Antigo Testamento

Sumário

1 Panorama histórico-literário

2 Panorama teológico-literário

2.1 Muitas teologias no AT

2.2 Dois Antigos Testamentos

2.3 Atual divisão dos livros do AT

3 Torah ou Pentateuco

4 Livros históricos

4.1 Obra Histórica Deuteronomista e o livro de Rute

4.2  Obra Histórica do Cronista

4.3 Novelas edificantes e livros de aventura

5 Livros sapienciais e livros poéticos

6 Livros proféticos

6.1 Profetas não escritores e profetas escritores

6.2 Profetas maiores e profetas menores

6.3 A mensagem dos profetas

7 Antigo Testamento e Palavra de Deus

8 Referências bibliográfica

1 Panorama histórico-literário

Deus se revela na história, não somente por palavras, mas também e principalmente pelos fatos. Por isso, o discurso de Deus é:

a) situado e encarnado em um tempo e em uma sociedade, uma linguagem e uma cultura.

b) progressivo, isto é, espalhado no tempo, até encontrar a sua plenitude em Cristo.

c) mantém estritamente unidas história e Palavra, de modo que a Palavra de Deus faz a história, dirigindo-a e interpretando-a.

O Antigo Testamento levou aproximadamente mil anos para ser escrito. A cada nova situação histórica, os fatos do passado e do presente são relidos, reinterpretados, recontados. Por isso, é necessário pontuar alguns acontecimentos importantes e, neste arco de tempo, situar o processo de formação dos livros bíblicos. Nesta linha do tempo, todas as datas são anteriores à era cristã ou comum (isto é, aC):

  • 1000-931: Império davídico-salomônico
  • 931: morte de Salomão
  • Separação dos dois reinos irmãos e início de uma história paralela: Norte (Israel ou Efraim) e Sul (Judá)
  • 883: ressurgimento da Assíria como grande potência militar
  • 722 (ou 721): invasão Assíria e destruição do Reino do Norte (Israel/Efraim)
  • 722/721-586: história do único reino independente, o Sul (Judá)
  • Gradual enfraquecimento da Assíria e ressurgimento da Babilônia
  • 640-609: reinado de Josias (reforma política e religiosa)
  • 597: primeira deportação para a Babilônia
  • 586: invasão de Jerusalém pelos babilônicos, destruição do Templo, segunda grande deportação para a Babilônia e início do período chamado de “exílio”
  • 586-537: exílio na Babilônia
  • 555: início da campanha de Ciro, rei dos medos e dos persas
  • 539: entrada vitoriosa de Ciro na Babilônia
  • 538: edito de Ciro, autorizando os judeus deportados a retornarem a Jerusalém
  • 537: início do período da reconstrução de Jerusalém e do Templo
  • 333: Alexandre o Grande conquista o Antigo Oriente Próximo (Oriente Médio)
  • 323: morte de Alexandre o Grande na Babilônia; divisão do seu império entre os diádocos
  • 167-164: Antíoco IV Epífanes inicia um processo de helenização obrigatória
  • Revolta dos Macabeus: guerra, perseguição e mártires
  • 63: Roma conquista o Oriente Médio
  • 40-4: Reinado de Herodes o Grande
  • 6 (aC!): Nascimento de Jesus

De todas essas datas, a que tem maior impacto na história e na literatura do AT é o ano de 586, que marca o início do período do exílio.

Em termos de história civil e política, o exílio marca o fim da monarquia e da independência. Não só isso. Também a religião é afetada e, por conseguinte, os textos que formarão a Sagrada Escritura.

A cada novo importante acontecimento, há uma nova etapa na história de Israel/Judá. Os fatos do passado são recontados e explicados à luz da nova situação social, histórica e política, para dar sentido ao presente e abrir a esperança do futuro.

Desde os tempos do império davídico-salomônico até os tempos da reconstrução pós-exílica (períodos assírio, babilônico e persa), surgem e são amalgamadas diversas tradições orais e escritas. O resultado é a obra historiográfica-legislativa do Pentateuco (também chamado de Torá), um relato mais ou menos linear das origens (criação, queda, dilúvio), dos patriarcas (Abraão, Isaac, Jacó/Israel, José e seus irmãos), do êxodo e da travessia do deserto.

Outra tradição historiográfica assume a tarefa de narrar os eventos desde a conquista de Canaã até o exílio, passando pelo período dos juízes, da monarquia unida e dos reinos divididos.

Com a consolidação da monarquia, consolida-se também o profetismo, que perdura até os anos da reconstrução e talvez além. Nem todos os profetas são conhecidos por seu nome, nem todos escreveram. Não obstante, muito da mensagem desses mensageiros divinos foi conservada, graças a uma intensa atividade literária, empreendida por eles mesmos ou por seus discípulos.

As mudanças históricas e políticas, tanto na sociedade de Judá como no cenário internacional, levam ao gradativo desaparecimento da profecia, deixando espaço para dois outros movimentos literário-religiosos de extrema importância e vitalidade: a tradição apocalíptica e a tradição sapiencial.

A apocalíptica impregna já alguns dos livros proféticos canônicos. Mas sua principal produção literária não pertence ao cânon bíblico. Diferentemente, a tradição sapiencial foi amplamente acolhida no cânon, com escritos que refletem sobre o sentido da existência humana.

Os escritos de diversas tradições poéticas também foram assumidos no cânon do AT. Igualmente tradições historiográficas de menor envergadura, que produziram novelas edificantes e livros de aventura, todos refletindo os desafios que as circunstâncias sociais e históricas impunham às comunidades do povo de Deus, não só em Jerusalém, mas também fora da Judeia/Palestina.

 2 Panorama teológico-literário

 2.1 Muitas teologias no AT

Cada um dos livros que temos hoje levou muito tempo para chegar à sua forma atual e, na maioria dos casos, não foi obra de uma única pessoa. Por isso, é necessário falar não de teologia, e sim de teologias do Antigo Testamento: a teologia da chamada escola deuteronomista é diferente da teologia de um grupo normalmente chamado de javista; a teologia de Jó é totalmente diferente da teologia de Sirácida (Eclesiástico).

2.2 Dois Antigos Testamentos

Um conjunto de livros que formam o que normalmente chamamos de Antigo Testamento já estava completo antes do ano 200 aC Por ter sido escrito em hebraico (uma mínima parte em aramaico) é chamado de Bíblia Hebraica e tem três divisões: Torah (Lei), Nebi’îm (Profetas), Ketubîm (Escritos). É comumente chamado de TaNaK (palavra formada pela primeira letra do título de cada parte).

Em torno do ano 180 aC, foi feita a tradução da Bíblia Hebraica para o grego. Mas essa não foi somente uma tradução: houve também adaptações e acréscimos, tanto de partes como de livros inteiros. A tradução grega é conhecida como Setenta ou Septuaginta e indicada pelas letras LXX (setenta em algarismos romanos).

Entre a Bíblia Hebraica e a LXX, portanto, há várias diferenças além da língua: ambiente histórico, social, político, geográfico; adaptações e acréscimos; livros novos na LXX (nem todos no cânon de nossas Bíblias); agrupamento e ordem dos livros.

As bíblias católicas se diferenciam das bíblias protestantes/evangélicas porque, além dos livros da Bíblia Hebraica, incluem também alguns dos livros novos que foram acrescentados na LXX. São eles: Baruc, Eclesiástico (Sirácida), Sabedoria, Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus. Também os livros de Daniel e Ester receberam acréscimos, presentes nas bíblias católicas, mas não nas bíblias protestantes/evangélicas.

Cumpre enfim lembrar que a LXX contém ainda uma série de livros que não foram assumidos pelo cânon cristão católico: 3 e 4 Macabeus, Odes, Salmos de Salomão e 4 Esdras.

2.3 Atual divisão dos livros do AT

Nas edições cristãs da Bíblia, a ordem e o agrupamento dos livros não seguem exatamente a Bíblia Hebraica nem a LXX. Antes, os livros foram agrupados e sequenciados conforme vários critérios, tais como a importância do livro ou do bloco de livros e a cronologia dos eventos narrados. Nessas Bíblias é possível distinguir os seguintes grupos:

  • Torá (= Lei) ou Pentateuco
  • Livros históricos
  • Livros sapienciais e livros poéticos
  • Livros proféticos

3 Torá ou Pentateuco

Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio formam um complexo narrativo-legislativo. Sob o aspecto narrativo, relata-se uma história linear: as origens do mundo e da humanidade (Gn 1-11), a história dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó (Gn 12-36), a história de José (Gn 37-50), o êxodo do Egito (Ex 1-15), a Aliança no Sinai e a travessia do deserto (Ex 16-Nm 21), acampamento em Moab e últimos eventos antes de entrar na Terra Prometida (Nm 22-Dt 34).

Sob o aspecto legislativo, os cinco primeiros livros da Bíblia contêm um amplo conjunto de códigos legislativos, inseridos na narrativa linear anteriormente descrita. Destacam-se: o Decálogo (Ex 20,2-17, reelaborado em Dt 5,6-21); o Código da Aliança (Ex 20,22-23,19); a Lei de Santidade (Lv 17-26) e o Código Deuteronômico (Dt 12-26).

Este complexo narrativo-legislativo foi longamente amadurecido e composto com materiais provenientes de vários grupos, ideologias e épocas. Desde o século XVIII surgiram várias opiniões acerca da formação do atual Pentateuco, mas foi a teoria documentária de Julius Wellhausen a que se impôs desde a metade do século XIX. Segundo essa teoria, o texto atual do Pentateuco é o resultado da fusão de quatro fontes em um conjunto mais ou menos harmonioso. Essas quatro fontes são:

Javista (J): desde Gn 2,4 chama Deus de “Javé”. O local sem dúvida é Jerusalém (Reino do Sul), mas a datação é discutível: no século X aC, durante o reinado de Salomão, ou no século VII aC, sob Josias? Ou ainda no século VI aC, mais próximo do final da monarquia?

– Eloísta (E): chama Deus de “Javé” somente após Ex 3,14. Antes disso, Deus é chamado de “Elohim”. Entre os séculos IX e VIII aC, no Reino do Norte.

Sacerdotal (P, do alemão, Priestercodex): preocupa-se principalmente com aspectos rituais. Durante o exílio na Babilônia (587-537 aC) e pouco depois.

Deuteronomista (D): compôs o livro do Deuteronômio como introdução à obra historiográfica que vem a seguir (Obra Histórica Deuteronomista). Vários estratos redacionais, refletindo os diferentes momentos da história de Israel (período assírio, período babilônico, exílio, período persa).

Cada uma dessas fontes reflete um período histórico e uma ideologia religiosa. Nenhuma delas tem a intenção de escrever um relato jornalístico, e sim uma história teológica (catequética), desde as origens até as vésperas da entrada na Terra Prometida.

Não obstante críticas, revisões e correções, a teoria documentária de Wellhausen continuou soberana até a década de 1970, quando seus pressupostos básicos foram fortemente questionados. Desde então, buscaram-se outras explicações para a composição do Pentateuco. Três foram as tendências dessas novas explicações:

a) Rejeitar sumariamente a leitura diacrônica (método histórico-crítico) e, tendo como base teorias literárias recentes, assumir unicamente a leitura sincrônica.

b) Assumir uma datação recente dos textos do Pentateuco e, deste modo, eliminar as fontes mais antigas da teoria documentária, isto é, a Javista e a Eloísta.

c) Substituir o modelo de documentos pelo de redações ou reelaborações sucessivas, o que leva a vários modelos, muitas vezes fragmentados.

Não raro, retorna-se, de um modo ou de outro, às intuições de Wellhausen, ainda que apenas conceitualmente. Fala-se, por exemplo, de um Proto-Pentateuco pré-sacerdotal, de um sacerdotal básico, de um Deuteronômio deuteronomista, de releituras pós-deuteronomistas e pós-sacerdotais. Na trilha das leituras sincrônicas, fala-se de “Hexateuco” (de Gn a Js, isto é, da criação à conquista da Terra), bem como de um “Eneateuco” (de Gn a 2Rs, isto é, da criação à perda da Terra).

Esta multiplicidade de opiniões demonstra a complexidade da questão sobre a formação do Pentateuco e quão longe estamos de um novo consenso acerca de uma explicação que, como a teoria documentária clássica de Wellhausen, constitua um paradigma que se imponha por sua solidez e aplicabilidade.

4 Livros históricos

O termo “históricos” deveria vir entre aspas, uma vez que o conceito que os autores bíblicos tinham de obra historiográfica é muito diferente do que temos hoje.

4.1 Obra Histórica Deuteronomista e o livro de Rute

Josué, Juízes, 1-2 Samuel e 1-2 Reis narram de modo linear uma história complexa e cheia de reviravoltas: da conquista da Terra Prometida à perda dessa mesma terra. Na Bíblia Hebraica esses livros são chamados de “Profetas Anteriores”. Trata-se de uma obra historiográfica – a Obra Histórica Deuteronomista (OHD) – que recolhe material de outros escritos (normalmente, registros da corte) e também material inédito.

Normalmente fala-se de várias camadas redacionais, amalgamadas durante duzentos anos aproximadamente (entre 650 e 450 aC). A autoria é atribuída à chamada escola deuteronomista ou simplesmente o deuteronomista. Esse nome justifica-se pelo fato do livro do Deuteronômio funcionar como o portal de entrada para a história narrada a seguir e também oferecer os critérios para julgá-la.

O período da história de Israel coberto pela OHD começa com a confederação de tribos (Josué), passa pela conquista da terra (Juízes) e pela monarquia unida (Samuel), e culmina com a separação dos reinos e a destruição de cada um deles (Reis). É um relato sob o ponto de vista religioso e tem a finalidade de mostrar que a história vai se deteriorando sempre mais, até chegar ao limite da infidelidade, não deixando alternativa a Yhwh, exceto mandar a catástrofe para punir seu povo e, deste modo, purificá-lo. Assim, a OHD quer não só explicar por que Yhwh puniu seu povo com o exílio, mas também apontar os caminhos para superar a crise e reconstruir a comunidade, desta vez mais fiel à Aliança.

Assim progride a história na OHD:

  • Deuteronômio: a sociedade ideal, conforme a Lei de Yhwh.
  • Josué: o povo fiel, cumpridor da Aliança e da Lei.
  • Juízes: fidelidade e infidelidade se alternam, num ciclo contínuo: pecado, castigo, arrependimento, libertação
  • 1-2 Samuel e 1-2 Reis: infidelidade institucionalizada; o primeiro a ser infiel é o rei.

As edições cristãs da Bíblia seguem a LXX e inserem o livro de Rute entre Juízes e Samuel. Rute[1] é a bisavó do rei Davi e, para preparar a entrada em cena desse grande rei de Israel, a novela que narra a edificante história de Rute é inserida antes do livro que narra a passagem do período dos juízes para o período da monarquia.

4.2  Obra Histórica do Cronista

Um conjunto de quatro livros é atribuído a um autor normalmente denominado cronista, uma vez que os dois primeiros livros de sua obra recebem o nome de “Crônicas”. Esses dois escritos recontam o que fora narrado nos livros da Torá e dos Profetas Anteriores (Obra Histórica Deuteronomista) à luz da nova situação vivida pela comunidade judaíta no período do Segundo Templo. Essa releitura da Lei e dos Profetas Anteriores termina com o decreto de Ciro autorizando a volta para Jerusalém dos judeus deportados da Babilônia. Uma versão ligeiramente modificada desse mesmo decreto inicia o livro de Esdras, deixando a entender que todo o relato de Crônicas funciona como um resumo que prepara os dois livros seguintes, Esdras e Neemias, que narram as várias etapas da repatriação, da reconstrução dos muros e do templo de Jerusalém, da restauração do culto e da reorganização da comunidade.

4.3 Novelas edificantes e livros de aventura

Completando a série de livros narrativos do Antigo Testamento, as edições cristãs da Bíblia apresentam livros que preenchem o período de tempo que cobre a dominação persa, a dominação greco-helenista e os prenúncios da dominação romana.

O livro de Ester chegou a nós em duas versões – hebraica (mais curta) e grega (mais longa) – e narra a história de uma judia deportada que, como um “José feminino” chega ao poder na Pérsia e sua ação é decisiva para salvar seu povo.

As bíblias católicas acrescentam também livros escritos em grego: Tobias, Judite e 1-2 Macabeus.

Tobias é uma narrativa popular, uma novela edificante que conta as peripécias de um judeu fiel em meio a dificuldades e perigos a serem enfrentados em terra pagã. Graças a sua retidão ética, o protagonista – Tobias – experimenta a ação salvadora da providência divina.

Judite é também uma novela popular, mas do tipo heroico: uma comunidade judaica perseguida esmorece e perde a esperança. Surge então uma viúva, Judite (“a judia” por excelência), que, fortalecida por sua fé, arrisca a própria vida e salva seu povo. Como uma Ester da periferia e armada com a espada, Judite encarna a confiança nas promessas de Deus e derrota o inimigo poderoso e ambicioso.

Ester, Tobias e Judite são, pois, narrativas exemplares por meio das quais o judaísmo transmite suas convicções acerca da identidade do povo judeu, do comportamento a ser assumido em meio às crises e da fidelidade diante do impacto causado pelo helenismo.

Nessa mesma linha de aguerrida fidelidade, apresentam-se os dois livros canônicos dos Macabeus, com narrativas de episódios ambientados no período da helenização forçada empreendida por Antíoco IV Epífanes (175-164 aC).

O primeiro livro é um relato de heróis: uma família de judeus piedosos se recusa a aceitar a imposição religiosa e deflagra uma guerra contra os dominadores helenistas e a aristocracia judaica que havia aderido ao imperialismo cultural e religioso.

O segundo livro (provavelmente anterior ao primeiro) é mais religioso, reflete o sentimento dos judeus piedosos e descreve os testemunhos da fé dos que, mesmo diante da guerra, da perseguição e da morte, não renegam a religião judaica. O livro traz cenas de martírio e também de ferozes batalhas. 2 Macabeus elabora uma teologia da história e também uma explícita profissão de fé na imortalidade e na ressurreição dos justos.

5 Livros sapienciais e livros poéticos

Os livros sapienciais propriamente ditos são cinco: Provérbios, Jó, Qohélet (Eclesiastes), Sirácida (Eclesiástico) e Sabedoria. Cântico dos Cânticos e Salmos são livros poéticos.

A busca da sabedoria e do sentido da vida não foi um fenômeno exclusivo do povo bíblico nem por ele iniciado. Antes, trata-se de uma indagação comum, presente também nas culturas vizinhas (Egito, Mesopotâmia, Ugarit). A palavra sabedoria abrange não só os conhecimentos científicos, mas também e principalmente a capacidade de encontrar as soluções adequadas para todo tipo de problema: agricultura, economia, relacionamentos sociais, família etc.

Os livros sapienciais bíblicos podem ser lidos e interpretados sob o pano de fundo da chamada teologia da retribuição. Trata-se de uma doutrina que pode ser assim esquematizada:

  • justo = sábio = abençoado (rico, saudável, feliz)
  • injusto = insensato = amaldiçoado (pobre, doente, infeliz)

Em outras palavras, “aqui se faz, aqui se paga”!

Todavia, os autores bíblicos não são unânimes sobre a validade desta crença. À pergunta “a teologia da retribuição funciona?”, eis as respostas encontradas nos livros sapienciais bíblicos:

  • Provérbios e Sirácida: “Sim, funciona! E a vida humana tem sentido.”
  • Jó e Qohélet: “Não, não funciona! E a vida humana é sem sentido.”
  • Sabedoria: “Funciona, mas só na vida após a morte! E o sentido da vida humana está na felicidade extraterrena.”

Nas edições cristãs da Bíblia, entre os livros sapienciais estão inseridos dois livros poéticos: Salmos e Cântico dos Cânticos.

Na Bíblia Hebraica, o livro dos Salmos é denominado Tehillim, isto é, louvores. O título “salmos” vem da LXX, que o denomina Psálmoi, isto é, cantos para serem executados ao som de um instrumento de corda, que em grego se diz psaltérion. Esse último termo grego passou a designar o livro todo, como uma coleção de hinos, louvores, cantos. Na verdade, porém, o livro é uma coleção de coleções: 150 peças literárias de vários tamanhos, estilos e gêneros (súplicas, lamentações, poesias doutrinais, hinos e louvores).

O Cântico dos Cânticos é também uma coletânea de poesias ou cantos de amor, nos quais se concentram as várias faces do desejo e da paixão: a descrição da pessoa amada, a saudade, o anseio, o prazer etc. O Cântico elabora uma teologia do amor humano: mais do que um sentimento, o amor é uma realidade intrinsecamente boa e que justifica a si mesma, que é fim em si mesma. Isso, porque o amor humano inspira-se no amor divino e é parábola dele, pois revela como Deus nos ama: com paixão, ansiedade, alegria, prazer, fúria.

6 Livros proféticos

A palavra profeta vem do grego pro-fetés e significa “alguém que fala no lugar de outro”, o porta-voz. Nesse sentido, vários personagens são eventualmente chamados de profetas ao longo da Bíblia: Abraão, Moisés, Davi. Todavia, o termo é mais propriamente aplicado a homens e mulheres que assumem o papel de mediadores entre Deus e a raça humana.

O fenômeno da profecia não é exclusivo de Israel. No mundo antigo, tal como hoje, é facilmente confundido com a capacidade de enxergar o futuro e prever os acontecimentos. Mas esta não é a única nem a principal atividade profética. A nomenclatura na Bíblia Hebraica é fluida e deixa entrever uma evolução no conceito do que significa agir como mediador: vidente, visionário, homem de Deus, profeta. Mais ainda, assinala também uma evolução dos meios de comunicação: visões; êxtase, possessão e transe; palavras e oráculos.

Os profetas bíblicos, portanto, não devem ser confundidos com adivinhadores do futuro. Eles não enxergam o futuro, mas sim o presente: observando as estruturas sociais e o comportamento individual das pessoas, o profeta emite um juízo, se aquela sociedade/pessoa caminha de acordo com a Lei de Yhwh ou não. Em caso afirmativo, aquela sociedade/pessoa pode ter esperança; em caso negativo, o que se antevê é a catástrofe.

6.1 Profetas não escritores e profetas escritores

Em termos literários, os profetas podem ser divididos em dois grupos: os profetas não escritores e os profetas escritores ou clássicos.

Como o próprio nome diz, o termo profetas não escritores designa os profetas aos quais não foram atribuídos livros na Bíblia. Há uma longa lista de profetas não escritores, cuja atividade está principalmente descrita nos livros de Samuel e Reis. Os mais importantes são Elias e Eliseu; mas há também: Natã, Gad, Aías de Silo, Miqueias ben Yemla, Hulda (mulher) e vários outros. E, é claro, o próprio Samuel é qualificado como “último juiz e primeiro profeta”.

Os profetas escritores (ou profetas clássicos) constituem o grupo mais famoso; todavia, não formam o grupo mais numeroso. Na Bíblia Hebraica, são apenas quinze livros proféticos: os três maiores (Isaías, Jeremias, Ezequiel) e os doze menores (Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias). As edições cristãs, todavia, seguem o arranjo da Bíblia Grega (LXX): após Jeremias, acrescentam-se os livros de Lamentações e de Baruc; após Ezequiel, o livro de Daniel, com os acréscimos gregos.

6.2 Profetas maiores e profetas menores

A qualificação “maiores” e “menores” não é devida à importância nem ao período de atuação desses profetas. É motivada única e exclusivamente pelo tamanho dos livros e, por isso, deveria ser rejeitada. Em lugar de “profetas menores”, o mais correto é falar de “o livro dos Doze Profetas”.

Ficaram fora da lista acima: Baruc e Daniel. Baruc é um profeta cujo livro encontra-se somente na LXX e que por alguns é identificado com seu xará Baruc, o secretário de Jeremias. Quanto a Daniel, seu livro é um apocalipse e por isso na Bíblia Hebraica está entre os “Escritos”.

Quando se fala de “literatura profética”, é óbvio que se fala de profetas escritores. Mas cada um dos livros proféticos de nossas bíblias possui uma história redacional bastante complexa. Em primeiro lugar, a ordem dos livros não equivale à ordem cronológica que os profetas atuaram: Oseias é posterior a Amós e, no entanto, o livro de Amós está depois dos livros de Oseias e de Joel (cujo período de atividade ainda é causa de polêmica). Segundo, há também questões referentes à autoria dos livros proféticos. Malaquias, por exemplo, é uma palavra que significa “mensageiro de Yhwh”: trata-se de um nome praticamente inventado para atribuir a ele o último livro dos Doze Profetas. E há trechos também em Isaías e em Zacarias (além do próprio Malaquias), cujos verdadeiros autores são anônimos, sem falar em Jonas, que não é o autor, e sim o protagonista do livro que leva seu nome.

6.3 A mensagem dos profetas

No que se refere à mensagem dos profetas, ela está ligada ao período histórico e ao lugar em que exerceram sua atividade. O marco fundamental é o exílio (586-537). Este período de cerca de cinquenta anos divide a história do povo de Deus em um “antes-durante-depois” que reflete nitidamente na mensagem dos profetas, principalmente os profetas de Judá (Reino do Sul).

De modo absolutamente sumário, é possível sintetizar assim a mensagem dos profetas escritores:

  • antes do exílio: “Convertam-se!”
  • durante o exílio: “Coragem!”
  • após o exílio: “Vamos nos unir!”

Cronologicamente, assim é possível situar os profetas escritores:

a) em Israel ou Efraim (Reino do Norte):

  • antes da queda da Samaria (721): Amós (± 780) e Oseias (± 760).

b) em Judá (Reino do Sul):

  • antes do exílio na Babilônia (até 586 aC): Isaías de Jerusalém (740-701); Miqueias (727-701); Sofonias (± 630); Jeremias (627-586); Naum (± 612 ?); Habacuc (± 600) e a primeira parte da pregação de Ezequiel (593-587).
  • durante o exílio na Babilônia (entre 586 e 539): a segunda parte da pregação de Ezequiel (587-571) e o Segundo Isaías (550-539)
  • após o exílio, em Jerusalém, nos primeiros anos da reconstrução (537 em diante): o Terceiro Isaías (538-510), Ageu (±520) e Zacarias 1-8 (±520)

Há também profetas e livros proféticos de datação incerta, alguns provavelmente do período helenista: Malaquias, Zacarias 9-14, Abdias, Joel, Jonas, Baruc e Daniel.

 7 Antigo Testamento e Palavra de Deus

Para os cristãos, Cristo é a plenitude da revelação de Deus; em outras palavras, Cristo é a perfeita manifestação de Deus e nele, portanto, a revelação encontra seu cumprimento. A leitura cristã das Escrituras adotou esquemas substancialmente bíblicos para exprimir a relação entre os dois Testamentos, de modo a afirmar que o Novo termina o que o Antigo tinha começado. Tais esquemas são:

  • continuidade e descontinuidade (novidade);
  • preparação e cumprimento;
  • figura e realidade;
  • promessa e realização.

Todavia, é um grave erro (heresia) afirmar que o Antigo Testamento só tem valor em função do Novo, ou que o Antigo é Palavra de Deus apenas porque é legitimado, completado e corrigido pelo Novo. Não!

O Antigo Testamento vale por si mesmo e é Palavra de Deus tanto quanto o Novo. Em outras palavras, o Antigo Testamento não depende do Novo para ser Palavra de Deus e  não é, em hipótese alguma, substituído pelo Novo. Ao contrário, o Novo se enraíza no Antigo, de tal modo que é necessário conhecer muito do Antigo Testamento para compreender um pouco do Novo!

Cássio Murilo Dias da Silva, PUC RS, Brasil. Texto original português.

8 Referências bibliográficas

GUIJARRO OPORTO, Santiago; SALVADOR GARCÍA, Miguel (eds.). Comentário ao Antigo Testamento. 2v. 3.ed. São Paulo: Ave Maria, 2009.

RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe (orgs.). Antigo Testamento – história, escritura e teologia. São Paulo, Loyola, 2010.

ZENGER, Erich et alii. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003. Bíblica Loyola, 36.

Para saber mais

CARMODY, Timothy R. Como ler a Bíblia. Guia para estudo. São Paulo: Loyola, 2008.

CHARPENTIER, Étienne. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulus, 1986. Entender a Bíblia.

DRANE, John (org). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Loyola – Paulinas, 2009.

HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a Bíblia. 8.ed. São Paulo: Paulus, 1997. Biblioteca de Estudos Bíblicos.

SCHMID, Konrad. História da literatura do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2013. Bíblica Loyola, 65).

[1]    Na Bíblia Hebraica, o livro de Rute pertence ao conjunto de livros denominados “Meguillot”, e está no terceiro bloco de livros, isto é, nos Escritos.