que se desejam passe pelo crivo do hábito e da constância. Uma vez que elas pretendem realizar os valores da sexualidade em função da encarnação dessa relação concreta, urge cuidar, assumir e respeitar o ritmo de cada um, a maturação de ambos envolvidos na relação e o empenho na construção paulatina da entrega amorosa efetiva implícita ao cumprimento do desejo.

Nessa perspectiva, as relações sexuais pré-conjugais recebem uma atenção ética diferenciada segundo o grau de comprometimento que as pessoas envolvidas mantém entre si. A moralidade das relações sexuais entre namorados terá de ser discernida à luz da assunção do sentido da sexualidade (LACROIX, 2009), isto é, o grau de humanização dos envolvidos, segundo a maior ou menor realização dos valores da sexualidade conforme as duas dimensões morais da sexualidade: o cuidado e o respeito de si, do outro e do terceiro.

Enfim, o juízo moral sobre as plurivalentes experiências da sexualidade humana (relações pré-cerimoniais, relações fora do casamento, relações homoafetivas – diversidade afetivo-sexual: transexualidade, transgênero, bissexualidade) deve levar em conta dois aspectos fundamentais da existência humana sexual: a intriga interna entre a individuação e a socialização da sexualidade, sendo que o entrelaçamento entre esses polos dá-se em função da relacionalidade humana e dos valores indissolúveis do compromisso entre os parceiros (CORAY, JUNG, 2005). A ética teológica da sexualidade considera que a dimensão normativa da sexualidade assume um caráter “ancilar” em relação à primazia dada ao sentido humano e crístico da sexualidade.

A sexualidade humana é da ordem do dom, da graça, da salvação. Embora não se possa negar a contingência, a queda, o pecado e a morte implícitos na experiência humana da sexualidade, isso, porém, não permite esconder e embotar o caráter vivificante e liberador, estético e místico da sexualidade humana ressignificada quando referida ao horizonte da vida em Cristo.

Nilo Ribeiro Junior, SJ, FAJE, Brasil. Texto original português.

6 Referências bibliográficas

ANATRELLA, Toni. A diferença interdita. Sexualidade, Educação e Violência. São Paulo: Loyola, 2001.

BORILLO, Daniel. (ed). A sexualidade tem futuro? Loyola: S. Paulo, 2002.

BROWN, Peter. Corpo e Sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

CAPPELLI, Giovanni. Autoerostismo: um problema morale nei primi secoli cristiani. Bologna: EDB, 1986.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I. A vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977.

FUCHS, Eric. Deseo y ternura. Fuentes e historia de una ética cristiana de la sexualidad y del matrimonio. Bilbao: Desclée De Brouwer, 1995.

GALLAGHER, Rafael. A Avaliação moral da homossexualidade. In: ______. Compreender o homossexual. Aparecida: Santuário, 1990.

GONZÁLEZ-FAUS, José Ignacio. Sexo, verdades e discurso eclesiástico. São Paulo: Loyola, 1993.

GUILLEBAUD, Jean-Claude. A tirania do Prazer. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

HENRY, Michel. Incarnation. Une philosophie de la chair. Paris: Seuil, 2000.

JUNG, Patrícia Beattie; CORAY, Joseph Andrew (org.). Diversidade sexual e catolicismo: para o desenvolvimento da teologia moral. São Paulo: Loyola, 2005.

LACROIX, Xavier. O corpo de carne. As dimensões ética, estética e espiritual do amor. São Paulo: Loyola, 2009.

LÓPEZ AZPITARTE, Eduardo. Simbolismo de la sexualidad humana. Critérios para uma ética sexual. Santander: Sal Terrae, 2001.

RICOEUR, Paul. A maravilha, o Descaminho, o Enigma. Revista Paz e Terra, v.1,  n.5, p.27-38. 1967.

SALZMAN, Todd. LAWLER, Michael G. A pessoa sexual. Por uma antropologia católica renovada. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2012.

SESBOÜE, Bernard. Premier Temps: Jésus dans les jours de sua chair. In: ______. Jesus-Christ dans la tradition de L’eglise. Paris: Descleée, 1982. p.227-68.

THEVENOT, Xavier. A castidade: uma sadia regulação da sexualidade. In: ______. Perspectivas ética para um mundo novo. São Paulo: Loyola, 1982, p.39-50.

VIDAL, Marciano. Ética da sexualidade. São Paulo: Loyola, 2002.

Para saber mais

ANATRELLA, Tony. O sexo esquecido. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BOSWELL, John. Christianismo, tolerance sociales et homosexualité. Paris: Gallimard, 1985.

______. Homosexualidad y vida religiosa. In: LONGFELLOW, N. J. La sexualidad y lo sagrado. Bilbao: Desclée De Brouwer, 1996. p.544-62.

EMPEREUR, James L. Direção espiritual e homossexualidade. São Paulo: Loyola, 2006.

FARJEY, Margaret A. Just love: a framework for christian sexual ethics. New York: Continuum, 2012.

GENOVESI, Vincent. Em busca do amor. Moralidade católica e sexualidade humana. São Paulo: Loyola, 2008.

GESCHÉ, Adolphe, SCOLAS, Paul (org.). O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009.

KOSNIK, Anthony (org.). A sexualidade humana. Novos rumos do pensamento católico americano. Petrópolis, Vozes, 1977.

LÓPEZ AZPITARTE, Eduardo. Ética Sexual: masturbação, homossexualismo, relações pré-matrimoniais. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.

PLE, Albert. La Masturbation. Réflexions théologiques et pastorales. Supplement 77, 1966. p.258-92.

PONTIFÍCIO Conselho para a Família: Sexualidade humana: verdade e significado, 1995.

RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1988.

THEVENOT, Xavier. Acolher a pessoa homossexual. In: ______. Perspectivas éticas para um mundo novo. Loyola: São Paulo, 1982.

VIDAL, Marciano. Sexualidade e condição homossexual na moral cristã. Aparecida: Santuário, 2008.

A Esperança Cristã (Escatologia)

Sumário

1 Questões introdutórias

2 A esperança cristã e a escatologia

2.1 A esperança cristã

2.2 Novas questões e novas problemáticas

2.3 O Cristo ressuscitado como fonte e destino de toda esperança

3 Fundamentação bíblica

4 Reino de Deus

5 Ressurreição

5.1 A ressurreição dos mortos

5.2 A parusia

5.3 A justiça de Deus

6 Novo Céu e Nova Terra

7 Referências bibliográficas

1 Questões introdutórias

Por muito tempo, a escatologia foi designada como a doutrina das coisas últimas, como aquilo que deveria ser tratado no fim, quase como um apêndice, destinado ao novo que estaria por acontecer ao ser humano depois da sua morte. Seguramente, a escatologia não abandonou este discurso a respeito do fim e sobre esse novo que espera o ser humano e toda a criação no seu futuro, contudo tece o seu labor, hoje, em outra perspectiva, marcada pela esperança cristã que vive da experiência do Cristo ressuscitado, em quem Deus realizou todas as coisas.

A experiência do ressuscitado gera em quem crê uma esperança que transcende a própria existência, abre-se agora ao novo que vem e invade e modifica todo o nosso ser. Vive-se uma fé de advento. É um encontro que nos faz novas criaturas e a esperança possibilita viver no presente esta expectativa futura, mesmo que em tensão, pois aquilo que foi prometido ainda não se manifestou em plenitude (cf. 1Jo 3,2), o que nos coloca, neste tempo e nesta história, no andar da esperança; na esperança pela qual fomos salvos (cf. Rm 8,24). Vive-se isso de forma ativa. Não se trata mais de um discurso antecipador e informativo do que vem após o fim, mas de um discurso performativo, que provoca uma atitude, uma performance correspondente. O discurso escatológico ganha, pois, uma nova intenção com a esperança cristã.

2 A esperança cristã e a escatologia

2.1 A esperança cristã

A fé é esperança (BENTO XVI, 2007, n.2), e a esperança cristã é a esperança da fé (MOLTMANN, 2005, p.34). Por um lado, podemos garantir que a esperança é uma virtude, logo ela não acontece apenas pelo ímpeto humano, mas é suscitada pelo próprio Deus, portanto, ela é dom. Por outro lado, esta esperança que emana de Deus e toca o mais íntimo do ser humano confronta-se com um mundo reverso no qual aquele que espera e vive dessa esperança sente-se desafiado a dar as suas razões. É ter esperança contra toda a esperança (cf. Rm 4,18). Vista desta forma, a esperança cristã provoca o ser humano a agir, coloca-o em movimento, para frente.

Essa é a melhor maneira de se entender hoje a esperança cristã e aproximá-la do discurso escatológico, fazendo isso de forma dialética, sem que a esperança apareça como uma fuga do mundo rumo ao desconhecido e sem também que se perca na imanência da história. Tendo como referência o Cristo ressuscitado – que na sua manifestação aponta o crucificado e o caminho que ele percorreu – a esperança cristã nunca será uma fuga da história e das responsabilidades, mas sim, ao modo de uma fé encarnada, um autêntico compromisso com tudo o que circula a nossa existência (PIAZZA, 2004, p.68). Faz valer no mundo a vontade de Deus e percebe, nesse mundo, os momentos de manifestação de sua presença, tempos e momentos favoráveis da graça de Deus (kairóskairói). A esperança será sempre virtude (cf. 1Cor 13,13), porque vem de Deus e emana de sua vontade, sendo perceptível a nós pela fé (cf. Hb 11,1). Ou como diz W. Pannenberg: “vale para a esperança cristã que seu fundamento está fora de nós mesmos, a saber, em Jesus Cristo” (PANNENBERG, 2009, p.245). No entanto, essa esperança será também força, porque acontece no grito do povo que sofre, que trabalha e que clama a Deus a sua justiça e espera ansiosamente sua libertação futura. Isso se faz sentir desde a experiência do Êxodo (cf. Êx 3,7-8) até o tempo atual. A relação dialética entre estas duas noções da mesma esperança é o que vai garantir que se chegue à grande esperança, a Esperança última (LIBANIO; BINGEMER, 1985, p.35), que, como foi explicitado na Exortação Verbum Domini, tem rosto humano e nos amou até o fim (BENTO XVI, 2010, n.91b).

O que é específico na esperança cristã e que dá a ela todo este caráter escatológico não é apenas uma espera de alguma coisa, mas uma espera em Cristo, e em Cristo se realizam todas as coisas, nele tudo se torna novo (cf. Ap 21,5).

2.2 Novas questões e novas problemáticas

A esperança cristã é a chave de leitura fundamental para se entender hoje a escatologia. É o que dá sentido a seu conteúdo. É por onde se percebe a verdade que se instalou em nosso meio e que se tornou vida – e vida plena – no Mistério Pascal. Vista antes como um tratado que se ocupava em discorrer sobre as coisas últimas (Eschata), a escatologia, na atualidade, é chamada a uma nova orientação e percepção de seu conteúdo e passa a ser concebida a partir do horizonte último (o Éschaton), que é Cristo, e que como ressuscitado abre para nós e para toda a história uma nova possibilidade de futuro. Cristo ressuscitado abre para nós e para toda a criação um novo momento de encontro com Deus, onde tudo o que é perene torna-se pleno e tudo o que é terno torna-se eterno (KUZMA, 2014, p.59-60). Na esperança cristã tudo se transforma: toda a dor, sofrimento, pecado e morte abre espaço para a vida, e essa vida – vida plena – preenche todos os espaços possíveis e alcançáveis, valendo-se do que é impossível e inalcançável (PIAZZA, 2004, p.57), isto é, incompreensível à limitação humana, mas revelado plenamente por Cristo, que como ressuscitado impôs sentido a tudo o que existe.

O teólogo Jürgen Moltmann, um dos grandes responsáveis por esta atualização da escatologia, que ganha o seu vigor maior na segunda metade do século XX, ajuda-nos a entender este contexto:

Na realidade, a escatologia é idêntica à doutrina da esperança cristã, que abrange tanto aquilo que se espera como o ato de esperar, suscitado por esse objeto. O cristianismo é total e visceralmente escatologia, e não só como apêndice; ele é perspectiva e tendência para frente, e, por isso mesmo, renovação, e transformação do presente. O escatológico não é algo que se adiciona ao cristianismo, mas é simplesmente o meio em que se move a fé cristã, aquilo que dá o tom a tudo que há nele, as cores da aurora de um novo dia esperado que tingem tudo o que existe (MOLTMANN, 2005, p.30).

É abrir os olhos diante de um novo dia, ao qual somos todos chamados a desfrutar e a trabalhar, a viver e a construir. É uma esperança que pede uma ação. Nas palavras do Concílio Vaticano II, que também impele esta intenção, se diz que a pessoa deve ser salva e a sociedade consolidada (GS n.3).

2.3 O Cristo ressuscitado como fonte e destino de toda esperança

A esperança cristã nos faz perceber este futuro novo ao qual somos chamados por Deus. Este futuro prometido nos é antecipado pela experiência de fé no ressuscitado, uma experiência fundante e que nutre toda a esperança; é de onde parte hoje o discurso da escatologia. Cristo ressuscitado é, pois, a personificação das coisas últimas e é ele que dá sentido à história, ele a enche de conteúdo. Vê-se a história, o antes e o depois, a partir dele. Dessa forma, aquilo que é esperado para o futuro, aquilo que estamos destinados a viver e a ser no encontro pleno com Deus, no eterno, já nos é antecipado e se manifesta no presente da história (cf. 1Cor 15,17), no tempo, sendo algo sensível à fé e vivido em esperança. A salvação oferecida por Deus e garantida por Cristo, gratuitamente a todos, é vivida em esperança (cf. Rm 8,24).

3 Fundamentação bíblica

Os textos bíblicos são recheados de conteúdo escatológico. No AT temos o Deus que se revela, que cria, que se aproxima e que liberta e caminha com o seu povo, e que nas suas promessas faz surgir a esperança (cf. Gn 12,1; 13,14-17; 15,-1-5; Êx 3,7-12). Três promessas surgem neste primeiro momento: terra, descendência e aliança (NOCKE, 2002, p.342). Mais tarde, aparecerá uma quarta, que diz respeito ao Reino em Israel, que se perde e se divide no agir humano, deixando o povo sem rumo, na desesperança, o que alimenta e faz surgirem os profetas de Israel, quando Isaías clama “o Príncipe da Paz” (cf. Is 9,1-6). Também em Ezequiel, quando fala de Deus que dá ao povo um coração novo (cf. Ez 36,26) e traz vida aos ossos secos (cf. Ez 37,1-14), dentre outras. O AT é rico em expressões escatológicas que suscitam a esperança, porém, gostaríamos de destacar aqui o texto de Isaías 65, que fala da nova criação, onde não haverá choro nem lamentação, onde o lobo e o cordeiro pastarão juntos e o leão comerá feno como o boi (cf. Is 65,17-25). Um belíssimo texto, que se aproxima muito do texto de Apocalipse do NT, quando se fala do novo céu e da nova terra, onde Deus estará conosco e vai enxugar toda lágrima e a morte não haverá mais, pois ele fará novas todas as coisas (cf. Ap 21,1-7).

No NT temos, em Cristo, o cumprimento de todas as promessas e a abertura para o Novo, que aponta para o futuro em Deus. Cristo faz acontecer o Reino em sua própria pessoa (cf. Mt 11,5-6). Ele é “aquele que vem” (Mt 3,11) e traz vida a este mundo e faz justiça (cf. Lc 4,18-19). Ele é o Emanuel (cf. Mt 1,23), a ressurreição e a vida (cf. Jo 11,25). Tudo aquilo que já se realizou em Cristo é para nós motivo de alegria (cf. Fl 4,4) e de esperança (cf. Cl 1,27), pois somos chamados ao mesmo futuro, a ressurreição (cf. 1Cor 15,14). Em Cristo Deus criou todas as coisas, e neste mundo ele se rebaixou (cf. Fl 2,6-11), a fim de conduzir o tempo à plenitude (cf. Ef 1,3-14).

4 Reino de Deus

O Reino de Deus é o núcleo central da escatologia hoje, pois remete ao futuro anunciado e prometido por Jesus, e provoca-nos também a essa mesma prática, em seu seguimento. Reino de Deus é onde acontece e se faz acontecer o amor, a justiça e a paz; é a presença salvífica e ativa de Deus na história, oferecida por ele gratuitamente e afirmada por nós livremente (SCHILLEBEECKX, 1994, p.150-1).

É a presença de Deus no mundo, uma presença visível e concreta pela pessoa e práxis de Jesus, quando os cegos veem, quando os mortos acordam, quando os doentes são curados e quando o pão é repartido. O Reino acontece no viver de Jesus de Nazaré, e somos chamados a isso. Reino de Deus é uma linguagem humana, de tom político e religioso, pela qual entendemos a ação de Deus em nosso meio. Será sempre uma ação salvífica e libertadora, que torna pleno e enche de vida tudo o que existe. É quando Deus revela ao ser humano e a toda a criação a sua intenção última e definitiva e conclama todos ao seu seguimento, sua busca, a uma vida em esperança que vai se realizar no futuro de Deus.

Em Cristo, cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus ficou próximo (cf. Mc 1,15). Somos chamados a viver a sua práxis e a construir, no presente, aquilo que já nos espera no futuro.

5 Ressurreição

Ressurreição é o que se tem de mais radical e absoluto, pois é quando a vida vence o tempo e o espaço e irrompe para a eternidade de Deus. É quando tudo o que existe abandona-se na graça daquele que é o autor da vida e que preenche todas as condições de nossa existência. É quando o limite humano se encontra na grandiosidade de Deus. É a transformação máxima, a concretização de toda a esperança (BOFF, 2010, p.41). Nem a morte pode mais com a sua palavra e com seu poder, pois a morte foi vencida para sempre e já não atinge a vida, que se revestiu de plenitude e de verdadeiro sentido em Cristo. Ressurreição é o encontro pleno e certo com Deus, é quando o veremos face a face e ele revelará na essência aquilo que somos e nós o veremos na essência assim como ele é. Será o momento em que o amor tomará conta do nosso ser e tudo o que era distante se tornará próximo, tudo o que estava oculto será revelado e tudo o que nos envolve estará cheio da presença de Deus. A sua justiça será feita e serão feitas novas todas as coisas.

5.1 A ressurreição dos mortos

A base de toda a fé cristã, por certo de toda a esperança, está no Cristo ressuscitado. A experiência desse evento nos primeiros discípulos constituiu o alimento de toda a esperança, a única força capaz de gerar vida em meio à morte e de gerar confiança em meio a tribulações. Isso se torna verdadeiro, por exemplo, pela frase situada no Evangelho de João, durante a narrativa de Lázaro que, aliada ao contexto da comunidade (perseguida) a quem se destinava o Evangelho, diz de maneira intensa: “Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá” (Jo 11,25-26). O mesmo se reproduz em toda a comunidade primitiva, onde a experiência do ressuscitado era fonte de vida e de transformação nesta vida (cf. Rm 6,1-11; Cl 2,12-13; 3,1; dentre outras); vivia-se ali o gérmen da ressurreição, caminhando de forma peregrina ao encontro absoluto, semeado e vivido na esperança.

A ressurreição dos mortos, dentro da compreensão cristã, supera tudo aquilo que se entendia a respeito de uma vida futura e que era contemplado dentro da tradição semítica (NOCKE, 2002, p.405). O evento Cristo marca o tempo de forma nova e transcende qualquer expectativa. O que se vive é a experiência deste momento, que faz surgir a fé e a esperança diante de um amor que vivifica. Na ótica cristã, a ressurreição não é a restituição desta vida, como um voltar de um cadáver, ou um voltar a este tempo e espaço, ou mesmo um reconduzir de almas (atento a uma visão dualista e não-cristã do ser humano), mas é a plenificação de todas as potencialidades humanas, sendo agora elevadas ao plano de Deus, ao plano do eterno. Com a morte, encerra-se neste tempo aquilo que o próprio ser humano e o mundo projetam sobre a vida; mas é nessa mesma morte que Deus revela ao ser humano a sua verdadeira identidade e o seu verdadeiro futuro no alicerce da verdadeira vida. Com a morte rompe-se o tempo e adentra-se no eterno; rompem-se os limites da história e penetra-se no vasto espaço de Deus.

Morte e ressurreição não são momentos isolados, mas são momentos contínuos no existir humano. Viver é caminhar para a morte a cada dia. Morrer é abandonar-se na esperança de Deus e deixar-se tocar pela ressurreição que vem e atinge todo o nosso ser. Pela experiência dos primeiros cristãos, a ressurreição é um desfrutar da presença de Deus desde agora, neste tempo e espaço, até o momento derradeiro, onde estaremos com Deus, e ele será pleno em nós e nós seremos plenos nele. Esse será o momento em que o ser humano escondido será revelado, face a face, sem mentiras, sem máscaras, sem pudor, sem respeito, mas com amor. É quando ele terá a certeza de ser fruto de um amor maior e, ao mesmo tempo, misterioso, que o envolve e o coloca diante da face de Deus. Será a transformação plena, a plenitude do encontro com Deus, a realização do projeto de Deus em nós e a nossa realização em Deus. É a felicidade, é o amor.

5.2 A parusia

Por parusia entende-se a manifestação máxima, última e plena de Deus, que já age no tempo e se faz presente em meio a nós por seu Espírito, desde a sua vinda pela encarnação até a sua consumação final (KUZMA, 2014, p.45). É quando tudo o que é esperado torna-se pleno e cheio de vida e é onde Deus será tudo em todos e em todas as coisas (cf. 1Cor 15,28), e isso não apenas ao ser humano que espera, mas a toda criação que geme à espera deste grande dia (cf. Rm 8,22).  Para nós que aqui estamos e vivemos a fé em clima de advento, na expectativa do Deus que vem e que faz novas todas as coisas.

Assim como a morte e a ressurreição são percebidas e vividas experencialmente durante o percurso de uma vida, o mesmo se pode dizer sobre a parusia. Não podemos projetá-la para um momento isolado no futuro, algo a acontecer a nós e ao mundo em um tempo predeterminado, sempre à frente. Temos certo pela fé que o fim e a consumação de todas as coisas já irromperam com Cristo e nele – nesse evento único – Deus já realizou o seu plano salvífico e disse a sua última palavra, que é uma palavra de salvação. A percepção desse evento nos chega de forma escatológica, pelo sentir da esperança, a partir de um Cristo que vem a nós e nos antecipa a glória do seu Reino, convidando-nos a segui-lo, mediante a sua proposta de Reino, assumindo as esperanças deste mundo e conduzindo-as à grande esperança que se realiza nele. A parusia é, pois, um evento contínuo que se antecipa e se faz perceber, e na esperança tende à sua realização, onde tudo será transformado e preenchido com a glória de Deus. “A Parusia é a ressurreição atingindo a história: a história de todos os homens e de todos os tempos. Está sempre acontecendo” (LIBANIO; BINGEMER, 1985, p.215).

5.3 A justiça de Deus

Todo este olhar da escatologia, alimentado pela esperança cristã e que parte do Cristo ressuscitado, conduz o nosso olhar também para o Cristo crucificado que traz as marcas da Paixão e nos aponta o caminho percorrido até a cruz, o caminho do Reino de Deus. É o ressuscitado que é o crucificado (MOLTMANN, 2005, p.287-8), e que se traduz em promessa para o mundo, uma promessa de justiça (KUZMA, 2014, p.118-24). A ressurreição de Cristo dá à cruz um novo significado. Ela abre à história uma nova possibilidade, onde todos são aceitos e transformados diante de um amor incondicional. Deus faz a sua justiça e acolhe todos. Na sua cruz ele se torna solidário com todos aqueles que sofrem e foram arrebentados em suas vidas, estende a eles um novo ar de esperança: onde há morte, ele produz vida; onde há abandono, ele produz um gesto concreto de liberdade e de amor. Mas na cruz, também, ele perdoa a todos, também os algozes da história; a ressurreição não anula o fato, mas o enche de conteúdo e de esperança e oferece a todos (vítimas ou causadores) uma nova possibilidade de vida no amor e na justiça.

6 Novo Céu e Nova Terra

E tudo se encaminha para o fim bom e eterno de Deus. A promessa da criação chega ao seu fim derradeiro (cf. Gn 1,31). O fim do tempo e o início da eternidade com Deus. A humanidade e a criação se realizam e se tornam plenas diante da verdadeira vida e do encontro com o absoluto. Nada mais pode atingir ou destruir, a morte foi vencida, o tempo já não existe. Eis a casa de Deus com os seus filhos (cf. Ap 21,3). Ali não haverá mais luto nem lágrima e a dor já não atinge mais.

Eis que Cristo será tudo em todos e em todas as coisas (cf. 1Cor 15,28). O passado e o futuro se encontrarão num instante eterno, num reino escatológico, presente e permanente, aonde o ainda não se tornará e o que é terno se tornará eterno, num tempo que já não é mais tempo, mas é graça e plenitude, um kairós escatológico e triunfante (MOLTMANN, 2003, p.357-60), um Novo Céu e uma Nova Terra (cf. Ap 21,1).

Essa é a escatologia compreendida pela esperança cristã. Esperar em Deus significa abandonar-se no amor daquele que vem e transforma todo o nosso ser e tudo o que existe, leva tudo ao estado pleno, conduz tudo e todos ao encontro da verdadeira vida.

Cesar Kuzma, PUC-Rio, Brasil. Texto original português.

 7 Referências bibliográficas

BENTO XVI. Spe salvi. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2007.

______. Verbum Domini. São Paulo: Paulinas, 2010.

BOFF, L. Vida para além da morte: o presente: seu futuro, sua festa, sua contestação. 25.ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

KUZMA, C. O futuro de Deus na missão da esperança:  uma aproximação escatológica. São Paulo: Paulinas, 2014.

LIBANIO, J. B.; BINGEMER, M. C. L. Escatologia cristã: o Novo Céu e a Nova Terra. Petrópolis: Vozes, 1985.

MOLTMANN, J. A vinda de Deus: escatologia cristã. São Leopoldo: UNISINOS, 2003.

______. Teologia da Esperança: estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma escatologia cristã. São Paulo: Teológica; Loyola, 2005.

NOCKE, F-J. Escatologia. In: SCHNEIDER, T. (org.). Manual de dogmática. 2.ed. Petrópolis: 2002, p. 339-426, v.2.

PANNENBERG, W. Teologia Sistemática. Santo André: Academia cristã, 2009, v.3.

PIAZZA, O. F. A esperança: lógica do impossível. São Paulo: Paulinas, 2004.

SCHILLEBEECKX, E. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994.

VATICANO II. Mensagens, discursos e documentos. São Paulo: Paulinas, 1998.

Bioética

Sumário

1 Origem e identidade da bioética

2 Bioética Latino-Americana

3 Bioética e Teologia

4 Bioética das situações-limite da vida humana

5 Bioética Clínica

6 Bioética Sanitarista

7 Bioética Ambiental

8 Referências Bibliográficas

A bioética é uma das áreas de saber moral com maior incidência na sociedade atual, devido aos desafios éticos da gestão da vida, sempre mais presentes nas biotecnologias e suas dinâmicas políticas e econômicas. A Igreja vem incluindo a bioética no seu discurso com a preocupação pelo respeito à vida humana nascente (técnicas de reprodução artificial, anticoncepção, aborto, criogênese, estatuto do embrião humano) e terminal (eutanásia, cuidados paliativos). Esse interesse levanta o desafio epistemológico das interfaces entre a teologia e a bioética. Não se trata de formular uma bioética teológica, mas de discutir sobre o papel da teologia no fórum interdisciplinar e secular da bioética.

1 Origem e identidade da bioética

A palavra bioética nasceu numa perspectiva ecológica em Fritz Jahr (1927) e Van Renseleer Potter (1971), preocupados com a sobrevivência da vida no planeta terra devido às repercussões do desenvolvimento tecnológico no ambiente (ecoética). Nesta mesma época (1974) André Hellegers tinha uma preocupação com a ética médica no enfrentamento aos desafios da aplicação das tecnologias médicas nas situações limites da vida humana. Por isso, propôs um alargamento da ética hipocrática que chamou de bioética. Assim, desde o início a bioética teve duas origens: uma ecológica e outra mais clínica. Essa segunda teve mais sucesso, porque era do interesse de hospitais e empresas biotecnológicas.

A bioética ecológica (ecoética), embora tenha ficado esquecida nos seus inícios, hoje adquire sempre mais importância. Outro fato central para o surgimento da bioética foi a reação aos abusos em pesquisas clínicas com pacientes, denunciados num artigo de Henri Beecher (1966). Essa denúncia provocou reação na opinião pública americana, obrigando o governo a criar a “Comissão Belmont”, encarregada de pensar a ética da pesquisa clínica. Depois de quatro anos lançaram, em 1978, o documento “Relatório Belmont”, com três princípios éticos: respeito às pessoas, beneficência e justiça. Eles foram assumidos por Beauchamp e Childress como esquema para ética clínica, no célebre livro Princípios de Ética Biomédica (1979), propondo a autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça como princípios éticos da clínica, originando o paradigma principialista que passou a imperar na bioética. Contudo, pensar que esses fatos e pessoas são os responsáveis pelo surgimento da bioética é ficar na superfície, porque sua origem tem causas muito mais profundas que se enraízam em dinâmicas socioculturais e político-econômicas da gestão da vida, que marcaram os séculos XIX e XX, apontadas com muita maestria por Foucault nas suas análises do biopoder. A bioética surge como “hermenêutica crítica dessas dinâmicas” (JUNGES 2011).

2 Bioética Latino-Americana

Na América Latina a bioética foi assumindo uma perspectiva crítica e social na discussão dos desafios éticos da saúde e da vida, formulando modelos epistemológicos mais adequados a essa realidade. A bioética principialista, importada para os ambientes médicos do nosso continente, solucionava os problemas no “paradigma da autonomia”, como se os dilemas morais se reduzissem à questão de receber as informações necessárias para dar o consentimento. Daí a centralidade e a importância do “consentimento informado” no equacionamento dos problemas éticos ligados à saúde humana. Essa perspectiva não leva em consideração as condições de vulneração da saúde em que se encontra a maioria da população do continente latino-americano.

Essa constatação leva a propor o “paradigma da vulneração” como modelo para pensar as questões éticas da vida. O paradigma principialista de bioética não pode servir de diretriz moral para o equacionamento e a solução dos problemas. No paradigma da vulneração, os direitos humanos servem de referências éticas. Para as sociedades assimétricas e desiguais latino-americanas não pode valer a perspectiva política da igualdade e isonomia, próprias de países ricos, onde os cidadãos têm consciência e vigência de seus direitos. Para esses, a exigência de direitos se reduz à defesa da autonomia e da iniciativa individuais contra o poder do Estado. Onde não existe essa consciência e vigência plenas, as pessoas sofrem vulnerabilidades sociais específicas contra as quais o Estado tem o dever de proteger, assegurando direitos sociais prestativos.

Dando forma a esse enfoque, constitui-se a bioética de proteção como modelo epistemológico mais adequado para responder às condições específicas e aos problemas concretos da América Latina (SCHRAMM 2006). Essa bioética pretende intervir criticamente nas situações em que populações vulneradas pelas condições sociais não são respeitadas em sua dignidade e seus direitos fundamentais não são cumpridos. Assim, a bioética latino-americana foi assumindo a mesma perspectiva da origem da Teologia da Libertação: a opção pelos pobres.

3 Bioética e Teologia

Nas origens da bioética estavam implicados vários teólogos devido à sua longa expertise em argumentação ética e seu engajamento na discussão de problemas de ética médica no âmbito da moral católica. Posteriormente houve um movimento de independência dos bioeticistas em relação aos teólogos, acentuando a secularização e o pluralismo na reflexão. Isso obrigou os teólogos a explicitar sua contribuição específica num fórum de discussão secular, interdisciplinar, plural e racional, sem argumentos de autoridade (CADORÉ 2000). O teólogo não tem nenhum protagonismo no debate nem pode pretender dar a palavra definitiva sobre determinado problema. Numa igualdade de condições, sua palavra tem o mesmo valor que qualquer outra intervenção. Ele deverá ser capaz de situar-se entre sua tradição teológica e a situação concreta para a qual, junto com outros, tentará encontrar uma solução. Nas palavras de João Paulo II na Fides et Ratio (48, 2), “à parresia da fé deve corresponder a audácia da razão”, isto é, a afirmação corajosa e livre da fé deve estar aliada à busca audaz e criativa de sua compreensão para os nossos dias.

Para entender a relação entre bioética e teologia é necessário compreender de qual bioética e de qual teologia se está falando (JUNGES 2006). Pode-se desenvolver uma bioética casuística própria dos comitês que tentam encontrar caminhos de solução para casos clínicos ou de pesquisa. Para formular essas soluções é necessária, antes de tudo, sabedoria prática na linha da fronesis aristotélica. Por outro lado, não pode faltar na bioética uma perspectiva de hermenêutica crítica que reflete sobre questões de fundo, pressupostos e dinâmicas biopolíticas, implicadas nos problemas éticos.

Se no cotidiano é preciso sabedoria prática e senso de realismo, não pode faltar, no longo prazo, a hermenêutica crítica para uma bioética de maior fôlego e consistência. Nessa segunda perspectiva, a teologia poderá desempenhar papel importante para ajudar a refletir sobre concepções de fundo implicadas nas soluções concretas. Portanto, a teologia não pode querer oferecer receitas prontas para os problemas concretos. A teologia adequada para esse papel assume, por isso, a perspectiva pública, isto é, reflete a partir da fé no espaço social público, secular e plural, distinta de uma teologia que confirma os fiéis no espaço eclesial e confessional.

Essa perspectiva pública da teologia pode oferecer contribuições importantes para a bioética, no sentido de ajudar a refletir e questionar sobre questões mais profundas da vida e existência humanas, pois uma simples abordagem pragmática da bioética casuística não pretende nem consegue apontar essas questões.  Portanto, a teologia não pode querer oferecer receitas prontas nem colocar-se ao nível moral do “pode ou não pode”, típicos do enfoque jurídico. Seu papel é levantar questões de fundo e refletir criticamente. Do contrário, como diz muito bem o Papa Francisco (2013), nós não estaremos a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais e morais que derivam de certas opções ideológicas” (EG 39).

O papel fundamental da teologia, na sua dimensão pública, é abrir os participantes de um fórum de discussão para o frescor original, a novidade do Evangelho ao despertar e ativar uma sensibilidade ética mais acurada com respeito à vida, desconstruindo um uso ideológico da mensagem moral cristã.

4 Bioética das situações-limite da vida humana

Um exemplo da contribuição reflexiva da teologia é no equacionamento ético de situações-limite de início e fim de vida, não tomando uma posição moral jurídica do “pode ou não pode”, mas levando a uma reflexão profunda sobre a questão central ética dos limites da vida. Quanto ao início da vida, é necessário refletir sobre o “estatuto do embrião”.  Segundo Bourguet (2002), essa questão se desdobra em duas: “o embrião é um indivíduo biológico da espécie humana”, respondida pela biologia, e, “sendo indivíduo, merece o respeito devido a uma pessoa humana”, respondida pela ética.

A negação da individualidade biológica do embrião está ligada à assunção de critérios de individualidade adulta e parâmetros morfológicos já ultrapassados. A individualidade não depende de um observador, pois não é possível fixar um momento através de sinais externos, porque é um processo contínuo. Portanto, não se pode definir o estatuto do embrião marcando um momento de individuação através de sinais externos morfológicos da individualidade adulta, pois ela depende de uma processualidade gerida por critérios genéticos. O indivíduo está definido pelo seu genoma. O próprio aparecimento de gêmeos univitelinos não nega essa constatação, segundo Bourguet (2002), pois a primeira individualidade não é negada, mas dela surge uma segunda, possibilitada pela pluripotencialidade, separada no tempo.

Definida a individualidade biológica do embrião, surge a segunda questão: esse embrião merece o respeito devido a uma pessoa. Aqui pessoa não é uma categoria ontológica, mas ética. Isso significa que a personalidade do embrião pode ser definida por referência às regras coletivas (ordem jurídica) ou na perspectiva do agente moral (ordem ética). A dificuldade da primeira é que o embrião não é um alter ego que possa participar do contrato social, aceito como igual a mim. Não existe simetria, mas assimetria para a qual só é adequada a perspectiva ética. Trata-se da posição de um agente moral em relação a um indivíduo humano, não igual a mim nem outro sujeito. Para captar o outro como totalmente outro, segundo Lévinas, é necessário despossuir o ego de impor condições para a definição do outro. A ética parte da assimetria inicial e não da simetria, típica situação em relação ao embrião indivíduo biológico humano. Isso significa assumir o paradigma relacional, não o paradigma individualístico-liberal dos direitos de cada um, para pensar a relação com o embrião. Segundo Kant, a humanidade é o critério de evidência que tem a objetividade da natureza para garantir a moralidade do respeito. O respeito à pessoa é coextensivo a todo aquele que é indivíduo humano, parte da humanidade, não sendo permitido impor condições para sua definição. Assim, o embrião como indivíduo humano merece o respeito ético devido à pessoa.

Se o paradigma relacional é assumido para pensar as situações limite do final da vida, como aparece o significado do “processo do morrer”? Na perspectiva individualístico-liberal (liberalismo), o momento da morte é objeto de decisão autônoma. Aqui é possível questionar como a morte, momento de assunção da totalidade existencial de um ser humano, pode ser objeto de uma decisão, sempre particular. Não pode haver autonomia numa decisão dessa magnitude. Se o início da vida se define por sua processualidade, não sendo possível determinar um momento, a morte igualmente é um processo com várias etapas (KÜBLER-ROSS 1981).

Ser autônomo (autonomia moral) é tornar-se sujeito desse processo, assumindo-o na perspectiva da vivência do sentido da existência como um todo e das relações humanas que teceram a vida. O processo do morrer é fazer as contas com a vida. Por isso, o sujeito moribundo precisa ser acompanhado por diferentes terapeutas para que possa superar as suas dores, receber a solidariedade na solidão e sofrimento, encontrando significado para esse processo. Viktor Frankl apontava, por experiência própria, que a seriedade e densidade de uma vida se revelam no sofrimento, por seu caráter catártico e interpelante. A teologia cristã, como outras religiões, tem larga experiência de oferecer recursos simbólicos e espirituais para enfrentar esse momento. Mas a cultura pós-moderna individualístico-liberal não encontra sentido para o sofrimento nem quer enfrentar seu caráter catártico e interpelante, preferindo interromper esse processo pela eutanásia. Essa reflexão ética racional de defesa da dignidade do embrião e do moribundo é um exemplo de como a teologia pode atuar no contexto secular da bioética.

5 Bioética Clínica

Contemporaneamente, as relações entre médico e usuário são definidas eticamente a partir do paradigma da autonomia, como princípio primordial da bioética clínica, expresso no consentimento informado, a ser solicitado pelo profissional para qualquer intervenção no corpo do paciente. Os princípios da beneficência (prover benefícios) e não-maleficência (não provocar danos) são definidos em sua aplicabilidade a partir da autonomia, e existindo um conflito entre esses princípios e a autonomia, a ponderação, em geral, pende para esse último (BEAUCHAMP, CHILDRESS 2002). É claro que o profissional não pode aceder a um pedido que vá contra uma lei jurídica nem aceitar uma solicitação de intervenção que ponha em perigo diretamente a vida do paciente. A única possibilidade de verdadeiro conflito ético nos princípios é entre a autonomia (busca individual de bens pessoais) e a justiça (distribuição coletiva de recursos comuns), quando existe uma solicitação para o bem da saúde de um indivíduo que prejudique a aquisição de recursos básicos para o coletivo. Em geral, os médicos têm dificuldade de ver esse conflito, porque pensam apenas no bem dos seus pacientes, dificilmente raciocinando a partir da “saúde do coletivo” (saúde coletiva).

Para que os princípios da bioética não sejam aplicados de uma maneira mecânica na clínica, sem a consideração do contexto nem a ponderação das circunstâncias, Jonsen, Siegler e Winslade (1998) propõem analisar eticamente um caso clínico, tendo presente, por um lado, indicações do médico e preferências do paciente concernentes ao caso e, por outro, qualidade de vida do paciente nessa situação determinada e fatores contextuais configuradores do caso.

Esses quatro dados possibilitam uma aplicação mais balanceada e ponderada dos princípios da bioética. Contudo, para analisar o caso é necessário considerar, além dos dados, as exigências éticas que nele se manifestam. Essas exigências estão expressas pelos diferentes modelos de ética, não excludentes, mas complementares entre si: o utilitarismo, que avalia a ação pelas consequências; o enfoque liberal, que tem como critério os direitos subjetivos; a perspectiva kantiana, que propõe como exigência máxima o respeito à pessoa; o ponto de vista rawlsiano da justiça, que pondera a relação entre igualdade e diferença para alcançar a equidade; e o modelo aristotélico da virtude, que considera a moralidade a partir das atitudes.

Na análise do caso clínico, é bom ter presente e avaliar todas essas possíveis exigências éticas do agir, não contraditórias entre si. No aspecto clínico, a teologia é convidada a contribuir com os recursos simbólicos da rica tradição cristã concernente ao enfrentamento da dor e do sofrimento.

6 Bioética Sanitarista

Um princípio ético fundamental para os sistemas de saúde: não se pode cuidar da saúde individual sem se preocupar com a promoção da saúde coletiva; nem se protege universalmente a saúde das populações sem um cuidado particular pela saúde dos indivíduos. Esse pressuposto é base para qualquer política pública de saúde e fundamento do que se poderia chamar de bioética sanitarista, que se propõe refletir sobre os desafios éticos da saúde coletiva. No nível coletivo trata-se da criação de políticas públicas de prevenção de riscos que protejam as populações das condições socioculturais e político-econômicas que vulneram a sua saúde e políticas de promoção da saúde, propiciadoras de espaços de sociabilidade que possibilitem a reprodução social da vida. Portanto, as políticas públicas visam a proteção da saúde da população contra riscos e a construção de condições sociais que efetivem o direito à saúde do cidadão como dever moral do Estado. Os princípios éticos que pautam essas políticas e sua concretização num sistema coletivo de saúde são a universalidade do acesso (todos tem o direito à atenção em suas necessidades), a integralidade do atendimento (focada nas necessidades da totalidade da pessoa e ampliada pela rede de atenção na busca de solução) e a equidade na distribuição dos recursos orçamentários, humanos e tecnológicos segundo as vulnerabilidades e necessidades diferenciadas dos grupos sociais. A realização desses princípios, na consecução do direito à saúde e na proteção contra as condições sociais de vulneração, acontece primordialmente nas Unidades de Atenção Básica (UBS), portas de entrada do sistema de saúde, inseridas no território e no contexto cultural da população adscrita à equipe de saúde e responsáveis pelos cuidados primários e longitudinais dos usuários. A efetivação individual e coletiva do direito à saúde é uma exigência de justiça social para cuja compreensão pode contribuir a reflexão teológica sobre justiça do Reino.

7 Bioética Ambiental

Martínez Alier (2009) aponta três tendências de ambientalismo. O “ecoeficientismo econômico” da proposta do desenvolvimento sustentável e da economia verde que, sem questionar o atual sistema capitalista, oferece soluções para a crise, tidas como eficientes, em coerência com as dinâmicas econômicas desse sistema, tendo a natureza como estoque de recursos. A perspectiva é antropocêntrica, centrada nos interesses dos seres humano. Outra tendência é o “culto ao silvestre”, presente em muitas ONGs de ecologia do primeiro mundo que defendem uma visão museificada da natureza, porque lutam por preservar certos ecossistemas como intocáveis sem presença humana. Essa tendência é biocêntrica, focada nos interesses dos seres vivos. Uma terceira tendência é o assim chamado ecologismo popular, típico das populações indígenas e camponesas da América Latina, que defendem a natureza como oikos, casa, lugar da sobrevivência e reprodução social da vida, não aceitando que ela seja reduzida a estoque de extração de recursos, como acontece quando grandes empresas petroleiras, mineradoras e de agronegócio instalam-se em seus territórios seculares de origem.

A luta ambiental dessas populações é acusada por seus governantes como contrários ao progresso dos seus países, quando é necessário questionar qual desenvolvimento e para quem, pois esses povos originários defendem o seu ecossistema de sustentabilidade biossocial em integração com os outros seres vivos que lá habitam. Eles são movidos por uma perspectiva ecocêntrica, único enfoque adequado para a ética ecológica e para o enfrentamento da crise ambiental. Nesse embate existe uma visão antagônica e irreconciliável sobre a natureza: como estoque de recursos para extração ou como ecossistema de sobrevivência e sustentabilidade vital. Outra versão do ecologismo popular é o movimento “Justiça Ambiental” (ACSELRAD, MELLO, BEZERRA 2008) que denuncia o descarte de danos ambientais de processos econômicos industriais, agrários e governamentais para territórios de populações pobres, que sofrem as consequências negativas do atual metabolismo social da economia globalizada.

Injustiça ambiental é o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, econômica e socialmente, destinam maior carga de danos ambientais do desenvolvimento às populações marginalizadas. Esse enfoque do ecologismo popular, que concebe a natureza como ambiente da sustentabilidade ecossistêmica e denuncia o metabolismo social do descarte de danos ambientais para populações fragilizadas, pode oferecer uma perspectiva ecológica para repensar em outros moldes a tradicional teologia da criação (JUNGES 2001), concebendo a natureza criada não como estoque de recursos, mas como ecossistema vital para todos os seres vivos.

José Roque Junges, SJ, UNISINOS, Brasil.

8 Referências Bibliográficas

ACSELRAD, H.; MELLO, C. C. A.; BEZERRA, G. N. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2008;

BEAUCHAMP TL, CHILDRESS JF. Principles of Biomedical Ethics. Oxford/New York: Oxford University Press, 1979.

BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J. F. Princípios de Ética Biomédica. São Paulo: Loyola, 2002.

BEECHER, H. K. Ethics and Clinical Research. The New England Journal of Medicine, 274 (24), p. 367-72. 1966.

BOURGUET, V. O ser em gestação. Reflexões bioéticas sobre o embrião humano. São Paulo: Loyola, 2002.

CADORÉ, B. Le théologien entre Bioéthique et Théologie. La Théologie comme méthode. Revue des Sciences Religieuses, 74, p.114-29. 2000.

FRANCISCO. Evangelii Gaudium. Vaticano, 2013.

JAHR, F. Bioethik: eine Übersicht der Ethik und der Beziehung des Menschen mit Tieren und Pflanzen. Kosmos, Gesellschaft der Naturfreunde, 24, p.21-32. , 1927.

JUNGES, J. R. Bioética Hermenêutica e Casuística. São Paulo: Loyola, 2006.

______. Ecologia e Criação. Resposta cristã à crise ambiental. São Paulo: Loyola, 2001.

______. O nascimento da bioética e a constituição do biopoder. Acta Bioethica, 17 (2), p.171-8. 2011.

JONSEN, A. R.; SIEGLER, M.; WINSLADE, W. J. Clinical Ethics. A Practical Approach to Ethical Decisions in Clinical Medicine. 4.ed. New York: McGraw Hill, 1998.

KÜBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

MARTÍNEZ ALIER, J. O Ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto, 2009.

POTTER, V. R. Bioethics. Bridge to the Future. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1971.

SCHRAMM, R. F. Bioética sem universalidade? Justificação de uma Bioética Latino-americana e Caribenha de Proteção. In: GARRAFA, V.; KOTTOW, M.; SAADA, A. Bases conceituais da Bioética. Enfoque Latinoamericano. São Paulo: Gaia, 2006. p.143-57.