Sumário
1 O TaNaK desde o Exílio até nossos dias
2 Traduções
2.1 A Bíblia grega
2.2 Targum
3 O Talmud
4 A Bíblia cristã e sua leitura não judaica
4.1 Na Patrística
4.2 Na Idade Média
4.3 Na Modernidade
5 A reaproximação entre leitura judaica e leitura cristã
5.1 Vaticano II
5.2 O povo judeu e suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã
5.3 Verbum domini
6 Referências bibliográficas
O surgimento da Bíblia se deu ao longo de vários séculos, em lugares, tempos e padrões literários diversificados (cf. Hb 1,1). Da mesma forma, também não foi acolhida imediatamente, mas gradativamente. A composição dos textos bíblicos faz parte de um processo que tem como principal marco histórico a dominação estrangeira sobre “o povo da Aliança”. Foi para firmar a própria identidade e evitar a diluição cultural em meio às nações estrangeiras que os descendentes dos hebreus empregaram o recurso de colocar por escrito suas experiências com o Deus dos antepassados, como testemunho de fé para as gerações posteriores.
1 O TaNaK desde o exílio até nossos dias
O estabelecimento da monarquia no antigo Israel (por volta de 1013 aC) suscitou a presença de escribas (cf. 1Rs 4,3) na Corte real, como redatores de documentos e de crônicas anuais sobre ações dos reis. Muitas informações, nesses anais, serviram de base para vários textos bíblicos posteriores (cf. 1Rs 14,19 et passim). Depois do cisma político (em torno de 931 aC), o Reino do Norte sofreu vários golpes de estado, até que, em 722 aC, os assírios tomaram a capital Samaria e miscigenaram a população com as de outras regiões de seu império (cf. 2Rs 17). No Sul, porém, perpetuava-se no comando político a linhagem de Davi, até que a capital Jerusalém caiu sob o poder dos babilônios. As elites políticas, religiosas e intelectuais do Reino de Judá foram exiladas para a Babilônia a partir de 586 aC O exílio durou até 538 aC, quando Ciro, rei da Pérsia, permitiu que os judeus voltassem para Jerusalém e restaurassem a religião (DONNER, 1997, p.433-43)
Durante o exílio babilônico e depois dele, os judeus, tanto os exilados como os remanescentes em Judá, consignaram em forma de livro sua experiência com Deus. Tradições orais e litúrgicas tomaram corpo e sofreram diversas redações até culminarem em um corpus escriturístico integrado. Esse corpus passou a ser conhecido como TaNaK, um acróstico de suas três partes: Torá (Lei), Neviim (Profetas) e Ketuvim (Escritos). É comumente aceito que Meliton (falecido em 180 dC), bispo de Sardes (na Ásia Menor), tenha cunhado a terminologia Antigo Testamento, para denominar os livros que o judaísmo chama de TaNaK (SKARSAUNE, 1996, p.411-6).
A Torá também é chamada de Lei, Lei de Moisés e Pentateuco. Designa os cinco primeiros livros da Bíblia e é considerada como os escritos fundamentais da fé judaica, porque trata da eleição, da promessa e da aliança de Deus para com os patriarcas. Os Neviim ou Profetas narram os fatos que vão desde a morte de Moisés até a destruição do Primeiro Templo pelo império babilônico e incluem relatos de acontecimentos, profecias, exortações, consolações e esperanças de um futuro promissor para o povo da Aliança. Os Ketuvim, também chamados de Escritos, tem conteúdo educacional, orações, filosofias, contos edificantes, textos apocalípticos, canções e lamentos de vários tipos etc.
Ao ser lida e estudada nas sinagogas judaicas, logo depois do exílio babilônico, a Bíblia ainda não era o que é atualmente. De acordo com a maioria dos pesquisadores, a atual configuração do Antigo Testamento data de depois do ano 70 de nossa era, final do processo de recepção desses escritos e a consequente fixação do conjunto dessas obras que constituem o TaNaK. A destruição do Segundo Templo, em 70 dC, foi um dos principais catalisadores para a definição dos livros aceitos como sagrados (lidos na liturgia da sinagoga) e dos livros reservados à leitura pessoal e não pública. A sacralidade de alguns deles foi discutida, como o Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos e Ester, e esses, após longa discussão, foram finalmente aceitos como sagrados. Além desses, alguns escritos foram proibidos de ser lidos por terem sido considerados como obras de grupos sectários de judeus helenistas e seguidores de Jesus de Nazaré (BARTON, 1996, p.67-83).
O final do processo de aceitação do TaNaK visava firmar a identidade do judaísmo e servir como medida preventiva contra desvios na interpretação da Torá. A aceitação final dos livros tornou o judaísmo definitivamente uma “religião do livro”, porque é nesse conjunto de obras reconhecidamente inspiradas que o judeu de cada época interpreta sua experiência de fé e sua identidade como povo. A aceitação do TaNaK se configura como fator de unidade entre os judeus espalhados entre as nações em todas as épocas.
2 Traduções
2.1 A Bíblia grega
Quando os judeus estavam sob o domínio helenístico dos ptolemeus, cuja sede política era Alexandria, no Egito, o TaNaK, escrito originalmente em hebraico, foi traduzido pelos judeus da diáspora helenista para o grego koiné (entre o III e o I século aC). Essa versão grega, chamada Septuaginta (LXX), fez várias mudanças nos títulos originais dos livros hebraicos e na forma de agrupá-los, os quais foram organizados em novas seções assim distribuídas: Pentateuco, Históricos, Hagiógrafa (do grego: escritos sagrados) e Profetas. Por causa da mudança de uma língua semita para um idioma indo-europeu, os tradutores tiveram que lidar com dificuldades em verter os conceitos de uma cultura para outra, portanto muitas modificações foram inseridas também nos textos.
Como a LXX levou muitos séculos para ser terminada, enquanto o trabalho de tradução avançava, a lista de livros se expandia. Por isso, além da tradução daqueles livros que pertenciam ao domínio judaico do TaNaK, a versão grega também adicionou outras obras originalmente escritas em grego.
O judaísmo rabínico (posterior ao ano 70 dC, cujo marco é a destruição do Segundo Templo), não recebeu a Septuaginta como texto adequado para a leitura pública na liturgia da sinagoga. Várias razões foram dadas para isso. Primeiramente, alguns erros de tradução foram denunciados. Em segundo lugar, os textos hebraicos, em alguns casos (especialmente o livro de Daniel), utilizados pela Septuaginta diferiam do texto hebraico declarado sagrado e fixado. Em terceiro lugar, os rabinos queriam distinguir a tradição genuinamente judaica daquela emergente confessada pelos seguidores de Jesus. De fato, as comunidades cristãs dos primórdios aceitaram amplamente a LXX e fizeram dela a Escritura Sagrada para fundamentar sua fé. Finalmente, os rabinos alegaram autoridade divina para a língua hebraica, em contraste com o aramaico ou o grego, mesmo quando essas línguas se tornaram idioma franco dos judeus naquela época. Entretanto, nas obras de judeus helenistas como Fílon de Alexandria e Flávio Josefo, a LXX é considerada com igual valor que o texto hebraico. Também foram encontradas cópias da Septuaginta entre os manuscritos de Qumran no Mar Morto; isso testemunha seu valor para os judeus daquele tempo (WEVERS, 1996, p.87-90).
Por volta do século II dC, vários fatores levaram a maioria dos judeus a abandonar o uso da LXX. O principal deles foi a associação da LXX com o cristianismo, tornando-a suspeita aos olhos das novas gerações de judeus. De fato, a maior parte dos cristãos desconhecia o hebraico, seja porque tinham vindo do judaísmo helenista ou porque fossem gentios. Como a LXX era a única versão grega da Bíblia até então, ela se tornou extremamente necessária para essas pessoas e passou a ser a Bíblia do cristianismo nascente. Os escritores do Novo Testamento, ao citarem as escrituras judaicas, utilizam-se livremente da LXX, dando a entender que Jesus e os apóstolos a consideravam confiável. Durante as polêmicas judaico-cristãs dos primeiros séculos de nossa era, pensou-se inclusive que os judeus tinham alterado o texto hebraico para torná-lo diferente da tradução grega em várias passagens que eram fundamentais para os cristãos (WEVERS, 1996, p.91).
2.2 Targum
As suspeitas levantadas contra a LXX, por causa de sua vinculação a uma religião em conflito com o judaísmo da época, podem ter contribuído para mais ampla utilização da tradução aramaica autorizada do TaNaK, denominada de Targum.
O Targum não era de fato uma tradução, mas se constituía como paráfrases com explicações e ampliações dos textos do TaNaK, feitas por um intérprete autorizado, na linguagem comum dos ouvintes, com o objetivo de atualizar o texto antigo para novas gerações e novos contextos históricos. As principais modificações feitas pelo Targum tinham por objetivo evitar os antropomorfismos e dar preferência à alegoria, para salvaguardar a transcendência de Deus (RIBERA, 1994, p.218-25).
O TaNaK foi recebido pelo Targum com muita liberdade. Várias modificações foram acrescentadas no texto, mesmo porque não houve a pretensão de substituir o texto hebraico pelo aramaico. O texto hebraico continuou sendo lido publicamente na sinagoga e logo depois o Targum auxiliava a compreensão dos ouvintes, visto que poucos sabiam hebraico.
Algumas tradições judaicas a partir da Babilônia aceitaram o Targum como escrito de autoridade, ou seja, como texto sagrado ao lado do TaNaK. Isso, posteriormente, tornou-se uma questão de debate. Somente no Iêmen ainda se usa o Targum na liturgia da sinagoga.
Apesar de todas as controvérsias na recepção do Targum para definir sua importância e seu uso, hoje é amplamente admitido que a paráfrase aramaica é essencial para o estudo do TaNaK, mesmo quando as comunidades judaicas não eram mais falantes do aramaico. O fato de o Targum nunca ter deixado de ser uma fonte importante para a exegese judaica mostra sua ampla aceitação como fonte fundamental de comentário do TaNaK. Vários manuscritos bíblicos medievais contêm o texto hebraico e o aramaico interpolados versículo por versículo. Esse fato tem suas raízes na exigência de utilização do Targum para estudo privado do TaNaK lido publicamente no sábado (RIBERA, 1994, p.218-25).
3 O Talmud
O Talmud, compilação das discussões rabínicas sobre os diversos aspectos da práxis judaica, também se posiciona sobre a recepção das Escrituras. Os comentários rabínicos do TaNaK que compõem o Talmud são apresentados como a Torá oral dada a Moisés e transmitida às gerações seguintes (Avot 1,1). Por isso, o Talmud, como resultado das tradições orais de várias gerações de rabinos, é tido com igual autoridade do texto bíblico da Torá.
No Talmud da Babilônia, no tratado sobre o Sinédrio, Sanhedrin 90a, os rabinos discutem sobre quem participará ou não do mundo vindouro, do mundo regenerado. Nessas discussões afirmam, entre outras coisas, que estará excluído do mundo futuro todo aquele que não tiver a Torá como divinamente inspirada. E Rabi Akiva acrescentou que tal aconteceria, também, a quem lesse um livro não canônico, ou seja, um dos livros entre os que não “mancham as mãos”, i.e., que não deixam as mãos marcadas pela sacralidade. Dada a importância de Akiva e a polêmica entre judeus e cristãos nos primeiros séculos da era comum, esta postura mais severa também foi incluída no Talmud de Jerusalém, tratado Sanhedrin 10a e 28a.
Entre os livros que “não mancham as mãos”, o Eclesiástico, ou Sirácida, recebeu o tratamento mais excludente no Talmud, pois foi colocado entre as obras pertencentes aos minim ou hereges (Tosefta Yadaim II, 13). Apesar de ter sido excluído do cânon e das proibições com que foi cercado, o Sirácida permaneceu popular entre os judeus e é citado frequentemente no Talmud (TREBOLLE BARRERA, 1993, p.48-9; 141-50; 159-213).
Tudo isso mostra uma atitude paradoxal, presente na compilação do Talmud, em relação à recepção das Escrituras. Por um lado, certas obras são muito úteis para fundamentar a práxis do judaísmo dos primeiros séculos da era comum. Por outro lado, essas mesmas obras, como o Sírácida, são igualmente fundamentais para justificar o cristianismo. Portanto, elas são usadas com frequência como dicta probantia pelos rabinos e são, igualmente, declaradas proibidas como livros dos hereges.
A posição dos compiladores do Talmud também não difere muito a respeito da LXX. Eles têm que enfrentar o fato de que a versão grega existe e é amplamente usada pelos judeus, visto que poucos ainda dominam a língua mater dos ancestrais. No entanto, o Talmud não pode oficializar uma aprovação à versão grega do TaNaK por motivos ideológicos e históricos, compreensíveis dentro do contexto no qual as tradições rabínicas foram compiladas.
Para resolver esse impasse, os rabinos acolhem uma lenda, bastante divulgada, sobre o surgimento da LXX. A menção a essa lenda reflete as preocupações e ansiedade dos rabinos não só sobre a Septuaginta, mas também sobre sua própria posição, autodefinida como transmissores da tradição mosaica, em um contexto no qual são desafiados tanto por uma hegemonia cultural greco-romana, quanto pela existência dos judeus cristãos e judeus helenistas, que pretendem ser os verdadeiros herdeiros dos patriarcas e profetas.
A lenda sobre o surgimento da LXX relata que o rei Ptolomeu reuniu setenta e dois anciãos e os colocou em setenta e duas salas separadas, sem dizer-lhes por que os tinha reunido. Depois o rei teria dito, a cada um deles em particular, que traduzissem a Torá de Moisés. Deus, então, os inspirou de forma que todos concebessem a mesma ideia (Talmud da Babilônia, tratado Megilla 9a).
A LXX é um fato. A lenda tal como está no Talmud traz uma ambiguidade, afirma que “eles conceberam a mesma ideia”, mas não diz que a tradução é boa. Para os rabinos compiladores do Talmud, a Torá jamais será traduzida de forma adequada.
Alguns textos rabínicos veem a tradução como um processo essencialmente problemático e consideram as tentativas de realizá-lo como algo escandaloso. Intimamente ligado a isto está a questão da precisão do texto bíblico recebido e transmitido pelos rabinos, em relação às traduções das Escrituras, que podem, por vezes, refletir diferentes versões dos textos no idioma original hebraico. Isso levanta questões urgentes para a teologia rabínica, visto que, após a destruição do Templo, os rabinos não apenas escolheram os livros sagrados, mas também o texto hebraico que melhor servia para conferir a autenticidade de suas tradições no momento de polêmicas em que estavam vivendo (TOV, 1999, p.1-20).
Quanto ao Targum, o Talmud preocupou-se, antes de tudo, em deixar bem claro que o texto bíblico e sua tradução eram coisas bem diferentes, sendo distinto o valor de cada um. A legislação do Talmud a respeito do Targum vai, principalmente, manter essa distinção: o leitor e o tradutor (metargumen, intérprete) não podem ser o mesmo (Talmud da Babilônia, tratado Sotah 39b) e o texto bíblico tem que ser lido, enquanto a tradução deve ser feita de memória (Talmud de Jerusalém, tratado Megilla 74d).
Contudo, ainda que a tradução (o targum) esteja claramente subordinada ao texto bíblico, ela permitia, ao mesmo tempo, dar a conhecer a correta interpretação desse, atualizando-o e até mesmo mudando-lhe o significado. Dessa forma, a versão aramaica mantinha intocável o texto hebraico, considerado sagrado e, ao mesmo tempo, atualizava-o para que respondesse aos novos desafios, sem a necessidade de modificar o texto.
Quando o Targum foi escrito, junto às funções de tradução e de atualização desempenhou também o papel de instrumento de estudo do texto bíblico dentro do sistema educativo rabínico, e isso então se tornou sua função primária até agora (PÉREZ, 1996, p.533-62).
4 A Bíblia cristã e sua leitura não judaica
Durante os séculos I-VI, os judeus cristãos tiveram muitos problemas com a sinagoga e precisaram justificar a sua fé procurando na Escritura passagens que os ajudassem a reler a vida de Jesus. Esse tipo de leitura bíblica configurou-se como:
– tipológico: as passagens do Antigo Testamento seriam figuras e tipos das ações messiânicas de Cristo. Ex: Mt 16,4; Lc 11,29.
– alegórico: prevaleceu o símbolo, mais que a interpretação literal ou histórica. Ex: Gl 4,22-28.
– cristológico: o mistério da salvação tem o seu único eixo em Cristo. Ex: Lc 24,25-27 (GILBERT, 1995, p.65-126).
4.1 Na Patrística
Os Padres Apostólicos procuram fundamentar na Bíblia suas doutrinas que tinham um cunho pastoral. Os apologetas estavam às voltas com polêmicas provocadas pelos pagãos e pelos judeus. Seu acesso à Bíblia tinha por objetivo: refutar calúnias conta os cristãos; lutar contra costumes, mitos e ritos judaicos e pagãos; defender como verdadeiras as doutrinas dos cristãos e rejeitar literaturas judaicas e pagãs que poderiam se contrapor ao cristianismo (SÁNCHEZ, 1996, p.58-62).
Durante o período da patrística, a recepção da Bíblia se efetivou a partir do sentido histórico, moral e alegórico. Histórico significa, nessa perspectiva, que cada acontecimento fala sobre Jesus, portanto as Escrituras Hebraicas nada mais fazem que falar sobre Cristo e sua igreja.
4.2 Na Idade Média
Além dos sentidos conhecidos até então (literal, histórico, alegórico, moral), na Idade Média foi utilizado também o anagógico, sentido místico que elevava o cristão até as realidades celestiais. Como muitos eram iletrados e não podiam ter acesso à Bíblia, foi incentivada a representação de cenas bíblicas através da pintura. À pregação caberia, então, a missão de dar a explicação dessas representações. Fundou-se uma catequese pela imagem, fornecendo uma consciência limitada da Bíblia, representada sem as dificuldades, contradições, diferenças e incoerências do texto bíblico. Apesar disso, a Bíblia foi a fonte de todo conhecimento na Idade Média, mesmo seu acesso sendo restrito a poucos (SÁNCHEZ, 1996, p.62-3; GILBERT, 1995, p.127-34).
4.3 Na Modernidade
Com a invenção da imprensa, a Bíblia tornou-se um livro acessível a quem desejasse e pudesse possuí-lo. O texto que antes estava oculto aos olhos da maioria, logo começou a revelar sua dificuldade, provocando dúvidas, críticas e as mais diversas interpretações. Assim, o sentido literal, antes não muito importante, passou a ocupar a primazia. Lutero proclama “só a Escritura”, relativizando toda a interpretação realizada até ali. E, para completar, os Reformadores conclamaram uma volta à verdade hebraica. A partir de então, começou um estudo crítico das Escrituras, mas a verdade hebraica tão conclamada ainda não era uma reaproximação com a leitura judaica das Escrituras. A Bíblia ainda era recebida sem se levar em conta suas raízes mais profundas.
5 A reaproximação entre leitura judaica e leitura cristã
A consideração das raízes hebraicas das Escrituras e a reaproximação entre a leitura judaica e a leitura cristã teve seu início entre os católicos quando, em 1943, o Papa Pio XII escreveu a encíclica Divino Afflante Spiritu, sobre o modo mais oportuno de promover os estudos da Sagrada Escritura. Nesse documento, Pio XII pede que a Bíblia ocupe um lugar central na teologia e na vida dos fiéis. Afirma a importância do conhecimento sobre o hagiógrafo, o gênero literário, a história, as antiguidades etc.
Um acontecimento muito significativo para esta reaproximação entre judeus e católicos na recepção das Escrituras foi a descoberta dos manuscritos de Qumran, em 1947, que provocou certo frisson entre pesquisadores. Consequência disso foi um despertar para pesquisas referentes aos diversos aspectos da vida judaica em torno do primeiro século da era comum, fato que fez surgir um movimento de retorno às raízes judaicas da fé cristã.
5.1 Vaticano II
Em 1962 começou o Concílio Vaticano II, fruto de vários movimentos de renovação, modernização e reaproximação, que vinham se desenvolvendo já há muitos anos.
Na Declaração Nostra Aetate, sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs, os padres conciliares afirmam que a Igreja não deve esquecer que, por meio do povo de Israel, “ela recebeu a Revelação do Antigo Testamento e se alimenta pela raiz de boa oliveira, na qual como ramos de zambujeiro foram enxertados os Povos” (Nostra Aetate n.4).
O coroamento desse movimento de reaproximação no Vaticano II foi a promulgação, no dia 18 de novembro de 1965, pelo Papa Paulo VI, da Dei Verbum, Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina. Nessa Constituição se reafirma a mesma postura de abertura também presente na Nostra Aetate, quando escreveram os padres conciliares que “Deus, desejando a salvação do gênero humano, escolheu ‘por especial providência’ o povo de Israel e com ele estabeleceu aliança e a ele confiou suas promessas, para preparar a salvação do gênero humano” (Dei Verbum n.14). Portanto, a revelação narrada e explicada no Antigo Testamento é verdadeira palavra de Deus (Dei Verbum n.14), pois manifesta conhecimento a respeito de Deus e do ser humano e o modo como todos os seres humanos são tratados pelo Deus justo e misericordioso. “Tais livros, apesar de conterem também coisas imperfeitas e transitórias, revelam, contudo, a verdadeira pedagogia divina” (Dei Verbum n.15).
5.2 O povo judeu e suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã
Em preparação para a celebração dos 50 anos da Dei Verbum, a Pontifícia Comissão Bíblica, em 24 de maio de 2001, lançou o documento O povo judeu e suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã. A questão ali levantada é sobre as relações que a Bíblia estabelece entre judeus e cristãos, já que a Bíblia cristã é composta em sua maior parte pelas Sagradas Escrituras do povo judeu e o Novo Testamento, no qual se expressa a fé em Jesus Cristo, está em estreita relação com o Antigo Testamento (n.1).
O Novo Testamento não é uma novidade absoluta: está enraizado nas Escrituras do povo judeu e lhes reconhece a autoridade divina. Esse reconhecimento é expresso de modo implícito usando terminologias, reminiscências e citações implícitas e explícitas (n.2-4). Proclama-se que o Novo Testamento está de acordo com as Sagradas Escrituras do povo judeu na dupla convicção: da necessidade de que se cumpram as Escrituras e na conformidade dos eventos do Novo Testamento com as Escrituras do povo judeu (n.6-8).
O tema da recepção das Escrituras judaicas na fé de Cristo considera, principalmente, a unidade do plano de Deus e a noção de cumprimento, pois o Antigo Testamento se abre progressivamente a uma perspectiva de cumprimento último e definitivo, que o cristianismo vê como já realizado substancialmente no mistério de Cristo. Sendo assim, a contribuição da leitura judaica da Bíblia é muito útil, análoga à leitura cristã que se desenvolveu em paralelo durante alguns séculos. Mas, por razões hermenêuticas, os cristãos não devem fazer a leitura judaica da Bíblia da mesma maneira que os judeus, pois isso significaria aceitar todos os seus pressupostos, como a autoridade do Talmud, a primazia da Torá sobre os demais livros, a crença que o messias ainda não veio etc. Cada uma das leituras, a judaica e a cristã, é coerente com sua visão de fé respectiva, da qual é resultado e expressão, e são mutuamente irredutíveis. Os cristãos podem aprender com a exegese judaica, e vice-versa.
5.3 Verbum Domini
Em 11 de novembro de 2010, o Papa Bento XVI publicava a exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini, que recolheu as conclusões da assembleia do Sínodo dos Bispos celebrada no Vaticano em outubro de 2008, com o objetivo de “revalorizar a Palavra divina na vida da Igreja”.
O objetivo do documento, esclarecia o Papa na introdução, era “indicar algumas linhas fundamentais para uma redescoberta, na vida da Igreja, da Palavra divina, fonte de constante renovação”. Além disso, o Papa expressou o desejo e a esperança de que a Palavra de Deus se tornasse cada vez mais o “coração de toda a atividade eclesial”.
É precisamente dentro desse objetivo e esperança que a Verbum Domini considera a relação entre Antigo e Novo Testamento, admitindo que essa relação é íntima e que é necessário “fixar a atenção no vínculo peculiar que isso cria entre cristãos e judeus, um vínculo que não deveria jamais ser esquecido” (n.43). Admitir que existe esse vínculo peculiar “não significa ignorar as rupturas atestadas no Novo Testamento relativamente às instituições do Antigo Testamento”. Essas rupturas existem, estão na ordem do processo histórico e da hermenêutica constitutivos da identidade de judeus e cristãos, embora também seja fundamental considerar “o cumprimento das Escrituras no mistério de Jesus Cristo, reconhecido Messias” pelos cristãos (n.43).
Essa posição dos padres sinodais em relação às Escrituras hebraicas torna-se, na Verbum Domini, o coroamento da posição oficial dos católicos de reaproximação entre leitura judaica e leitura cristã da bíblia, quase cinquenta anos depois do Concílio Vaticano II.
Aíla Pinheiro, FCF, Brasil. Texto original português.
6 Referências bibliográficas
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